A liturgia deste trigésimo
domingo do tempo comum oferece Mateus 22,34-40 para o Evangelho. É mais uma
controvérsia de Jesus com os seus tradicionais adversários, os fariseus, como
parte da ofensiva final das autoridades religiosas de Jerusalém com o intuito
de desmoralizá-lo e antecipar a sua condenação. O local da cena é, mais uma
vez, o templo de Jerusalém, espaço bastante hostil a Jesus, uma vez que sua
mensagem era de reprovação total à religião oficial sediada naquele templo.
Os administradores do sagrado –
sacerdotes, doutores da lei, saduceus, anciãos, fariseus – sentiam-se ameaçados
pela mensagem emancipadora e contestadora de Jesus e, por isso, procuravam
incansavelmente uma maneira de deslegitimá-lo. Para isso, formaram uma coalizão
de forças. A primeira tentativa foi encabeçada pelos próprios sumos sacerdotes
e anciãos do povo, aos quais Jesus respondeu com uma série de três parábolas
(cf. Mt 21,28 – 22,14).
Tendo fracassado a tentativa
dos sumos sacerdotes e anciãos, entraram em cena os fariseus, com a pergunta
sobre a legitimidade do imposto a César (cf. Mt 22,15-21), os saduceus, com a
pergunta sobre a ressurreição (cf. Mt 22,23-33), e novamente os fariseus com a
pergunta sobre o maior dos mandamentos, no Evangelho de hoje. Trata-se de uma
série de tentativas para pôr Jesus em dificuldade e até levá-lo à morte, como
de fato acontecerá.
A frase inicial é muito
importante para a compreensão de todo o texto: “Os fariseus ouviram dizer
que Jesus tinha feito calar os saduceus” (v. 34a). Ora, como Jesus tinha
vencido a controvérsia com os fariseus sobre o imposto, os saduceus também
entraram em cena com uma pergunta embaraçante sobre a ressurreição. Porém,
também aos saduceus Jesus vencera, deixando-os calados, ou seja, sem
argumentos. Como havia um verdadeiro consórcio de morte entre os grupos hegemônicos,
intelectual e economicamente, à medida que um desses era vencido, outro
apresentava a sua investida. Como Jesus já estava em Jerusalém e no templo,
seus adversários não podiam mais esperar; a oportunidade de tirar-lhe a vida
tinha chegado.
Como Jesus se sobressaíra na
questão do imposto e da ressurreição, os fariseus armavam uma nova cilada, como
atesta o texto: “Então eles se reuniram em grupo e um deles perguntou a
Jesus, para experimentá-lo” (vv. 34b-35). A intenção é muito clara, conforme
diz o texto. O objetivo é tentá-lo, pô-lo a prova, ação própria de inimigo.
Inclusive, o evangelista emprega aqui o mesmo verbo empregado no episódio das
tentações, para definir a ação de satanás (cf. Mt 4,1): peira,zw – peirazo = tentar. Assim, os religiosos assumem um papel
satânico diante do medo de perderem seus privilégios com a mensagem libertadora
de Jesus.
Um dos fariseus, escolhido pelo grupo, faz uma pergunta
bastante maliciosa: “Mestre, qual é o maior mandamento da lei?” (v. 36).
A maldade dos fariseus já é perceptível pela introdução da pergunta: chamam a
Jesus de mestre (dida,skaloj – didáskalos) sem reconhecê-lo como tal. Por sinal, quem
costuma chamar Jesus de mestre no Evangelho de Mateus são os seus adversários;
seus discípulos nunca o chamam assim. Os adversários o chamam por agirem por pura
conveniência. Também o conteúdo da pergunta demonstra ironia e malícia. A
especialidade dos fariseus era exatamente o estudo minucioso da lei e dos
mandamentos. Com essa pergunta eles não pretendem aprender, mas encontrar
motivo para condená-lo, pois consideravam-se autossuficientes em matéria da
lei.
Os fariseus
consideravam a observância do sábado como o maior dos mandamentos, e já tinham
assistido Jesus relativizá-lo, ao colocar o homem e suas necessidades acima do
preceito sabático (cf. Mt 12,1-13). A alegação para a primazia do sábado sobre
os demais mandamentos na concepção dos fariseus era fundamentada no fato de que
até Deus observava o sábado (cf. Gn 2,2-3; Ex 20,8-11; Dt 5,12-15). Eram muito
comuns as perguntas sobre uma certa hierarquia entre os mandamentos, uma vez
que esses eram muitos: 613, divididos entre 365 proibições e 248 preceitos.
