sábado, junho 27, 2020

REFLEXÃO PARA A SOLENIDADE DE SÃO PEDRO E SÃO PAULO – MATEUS 16,13-19





Todos os anos, na solenidade dos apóstolos Pedro e Paulo, a liturgia propõe Mateus 16,13-19 para o Evangelho, texto que contém a famosa confissão de fé de Pedro na região de Cesaréia de Filipe. Esse é um episódio comum aos três Evangelhos Sinóticos (cf. Mt 16,13-19; Mc 8,27-30; Lc 9,18-21), embora a versão de Mateus apresente mais elementos próprios, o que lhe rendeu uma maior valorização na reflexão teológica ao longo dos séculos, sobretudo, no cristianismo católico.

A recordação dos apóstolos é sempre importante para a vida da Igreja, porque a ajuda a manter-se alinhada às suas origens, não obstante os desgastes históricos. Pedro e Paulo foram imprescindíveis para o cristianismo das origens conservar os ensinamentos de Jesus e, ao mesmo tempo, para se espalhar e crescer, extrapolando os limites culturais e geográficos do judaísmo e da Palestina. Olhando para o exemplo dos dois, a Igreja, de hoje e de sempre, é interpelada, cada vez mais, a renovar-se e edificar-se somente pela fé em Jesus Cristo, sem tomar como parâmetro nenhuma instituição terrena.

Antes de entrarmos na reflexão do texto em si, é necessário fazer algumas considerações a respeito do contexto do relato no conjunto do Evangelho. Esse trecho abre uma série de acontecimentos importantes da vida de Jesus e dos seus seguidores, como a transfiguração (cf. 17,1-7) e os dois primeiros anúncios da paixão (cf. 16,21-23; 17,22). Na verdade, podemos dizer que tais acontecimentos são consequência do episódio narrado no Evangelho de hoje, pois tanto a transfiguração quanto os anúncios da paixão são tentativas de Jesus revelar a sua verdadeira identidade, tendo em vista que os discípulos ainda não tinham tanta clareza dessa.

Recordamos o que sucede ao nosso texto no conjunto do Evangelho, mas também não podemos deixar de recordar o que lhe antecede: uma controvérsia com os fariseus, os quais pediam sinais a Jesus (cf. 16,1-4), e uma séria advertência aos discípulos para não se deixarem contaminar pelo fermento dos fariseus e saduceus (cf. 16,5-12). Esse fermento era a mentalidade equivocada sobre Deus e o futuro messias e, principalmente, a hipocrisia em que viviam. Mateus recorda tudo isso porque, certamente, a sua comunidade passava por uma crise de identidade: por falta de clareza da identidade de Jesus e falta de experiência autêntica com o Crucificado-Ressuscitado, o “fermento dos fariseus”, quer dizer a influência da sinagoga, estava atrapalhando a vivência das bem-aventuranças, e impedindo a realização do Reino dos céus naquela comunidade.

Agora podemos, portanto, direcionar nosso olhar para o texto que a liturgia nos oferece: “Jesus foi à região de Cesaréia de Filipe e ali perguntou aos seus discípulos: ‘Quem dizem os homens ser o Filho do homem?’” (v. 13). O texto começa com um indicativo espacial: Cesaréia de Filipe estava localizada no extremo norte de Israel, portanto, muito longe de Jerusalém. Como o próprio nome indica (homenagem a César), era um centro do poder imperial e, portanto, lugar de culto ao imperador romano. Certamente o evangelista e sua comunidade tinham um propósito muito claro ao narrar esse episódio e recordar a sua localização.

Longe de Jerusalém, os discípulos estariam isentos de qualquer influência da tradição religiosa judaica, ou seja, livres do fermento dos fariseus e, portanto, aptos a confessarem e professarem livremente a fé em Jesus, fora dos esquemas tradicionais da religião. Ao mesmo tempo, estando em uma região de culto ao imperador, a confissão da fé em Jesus seria um sinal de convicção e adesão ao projeto do Reino dos céus e uma demonstração da coragem que deve marcar a vida da comunidade cristã, chamada a testemunhar a Boa Nova e continuar a obra de Jesus, mesmo em meio às hostilidades impostas pelo poder imperial. Podemos dizer que professar a fé em Jesus é distanciar-se dos esquemas religiosos do judaísmo e, ao mesmo tempo, desafiar qualquer sistema que não coloque a vida e o bem do ser humano em primeiro lugar, como o império romano.

A pergunta de Jesus sobre o que dizem a respeito de si, ou seja, do Filho do Homem, não é demonstração de preocupação com sua imagem pessoal, mas com a eficácia do anúncio da comunidade. Até então, Jesus já tinha realizado muitos sinais entre o povo e ensinado bastante, mas pouca gente o conhecia verdadeiramente. Muitos o seguiam pela novidade que Ele trazia, uns pelo seu jeito diferente de acolher os mais necessitados e excluídos, outros para aproveitarem-se dos sinais que Ele realizava. Ele percebia tudo isso e, por causa disso, fez essa pergunta: “Que dizem os homens ser o Filho do Homem?” (v. 13b).

A resposta dos discípulos à pergunta de Jesus revela a falta de clareza que se tinha a respeito da sua identidade e, ao mesmo tempo, a boa reputação da qual ele já gozava diante do povo, certamente o povo simples, com quem Ele interagia e por quem lutava. Eis a resposta: “alguns dizem que é João Batista; outros, que é Elias, outros, ainda, que é Jeremias ou algum dos profetas” (v. 14). Sem dúvidas, Jesus estava bem-conceituado pelo povo, pois era reconhecido como um grande profeta. Mas Jesus é muito mais. Embora continuem sempre atuais, os profetas de Israel são personagens do passado. A comunidade cristã não pode ver Jesus como um personagem do passado que deixou um grande legado a ser lembrado. Isso impede a comunidade de fazer sua experiência com o Ressuscitado, presente e atuante na história.

