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sábado, dezembro 03, 2022

REFLEXÃO PARA O SEGUNDO DOMINGO DO ADVENTO – MATEUS 3,1-12 (ANO A)



Todos os anos, a liturgia do segundo e do terceiro domingos do advento destaca a figura de João Batista, apresentado como o profeta que precede de imediato e prepara a missão de Jesus, conforme as narrativas dos evangelhos. Por ocasião do ciclo litúrgico “A”, neste ano temos a oportunidade de ler a versão de Mateus sobre o Batista, tanto hoje quanto no próximo domingo. Segundo a perspectiva dos quatro evangelhos canônicos, a compreensão da identidade e missão de Jesus passa necessariamente pela compreensão da missão de João. E a liturgia católica adotou essa visão. Isso faz do Batista um personagem chave para a teologia e espiritualidade do tempo do advento. O texto lido neste domingo – Mt 3,1-12 – apresenta os principais traços característicos de João, com uma pequena descrição da sua missão e uma síntese da sua pregação. Na verdade, esse esquema é comum aos evangelhos sinóticos, embora cada um o tenha desenvolvido à sua maneira, conforme suas habilidades literárias e respectivas intenções teológicas. A importância de João é evidenciada também no Quarto Evangelho, no qual ele é apresentado, pelo menos implicitamente, como o mentor de Jesus, possibilidade bastante plausível, conforme tem mostrado a exegese contemporânea. É provável, inclusive, que o movimento de Jesus tenha surgido como dissidência do movimento batista.

O texto proposto pela liturgia deste domingo é relativamente longo, composto de muitas informações, o que dificulta um comentário pormenorizado de cada versículo. Por isso, procuraremos destacar os elementos principais e a mensagem central. Considerando que os dois primeiros capítulos do Evangelho de Mateus – chamados de “evangelho da infância” (Mt 1–2) –, assim como no de Lucas, foram escritos por último e acrescentados quando a obra já estava concluída, podemos dizer que o texto de hoje é a abertura original da obra. Se trata, portanto, de um texto muito importante para a compreensão da missão de João, de Jesus, e da própria obra de Mateus. Por isso, começamos nossa reflexão a partir do primeiro versículo, que é carregado de relevantes elementos teológicos: “Naqueles dias, apareceu João Batista, pregando no deserto da Judeia” (v. 1). Nessa afirmação, há três dados fundamentais para a compreensão do texto e da missão do Batista: o indicativo temporal (naqueles dias), a atividade (pregando) e o cenário (no deserto).

Nos deteremos, inicialmente, nas dimensões de tempo e espaço, deixando para falarmos da pregação quando analisarmos diretamente a fala do personagem, que expressa o conteúdo da sua pregação. A expressão “naqueles dias” (v. 1a), dimensão temporal, é um indicativo de importância do acontecimento narrado e do personagem apresentado; foi com essa expressão que o redator do livro do Êxodo introduziu a missão de Moisés (cf. Ex 2,11), e muitos profetas introduziam os anúncios das intervenções de Deus na vida do povo (cf. Is 31,7; Jr 3,16.18; Jl 4,1), e Marcos, a fonte utilizada por Mateus neste episódio, introduziu o ministério do próprio Jesus no momento do batismo (cf. Mc 1,9). Portanto, a ação batizadora de João é apresentada como um evento importante e proveniente de Deus, o que confirma a autenticidade e autoridade do seu ministério.

A segunda informação importante, a dimensão espacial, acerca da atividade do Batista também é fortemente carregada de teologia: “no deserto da Judéia”. Na verdade, muito mais mais do que uma indicação espacial, a palavra deserto aqui possui um profundo significado teológico, como em toda a Bíblia. Ora, o deserto (em grego: ἐρήμος – erémos) é o lugar clássico do encontro com Deus; representa uma etapa importante no processo de libertação, como aconteceu no primeiro êxodo. Ao longo da história, quando o povo demonstrava infidelidade, os profetas apresentavam a necessidade de retornar ao deserto para voltar a viver o ideal da aliança (Os 2,14; 9,10; 13,5; Am 2,10; 5,25). Assim, a presença de João no deserto é um convite para Israel romper com as estruturas vigentes de injustiça e opressão, e retornar às suas origens, voltando a viver como povo livre.

Além de ser o lugar ideal do encontro com Deus, o deserto, nesse contexto, é também uma nítida contraposição ao aparato religioso institucional de Israel, sediado no templo de Jerusalém; é uma crítica à classe sacerdotal, sobretudo. Com essa imagem, o evangelista diz que o grande templo de Jerusalém já não favorecia mais a relação do povo com Deus, pois, à medida em que foi transformado em casa de comércio, Deus afastou-se de lá, deixando-se encontrar somente no deserto, onde não há obstáculo algum à comunicação com ele: é o lugar do silêncio, é onde se vive somente com o necessário e se percebe que tudo provém de Deus, como o antigo maná (cf. Ex 16). Outro sentido para o deserto na linguagem bíblica, é o da provação e da confiança, uma vez que, na privação completa de bens, não há outra saída senão confiar somente em Deus. Foi no deserto onde Jesus venceu as tentações de satanás (cf. Mt 4,1-11), e é para o deserto que povo é convidado por Deus, através do Batista, à conversão e, assim, voltar a seguir os caminhos da justiça.

Da indicação do tempo e do espaço da atividade de João, o evangelista passa para o conteúdo da sua pregação, e é exatamente aqui que a narrativa de Mateus se destaca sobre as demais: “Convertei-vos, porque o Reino dos Céus está próximo” (v. 2). Ora, os três sinóticos são unânimes em mostrar que a pregação de João consistia num convite à conversão, mas somente no relato de Mateus se diz que ele anunciava a proximidade do Reino, que vai ser também o tema da pregação de Jesus (cf. Mt 4,17). Desse modo, ele mostra João e Jesus alinhados, envolvidos num mesmo projeto de salvação e libertação. Essa harmonização entre os dois serviu, provavelmente, para o evangelista combater uma certa rivalidade entre os dois movimentos, após a dissidência de Jesus. Ele quis mostrar que não havia incompatibilidade entre os dois; ambos anunciaram o mesmo Reino. A necessidade de conversão sempre foi recordada, sobretudo, na pregação dos profetas de Israel. Logo, João é apresentado como uma figura profética, tanto pela mensagem da sua pregação, quanto pela maneira como se apresentou diante do povo.

Com o imperativo “convertei-vos”, (em grego μετανοετε – metanoeite), João faz um apelo para uma mudança de mentalidade. Na Bíblia, conversão, (metanoia), nunca significa a adesão a um conjunto de ritos penitenciais ou práticas devocionais, e sim uma mudança de pensamento ou mentalidade, com a assimilação de um jeito novo de viver. No mesmo versículo, João diz o motivo da necessidade de conversão: a chegada do Reino dos Céus. Aqui, verifica-se outra particularidade de Mateus: enquanto Marcos e Lucas usam a expressão “Reino de Deus”, Mateus prefere usar “Reino dos Céus” (em grego: βασιλεα τν ορανν – basileia ton uranôn), tendo em vista que sua comunidade era fortemente marcada pelo judaísmo e, como sabemos, a pronúncia do nome de Deus era uma ofensa para os judeus. Por isso, Mateus usa uma expressão equivalente para não ferir a sensibilidade dos irmãos judeus. O Reino de Deus ou dos Ceus não significa a vida no além, mas o estabelecimento do projeto de Deus neste mundo, que passa pela superação das injustiças, da violência, do preconceito, das desigualdades e de todas as formas de exclusão. E um mundo fraterno, justo e solidário, como já tinha sido anunciado pelos profetas do Antigo Testamento, e começa e a se concretizar a partir de Jesus.

O convite à conversão é feito porque, com a mentalidade antiga, não é possível reconhecer o Reino que está próximo, ou seja, pensando do mesmo jeito de sempre, é impossível perceber a chegada do Reino e, sem perceber, é impossível também acolhê-lo e dar-lhe adesão. Por isso, o primeiro convite é para a mudança. Mas, que tipo de mudança? Mudança no modo de conceber e compreender as coisas, sobretudo, a relação com Deus e com o próximo. Portanto, é urgente mudar o jeito de pensar. É importante reconhecer a urgência da conversão, considerando que o reino “está próximo”. Essa proximidade, na perspectiva do evangelista, é mais física do que temporal. O Reino dos céus é o próprio Jesus, ele é o Reino em pessoa, com sua mensagem libertadora, conforme Ele mesmo dirá mais tarde, no próprio Evangelho de Mateus, ao contar as parábolas do reino (cf. Mt 13), comparando esse reino a uma rede de pescador (13,47-50), a um tesouro escondido (13,44-46), a um grão de mostarda (13,31-32), ao fermento (13,33), e muitos outros exemplos.

Quem esperava a restauração da dinastia davídica e do reino de Israel, logo, não poderia aceitar o reino inaugurado por Jesus sem passar por uma mudança radical de pensamento. Os que tinham projetado toda a esperança em um futuro escatológico também se decepcionavam com essa pregação, pois o reino que João afirma ter se aproximado e que Jesus confirma, acontece aqui e agora: é o reino dos céus porque é o projeto de Deus para a humanidade, mas não se realiza no céu; realiza-se já aqui e, aceitar essa novidade é o único sinal de conversão exigido. A necessidade de conversão, ou seja, de mudança de mentalidade, portanto, deve-se ao fato de o reino dos céus não ter chegado conforme Israel esperava, ou seja, em meio a grandes teofanias, mas veio na simplicidade de um homem, um filho de carpinteiro, Jesus de Nazaré.

A descrição de João feita pelo evangelista serve como credencial para ter sua missão profética reconhecida: “Usava roupa feita de pelos de camelo e um cinturão de couro em torno dos rins; comia gafanhotos e mel do campo” (v. 4). De fato, a descrição do vestuário e da dieta de João revelam seu estilo de vida; é típico dos profetas (Zc 13,4; 2Rs 1,8). É mais uma prova de que o verdadeiro profeta é aquele que anuncia com palavras, ações e, principalmente, com o testemunho. O estilo de vida simples de João comprova esse testemunho e ainda serve de contraposição à vida opulenta da elite religiosa e política de Jerusalém. Essa descrição funciona como um apelo do evangelista para a comunidade cristã configurar-se como religião profética, combatendo as primeiras tendências de institucionalização do cristianismo. É um modo de dizer que o carisma, principal traço característico da missão profética, é praticamente inconciliável com a institucionalização.

As credenciais de profeta descritas acima davam autoridade e reconhecimento a João, fazendo com que muitas pessoas fossem ao seu encontro, como diz o evangelista: “Os moradores de Jerusalém, de toda a Judéia e de todos os lugares em volta do rio Jordão vinham ao encontro de João” (v. 5). Nessa passagem, especialmente, a tradução litúrgica não expressa o real significado do texto: ao invés de afirmar que “as pessoas iam ou viunham de Jerusalém ao encontro de João”, a tradução correta seria “saíam ao encontro”. De fato, aqui o evangelista emprega o verbo do êxodo: sair, que expressa libertação, acima de tudo. Logo, essa saída significa que há um novo êxodo em curso. A expressão “Jerusalém e toda Judéia”, aqui, significa a instituição religiosa; é o espaço no qual a religião institucionalizada tinha total controle sobre a vida das pessoas. À medida em que os moradores saíam dessa área, eles se libertavam. Com essa informação, portanto, além de valorizar o sucesso da pregação do Batista, o evangelista está mostrando um novo êxodo acontecendo.