Sendo tantos assim, os fariseus tinham a necessidade distinguir quais eram os
mais importantes e, portanto, inegociáveis.
Até então,
Jesus tinha demonstrado muita liberdade ao interpretar os mandamentos, por
isso, os fariseus imaginavam que com essa pergunta teriam argumentos para
eliminá-lo por completo. Como sempre, ao invés de incompleta, a resposta de
Jesus vai muito além do que fora pedido: “Amarás o Senhor teu Deus de todo o
teu coração, de toda a tua alma e de todo o teu entendimento!” (v. 37).
Jesus encontra uma resposta que transcende o decálogo. De fato, a fórmula do
primeiro mandamento como nos foi ensinado “amar
a Deus sobre todas coisas” não faz parte de nenhuma das versões do decálogo
(cf. Ex 19,3-17; Dt 5,6-21), mas é apenas uma adaptação das tradições cristãs.
A resposta de
Jesus encontra seu fundamento no credo de Israel, o Shemá: “Ouve ó Israel: O
senhor é nosso Deus e único Senhor! Por isso, amarás o Senhor teu Deus com todo
o teu coração, com toda a tua alma e com toda a tua força” (cf. Dt 6,4-5). Com
pequenas modificações, Jesus confirma que o ser humano deve amar a Deus com o
máximo de si. Como Ele mesmo diz, “esse é o maior e o primeiro mandamento”
(v. 38), qualificando-o com dois adjetivos absolutizantes: maior (em grego: mega,lh – megále) e primeiro (em grego: prw,toj – protos), significando aquilo que é essencial e
irrenunciável. Porém, a resposta de Jesus não visa uma hierarquização dos
mandamentos, mas uma denúncia: enquanto os fariseus buscavam classificar os
mandamentos, Jesus diz que basta viver a genuína fé israelita. O Shemá era proclamado duas vezes ao dia,
ao amanhecer e ao anoitecer pelos fariseus, mas na verdade eles não viviam aquilo
que proclamavam. Se vivessem em comunhão com Deus, não ficariam preso a preceitos.
Como é praxe,
Jesus responde mais do que lhe é perguntado: “o segundo é semelhante a esse: “Amarás ao teu próximo como a ti mesmo”
(v. 39). Também aqui Jesus ignora o decálogo e faz uma citação do livro do
Levítico (cf. Lv 19,18b), do contexto das recomendações morais. É importante
perceber a introdução: é semelhante (em grego: o`moi,oj – homoíos), quer dizer, é
equivalente, está no mesmo nível. Para Jesus, o amor a Deus não pode ser
separado do amor às pessoas; aqui está a singularidade do seu ensinamento.
Enquanto os
fariseus procuravam classificar os mandamentos, focando em minuciosidades,
Jesus toma o todo da lei e dos profetas e faz a sua própria síntese, conforme
relata o evangelista: “Toda a lei e os
profetas dependem desses dois mandamentos” (v. 40). Os fariseus queriam
distinguir preceitos, e Jesus mostrou a unidade e coerência da lei e dos
profetas. Sem essa visão de conjunto, a religião excluía e até matava. Ao
mostrar que o amor a Deus é inseparável do amor ao próximo, Jesus prega a
unidade, coesão e coerência na comunidade.
Jesus dá um
passo muito importante com essa resposta. Ele conhecia bem a devoção que seus
compatriotas tinham por esses duas partes da Escritura, a lei e os profetas. Ao
mesmo tempo, conhecia a exterioridade e esterilidade com que se aproximavam
delas. Por isso, respondeu de modo tão enfático, sobretudo, no que diz respeito
ao próximo: o ser humano é colocado em uma tríade, cujo centro é o próximo,
conforme a ordem da resposta: Deus – Próximo – Eu. Essa relação tríade deve ser
guiada por um amor semelhante, para ser verdadeiro. Com isso, Jesus deixa claro
que só há uma maneira de demonstrar que amamos a Deus e a nós mesmos: quando o
próximo ocupa o centro da nossa vida!
Mossoró-RN,
28/10/2017, Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues