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sábado, novembro 04, 2023

REFLEXÃO PARA A SOLENIDADE DE TODOS OS SANTOS – MATEUS 5,1-12a


Neste ano, a liturgia do trigésimo primeiro domingo do comum é substituída pela solenidade de todos os santos. E o evangelho proposto para essa solenidade é Mt 5,1-12a, interrompendo, assim, a leitura semi-contínua do Evangelho de Mateus. É um texto fixo, lido todos os anos, certamente porque nenhuma outra passagem expressa tão bem o sentido da santidade como esse. Trata-se da introdução do primeiro dos cinco discursos de Jesus no Evangelho de Mateus, conhecido como “discurso ou sermão da montanha”. Essa introdução ficou conhecida como “bem-aventuranças”, devido à repetição constante do termo grego makárioi (μακάριοι), cujo significado é benditos, felizes ou bem-aventurados. Esse é, certamente, um dos trechos mais lidos e conhecidos de todo o Novo Testamento, apreciado por cristãos e não cristãos, pois contém o mais completo programa de humanização que o mundo já conheceu. Gandhi, por exemplo, definiu as bem-aventuranças como «as palavras mais altas que a humanidade já escutou».

As bem-aventuranças compreendem a síntese do programa de vida de Jesus e, consequentemente, daquilo que seus discípulos e discípulas de todos os tempos devem viver. É um texto belo, mas muito fácil de ter seu sentido deformado, se interpretado de modo equivocado, como geralmente tem acontecido. Ora, falar em todos os santos e santas tem tudo a ver com o autêntico seguimento de Jesus de Nazaré. Por isso, é importante refletir cada vez mais sobre as palavras de Jesus que o Evangelho apresenta. Na verdade, todo o discurso da montanha é um indicador de direção para o discipulado de Jesus e, portanto, para a santidade. Devemos, pois, concentrar nossa reflexão na mensagem evangélica, evitando que esta solenidade se transforme em mera apologia ao devocionismo fundamentalista que tanto tem se difundido nos últimos anos. Por isso, é preciso ter clareza do programa de vida de Jesus com seu projeto de sociedade e, consequentemente, das suas exigências.

De todas as palavras atribuídas a Jesus que encontramos ao longo dos evangelhos, as bem-aventuranças são as mais interpelantes e revolucionárias, embora sejam as mais fáceis de serem deturpadas, passando de uma mensagem de transformação a uma de resignação. Infelizmente, isso tem acontecido com muita frequência. Por isso, é necessário compreendê-las bem, para que sua mensagem seja sempre de encorajamento e transformação. Na versão mateana, encontramos oito bem-aventuranças, embora alguns comentadores considerem nove, devido à ocorrência do termo grego makárioi (μακάριοι) por nove vezes. Não consideramos a nona ocorrência do termo (v. 11) como uma nova bem-aventurança, mas como uma recapitulação e síntese das oito para os discípulos, reforçando a exigência para que eles de fato vivessem intensamente todas elas.

Para compreendermos as bem-aventuranças em seu sentido original, é necessário fazer mais uma consideração semântica. Como já afirmamos anteriormente, o termo grego empregado no Evangelho é makárioi (μακάριοι), o qual pode ser traduzido por benditos, felizes ou bem-aventurados; é uma fórmula que introduz uma mensagem de felicitação. É importante recordar que, embora escritos em grego, os evangelhos foram construídos segundo uma mentalidade semítica, sobretudo o de Mateus. Por isso, é importante recordar o sentido da palavra na língua original de Jesus, o hebraico. Ora, o termo correspondente ao grego μακαριοι – makárioi, em hebraico é (אשרי) “ashrei”, o qual significa uma felicitação, mas é, ao mesmo tempo, uma forma imperativa do verbo caminhar, seguir em frente, avançar ou pôr-se em marcha. Expressivas correntes da exegese atual propõem que o evangelista pensou nos dois sentidos ao formular o seu texto. De fato, sem esse segundo sentido, as bem-aventuranças podem facilmente ser transformadas em discurso de conformismo ou resignação; com ele, passam a ser uma mensagem de transformação.

Olhemos, pois, para cada uma das situações contempladas por Jesus como necessitadas de transformação. Eis a primeira bem-aventurança: «Bem-aventurados os pobres em espírito, porque deles é o Reino dos Céus» (v. 3). De todas, tem sido essa a bem-aventurança que tem recebido as interpretações mais equivocadas ao longo da história, infelizmente. Longe de ser um convite ao conformismo, é um impulso à transformação. Na língua grega a palavra pobre (πτωχός – ptokós) deriva do verbo acocorar-se de medo, dobrar-se, abaixar-se, encurvar-se; designa, portanto, uma condição de humilhação extrema. O convite de Jesus é para que não desanimem, mas sigam em frente, não desistam, coloquem-se em marcha para alcançarem o Reino que foi criado para eles, o Reino dos Céus, mas não no céu, aqui mesmo na terra, como sinônimo de vida digna e plena. Aqui o termo espírito (em grego: πνεύμα – pneuma) é empregado como sinônimo de consciência da situação em que se encontram os pobres, encurvados de medo pela opressão do império romano e pela religião oficial da época. A esses, Jesus convida a perder o medo e, conscientemente, seguir em frente lutando pelo Reino. O pobre que se encontra encurvado pelo sistema, deve tomar consciência da sua situação insuportável e lutar, seguindo em busca de seus direitos de herdeiro do Reino.

A segunda bem-aventurança diz: «Bem-aventurados os aflitos, porque serão consolados» (v. 4). De todas as bem-aventuranças, certamente, essa é a mais paradoxal. Numa tradução mais literal, o termo aflitos seria substituído por “os que choram”, e essa bem-aventurança mistura felicidade com lágrimas e lágrimas com a consolação. É um paradoxo que escapa a qualquer lógica humana. É claro que Deus não compactua com as causas das aflições, mas ele está sempre do lado dos aflitos, daqueles que choram. Ora, jamais será consolado o aflito que se fecha em suas aflições, mas sim aquele que consegue mover-se, apesar do sofrimento. Ser consolado na mentalidade bíblica é ter o sofrimento eliminado por completo. A implantação do Reino dos Céus em um mundo tão hostil traz muitas aflições para os discípulos de Jesus. Mesmo assim, eles devem avançar, jamais recuar, para encontrar a consolação.

Na terceira bem-aventurança, Jesus diz: «Bem-aventurados os mansos, porque possuirão a terra» (v. 5). O termo manso equivale a humilde, e significa a pessoa que reivindica alguma coisa sem violência. Nesse caso particular, equivale às pessoas que lutam pela terra sem fazer uso da violência. A luta sem violência se torna mais lenta e, aparentemente, mais difícil de conseguir o objetivo. Por isso, Jesus encoraja, pede paciência, determinação e ação; em outras palavras, é como se ele dissesse: «não parem, continuem caminhando e lutando». Era muito comum os pequenos camponeses perderem suas terras por dívidas, com possibilidade de resgate. À medida que o tempo passava, as esperanças de resgate diminuíam e muitos desanimavam. Por isso, Jesus os consola e os encoraja.

Como não poderia deixar de ser, Jesus coloca para os discípulos, conforme ele mesmo o fizera, a justiça como uma busca incessante. Por isso, a quarta bem-aventurança é tão forte: «Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque serão saciados» (v. 6). A fome e a sede são as necessidades que mais incomodam o ser humano. Assim como o alimento e a bebida são essenciais para a vida, também deve ser a luta por justiça entre seus discípulos. A comunidade cristã não tem vida quando não se alimenta cotidianamente de justiça. Onde não há justiça, não há dignidade, não há paz. É preciso seguir em frente na luta por justiça.