A antiga terra prometida, principalmente a cidade de Jerusalém, tinha se transformado em terra de escravidão. Na época de Jesus, já não era um faraó o algoz, mas a própria casta sacerdotal do templo em conluio com o poder romano. Foi dessa gente que controlava a vida do povo e explorava em nome de Deus que Jesus veio libertar, em primeiro lugar. A religião institucionalizada era sinal de exploração e abuso de poder. E, de todas as formas de exploração, a pior é aquela que usa o nome de Deus, ou seja, a exploração religiosa. As pessoas que saíam das antigas estruturas, Confessavam os seus pecados e João os batizava no rio Jordão” (v. 6). A confissão aqui, não é um rito, mas um reconhecimento do pecado e arrependimento, conforme reza um salmista: “Confessei a ti o meu pecado, e minha iniquidade não te encobri; eu disse: “Vou a Iahweh confessar a minha iniquidade!” (Sl 32,4). Ser batizado no Jordão quer dizer atravessá-lo, é passar por ele, como passou o povo do primeiro êxodo; de fato, a travessia do Jordão foi a última etapa da longa caminhada do povo de Deus antes de entrar na terra prometida, já sob a liderança de Josué, após a morte de Moisés (cf. Js 1,2). Assim, a proposta de João é um convite a um novo êxodo, ou seja, uma nova libertação que se aproxima, e só pode participar quem fizer a experiência do deserto e da travessia, ou seja, quem passa de uma mentalidade antiga para uma nova.

Ao contrário do povo simples que “saía”, os fariseus e os saduceus “iam”, realmente (v. 7). Para esses, o autor emprega um verbo que significa mesmo vir ou chegar. Com isso, o evangelista afirma que os fariseus e os saduceus não buscavam um novo êxodo, pois estavam satisfeitos com a situação vigente, concordavam com as injustiças e a violência praticadas, uma vez que faziam parte do sistema de dominação. Por isso, as palavras de João dirigidas a eles são muito duras, têm a função de desmascará-los: “raça de cobras venenosas”; trata-se de uma afirmação dura que denuncia o mal representado por eles. A cobra (serpente) é o pior dos animais, para o imaginário judaico; além representar a morte, é símbolo do próprio pecado; assim, João está afirmando que, além de não se converterem, os fariseus e os saduceus ainda são obstáculo para a conversão dos demais, eram pessoas venenosas, cuja existência ameaçava a vida dos outros. Inclusive, a afirmação “muitos fariseus vinham para o batismo”, denota uma atitude fiscalizadora: eles não iam para serem batizados, mas para observar o que estava acontecendo com a atividade de João, pois estavam preocupados, porque sabiam que a chegada do Reino dos Céus seria o fim do reino deles, marcado pela injustiça, hipocrisia, mentira e violência institucionalizada.

Sabendo que, de fato, os fariseus e saduceus não estavam dispostos a mudar de mentalidade, ou seja, a se converterem, João deixa claro que é necessário produzir frutos: Produzi frutos que provem a vossa conversão” (v. 8). Essa afirmação constitui mais um elemento da pregação de João com ecos fortemente proféticos. A necessidade de frutos que provem a conversão foi repetidamente recordada pelos antigos profetas, visando a superação da hipocrisia religiosa. Amós e Isaías foram os principais expoentes dessa corrente. Como acontece ainda hoje, também nos tempos bíblicos confundia-se conversão com devoção, de modo que as advertências dos profetas continuam cada vez mais atuais, tendo em vista que o cristianismo institucionalizado continua sobrepondo o devocionismo ao culto em espírito e em verdade.

E João adverte que um novo jeito de se relacionar com Deus está surgindo com o advento do Reino, pois o que vale já não é considerar-se filho de Abraão (v. 9), mas fazer a vontade de Deus, quer dizer, produzir frutos. Ser “filho de Abraão” para o mundo judaica equivale a ser batizado/batizada nas tradições cristãs. Logo, também não é suficiente receber sacramentos, se a vida não for marcada por frutos de conversão, ou seja, pela prática da justiça. E a justiça, na Bíblia, significa, acima de tudo, opção pelos menos favorecidos e compromisso concreto em favor deles. A maneira clássica de Deus fazer justiça na Bíblia é ouvindo o clamor dos pobres! Por isso, a linguagem ameaçadora do fogo, na pregação de João, é um alerta para aqueles que querem entrar no Reino sem abraçar os princípios desse reino; o Reino não exclui ninguém, são as pessoas que se auto excluem, ao preferirem a mentalidade antiga, como os fariseus e os saduceus.