A pergunta sobre o que as outras pessoas diziam a seu respeito foi apenas um pretexto. Na verdade, Jesus queria saber mesmo era o que seus discípulos pensavam de si. Por isso, lhes perguntou: “E vós, quem dizeis que eu sou?” (v. 15), uma vez que longe do “fermento dos fariseus”, os discípulos poderiam dar uma resposta sincera, isenta e livre. O texto afirma que “Simão Pedro respondeu: “Tu és o Messias, o Filho do Deus vivo” (v. 16). Não resta dúvida que os demais discípulos componentes do grupo dos doze também responderam. O evangelista enfatiza a resposta de Pedro por ser uma síntese do pensamento dos doze. Essa é a resposta do grupo e, portanto, da comunidade.

A resposta é complexa e profunda: Jesus é Messias e Filho e do Deus vivo. É muito significativo que Ele seja reconhecido e acolhido como o Messias esperado, ou seja, o Cristo, o enviado de Deus para libertar o seu povo e a humanidade inteira. Como circulavam muitas imagens de messias entre o povo, principalmente a de um messias guerreiro e glorioso, o segundo elemento da resposta de Pedro é de extrema profundidade e importância: “o Filho do Deus vivo” (em grego: ό υίός τού Θεού τού ζώντος – hó hiós tú Theú tú zontos). Além de definir a qualidade e especificidade do messianismo de Jesus, essa expressão serve também para denunciar a falsidade do culto ao imperador romano, o qual exigia ser reverenciado como filho de uma divindade.

Com a resposta de Pedro, a comunidade cristã é chamada a proclamar que Jesus é, de fato, o Cristo (termo mais fiel ao texto grego do que Messias), é o Filho do Deus vivo, ou seja, seu Deus é o Deus da vida, enquanto os deuses pagãos cultuados no império romano e até mesmo o Deus oferecido pelo templo de Jerusalém eram privados de vida, eram agentes de morte, sobretudo para o povo simples e excluído. A convicção de que Jesus é o Filho do Deus vivo compromete a comunidade a denunciar e desafiar todos os sistemas religiosos e políticos que não favoreçam a promoção da liberdade e da vida plena e abundante para todos.

Jesus se alegra com a resposta de Pedro e o proclama bem-aventurado: “Feliz és tu, Simão, filho de Jonas, porque não foi um ser humano que te revelou isso, mas o meu Pai que está no céu” (v. 17).  Não se trata de um elogio por um mérito particular de Pedro, até porque o conhecimento não é dele, mas do Pai que lhe revelou. O que Jesus faz é uma constatação: as coisas começam a funcionar na comunidade, pois a voz do Pai está sendo ouvida; como o Pai só revela seus desígnios aos pequeninos (cf. 10,21), e Pedro está falando a partir do que o Pai lhe sugere, ele está demonstrando adesão plena ao projeto do Reino, inserindo-se no mundo dos pequeninos! O Reino de Deus ou dos céus, como Mateus prefere, é um projeto alternativo de mundo que só tem espaço para quem aceita a condição pertencer ao mundo dos pequeninos. A bem-aventurança de Pedro consiste em abrir-se à vontade do Pai e deixar-se conduzir por essa.

Na continuidade, Jesus declara: “Por isso eu te digo que tu és Pedro e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja” (v. 18a). Jesus está declarando que Pedro está apto a participar da construção da sua comunidade, por estar aberto às intuições do Pai. Ao contrário da antiga religião judaica que precisava de um templo de pedras, a comunidade cristã é uma construção sim, mas pela sua coesão e unidade, por isso, na sua construção são necessárias pedras vivas. Pedro é uma destas pedras escolhidas por Jesus, a primeira, sem dúvidas. A pedra fundamental da construção é a fé da comunidade. A força, o equilíbrio e a perseverança da comunidade dependem da solidez da sua fé. Por isso, é necessário que essa fé seja forte como uma rocha, comparável a fé que Pedro tinha acabado de professar.

É importante esclarecer que Mateus usa duas palavras gregas muito parecidas para designar Pedro e pedra: Πέτρος– Petros e πέτρα - petra. Embora muito próximas, é possível distingui-las: “Petros”que foi transformada no nome próprio Pedro, designa pedra, pedregulho ou tijolo, uma pedra pequena e removível, uma pedra de construção; “petra”, por sua vez, designa a superfície rochosa, base ideal para os fundamentos de uma construção segura. São estas as bases necessárias para a edificação da Igreja enquanto comunidade do Reino. Portanto, Jesus diz que Pedro (petros) é uma pedra-tijolo da construção, e a pedra-rocha (petra) é a fé que ele professou, a superfície rochosa sobre a qual a Igreja é edificada.

Ao contrário do templo de Jerusalém e dos templos pagãos que haviam na região de Cesaréia de Filipe, construídos sobre pedras concretas e visíveis e, portanto, passíveis de destruição, a comunidade cristã não correrá esse risco se for edificada conforme Jesus pensou, ou seja, tendo a fé por fundamento. Por isso, Ele declara: “e o poder do inferno nunca poderá vencê-la” (v. 18b). Aqui Ele se refere às hostilidades que a comunidade irá enfrentar em seu longo percurso até a realização plena do Reino aqui na terra. São as forças de morte manifestadas nos diversos sistemas de dominação, tanto políticos quanto religiosos. A comunidade precisa de uma fé muito consistente para resistir a tudo isso.

No último versículo temos mais uma declaração significativa de Jesus a Pedro e à comunidade dos discípulos: “Eu te darei as chaves do Reino dos céus: tudo o que ligares na terra será desligado nos céus; tudo o que desligares na terra será desligado nos céus” (v. 19). Mais que delegando poderes, Jesus está responsabilizando a comunidade para fazer o Reino dos céus acontecer já aqui na terra. A comunidade recebe “as chaves do Reino dos céus” porque é nela que se faz a experiência da fé e da comunhão profunda com Deus, através da prática das bem-aventuranças (cf. 5,1-12), e é isso que torna alguém apto para entrar nos céus. Qualquer um que professa convictamente a fé em Jesus e vive seu programa de vida expresso nas bem-aventuranças tem a chave de acesso ao Reino. “Ligar e desligar” é, portanto, responsabilidade, e não poder. 

Com essas imagens tão fortes (chaves – ligar – desligar) Jesus convida a sua Igreja, comunidade do Reino, a viver sempre em perfeita sintonia com Ele mesmo e com o Pai, de modo que tudo aquilo que a comunidade experimentar será referendado pelos céus! Ele dá as chaves para a sua comunidade abrir a todos o Reino que os escribas e fariseus tinham trancado (cf. 23,13). Todo cristão e cristã possui as chaves do Reino, porque o seu testemunho pode abrir ou fechar o Reino para alguém! Que a memória dos apóstolos Pedro e Paulo renove na Igreja a fé autêntica no Crucificado-Ressuscitado, e a sua índole missionária.


Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN


sábado, junho 20, 2020

REFLEXÃO PARA O DÉCIMO SEGUNDO DOMINGO DO TEMPO COMUM – MATEUS 10,26-33 (ANO A)




Neste décimo segundo domingo do tempo comum, continuamos a leitura do discurso missionário de Jesus no Evangelho segundo Mateus, iniciada no domingo passado. Naquela ocasião, tivemos a oportunidade de ler a parte inicial desse discurso (vv. 1-8), compreendendo a convocação dos doze discípulos e o envio deles como apóstolos, após receberem autoridade para fazer o mesmo que Jesus fazia, e ainda as primeiras instruções para a missão. O texto lido hoje – Mt 10,26-33 – já se aproxima do final. O discurso missionário é o segundo dos cinco discursos de Jesus no Evangelho segundo Mateus, e ocupa todo o décimo capítulo. Ora, de todos os evangelistas, Mateus é aquele que mais priorizou a dimensão do ensino e a função de mestre na vida de Jesus, distribuindo os principais aspectos do seu ensinamento (em grego: διδασκαλία – didascalía) em cinco grandes discursos que delineiam a estrutura de todo o evangelho, a saber: o discurso da montanha (Mt 5–7); o discurso missionário (Mt 10); o discurso em parábolas (Mt 13); o discurso comunitário (Mt 18) e o discurso escatológico (Mt 24–25).

Como indica o próprio título, o segundo discurso trata da missão, e foi motivado pelo inconformismo de Jesus diante da situação das multidões que estavam cansadas e abatidas como ovelhas sem pastor, ou seja, abandonadas e exploradas pelos chefes dos poderes político, econômico e religioso da época. Vendo isso, Jesus teve compaixão, ou seja, sentiu contorcerem-se as suas entranhas (Mt 9,36) e, inconformado, tomou uma atitude: chamou os seus discípulos e os enviou em missão, autorizando-os a fazer o mesmo que ele fazia: restituir vida, dignidade e esperança, anunciando o Reino e denunciando tudo o que impedia o ser humano de viver com dignidade. Isso indica que a missão cristã é uma verdadeira intervenção no mundo; implica em ações transformadoras em prol do bem do ser humano. Os discípulos-apóstolos de Jesus não são portadores de uma doutrina estática ou de um código moral, mas de uma mensagem transformadora e comprometedora. Assim como Jesus, também eles não podem assistir passivamente às injustiças e sofrimentos do povo.

Anunciar que o “Reino dos Céus está próximo” exige a luta para que tudo o que se opõe a ele seja abolido. Por Reino dos Céus, entende-se um mundo solidário, justo e fraterno, sem violência e nem ódio. Quem luta por isso, inevitavelmente, será vítima de perseguições hostilidades, como previu o próprio Jesus (Mt 10,16-25). Após alertar os discípulos sobre a quase certeza da perseguição, Jesus os encoraja para não desanimarem. E é isso o que compreende o texto lido hoje: o convite à coragem e à confiança no Pai e no próprio Jesus. Como última observação a nível de contexto, convém recordar que toda essa lógica e estrutura do texto correspondem mais à época da redação do evangelho e à situação da comunidade do evangelista, que já sofria perseguições, tanto do judaísmo oficial quanto da administração imperial romana, do que mesmo à época de Jesus. O evangelista recolheu os principais ensinamentos de Jesus e os distribuiu conforme suas intenções teológicas, habilidades literárias e a necessidades da sua comunidade, transmitindo-os como válidos para todos os tempos.

Tendo previsto a perseguição como inevitável na vida dos seus discípulos missionários, Jesus procura encorajá-los. Por isso, o imperativo negativo “Não tenhais medo” aparece três vezes no evangelho de hoje, funcionando como uma espécie de refrão; essa expressão é muito significativa em toda a Bíblia; nos dois testamentos, ela aparece com frequência nos contextos de vocação e missão. Vejamos o texto: Não tenhais medo dos homens, pois nada há de encoberto que não seja revelado, e nada há de escondido que não seja conhecido. (v. 26) O que vos digo na escuridão, dizei-o à luz do dia; o que escutais ao pé do ouvido, proclamai-o sobre os telhados!” (v. 27). A primeira motivação à coragem diz respeito ao anúncio. Como a mensagem de Jesus é transformadora e comprometedora, não pode ser anunciada por quem tem medo, pois é certo que trará consequências. Ao invés do medo que paralisa e acomoda, os discípulos devem proclamar o que Deus revela por meio de Jesus. Inclusive com os mesmos sentimentos de inconformismo e compaixão, como Jesus, diante do sofrimento e abandono das multidões.

O que havia de encoberto até então, e que não poderia mais permanecer, era o que Jesus já tinha ensinado somente aos discípulos. Não se trata de planos secretos e mistérios, mas da mensagem de Jesus, até então pouco conhecida. Tinha chegada o momento de tornar público, fazer espalhar o que os discípulos tinham aprendido do mestre, especialmente o seu jeito de viver. Por isso, é um anúncio que não tem sentido se não for acompanhado pelo testemunho. O estilo de vida de Jesus, retratado nas bem-aventuranças (Mt 5,1-12), já é uma grande denúncia do sistema, e a única maneira de anunciá-lo com credibilidade é vivendo à sua maneira. A expressão “o que vos digo na escuridão” e “o que vos digo no pé do ouvido” significam tudo aquilo que somente os discípulos ouviram e viram Jesus fazer; é o aprendizado que somente a convivência favorece. Na verdade, tudo de Jesus deve ser anunciado sem medo, com palavras e testemunho, de modo que se torne conhecido por todo o mundo. Por isso, o imperativo “proclamai-o sobre os telhados”, que é um convite ao esforço e à criatividade no anúncio. Na época da redação do evangelho, a comunidade de Mateus já estava separada do judaísmo oficial; era um grupo marginalizado. Os discípulos não tinham os púlpitos das sinagogas à disposição, como os rabinos da época tinham, nem podiam acomodar-se a estruturas estáticas e cômodas, tampouco poderiam recuar do anúncio por medo. Por isso, deveriam buscar alternativas para o anúncio, com ousadia e criatividade, transformando até os telhados da casa em púlpitos, se fosse necessário.

O convite à coragem é recordado novamente: “Não tenhais medo daqueles que matam o corpo, mas não podem matar a alma! Pelo contrário, temei aquele que pode destruir a alma e o corpo no inferno!” (v. 28). Dessa vez, Jesus alerta para a real possibilidade do martírio na vida dos seus discípulos missionários. Um pouco antes, tinha alertado que eles sofreriam açoites, seriam entregues nas sinagogas e tribunais (10,17). Agora, alerta que até a morte é provável, mas apesar disso eles não devem ter medo, pois a vida em sua totalidade pertence somente a Deus. Aqueles que imaginam matar, na verdade só podem destruir o corpo; eles não têm poder sobre a alma, que significa a totalidade do ser da pessoa; é a vida mesma em sua inteireza. Aqui, essa distinção não corresponde ao dualismo corpo–alma, típico do pensamento grego. Para a mentalidade hebraica, a alma (em grego: ψυχή – psiquê) é a totalidade do ser da pessoa, é a própria vida; o corpo não é o seu oposto, mas um elemento integrante que, ao parecer, não torna menor a vida. Portanto, Jesus está encorajando os discípulos a não terem medo e, ao mesmo tempo, garantindo que a vida deles está nas mãos de Deus, o Pai. Os discípulos devem temer a perda total da vida, o que não é um castigo, mas consequência das próprias escolhas. O termo grego empregado pelo evangelista e traduzido por inferno (γέεννα – ghéena) descreve o “lixão” de Jerusalém: o local onde era jogado e queimado todo o lixo da cidade, incluindo os restos de animais, o qual aumentava consideravelmente durante as festas religiosas; isso gerava um fogo permanente, com odor desagradável, e passou a ser usado por muitos pregadores como imagem do inferno, o destino dos pecadores. Mateus emprega com uma conotação mais amena: não vê como castigo, mas como sinônimo do que não tem sentido, o que é inútil. E, para ele, inútil e sem sentido é a vida de quem tem medo de anunciar o Evangelho e assumir as suas consequências.  

O encorajamento passa pela confiança na providência do Pai, o que vem ilustrado pelo exemplo dos pardais e dos fios de cabelo, elementos considerados insignificantes: “Não se vendem dois pardais por algumas moedas? No entanto, nenhum deles cai no chão sem o consentimento do vosso Pai. (v. 29) Quanto a vós, até os cabelos da cabeça estão todos contados (v. 30) Não tenhais medo! Vós valeis mais do que muitos pardais” (v. 31). De fato, só é possível superar o medo com a confiança no Pai. Os pardais eram os pássaros de menor valor, inclusive considerados nocivos para as plantações, pois comiam os grãos antes da colheita. Também serviam de alimentação para os pobres, sendo comercializados como a carne mais barata. Não obstante essa aparente insignificância, eles fazem parte da criação e estão também sob os cuidados do Pai, por isso, são também importantes. O cabelo era considerado o menor e mais inútil elemento do corpo humano e, mesmo assim, contato pelo Pai. Ora, se até com coisas tão insignificantes Deus tem cuidados, muito mais tem com a vida dos discípulos e discípulas do seu Filho, os anunciadores do seu Reino e construtores de um mundo novo.

É preciso, portanto, coragem para anunciar e testemunhar, declarando-se a favor de Jesus e do seu projeto de vida e libertação: “Portanto, todo aquele que se declarar a meu favor diante dos homens, também eu me declararei em favor dele. (v. 32) Aquele, porém, que me negar diante dos homens, também eu o negarei diante do meu Pai que está nos céus” (v. 33). Declarar-se a favor de Jesus significa ser no mundo sinal da sua própria presença; indignando-se ao contemplar pessoas abandonadas e sofridas, e buscar soluções transformadoras; é agir com misericórdia diante do sofrimento das pessoas, denunciando as injustiças e todos os impedimentos ao florescer do Reino dos Céus. Negá-lo não é deixar de proclamar uma fórmula de fé, mas deixar de viver seu programa de vida expresso nas bem-aventuranças. Tudo isso, é claro, gera consequências, o que não deve ser interpretado como prêmio ou castigo, mas apenas como fruto de escolhas e opções feitas.

Pela intimidade entre Jesus e o Pai, obviamente, o declarar-se a seu favor é também receber o seu testemunho diante do Pai. Quem tem intimidade com Jesus se torna íntimo do Pai que lhe enviou. E essa intimidade se constrói fazendo as mesmas opções de Jesus e vivendo como ele. Para isso, é preciso, acima de tudo, coragem, pois essas opções trazem, inevitavelmente, consequências, como a doação da própria vida.

Pe. Francisco Cornélio Freire Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

sábado, junho 13, 2020

REFLEXÃO PARA O DÉCIMO PRIMEIRO DOMINGO DO TEMPO COMUM – MATEUS 9,36–10,8 (ANO A)




Neste décimo primeiro domingo do tempo comum, a liturgia retoma a leitura sequencial do Evangelho segundo Mateus, interrompida desde o início da quaresma até a solenidade da Santíssima Trindade, celebrada no domingo passado. O texto proposto para hoje – Mt 9,36–10,8 – compreende o envio dos doze apóstolos em missão, por Jesus, para sanar a situação de abandono do povo de Israel, devido à negligência e corrupção de seus líderes, os dirigentes políticos e religiosos que fugiram das responsabilidades de pastores. Esse envio é fruto do olhar compassivo de Jesus, que não fica indiferente diante das situações de abandono e opressão pelas quais passam os seres humanos. Jesus sempre toma iniciativas que visam a transformação de todas as situações de ameaça à vida. E essa postura deve ser a mesma da comunidade cristã em todos os tempos.

A nível de contexto, podemos observar que se trata de um texto de transição entre uma seção narrativa e um discurso de Jesus. Por sinal, a alternância entre narrativa e discurso é uma das principais características literárias do Evangelho segundo Mateus. O texto compreende, pois, a conclusão da seção narrativa que sucedeu ao discurso da montanha (Mt 8,1–9,38) e a introdução de um novo discurso, o chamado “discurso missionário” ou “apostólico” (Mt 10), composto pelo envio missionário e uma série de instruções e advertências sobre a missão; esse é o segundo dos cinco discursos atribuídos a Jesus em Mateus. Para compreender melhor o texto, é importante recordar também o que afirma o versículo que o antecede, que sintetiza a missão de Jesus até então: “Jesus percorria todas as cidades e povoados, ensinando em suas sinagogas, proclamando o Evangelho do Reino e curando todo tipo de doença e enfermidade” (9,35). O que Jesus irá fazer nos versículos seguintes, correspondentes ao evangelho de hoje, é habilitar os seus discípulos como cooperadores da sua missão, para fazer o mesmo que ele fazia.

Podemos perceber, ao longo dos Evangelhos, que são sempre as situações concretas que motivam a ação e a pregação de Jesus. Ele nunca parte de meras abstrações, mas da realidade. O texto de hoje é uma boa demonstração disso. Olhemos, então, para o início, compreendendo os três primeiros versículos: “Vendo Jesus as multidões, compadeceu-se delas, porque estavam cansadas e abatidas, como ovelhas que não têm pastor. Então disse a seus discípulos: (v. 36) ‘A messe é grande, mas os trabalhadores são poucos. (v. 37) Pedi, pois, ao dono da messe que que envie trabalhadores para a sua colheita!” (v. 38). A itinerância da atividade de Jesus (Mt 9,35) lhe permitia conhecer com profundidade as situações em que o povo se encontrava. Seu 0lhar nunca era superficial, mas sempre profundo. Jesus contempla um povo abandonado, oprimido e maltratado; é isso o que significa a expressão “as multidões cansadas e abatidas”; não se trata de um cansaço físico e desânimo, mas de uma situação deplorável de abandono e miséria. A comparação com ovelhas que não tem pastor é a prova disso. A ovelha era considerada o animal símbolo de vulnerabilidade e dependência; não possuía nenhum mecanismo de defesa; dependia essencialmente dos cuidados dos pastores. Logo, ovelha sem pastor é imagem de completo abandono; com essa imagem Jesus descreve a situação do povo e, ao mesmo tempo, faz uma dura denúncia às classes dirigentes da época, tanto religiosas quanto políticas, responsáveis pelo abandono do povo.

Ao ver as multidões abandonadas, “Jesus compadeceu-se”, ou seja, sentiu compaixão, misericórdia. Não se trata de um mero sentimento, mas de algo muito mais profundo. O evangelista emprega aqui o verbo que expressa a máxima misericórdia de Deus (em grego: σπλαγχνίζομαι – splanknízomai), que significa literalmente “contorcer-se nas entranhas”; para a mentalidade hebraica, as entranhas ou vísceras são o núcleo mais íntimo e profundo do ser humano. É uma realidade mais profunda até do que o coração, e é de lá que brota a misericórdia de Deus. E, mais do que sentimento, a misericórdia de Deus é ação libertadora. Do núcleo mais íntimo de Deus é desencadeada a missão, incialmente de Jesus, e compartilhada por ele com toda a comunidade cristã, tendo em vista a libertação do povo abandonado e explorado pelos sistemas dominantes nos âmbitos da economia, da política e da religião. Compadecido com a situação das multidões, Jesus não se desespera e nem se conforma; e é muito importante essa sua postura. Antes de tudo, ele reforça sua confiança no Pai, o dono da messe, outra imagem aplicada às multidões, a exemplo de ovelhas. A messe é a lavoura que está pronta para ser colhida, não pode mais esperar, pois pode perder-se. Aplicada às multidões abandonadas, significa que aquela situação exige uma atitude urgente; sem uma intervenção salvadora, o povo perecerá. É importante que os discípulos e discípulas de todos os tempos tenham a sensibilidade de perceber as situações que necessitam de intervenção urgente, como a fome, as doenças, as manipulações ideológicas e tantos outros males. Diante disso, Jesus concilia a confiança no Pai com atitudes concretas: a designação de operários para a colheita, o que faz com o envio dos discípulos transformados em apóstolos.