Na quinta bem-aventurança, temos: «Bem-aventurados os misericordiosos, porque encontrarão misericórdia» (v. 7). É importante recordar que misericórdia, na Bíblia, não é um sentimento, mas uma ação em favor dos necessitados. Com isso, Jesus pede que seus discípulos prossigam sempre no caminho do bem, pois é do bem que o bem é gerado. Quando mais se ama mais possibilidades se tem de ser amado também. Isso faz parte da pedagogia divina e da própria essência do Deus revelado por Jesus, que é todo amor e misericórdia. De fato, a misericórdia é uma das principais características do Deus de Jesus, por isso, deve ser também para os seus seguidores. Seguir fazendo o bem ao próximo, sem distinção, é uma das principais exigências do discipulado.

Com a sexta bem-aventurança, Jesus se contrapõe claramente aos ritos de purificação da religião judaica: «Bem-aventurados os puros de coração, porque verão a Deus» (v. 8). Os antigos ritos de purificação do judaísmo tinham escondido o rosto verdadeiro de Deus. Jesus proclama a nulidade daqueles ritos e pede para seus discípulos caminharem em outra direção, avançarem por outro caminho que não seja o da religião que divide, exclui e até mata. Só há um tipo de pureza: aquela interior, e essa não é proporcionada por nenhum rito, mas somente pela disposição do ser humano em seguir os propósitos de Deus. Vê a Deus quem olha para o próximo com os olhos de Deus. É nessa direção que o discípulo de Jesus deve marchar, avançar.

A sétima bem-aventurança diz: «Bem-aventurados os que promovem a paz, porque serão chamados filhos de Deus» (v. 9). Na marcha da comunidade formada por discípulos e discípulas de Jesus, a promoção da paz é requisito básico e essencial. Não se trata de uma falsa paz como aquela imposta por Roma, intitulada “pax romana”. A paz que Jesus propõe não é uma mera ausência de conflitos, mas um retorno ao ideal hebraico expresso pela palavra (שלום) shalom: paz como bem-estar total do ser humano, harmonia com Deus, com o próximo e consigo mesmo. É por essa paz que a comunidade de discípulos e discípulas deve lutar enquanto caminha, fazendo dessa paz o rumo da caminhada. Não há prêmio para quem caminha promovendo a paz, mas há consequências: ser chamados filhos de Deus. Na tradição bíblica, ser filho é ser parecido com o pai. Quando alguém caminha promovendo a paz, se torna parecido com Deus, por isso, será chamado seu filho.

A oitava bem-aventurança funciona como uma espécie de credencial para o reconhecimento do discípulo e sua pertença ao Reino: «Bem-aventurados os que são perseguidos por causa da justiça, porque deles é o Reino dos Céus» (v. 10). A justiça, por excelência, é a prática de todas as bem-aventuranças anteriores. A quem adere plenamente à lógica do Reino, não há outra consequência a não ser a perseguição. Mas, mesmo diante da perseguição, a palavra de Jesus continua sendo de ânimo e encorajamento: continuai caminhando, avançando, marchando em busca do Reino que é vosso!

Viver as bem-aventuranças é, portanto, abraçar um projeto de sociedade alternativa que, inevitavelmente, entra em conflito com os sistemas dominantes baseados na exploração, no lucro, na sobreposição de uns sobre os demais e pela violência. Mas é diante de tudo isso, ou seja, no conflito, que a comunidade cristã deve avançar, seguir em frente sem jamais desanimar. Por isso, Jesus reforçou todo o ensinamento anterior, direcionando diretamente para os discípulos a conclusão com as consequências do abraçar o seu projeto: «Bem-aventurados sois vós, quando vos injuriarem e perseguirem, e, mentindo, disserem todo tipo de mal contra vós, por causa de mim. Alegrai-vos e exultai, porque será grande a vossa recompensa nos céus» (vv. 11-12a). Alguns estudiosos vêem essa afirmação como uma nova bem-aventurança, enquanto outros, a maioria, a vêem como um reforço e síntese conclusiva das oito anteriormente apresentadas. Aquelas oito são inseparáveis. Jesus não as apresenta como sugestões para os discípulos escolherem uma ou outra. É preciso viver todas elas para ser discípulo e discípula de Jesus, pois nelas ele traça o seu próprio retrato, diz como ele mesmo viveu, caminhou ou avançou; e o discípulo deve, inevitavelmente, viver como ele.

Assim, recordando que Paulo e os demais cristãos de suas comunidades chamavam-se mutuamente de santos, e eram cristãos porque levavam a sério as bem-aventuranças, podemos compreender que celebrar todos os santos é recordar todos os que não aceitam as coisas como são impostas, mas sabem mover-se, avançar e seguir um outro caminho, não para fugir da realidade, mas para transformá-la à maneira de Jesus.

Para seguir Jesus é preciso estar em estado permanente de marcha, caminhando contra tudo o que impede a realização do Reino já aqui na terra. A comunidade cristã não pode mais aceitar que uma mensagem tão encorajante e transformadora se transforme em sinal de resignação e aceitação passiva diante de tudo o que impede o advento do Reino. A mensagem das bem-aventuranças é libertadora porque convida o discípulo e a discípula a sair de si, colocar-se em movimento rumo a um mundo melhor, mais justo e mais fraterno. Enfim, as bem-aventuranças constituem o mais completo programa de humanização que esse mundo já conheceu.

 Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

sexta-feira, fevereiro 10, 2023

REFLEXÃO PARA O 6º DOMINGO DO TEMPO COMUM – MATEUS 5,17-37 (ANO A)

 


A liturgia deste sexto domingo do tempo comum continua a leitura do discurso da montanha, o principal e mais longo dos cinco grandes discursos que Mateus atribui a Jesus em seu Evangelho, compreendendo três capítulos inteiros (Mt 5–7). O texto proposto para hoje – Mt 5,17-37 – é bastante longo, o que nos impede de comentar versículo por versículo. Procuraremos, portanto, colher a mensagem central, embora seja indispensável evidenciar alguns versículos em particular. De início, recordamos que só é possível compreender qualquer trecho do discurso da montanha tendo em mente a sua introdução, as bem-aventuranças (Mt 5,1-12), que correspondem ao programa de vida realizado plenamente por Jesus e proposto também para os discípulos. Tudo o que é apresentado ao longo do discurso da montanha é, portanto, desdobramento das bem-aventuranças.

A vivência das bem-aventuranças pressupõe uma maneira nova de interpretar a Lei de Moisés, bem como todo o conjunto das Escrituras hebraicas, sintetizadas no evangelho de hoje pela expressão “a Lei e os Profetas” (v. 17). De acordo com o evangelista, no discurso da montanha, Jesus apresenta uma interpretação nova de seis casos ou aspectos concretos da Lei, apresentados em sequência, diferente das interpretações vigentes na época, superando o mero legalismo e a interpretação literal tão defendida pelos fariseus e outras correntes mais rígidas do judaísmo. Destes seis casos, quatro são lidos hoje, enquanto os outros dois serão lidos no próximo domingo, o sétimo do tempo comum. É oportuno recordar que, assim como em todo o Evangelho de Mateus, a interpretação da Lei atribuída a Jesus e as controvérsias com os fariseus refletem mais as questões da época da redação do evangelho (década de 80 do primeiro século) do que propriamente o tempo do ministério de Jesus. Diante dos problemas vividos pela sua comunidade, o evangelista recorda qual teria sido a posição de Jesus. 

A sequência dos casos ou aspectos concretos da Lei tratados no discurso da montanha, logo após Jesus ter conferido aos discípulos a responsabilidade de “dar sabor ao mundo e iluminá-lo”, através das imagens do sal e da luz (cf. o evangelho do domingo passado, Mt 5,13-16) é precedida de uma pequena introdução (vv. 17-20) que, de certo modo, ajuda a compreender o contexto de todo o texto. Eis o primeiro versículo: «Não penseis que eu vim abolir a Lei e os Profetas. Não vim para abolir, mas para dar-lhes pleno cumprimento» (v. 17). Essa afirmação dá a entender que tanto Jesus quanto os cristãos da comunidade de Mateus eram acusados pelo judaísmo oficial de relativizarem a Lei e até de a revogarem. Para os grupos mais rígidos do judaísmo, Jesus, com a sua práxis, tinha destruído a Lei. Diante disso, a comunidade de Mateus reage afirmando que, com a sua atividade libertadora, Jesus levava a Lei à plenitude, uma vez que sua interpretação colocava o bem do ser humano acima de qualquer legalismo. É importante observar que “cumprimento”, aqui, não se refere à simples execução de uma tarefa, mas tem o sentido de aperfeiçoamento, tornar algo pleno e perfeito. Ou seja, Jesus não veio ao mundo para destruir a Lei, e nem tampouco para cumprir preceitos e executar normas, mas para tornar perfeita a Lei de Deus; é isso que significa o verbo grego empregado pelo evangelista: plerôo (πληρόω) = aperfeiçoar, dar acabamento, tornar pleno.

Na sequência, ainda em preparação à apresentação dos casos concretos da interpretação da Lei, temos mais afirmações que reforçam o apreço de Jesus pela Lei, afirmando inclusive a sua perenidade (v. 18), bem como a exclusão do Reino a quem deixar de observá-la e ensinar os outros a fazer o mesmo (v. 19), culminando com o confronto direto com os mestres da Lei e os fariseus: «Porque eu vos digo: Se a vossa justiça não for maior que a justiça dos mestres da Lei e dos fariseus, vós não entrareis no Reino dos Céus» (v. 20). Ora, os mestres da Lei e os fariseus eram exemplo de fidelidade à Lei, obedecendo, quase cegamente, preceito por preceito. Para eles, a Lei era um fim em si mesma, pouco importando o bem das pessoas e as situações concretas do dia-a-dia. Dos seus discípulos, porém, Jesus espera muito mais, começando por uma adesão interior à vontade de Deus, o que corresponde à verdadeira justiça: conformidade à vontade de Deus, compreendendo a predileção pelos pecadores, pobres e marginalizados; é fazer o bem em qualquer circunstância, independentemente se há ou não um preceito que determine, e sem deixar de fazer, mesmo quando for necessário contrariar certos preceitos.

Os seis exemplos (casos concretos) que seguem, dos quais leremos somente quatro hoje, mostram como é que a justiça dos discípulos e discípulas de Jesus deve superar a dos mestres da Lei e dos fariseus. Conforme o evangelista, Jesus apresenta um ponto específico da Lei que os fariseus interpretavam literalmente, e em seguida apresenta a sua interpretação pessoal que ultrapassa a interpretação convencional. Alguns comentadores intitulam estes casos de “antíteses”, já que são construídos segundo a fórmula “Vós ouvistes o que foi dito...; Eu, porém vos digo...”. No entanto, não se trata propriamente de antíteses, pois o ensinamento de Jesus não contradiz o convencional, mas alarga o horizonte, inclusive, propondo uma interpretação até mais radical, ao invés de relativizar a Lei.

O primeiro caso diz respeito ao quinto mandamento do decálogo (cf. Ex 20,13): «Vós ouvistes o que foi dito aos antigos: ‘Não matarás! Quem matar será condenado pelo tribunal» (v. 21). De acordo com uma interpretação literal, como faziam os fariseus, bastava não cometer homicídio para observar este mandamento. Para Jesus e a dinâmica do seu Reino, não é suficiente não tirar a vida de outra pessoa para transgredir o mandamento, mas há muitas outras maneiras, as quais devem ser radicalmente observadas para agir em conformidade com a vontade de Deus, superando, assim, a justiça dos fariseus e mestres da Lei. Alimentar ódio e preconceitos contra o próximo, bem como dirigir-lhe palavras ofensivas (v. 22), são também maneiras de transgredir o mandamento; na verdade, são maneiras diferentes de ameaçar a vida e a dignidade do outro e, por isso, é inadmissível que aconteça, especialmente na comunidade cristã. Uma boa relação com Deus passa necessariamente pela relação com o próximo. Na verdade, a relação com o próximo é tão indispensável, que tem primazia até mesmo sobre o culto e os ritos religiosos (vv. 23-24). Portanto, não basta não matar; é necessário amar, respeitar e viver reconciliado com o outro para estar bem com Deus. Assim, de um mandamento que apenas proibia assassinatos, Jesus amplia o seu significado e faz uma ampla catequese sobre a importância de se cultivar relações harmoniosas e fraternas na comunidade.

O segundo caso também parte de um mandamento do decálogo, o sexto (cf. Ex 20,14): «Ouvistes o que foi dito: ‘Não cometerás adultério’. Eu, porém, vos digo: Todo aquele que olhar para uma mulher, com o desejo de possuí-la, já cometeu adultério com ela no seu coração» (vv. 27-28). Novamente, a interpretação de Jesus excede a prescrição, superando, assim, a justiça dos fariseus e dos mestres da Lei. Para Jesus, o adultério não consiste somente na consumação do ato, mas os pensamentos e desejos, mesmo que não levem a nenhuma ação concreta, são também transgressão do mandamento. Novamente, é evidenciada a necessidade de relações saudáveis entre todas as pessoas, com pureza de coração, segundo o espírito das bem-aventuranças (cf. Mt 5,8). A perspectiva de Jesus também denuncia a cultura machista e patriarcal predominante na época; a mulher não pode ser tratada como um objeto de consumo. O reconhecimento da dignidade da mulher é indispensável na comunidade cristã. Os olhares e pensamentos maliciosos devem ser evitados. É necessário cortar o mal pela raiz; a ordem para arrancar ou cortar os membros do corpo que levam a pessoa a pecar é simbólica (vv. 29-30), uma vez que é do coração que saem os desejos e as más intenções. Significa que a vida não tem sentido quando é marcada pelo mal.

O terceiro caso está relacionado ao segundo. Não é tirado do Decálogo, mas do chamado “código deuteronômico” (Dt 12 – 26), precisamente da lei sobre o divórcio (cf. Dt 24,1-4), que dava liberdade ao homem para divorciar-se da mulher por qualquer motivo, inclusive se a achasse “sem graça”, ou seja, “feia” (cf. Dt 24,1). Era uma lei totalmente favorável ao homem e danosa para a mulher. De todos os exemplos levantados por Jesus, esse é de mais difícil compreensão, pois não é muito claro: «Foi dito também: ‘Quem se divorciar de sua mulher, dê-lhe uma certidão de divórcio’. Eu, porém, vos digo: Todo aquele que se divorcia de sua mulher, a não ser por motivo de união irregular, faz com que ela se torne adúltera; e quem se casa com a mulher divorciada comete adultério» (v. 32). Aqui, infelizmente, a tradução litúrgica não favorece uma interpretação adequada; ao invés da expressão “faz com que ela se torne adúltera”, o correto seria “faz com que ela cometa adultério”, sendo o homem culpado por isso. Dando a certidão de divórcio por qualquer motivo, o culpado pelo adultério da mulher é o homem, na perspectiva da comunidade de Mateus, contrariando a interpretação dos fariseus e as práticas vigentes na época. Visando manter a sacralidade do matrimônio, a interpretação de Jesus alivia o peso e a culpabilidade da mulher, responsabilizando também o homem. Em outras palavras, o homem deixa de ter poderes absolutos no matrimônio.

O último caso lido hoje diz respeito aos juramentos. No mundo antigo, onde prevalecia a cultura oral, como em Israel, os juramentos tinham muita importância. Embora não esteja diretamente no Decálogo, havia muitas prescrições sobre os juramentos em toda a Lei (cf. Lv 19,12; Nm 30,3-15; Dt 5,20; 23,21), sobretudo exigindo fidelidade e cumprimento da palavra quando fosse feito um juramento. Era uma prática recorrente fazer juramentos como sinal de compromisso com Deus e com o próximo, em Israel. Isso acontecia em todos os âmbitos da vida: relações interpessoais, política, negócios e religião. A posição de Jesus é de total repúdio à prática dos juramentos: «Vós ouviste também o que foi dito aos antigos: ‘Não jurarás falso’, mas cumprirás os teus juramentos feitos ao Senhor’. Eu, porém, vos digo: Não jureis de modo algum: nem pelo céu, porque é o trono de Deus» (v. 34). É importante recordar que a Lei não determinava que as pessoas jurassem; porém dava permissão para tal, exigindo, no entanto, que, uma vez feitos, os juramentos fossem cumpridos. A necessidade de jurar, porém, pressupõe a desconfiança. Por isso, Jesus repudia completamente essa prática (vv. 35-37). Ora, na comunidade cristã, embrião do Reino dos céus, cuja regra de vida é as bem-aventuradas, todas as relações devem ser sinceras. Necessita-se de juramentos onde não há confiança absoluta; onde predomina a fraternidade, as relações são todas transparentes, fala-se somente a verdade em todas as circunstâncias. Por isso, não há necessidade de juramentos, pois todos devem viver segundo o amor recíproco.

No próximo domingo teremos a continuidade da leitura dos casos ou exemplos concretos que Jesus apresenta como demonstração de como a justiça dos seus discípulos e discípulas deve superar a dos fariseus e mestres da Lei. Como vimos, isso não se faz cumprindo com mais rigor os mínimos detalhes da Lei, mas superando-a, indo além daquilo que é prescrito, considerando sempre que o bem do ser humano deve estar acima de tudo. A assimilação das bem-aventuranças torna as normas da Lei até desnecessárias; é a vivência delas que permite faz a Lei chegar à sua plenitude, a ponto de não ser mais transgredida, pois, interiorizando as bem-aventuranças, já não há mais necessidade sequer de olhar para as normas e regras da Lei. Quem absorve no coração os ensinamentos de Jesus, torna-se incapaz de fazer o mal, por isso, nada lhe pode ser proibido.

Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

sexta-feira, fevereiro 03, 2023

REFLEXÃO PARA O 5º DOMINGO DO TEMPO COMUM – MATEUS 5,13-16 (ANO A)

 


Na liturgia deste quinto domingo do tempo comum, continuamos a leitura do grande discurso programático de Jesus no Evangelho de Mateus, conhecido como o “discurso da montanha” (Mt 5–7). No domingo passado, fora lida a introdução desse discurso, que corresponde às bem-aventuranças (Mt 5,1-12), um texto que é considerado o coração do primeiro evangelho. O texto proposto para hoje – Mt 5,13-16 – é exatamente o que sucede imediatamente às bem-aventuranças. De acordo com o evangelista Mateus, continuando um ensinamento vital para a comunidade de seus seguidores, Jesus emprega duas imagens bastante fortes e interpelantes, o sal e a luz, para demonstrar o quanto a vivência das bem-aventuranças é indispensável na vida dos seus discípulos e, consequentemente, para a comunidade cristã. Por isso, é importante recordar que tudo o que é desenvolvido ao longo do discurso da montanha é, na verdade, consequência ou desdobramento das bem-aventuranças.

Consideradas pela maioria dos exegetas como o autorretrato de Jesus, as bem-aventuranças são, ao mesmo tempo, o programa de vida que ele propõe para os seus discípulos e discípulas de todos os tempos. A vivência delas devem ter um efeito transformador no mundo, comparável aos efeitos do sal e da luz, empregados para suas finalidades mais básicas: dar sabor e iluminar, respectivamente. Ora, é da vivência das bem-aventuranças que depende a instauração do Reino dos Céus na terra. Para que esse Reino, de fato, aconteça, é necessário que as pessoas, começando pelos discípulos, assumam um estilo de vida semelhante ao de Jesus, ou seja, que pratiquem as bem-aventuranças. Por isso, o emprego das imagens do sal e da luz são seguidos de advertência sobre o perigo de que estes elementos não sejam bem utilizados.

As imagens do sal e da luz são, assim, uma síntese da missão dos seguidores de Jesus e, ao mesmo tempo, uma demonstração do efeito dessa missão. Eis, pois, a primeira imagem com a consequente advertência: «Vós sois o sal da terra. Ora, se o sal se tornar insosso, com que salgaremos? Ele não servirá para mais nada, senão para ser jogado fora e ser pisado pelos homens» (v. 13). Embora seja possível identificar diversas funções para o sal, sobretudo na antiguidade, o texto deixa muito claro que faz referência ao seu uso para a alimentação, seja como condimento, quanto como conservante. Mesmo assim, é importante recordarmos também outras funções atribuídas ao sal ao longo da Bíblia. Era símbolo de qualquer coisa duradoura e preciosa, tornando-se, inclusive, sinal da indissolubilidade da aliança, de modo que uma aliança eterna era chamada de “aliança de sal” (cf. Nm 18,19). Outro significado para o sal é a purificação, sendo um elemento utilizado nos sacrifícios cultuais (cf. Lv 2,13; Ez 43,24), e empregado também por Eliseu para purificar as águas das fontes de Jericó (cf. 2Rs 2,19-22).

Aqui no texto de Mateus, no entanto, como já acenamos anteriormente, e considerando o inteiro versículo, a referência ao sal está relacionada ao seu uso no alimento, pois o texto indica o dar sabor como função primordial. É importante perceber também o universalismo atribuído aos seguidores de Jesus: ser sal de toda a terra, ou seja, marcar presença e fazer a diferença em todo o mundo, e não apenas dentro das fronteiras de Israel. Essa dimensão universalista da missão cristã será evidenciada ao longo de todo o Evangelho de Mateus, e encontrará o seu ápice no envio missionário pós-pascal, quando o Ressuscitado ordenará que seus discípulos devem ir a todas as nações para ensinar, batizar e discipular (cf. Mt 28,19-20). Seja para dar sabor, seja para conservar alimentos, o sal é indispensável na vida dos ser humano. Assim também é indispensável a presença de cristãos e cristãs no mundo, para que o projeto libertador de Jesus seja realizado e o Reino se instaure. Ao falar do risco de o sal tornar-se insosso e, consequentemente, inútil, se faz uma advertência ao risco de omissões e falta de testemunho dos cristãos no mundo. Assim como não tem sentido um sal sem sabor, também não tem sentido cristãos sem a prática das bem-aventuranças, ou seja, sem fome e sede de justiça, sem mansidão no coração, sem misericórdia e sem amor.

A segunda imagem empregada ocupa todo o restante do texto e, aparentemente, é mais simples ou, pelo menos, mais compreensível, já que é uma imagem mais frequente ao longo da Bíblia: «Vós sois a luz do mundo. Não pode ficar escondida uma cidade construída sobre um monte» (v. 14). A imagem da luz, de fato, atravessa toda a Bíblia, muito mais do que a do sal, bem como o seu efeito é muito mais visível. Inclusive, a própria missão de Jesus na Galileia foi apresentada por Mateus como luz, como refletimos há dois domingos (cf. evangelho do terceiro domingo do tempo comum: Mt 4,12-23). Como extensão e continuação da missão de Jesus, também a missão dos seus discípulos é apresentada como luz. Isso mostra que a missão dos discípulos é a mesma de Jesus. Novamente, a dimensão universalista da missão é recordada: os cristãos não devem ser luz somente para um determinado grupo de pessoas ou de uma determinada região, mas de todo o mundo. A segunda parte do versículo é, certamente, uma crítica à cidade de Jerusalém e às autoridades de Israel, como um todo. Ora, Jerusalém fora construída sobre um monte (cf. Is 2,1) exatamente para de lá resplandecer a luz de Deus; porém, fora corrompida pelos poderes religioso e político, ofuscando a luz de Deus. Temos aqui, portanto, uma clara denúncia a Israel e, especialmente, a Jerusalém que falhara na sua missão de ser luz das nações (cf. Is 42,6; 49,6). Por isso, Deus transferiu sua luz para a marginalizada Galileia, onde Jesus iniciou seu ministério como uma luz que brilha nas trevas (cf. Mt 4,12-23). Como consequência, Jesus transfere a missão que outrora fora de Israel para os seus discípulos.

Na continuidade do texto, vemos novamente o tom de advertência, como no uso do sal: «Ninguém acende uma lâmpada e a coloca debaixo de uma vasilha, mas sim, num candeeiro, onde brilha para todos, que estão na casa» (v. 15). Tão inútil quanto um sal sem sabor e uma lâmpada escondida é a vida cristã sem testemunho, ou seja, sem a prática das bem-aventuranças. Aliás, isso nem vida cristã seria, mas apenas um teatro, um fingimento. Seria hipocrisia, como Jesus vai mostrar, com outras palavras, ao advertir a comunidade dos seus seguidores sobre a necessidade de diferenciar-se dos fariseus. Temos aqui mais um alerta sobre o risco da omissão dos cristãos no mundo, diante das injustiças e de todas as formas de manifestação do mal. O cristão não pode se omitir onde há trevas, onde há negação da vida.  Uma lâmpada debaixo da mesa é a imagem do discípulo omisso e medroso, incapaz de denunciar as injustiças que estão ao seu redor, e conivente com as situações de opressão e negação da vida. Uma vez que a luz acesa não tem outra função que não seja iluminar, também os cristãos não podem omitir-se de testemunhar o Evangelho, cuja condição é a vivência das bem-aventuranças, que são o programa de Jesus.

O versículo conclusivo consiste em mais uma exortação e advertência. Assim como houve com Israel, também havia na comunidade cristã uma tendência ao envaidecimento e ao orgulho, o que é totalmente incompatível com o ensinamento de Jesus. É necessário que os discípulos sejam sinal de luz diante das outras pessoas, mas que não sejam recompensados ou elogiados por isso, pois é ao Pai que está nos céus que devem ser dirigidos todos os louvores; é esse o sentido do versículo: «Assim também brilhe a vossa luz diante dos homens, para que vejam as vossas boas obras e louvem o vosso Pai que está nos céus» (v. 16). Os cristãos de todos os tempos devem cumprir boas obras, devem “fazer o bem” como fez Jesus (cf. At 10,38), de modo que revelem o Deus em quem acreditam. Em outras palavras, o versículo quer dizer que o reconhecimento e o louvor de Deus pela humanidade dependem essencialmente do estilo de vida dos cristãos. E isso é uma grande responsabilidade. O mundo conhece Deus à medida em que os cristãos dão sabor ao mundo e o iluminam com as ações e os gestos concretos que praticam. O Deus que é Pai, portanto, não se torna conhecido pelo ensino de uma doutrina, e sim pelo testemunho dos cristãos.

Pe. Francisco Cornélio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

sexta-feira, janeiro 27, 2023

REFLEXÃO PARA O 4º DOMINGO DO TEMPO COMUM – MATEUS 5,1-12 (ANO A)

 


A liturgia deste quarto domingo do tempo comum propõe a leitura de um dos textos mais importantes do Novo Testamento: Mt 5,1-12. Trata-se da introdução do primeiro dos cinco discursos de Jesus no Evangelho de Mateus, conhecido como “discurso ou sermão da montanha” (Mt 5–7). Inclusive, a leitura desse discurso será continuada nos próximos domingos, uma vez que, na estrutura do ano litúrgico A, ele é distribuído numa sequência de  seis domingos do tempo comum: do quarto ao nono, além de algumas festas, como a solenidade de todos os santos, por exemplo, quando se lê também o texto das bem-aventuranças, como hoje, que corresponde à introdução do discurso. Essa introdução ficou conhecida como “bem-aventuranças”, devido à repetição contínua do termo grego makárioi (μακάριοι), cujo significado é benditos, felizes ou bem-aventurados. Sem dúvidas, essa é uma das passagens mais lidas e conhecidas de todo o Novo Testamento, apreciada por cristãos e não cristãos. Gandhi, por exemplo, definiu as bem-aventuranças como “as palavras mais altas que a humanidade já escutou”.

De todas as palavras atribuídas a Jesus que encontramos ao longo dos evangelhos, as bem-aventuranças são as mais interpelantes e revolucionárias, embora sejam as mais fáceis de serem deturpadas, passando de uma mensagem de transformação a uma de resignação. Por isso, é necessário compreendê-las bem, para que sua mensagem seja sempre de encorajamento e transformação, como exige o Reino dos Céus. E as bem-aventuranças são as condições para o ingresso nesse Reino. O Novo Testamento contém duas versões das bem-aventuranças: uma em Mateus e outra em Lucas. Certamente os dois evangelistas tiveram acesso à mesma fonte, e cada um adaptou de acordo com as necessidades de suas respectivas comunidades, tendo em vista as diferenças entre as versões, facilmente constatadas numa leitura paralela (cf. Mt 5,1-12a // Lc 6,20-26).

Na versão mateana, encontramos oito bem-aventuranças, embora alguns comentadores considerem nove, devido à ocorrência do termo grego makárioi (μακάριοι) por nove vezes. Porém, a nona ocorrência do termo (v. 11) não deve ser considerada como uma nova bem-aventurança, mas como uma recapitulação e síntese das oito, reforçando a exigência para que todas elas sejam intensamente vividas. Enquanto isso, a versão de Lucas contém apenas quatro bem-aventuranças, que são contrastadas com a fórmula de maldição “ai de vós”, aplicadas às situações de oposição às bem-aventuranças. Também o cenário é diferente nos dois evangelhos: enquanto em Mateus elas são proclamadas na montanha, em Lucas a proclamação se dá na planície. Essa diferença se deve à perspectiva teológica de cada evangelista. Mateus quer apresentar Jesus como o novo legislador e mestre que supera Moisés. Assim como foi na montanha que Moisés recebeu a Lei, também é da montanha que Jesus proclama as bem-aventuranças, que são consideradas a nova Lei para a comunidade cristã, infinitamente superior à antiga.

Para compreender melhor as bem-aventuranças em seu sentido original, é necessário fazer mais uma consideração semântica. Como já foi dito anteriormente, o termo grego empregado no Evangelho é makárioi (μακάριοι), o qual pode ser traduzido por benditos, felizes ou bem-aventurados; é uma fórmula que introduz uma mensagem de felicitação. É importante recordar que, embora escritos em grego, os evangelhos foram construídos segundo uma mentalidade semítica, principalmente o de Mateus. Por isso, é importante recordar o sentido da palavra na língua original de Jesus, o hebraico. Ora, o termo correspondente ao grego “makárioi” (μακαριοι) em hebraico (אשרי = asherêi), além de uma felicitação, corresponde também a uma forma imperativa do verbo caminhar, seguir em frente, avançar ou pôr-se em marcha. Há estudos recentes que vêem uma confluência dos dois sentidos no texto de Mateus. De fato, sem esse segundo sentido, as bem-aventuranças podem ser facilmente transformadas em mensagem de conformismo ou resignação; com ele, fica mais clara sua dimensão subversiva e transformadora, que caracteriza toda a mensagem de Jesus.  

Ainda a nível de contexto, é importante recordar a dinâmica do Evangelho de Mateus, que distribui os principais ensinamentos de Jesus em cinco grandes discursos, sendo que o discurso da montanha é o primeiro deles e o mais importante. Trata-se, portanto, do discurso inaugural de Jesus. Até então, o evangelista tinha feito duas breves referências ao ensinamento de Jesus, dizendo apenas que ele ensinava e qual era o tema da sua pregação: o Reino dos Céus (cf. Mt 4,17.23), mas sem mostrar o conteúdo propriamente. Por isso, o discurso da montanha é a primeira exposição do programa do Reino que Jesus anuncia. Isso se constata pelas diversas vezes em que o Reino (em grego: βασιλεία – basileia) é mencionado ao longo do discurso, mas o mais importante é a natureza desse Reino e seus destinatários primeiros: pobres, humildes, aflitos, injustiçados, perseguidos.