A messe é de Deus, quer dizer, é a Deus que o povo pertence, mas para que não se perca é necessária a colaboração humana. Por isso, “Jesus chamou os doze discípulos e deu-lhes poder para expulsar os espíritos maus e para curar todo tipo de doença e enfermidade” (10,1). A iniciativa de chamar os discípulos é uma advertência: o discipulado não é puro voluntarismo e nem hereditário; a iniciativa é sempre de Deus. Jesus está pondo em prática os efeitos da oração exigida antes: que os discípulos pedissem ao dono da messe que enviasse operários para a colheita. Como o enviado de Deus por excelência e intérprete autêntico da sua vontade, Jesus mesmo envia, compartilhando com seus discípulos a mesma autoridade recebida de Deus. “Expulsar espíritos maus e curar todo tipo de enfermidade” é uma imagem que significa o compromisso dos discípulos e discípulos de Jesus, em todos os tempos, de lutar contra todo o tipo de mal que ameaça a vida humana em sua integridade. É o esforço da comunidade cristã para abolir as forças do mal do mundo. Pela primeira e única vez, Mateus chama os doze primeiros discípulos de apóstolos (10,2), termo que significa “enviados”. Literalmente, apóstolo é uma pessoa enviada para representar fisicamente aquele que lhe enviou, inclusive em processos. Antes de ser apóstolos eles são discípulos. Também é a primeira e única vez em que ele elenca os nomes dos doze, começando por Simão, chamado Pedro, e terminando com Judas, o qual se desintegrará do grupo após a traição, durante o processo (10,2-4). Não se trata de uma lista hierárquica, bem como a designação de discípulos em apóstolos não é uma promoção, mas um compromisso: é a responsabilidade de todos os cristãos e cristãs de estar com Jesus e, ao mesmo tempo, ser a sua presença no mundo, especialmente restituindo vida e dignidade a quem se encontra em estado de abandono.

Após o elenco dos nomes, o evangelista passa às atribuições dos doze, enquanto enviados, iniciando a sequência de instruções que se estenderá por todo o capítulo, e hoje temos a oportunidade de ler as primeiras: “Jesus enviou estes doze com as seguintes recomendações: “Não deveis ir aonde moram os pagãos, nem entrar nas cidades dos samaritanos! (10,5) Ide, antes, às ovelhas perdidas da casa de Israel!” (10,6). As primeiras recomendações dizem respeito à circunscrição da primeira missão: os discípulos devem ir exclusivamente às ovelhas perdidas da casa de Israel. Ora, a designação de Israel como primeiro destinatário da missão apostólica não significa um privilégio histórico, tampouco uma tentativa de reconstrução do povo da aliança, mas uma necessidade. Mais do que qualquer outro povo, eram os israelitas que estavam abandonados, o que significa que, de todos os dirigentes do mundo, eram os líderes de Israel os mais pervertidos. Por isso, era Israel o povo mais abandonado e, consequentemente, o mais necessitado de libertação. Seus líderes tinham fugido das responsabilidades de cuidar do povo, o que já era motivo de denúncias há muitos séculos, desde os profetas, como o exemplo de Ezequiel, que denunciou os pastores que cuidaram de si mesmos, ao invés de cuidar do rebanho (Ez 34). Ora, de todas as formas de dominação, a pior é a dominação religiosa, e Jesus tinha consciência disso. Por isso, sua primeira iniciativa foi promover a libertação de quem estava sendo explorado em nome de Deus.

Na sequência, o evangelista descreve o conteúdo e o agir dos apóstolos, deixando claro que não se trata de uma teoria ou doutrina, mas de um anúncio acompanhado de consequências práticas: “Em vosso caminho, anunciai: ‘O Reino dos Céus está próximo’ (10,7) Curai os doentes, ressuscitai os mortos, purificai os leprosos, expulsai os demônios”(10,8a). A mensagem que os discípulos devem anunciar é a mesma de Jesus, desde o anúncio do seu ministério (Mt 4,17): a chegada do Reino dos Céus; o “estar próximo”, aqui, não significa a temporalidade, mas a materialidade: na pessoa de Jesus, o Reino se instaura e, enquanto apóstolos, os discípulos são uma extensão da sua pessoa, logo, neles também o Reino começa a se realizar. Esse Reino é dos Céus porque sua origem é o amor misericordioso de Deus, mas começa já aqui, onde há pessoas abandonadas e exploradas, para quem a libertação não pode mais ser adiada. Como a missão compreende palavras e ações, também os gestos que os apóstolos devem cumprir são os mesmos que Jesus já estava cumprindo (Mt 4,23; 8,16; 9,35), e que já tinha sido antecipado no início deste segundo discurso (Mt 10,1): curas, ressurreição, purificação e expulsão de demônios, ações que evidenciam um mundo sem males, um mundo onde a vida prevalece.