Iniciamos o estudo do texto propriamente considerando os dois primeiros versículos que funcionam como introdução às bem-aventuranças e ao inteiro discurso da montanha: «Vendo Jesus às multidões, subiu ao monte e sentou-se. Os discípulos aproximaram-se, e Jesus começou a ensiná-los» (vv. 1-2). O evangelista já tinha dito que Jesus ensinava e realizava curas, libertava as pessoas e, por isso, grandes multidões o acompanhavam (cf. Mt 3,17.23-25). E isso é surpreendente porque a vida pública de Jesus está apenas começando. Inclusive, só tinha chamado os quatro primeiros discípulos, até então (cf. Mt 3,18-22). Isso mostra a urgência do Reino. Ele tinha um núcleo de base para iniciar uma comunidade, sendo que o mais importante era a natureza da comunidade, cujo retrato é delineado nas bem-aventuranças. O gesto de sentar-se indica a autoridade de mestre que ele possuía. Mas, ao contrário dos mestres judeus da época, ele não abre um rolo de leis para transmitir. Simplesmente, ensina, sendo ele mesmo o conteúdo. Por isso, pode-se dizer que ele é o Reino em pessoa.

Olhemos, pois, para cada uma das situações contempladas por Jesus como necessitadas de transformação. Ao ler e contemplar cada uma delas, devemos recordar que elas retratam as situações vividas pelo próprio Jesus. Por isso, elas representam o retrato de Jesus e o ideal de discípulo e discípula. Eis a primeira bem-aventurança«Bem-aventurados os pobres em espírito, porque deles é o Reino dos Céus» (v. 3). De todas, tem sido essa a bem-aventurança que tem recebido as interpretações mais equivocadas ao longo da história, infelizmente. Longe de ser um convite ao conformismo, é um impulso à transformação. Na língua grega a palavra pobre (πτωχός – ptôkós) deriva do verbo acocorar-se de medo, dobrar-se, abaixar-se, encurvar-se; designa, portanto, uma condição de humilhação extrema.

O convite de Jesus é para que não desanimem, mas sigam em frente, não desistam, coloquem-se em marcha para alcançarem o Reino que foi criado para eles, o Reino dos Céus, mas não no céu, aqui mesmo na terra, como sinônimo de vida digna e plena. Aqui o termo espírito (em grego: πνεύμα – pneuma) é empregado como sinônimo de consciência da situação em que se encontram os pobres, encurvados de medo pela opressão do império romano e pela religião oficial da época. A esses, Jesus convida a perder o medo e, conscientemente, seguir em frente lutando pelo Reino. O pobre que se encontra encurvado pelo sistema, deve tomar consciência da sua situação insuportável e lutar, seguindo em busca de seus direitos de herdeiro do Reino.

segunda bem-aventurança diz: «Bem-aventurados os aflitos, porque serão consolados» (v. 4). Ora, jamais será consolado o aflito que se fecha em suas aflições, mas sim aquele que consegue mover-se, apesar do sofrimento. Ser consolado na mentalidade bíblica é ter o sofrimento eliminado por completo, por isso, consolar é diferente de confortar. De fato, confortar significa encorajar a suportar uma situação difícil, enquanto consolar é eliminar o sofrimento. A implantação do Reino dos Céus em um mundo tão hostil traz muitas aflições para os discípulos de Jesus. Mesmo assim, eles devem avançar, jamais recuar, para encontrar a consolação. Por isso, mais do que aceitação da aflição, essa bem-aventurança convida as pessoas aflitas a não se fecharem, não se acomodarem e buscarem a consolação. E isso não se faz sem mobilização e sem luta perseverante.

Na terceira bem-aventurança, Jesus diz: «Bem-aventurados os mansos, porque possuirão a terra» (v. 5). O termo manso equivale a humilde, e significa a pessoa que reivindica alguma coisa sem violência. Nesse caso particular, equivale às pessoas que lutam pela terra sem fazer uso da violência. A luta sem violência se torna mais lenta e, aparentemente, mais difícil de conseguir o objetivo. Por isso, Jesus encoraja, pede paciência, determinação e ação; em outras palavras, é como se ele dissesse: «não parem, continuem caminhando e lutando». Era muito comum os pequenos camponeses perderem suas terras por dívidas, com possibilidade de resgate. À medida que o tempo passava, as esperanças de resgate diminuíam e muitos desanimavam. Por isso, Jesus os consola e os encoraja. A terra é dom de Deus, mas sua posse pelos mansos e pequenos é conquista, fruto da confiança em Deus e da luta perseverante.

Como não poderia deixar de ser, Jesus coloca para os discípulos, conforme ele mesmo o fez em toda a sua vida, a justiça como uma busca incessante. Por isso, a quarta bem-aventurança é tão interpelante: «Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque serão saciados» (v. 6). A fome e a sede são as necessidades básicas que mais incomodam o ser humano. Assim como o alimento e a bebida são essenciais para a vida, também deve ser a luta por justiça entre seus discípulos. A comunidade cristã não tem vida quando não se alimenta cotidianamente de justiça. Onde não há justiça, não há dignidade, não há paz. É preciso seguir em frente na luta por justiça.

Na quinta bem-aventurança, temos: «Bem-aventurados os misericordiosos, porque encontrarão misericórdia» (v. 7). É importante recordar que misericórdia, na Bíblia, não é um sentimento, mas uma ação em favor dos necessitados. Com isso, Jesus pede que seus discípulos prossigam sempre no caminho do bem. A misericórdia é uma das principais características do Deus de Jesus, por isso, deve ser também para os seus seguidores. Ser misericordioso, portanto, é reproduzir o agir de Deus no mundo, cuja misericórdia é destinada a todas as pessoas, embora tenha sempre as pessoas mais necessitadas como destinatárias primeiras. Portanto, seguir fazendo o bem ao próximo, com opção preferencial pelos mais necessitados, é uma das principais exigências do discipulado.

Com a sexta bem-aventurança, Jesus se contrapõe claramente aos ritos de purificação da religião judaica: «Bem-aventurados os puros de coração, porque verão a Deus» (v. 8). Os antigos ritos de purificação do judaísmo tinham escondido o rosto verdadeiro de Deus. Jesus proclama a nulidade daqueles ritos e pede para seus discípulos caminharem em outra direção, avançarem por outro caminho que não seja o da religião que divide, exclui e até mata. Só há um tipo de pureza: aquela interior, e essa não é proporcionada por nenhum rito, mas somente pela disposição do ser humano em seguir os propósitos de Deus. Vê a Deus quem olha para o próximo com os olhos de Deus. É nessa direção que o discípulo de Jesus deve marchar, avançar, pois a verdadeira pureza consiste em assimilar os sentimentos de Deus e transformá-los em ação, conforme as circunstâncias e as necessidades.

sétima bem-aventurança diz: «Bem-aventurados os que promovem a paz, porque serão chamados filhos de Deus» (v. 9). Na marcha da comunidade formada por discípulos e discípulas de Jesus, a promoção da paz é requisito básico e essencial. Não se trata de uma falsa paz como aquela imposta por Roma, intitulada “pax romana”. A paz que Jesus propõe não é uma mera ausência de conflitos, mas um retorno ao ideal hebraico expresso pela palavra (שלום) shalom: paz como bem-estar total do ser humano, harmonia com Deus, com o próximo e consigo mesmo. É por essa paz que a comunidade de discípulos e discípulas deve lutar enquanto caminha, fazendo dessa paz o rumo da caminhada. Não há prêmio para quem caminha promovendo a paz, mas há consequências: ser chamados filhos de Deus. Na tradição bíblica, ser filho é ser parecido com o pai. Quando alguém caminha promovendo a paz, se torna parecido com Deus, por isso, será chamado seu filho.

oitava bem-aventurança funciona como uma espécie de credencial para o reconhecimento do discípulo e sua pertença ao Reino: «Bem-aventurados os que são perseguidos por causa da justiça, porque deles é o Reino dos Céus» (v. 10). É claro que todas as bem-aventuranças estão interligadas, não se pode separar uma da outra. Mas esta oitava é uma recapitulação mais explícita da quarta: deve-se buscar a justiça como algo indispensável à vida, a exemplo do alimento cotidiano. Mas a justiça não apenas sacia, e sim traz perseguição, pois implica no combate às injustiças. E é certo que quem luta contra injustiças recebe perseguição como resposta. Quem adere plenamente à dinâmica do Reino será certamente perseguido(a), pois a busca pelo Reino é inseparável da busca por justiça, como vai dizer o próprio Jesus na sequência do discurso: «buscai, primeiro de tudo, o Reino de Deus e sua justiça» (Mt 6,33). Então, tendo em vista que a perseguição é consequência lógica da busca pelo Reino e a justiça, a palavra de Jesus continua sendo de ânimo e encorajamento: continuai caminhando, avançando, marchando em busca do Reino que é vosso! E foi isso o que ele mesmo fez.

Viver as bem-aventuranças é, portanto, abraçar um projeto de sociedade alternativa que, inevitavelmente, entra em conflito com os sistemas dominantes baseados na exploração, no lucro, na sobreposição de uns sobre os demais e pela violência. Mas é diante de tudo isso, ou seja, no conflito, que a comunidade cristã deve avançar, seguir em frente sem jamais desanimar. Por isso, Jesus reforçou todo o ensinamento anterior, direcionando diretamente para os discípulos a conclusão com as consequências do abraçar o seu projeto: «Bem-aventurados sois vós, quando vos injuriarem e perseguirem, e, mentindo, disserem todo tipo de mal contra vós, por causa de mim. Alegrai-vos e exultai, porque será grande a vossa recompensa nos céus» (vv. 11-12a). Alguns estudiosos vêem essa afirmação como uma nova bem-aventurança, enquanto outros –  a maioria – a vêem como um reforço e síntese conclusiva das oito anteriormente apresentadas. Aquelas oito são inseparáveis. Jesus não as apresenta como sugestões para os discípulos escolherem uma ou outra. É preciso viver todas elas para ser discípulo e discípula de Jesus, pois nelas ele traça o seu próprio retrato, diz como ele mesmo viveu, caminhou ou avançou; e o discípulo deve, inevitavelmente, viver como ele.

As bem-aventuranças nos desafiam a compreender e reconhecer se, de fato, seguimos a Jesus, se somos seus discípulos e discípulas. Para seguir Jesus é preciso estar em estado permanente de marcha, caminhando contra tudo o que impede a realização do Reino já aqui na terra. A comunidade cristã não pode mais aceitar que uma mensagem tão encorajante e transformadora se transforme em sinal de resignação e aceitação passiva diante de tudo o que impede o advento do Reino. A mensagem das bem-aventuranças é libertadora porque convida o discípulo e a discípula a sair de si, colocar-se em movimento rumo a um mundo melhor, mais justo e mais fraterno.

 Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

sábado, outubro 31, 2020

REFLEXÃO PARA A SOLENIDADE DE TODOS OS SANTOS – MATEUS 5,1-12a

 



O evangelho que a liturgia propõe para a solenidade de todos os santos é Mateus 5,1-12a. É um texto fixo, lido todos os anos, certamente porque nenhum outro expressa tão bem o sentido da santidade como esse. Trata-se da introdução do primeiro dos cinco discursos de Jesus no Evangelho segundo Mateus, conhecido como “discurso ou sermão da montanha”. Essa introdução ficou conhecida como “bem-aventuranças”, devido a repetição constante do termo grego makárioi (μακάριοι), cujo significado é benditos, felizes ou bem-aventurados. Esse é, certamente, um dos trechos mais lidos e conhecidos de todo o Novo Testamento, apreciado por cristãos e não cristãos. Gandhi, por exemplo, definiu as bem-aventuranças como “as palavras mais altas que a humanidade já escutou”.

As bem-aventuranças compreendem a síntese do programa de vida de Jesus e, consequentemente, dos seus discípulos e discípulas de todos os tempos. É um texto belo, mas muito fácil de ter seu sentido deformado, se interpretado de modo equivocado, como geralmente tem acontecido. Ora, falar em todos os santos e santas tem tudo a ver com o autêntico seguimento de Jesus de Nazaré. Por isso, é importante refletir cada vez mais sobre as palavras de Jesus que o Evangelho apresenta.

O discurso da montanha é um indicador de direção para o discipulado de Jesus e, portanto, para a santidade. Devemos, pois, concentrar nossa reflexão na mensagem evangélica, evitando que esta solenidade se transforme em mera apologia ao devocionismo fundamentalista que tanto tem se difundido nos últimos anos. Por isso, é preciso ter clareza do programa de vida de Jesus com seu projeto de sociedade e, consequentemente, das suas exigências.

De todas as palavras atribuídas a Jesus que encontramos ao longo dos evangelhos, as bem-aventuranças são as mais interpelantes e revolucionárias, embora sejam as mais fáceis de serem deturpadas, passando de uma mensagem de transformação a uma de resignação. Infelizmente, isso tem acontecido com muita frequência. Por isso, é necessário compreendê-las bem, para que sua mensagem seja sempre de encorajamento e transformação. Na versão mateana, encontramos oito bem-aventuranças, embora alguns comentadores considerem nove, devido à ocorrência do termo grego makárioi (μακάριοι) por nove vezes. Não consideramos a nona ocorrência do termo (v. 11) como uma nova bem-aventurança, mas como uma recapitulação e síntese das oito para os discípulos, reforçando a exigência para que eles de fato vivessem intensamente todas elas.

Para compreendermos as bem-aventuranças em seu sentido original, é necessário fazer mais uma consideração semântica. Como já afirmamos anteriormente, o termo grego empregado no Evangelho é makárioi (μακάριοι), o qual pode ser traduzido por benditos, felizes ou bem-aventurados; é uma fórmula que introduz uma mensagem de felicitação. É importante recordar que, embora escritos em grego, os evangelhos foram construídos segundo uma mentalidade semítica, sobretudo o de Mateus. Por isso, é importante recordar o sentido da palavra na língua original de Jesus, o hebraico. Ora, o termo correspondente ao grego μακαριοι – makárioi, em hebraico é (אשריashrei, o qual significa uma felicitação, mas é, ao mesmo tempo, uma forma imperativa do verbo caminhar, seguir em frente, avançar ou pôr-se em marcha. Acreditamos que o evangelista pensou nos dois sentidos ao formular o seu texto. Sem esse segundo sentido, as bem-aventuranças não passariam de conformismo ou resignação; com ele, passam a ser uma mensagem de transformação.

Olhemos, pois, para cada uma das situações contempladas por Jesus como necessitadas de transformação. Eis a primeira bem-aventurança“Bem-aventurados os pobres em espírito, porque deles é o Reino dos Céus” (v. 3). De todas, tem sido essa a bem-aventurança que tem recebido as interpretações mais equivocadas ao longo da história, infelizmente. Longe de ser um convite ao conformismo, é um impulso à transformação. Na língua grega a palavra pobre (πτωχός – ptokós) deriva do verbo acocorar-se de medo, dobrar-se, abaixar-se, encurvar-se; designa, portanto, uma condição de humilhação extrema.