Os discípulos-apóstolos ou missionários são responsáveis pela transformação do mundo, sanando as multidões abandonadas e exploradas, restituindo vida e dignidade. Isso só é possível colocando em prática o programa de Jesus. Por isso, o evangelista não se cansa de dizer que Jesus envia os seus discípulos para anunciar e realizar o mesmo que ele fez e pregou, sem distorções, mas também sem esquecer dos sinais dos tempos. A última recomendação do evangelho de hoje diz respeito à gratuidade do Reino: “De graça recebestes, de graça deveis dar!” (8b). Os discípulos e discípulas de Jesus não são mercadores do sagrado, como tinham se transformado as antigas lideranças de Jerusalém, e continua acontecendo hoje. Tudo o que a comunidade cristã tem a oferecer ao mundo é o que recebeu gratuitamente de Jesus. E tudo o que Jesus recebeu do Pai como dom compartilhou com os seus seguidores e seguidoras que, por sua vez, também devem compartilhar gratuitamente com o mundo para sanar as situações de degradação e negação da vida, muitas vezes provocadas por falsos pastores. É necessário, portanto, olhar o mundo com o mesmo olhar de Jesus, sentir compaixão e buscar a transformação, na gratuidade do amor misericordioso de Deus.

Pe. Francisco Cornelio Freire Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

sábado, junho 06, 2020

REFLEXÃO PARA A SOLENIDADE DA SANTÍSSIMA TRINDADE – JOÃO 3,16-18 (ANO A)





No domingo seguinte a pentecostes, a Igreja celebra a solenidade da Santíssima Trindade. Ao contrário das solenidades pascais, instituídas desde os primeiros séculos do cristianismo, essa já foi introduzida num período mais tardio – século quatorze. Como sempre, a nossa reflexão será pautada exclusivamente pelo evangelho, sem levar em consideração as afirmações dogmáticas a respeito da Santíssima Trindade. Por isso, ao invés de buscar definições e explicações para o mistério do Deus Uno e Trino, no qual cremos, procuraremos contemplar e assimilar a sua principal característica – o amor – revelada por Jesus, de acordo com o texto evangélico que a liturgia propõe neste ano: Jo 3,16-18. Apesar de curto, composto de apenas três versículos, esse texto possui uma profundidade e riqueza extraordinárias, como veremos no decorrer da reflexão. Como sempre, para o texto ser melhor compreendido, é necessário conhecer o seu contexto, como faremos a seguir.

Localizado ainda no início do Quarto Evangelho, esse texto faz parte do expressivo diálogo entre Jesus e Nicodemos, em Jerusalém. Ora, Jesus se encontrava em Jerusalém por ocasião da festa da “páscoa dos judeus” (Jo 2,13.23). Durante sua estadia na grande cidade, Jesus realizou muitos sinais, despertando, além de oposição nas autoridades, adesão ao seu nome e curiosidade em alguns, como Nicodemos, com quem desenvolveu um prolongado e rico diálogo (Jo 3,1-21). Esse diálogo se desenvolve em três momentos: o reconhecimento da autoridade de Jesus por Nicodemos (3,1-3); a explicação de Jesus que para acolhê-lo como enviado do Pai é necessário nascer do alto (3,4-8), e a descrição do projeto divino de salvação (3,9-21). Embora se trate de um diálogo, Nicodemos pouco fala; a palavra é praticamente monopolizada por Jesus; Nicodemos quase só escuta. Inclusive, no texto de hoje só temos palavras de Jesus, segundo o evangelista.

O evangelista descreve Nicodemos como um judeu importante, pertencente ao grupo dos fariseus (Jo 3,1), profundo conhecedor da Lei (Jo 7,50-52), e curioso pela novidade de Jesus. Sua curiosidade para conhecer melhor a mensagem de Jesus revela sinceridade e respeito, inclusive o reconhecimento de que Jesus “vem da parte de Deus” (Jo 3,2), o que muitos fariseus tinham dificuldade de reconhecer, conforme as informações fornecidas pelos quatro evangelhos. A leitura atenta do texto em seu conjunto (Jo 3,1-21) revela que Nicodemos não estava satisfeito com a religião oficial. Parece que a imagem do Deus pregado pela sua religião já não lhe convencia plenamente. Certamente, ele desejava uma profunda renovação, embora ainda não estivesse pronto para romper com o sistema e aderir ao projeto de Jesus. A simples curiosidade, no entanto, já é um passo importante para quem estava plenamente atrelado à estrutura religiosa da época, inclusive como uma das lideranças. Nicodemos aparecerá em mais duas ocasiões no Quarto Evangelho, e sempre tomando posições a favor de Jesus: defendendo-o da ira dos fariseus quando ele tinha se apresentado como fonte de água viva, em alusão ao Espírito Santo (7,37-52), e ajudando em seu sepultamento (19,39). Se já tinha interesse em conhecer Jesus pelo que ouvia a seu respeito, certamente o interesse aumentou ainda mais ao dialogar com ele.

Como último aspecto a nível de introdução e contexto, recordamos as circunstâncias em que Nicodemos procurou Jesus: foi na “calada da noite” (Jo 3,2). Esse detalhe tem sido alvo de muitas tentativas de explicação pelos estudiosos. A explicação mais conhecida afirma que Nicodemos procurou Jesus à noite para não ser visto pelos seus colegas de doutrina, ou seja, os fariseus e os líderes religiosos de Jerusalém, uma vez que Jesus não era bem visto por esse meio. De fato, para quem defendia a moral e os bons costumes na época, Jesus era uma péssima companhia. Porém, é provável que o evangelista tivesse intenções mais teológicas do que cronológicas para registrar esse detalhe, o que não convém aprofundarmos aqui, já que não é componente do evangelho de hoje, mas apenas um elemento do seu contexto.