O convite de Jesus é para que não desanimem, mas sigam em frente, não desistam, coloquem-se em marcha para alcançarem o Reino que foi criado para eles, o Reino dos Céus, mas não no céu, aqui mesmo na terra, como sinônimo de vida digna e plena. Aqui o termo espírito (em grego: πνεύμα – pneuma) é empregado como sinônimo de consciência da situação em que se encontram os pobres, encurvados de medo pela opressão do império romano e pela religião oficial da época. A esses, Jesus convida a perder o medo e, conscientemente, seguir em frente lutando pelo Reino. O pobre que se encontra encurvado pelo sistema, deve tomar consciência da sua situação insuportável e lutar, seguindo em busca de seus direitos de herdeiro do Reino.

segunda bem-aventurança diz: “Bem-aventurados os aflitos, porque serão consolados” (v. 4). Ora, jamais será consolado o aflito que se fecha em suas aflições, mas sim aquele que consegue mover-se, apesar do sofrimento. Ser consolado na mentalidade bíblica é ter o sofrimento eliminado por completo. A implantação do Reino dos Céus em um mundo tão hostil traz muitas aflições para os discípulos de Jesus. Mesmo assim, eles devem avançar, jamais recuar, para encontrar a consolação.

Na terceira bem-aventurança, Jesus diz: “Bem-aventurados os mansos, porque possuirão a terra” (v. 5). O termo manso equivale a humilde, e significa a pessoa que reivindica alguma coisa sem violência. Nesse caso particular, equivale às pessoas que lutam pela terra sem fazer uso da violência. A luta sem violência se torna mais lenta e, aparentemente, mais difícil de conseguir o objetivo. Por isso, Jesus encoraja, pede paciência, determinação e ação; em outras palavras, é como se ele dissesse: “não parem, continuem caminhando e lutando”. Era muito comum os pequenos camponeses perderem suas terras por dívidas, com possibilidade de resgate. À medida que o tempo passava, as esperanças de resgate diminuíam e muitos desanimavam. Por isso, Jesus os consola e os encoraja.

Como não poderia deixar de ser, Jesus coloca para os discípulos, conforme ele mesmo o fizera, a justiça como uma busca incessante. Por isso, a quarta bem-aventurança é tão forte: “Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque serão saciados” (v. 6). A fome e a sede são as necessidades que mais incomodam o ser humano. Assim como o alimento e a bebida são essenciais para a vida, também deve ser a luta por justiça entre seus discípulos. A comunidade cristã não tem vida quando não se alimenta cotidianamente de justiça. Onde não há justiça, não há dignidade, não há paz. É preciso seguir em frente na luta por justiça.

Na quinta bem-aventurança, temos: “Bem-aventurados os misericordiosos, porque encontrarão misericórdia” (v. 7). É importante recordar que misericórdia, na Bíblia, não é um sentimento, mas uma ação em favor dos necessitados. Com isso, Jesus pede que seus discípulos prossigam sempre no caminho do bem. A misericórdia é uma das principais características do Deus de Jesus, por isso, deve ser também para os seus seguidores. Seguir fazendo o bem ao próximo, sem distinção, é uma das principais exigências do discipulado.

Com a sexta bem-aventurança, Jesus se contrapõe claramente aos ritos de purificação da religião judaica: “Bem-aventurados os puros de coração, porque verão a Deus” (v. 8). Os antigos ritos de purificação do judaísmo tinham escondido o rosto verdadeiro de Deus. Jesus proclama a nulidade daqueles ritos e pede para seus discípulos caminharem em outra direção, avançarem por outro caminho que não seja o da religião que divide, exclui e até mata. Só há um tipo de pureza: aquela interior, e essa não é proporcionada por nenhum rito, mas somente pela disposição do ser humano em seguir os propósitos de Deus. Vê a Deus quem olha para o próximo com os olhos de Deus. É nessa direção que o discípulo de Jesus deve marchar, avançar.

sétima bem-aventurança diz: “Bem-aventurados os que promovem a paz, porque serão chamados filhos de Deus” (v. 9). Na marcha da comunidade formada por discípulos e discípulas de Jesus, a promoção da paz é requisito básico e essencial. Não se trata de uma falsa paz como aquela imposta por Roma, intitulada “pax romana”. A paz que Jesus propõe não é uma mera ausência de conflitos, mas um retorno ao ideal hebraico expresso pela palavra (שלום) shalom: paz como bem-estar total do ser humano, harmonia com Deus, com o próximo e consigo mesmo. É por essa paz que a comunidade de discípulos e discípulas deve lutar enquanto caminha, fazendo dessa paz o rumo da caminhada. Não há prêmio para quem caminha promovendo a paz, mas há consequências: ser chamados filhos de Deus. Na tradição bíblica, ser filho é ser parecido com o pai. Quando alguém caminha promovendo a paz, se torna parecido com Deus, por isso, será chamado seu filho.

oitava bem-aventurança funciona como uma espécie de credencial para o reconhecimento do discípulo e sua pertença ao Reino: “Bem-aventurados os que são perseguidos por causa da justiça, porque deles é o Reino dos Céus” (v. 10). A justiça, por excelência, é a prática das bem-aventuranças anteriores. A quem adere plenamente à lógica do Reino, não há outra consequência a não ser a perseguição. Mas, mesmo diante da perseguição, a palavra de Jesus continua sendo de ânimo e encorajamento: continuai caminhando, avançando, marchando em busca do Reino que é vosso!

Viver as bem-aventuranças é, portanto, abraçar um projeto de sociedade alternativa que, inevitavelmente, entra em conflito com os sistemas dominantes baseados na exploração, no lucro, na sobreposição de uns sobre os demais e pela violência. Mas é diante de tudo isso, ou seja, no conflito, que a comunidade cristã deve avançar, seguir em frente sem jamais desanimar. Por isso, Jesus reforçou todo o ensinamento anterior, direcionando diretamente para os discípulos a conclusão com as consequências do abraçar o seu projeto: “Bem-aventurados sois vós, quando vos injuriarem e perseguirem, e, mentindo, disserem todo tipo de mal contra vós, por causa de mim. Alegrai-vos e exultai, porque será grande a vossa recompensa nos céus” (vv. 11-12a). Alguns estudiosos vêem essa afirmação como uma nova bem-aventurança, enquanto outros, a maioria, a vêem como um reforço e síntese conclusiva das oito anteriormente apresentadas. Aquelas oito são inseparáveis. Jesus não as apresenta como sugestões para os discípulos escolherem uma ou outra. É preciso viver todas elas para ser discípulo e discípula de Jesus, pois nelas ele traça o seu próprio retrato, diz como ele mesmo viveu, caminhou ou avançou; e o discípulo deve, inevitavelmente, viver como ele.

Assim, recordando que Paulo e os demais cristãos de suas comunidades chamavam-se mutuamente de santos, e eram cristãos porque levavam a sério as bem-aventuranças, podemos compreender que celebrar todos os santos é recordar todos os que não aceitam as coisas como são impostas, mas sabem mover-se, avançar e seguir um outro caminho, não para fugir da realidade, mas para transformá-la à maneira de Jesus.

Para seguir Jesus é preciso estar em estado permanente de marcha, caminhando contra tudo o que impede a realização do Reino já aqui na terra. A comunidade cristã não pode mais aceitar que uma mensagem tão encorajante e transformadora se transforme em sinal de resignação e aceitação passiva diante de tudo o que impede o advento do Reino. A mensagem das bem-aventuranças é libertadora porque convida o discípulo e a discípula a sair de si, colocar-se em movimento rumo a um mundo melhor, mais justo e mais fraterno.

 Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

REFLEXÃO PARA O 23º DOMINGO DO TEMPO COMUM – LUCAS 14,25-33 (ANO C)

A liturgia deste vigésimo terceiro domingo do tempo comum continua a nos situar no contexto do caminho de Jesus para Jerusalém, com seus dis...