Passemos, finalmente, ao estudo do texto, o qual começa com a seguinte afirmação de Jesus: “Deus amou tanto o mundo, que deu o seu Filho unigênito, para que não morra todo o que nele crer, mas tenha a vida eterna” (v. 16). Jesus apresenta Deus como aquele que ama incondicionalmente, e ao mesmo tempo se auto apresenta como a prova desse amor incondicional, já que é, ele mesmo, o Filho único doado ao mundo. Essa é a primeira vez em que aparece o verbo do amor por excelência, no Quarto Evangelho: o verbo grego “agapáo”, o qual aparecerá mais trinta e cinco vezes. De quatro verbos correspondentes a amar na língua grega, somente “agapáo” expressa um amor incondicional e gratuito, que compreende a doação da vida.  E assim é o amor de Deus: Ele deu seu Filho ao mundo sem exigir reciprocidade; a resposta de amor a Ele da parte do mundo, ou seja, de cada ser humano, é simplesmente consequencia de sentir-se amado. Com essa afirmação, Jesus praticamente inverte o primeiro mandamento da Lei: na verdade, é Deus quem ama cada pessoa sobre todas as coisas. O mundo, para a teologia joanina, pode significar toda a humanidade, a criação inteira e, ainda, a oposição a Jesus e sua mensagem de salvação. Aqui, significa toda a humanidade; o gênero humano como destinatário do amor incondicional de Deus, o Pai.

A primeira finalidade da oferta de Jesus – 0 Filho – pelo Pai ao mundo é a vida eterna, o que não se trata de uma promessa para o além, mas de um dom para o presente. O adjetivo “eterna”, aqui, não significa a duração, mas a qualidade da vida de cada pessoa que acolhe o dom do Pai, Jesus. Não é um prêmio reservado para os bons após a morte, mas a vida ressignificada de quem faz uma experiência autêntica com Jesus. É a vida autêntica e plena, a ponto de nem a morte poder destruí-la. À medida em que o ser humano encontra sentido para a sua existência, a sua vida se eterniza. E o sentido pleno da vida só pode ser encontrado quando se consegue viver autenticamente como imagem e semelhança do criador, à maneira de Jesus. E a humanidade tem a oportunidade de fazer essa experiência, pois o dom do Filho é acessível a ela toda, e não apenas a um povo. O amor de Deus é ilimitado e universal.

O segundo versículo reforça o que diz o primeiro com maior precisão: “De fato, Deus não enviou o seu Filho ao mundo para condenar o mundo, mas para que o mundo seja salvo por ele” (v. 17). A primeira frase, em forma de negação, enfatiza ainda mais o projeto de salvação de Deus, dizendo o que o Filho não veio fazer no mundo: condenar ou julgar. Considerando que o interlocutor de Jesus é um fariseu, observador impecável da Lei, essa frase adquire um sentido ainda mais forte: Deus não condena e nem julga ninguém; o versículo seguinte deixará isso ainda mais claro, ao afirmar que a condenação é opção pessoal de cada um(a). O pecado da humanidade não diminui o amor de Deus; tudo o que ele quer é que a humanidade seja salva; por isso, deu o seu Filho único. Salvar significa libertar, e é a missão que o Pai confiou a Jesus, ao enviá-lo ao mundo. A mensagem de Jesus é uma proposta de libertação plena para o ser humano. E a primeira prisão da qual Jesus quer libertar o ser humano é de uma concepção equivocada de Deus: a passagem da ideia de um Deus como juiz e patrão, para um Deus que é Pai e “louco” de amor pelos seus filhos. É importante recordar esse diálogo com Nicodemos é, na verdade, o primeiro discurso de Jesus no Quarto Evangelho; e sua primeira preocupação foi revelar que Deus é Pai e só tem amor para oferecer à humanidade.

Enquanto nos dois primeiros versículos Jesus falou da iniciativa de Deus, neste terceiro ele fala da resposta humana ao dom de Deus, com suas respectivas consequências: “Quem nele crê, não é condenado, mas quem não crê, já está condenado, porque não acreditou no nome do Filho unigênito” (v. 18). Assim como foi livre a oferta do Pai, também deve ser livre a resposta do ser humano. Não é mais o Deus do templo, que exigia ofertas e sacrifícios como contrapartida a favores e bênçãos; é o da Deus da liberdade e da vida. O verbo crer no Quarto Evangelho tem um significado muito profundo, relacionado ao amor, inclusive. Significa responder positivamente ao amor de Deus, assimilando o programa de vida de Jesus. Para quem faz essa opção, obviamente, não há condenação; se torna uma pessoa livre e realizada, com uma vida plena de sentido, ou seja, eternizada. Quem rejeita essa oferta, perde a oportunidade de dar sentido à vida, e é essa a condenação da qual fala Jesus aqui; não se trata de um castigo futuro, mas de uma opção pessoal de viver fora da comunhão com Deus ainda aqui na presente existência. Em outras palavras, o evangelista diz que a mensagem de Jesus exige uma tomada de posição pró ou contra.

A certeza que temos é de um Deus Pai, que ama a humanidade incondicionalmente. É isso que o evangelho de hoje deixa claro. Ao amor, a única resposta convincente é também o amor. Mesmo que o Pai não exija que lhe amemos, se nos deixarmos envolver pelo seu amor revelado em Jesus, não poderemos reagir de outra maneira que não seja amando a ele e ao próximo como imagem sua. Portanto, sem condições e nem capacidades para descrever um Deus que é Um, mas que são três pessoas, arrisquemos a viver por amor como seu Filho viveu.

Pe. Francisco Cornélio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN



REFLEXÃO PARA O 4º DOMINGO DA PÁSCOA – JOÃO 10,11-18 (ANO B)

O evangelho do quarto domingo da páscoa é sempre tirado do capítulo décimo do Evangelho de João, no qual Jesus se auto apresenta como o ún...