João administrava apenas um rito: o batismo com água, o qual era somente um sinal do batismo por excelência: com o Espírito Santo. Esse batismo é definitivo, é o cumprimento de profecias e condição para o povo de Israel voltar à condição de povo de Deus (Ez 36,24-28) e, ao mesmo tempo, sinal da universalização da salvação: o Espírito Santo, como superação e substituição da Lei, dará condições, ao ser acolhido, para que todos os povos sejam contemplados com a libertação inaugurada por Jesus. Somos, então, neste segundo domingo do advento, convidados a rever nossa prática religiosa, e tomar uma decisão, fazendo um êxodo pessoal: abraçar a religião profética, abandonando todas as práticas das antigas estruturas, renovando a maneira de conceber a Deus e abrindo-se ao Espírito Santo, dom de Jesus, o batizador por excelência.

Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

sábado, novembro 26, 2022

REFLEXÃO PARA O PRIMEIRO DOMINGO DO ADVENTO – MATEUS 24,37-44 (ANO A)

 


Neste domingo – o primeiro do advento – a Igreja inicia um novo ano litúrgico, convidando-nos, mais uma vez, a percorrer o caminho de Jesus Cristo, contemplando o mistério da sua vida, desde anúncio do seu nascimento até a ressurreição e ascensão. O tempo do advento, iniciado hoje, é a primeira etapa desse itinerário catequético-espiritual. O termo advento (adventus em latim) significa “visita”, “chegada” ou “vinda”; possui o mesmo significado do termo grego parusia (παρουσα). Fazia parte do vocabulário das religiões pagãs no império romano, sendo usado em referência às supostas visitas das divindades aos seus respectivos templos, e no âmbito civil era usado para designar as visitas de funcionários ilustres e dos imperadores às cidades e províncias do império. Por volta do século IV, o cristianismo absorveu a palavra advento, passando a utilizá-la no contexto do natal, a visita de Deus ao mundo, por excelência, uma vez que já estava consolidado o uso do termo grego “parusia” para designar a segunda vinda de Cristo. Como o próprio termo evoca, uma visita especial é sempre motivo de esperanças e expectativas, e essa é uma das características principais do tempo do advento. E a esperança suscitada com esse tempo gira em torno da construção de um mundo novo, no qual devem reinar a justiça, o amor e a paz.

Com o início do novo ciclo litúrgico, neste ano iniciamos também a leitura do Evangelho segundo Mateus, porém, não do início, mas do seu final, exatamente do discurso escatológico. Por isso, o texto proposto para hoje é Mateus 24,37-44. O discurso escatológico está presente nos três evangelhos sinóticos (Mateus, Marcos e Lucas), porém é mais amplo em Mateus, uma vez que é esse evangelista quem faz questão de apresentar o ensinamento de Jesus organizado em forma de discursos mais prolongados. O discurso escatológico trata das realidades últimas e finais da história, antecedendo as narrativas da paixão, morte e ressurreição de Jesus, na estrutura dos evangelhos mencionados. À primeira vista, parece paradoxal que a preparação para o Natal seja iniciada com um discurso que precede o relato da morte de Jesus e que fala do final da história. Porém, é necessário ver o advento como uma oportunidade de preparação para a vinda constante do Senhor na vida de cada pessoa, tornando essa vinda uma presença permanente, ao invés de alimentar uma expectativa futurista e preparar para apenas uma data ou evento. E, embora use imagens para falar das realidades últimas, o objetivo do discurso escatológico é ajudar a comunidade a viver o hoje o como se já fosse o futuro, alimentando a esperança e estimulando a luta pela transformação do mundo já agora, com a superação das injustiças, da violência e do ódio. Por isso, mais do que falar de uma vinda, é mais oportuno recordar a necessidade de acolher uma presença que já está inserida no mundo, mas precisa ser acolhida e experimentada na vida de cada pessoa.

O primeiro passo para uma compreensão mais adequada do texto é colocá-lo no seu devido contexto, como faremos aqui. Ora, como já adiantamos, trata-se de um trecho do discurso escatológico de Jesus. A nível de contexto literário, ou seja, considerando o texto no conjunto do Evangelho segundo Mateus, esse discurso nasceu como resposta à pergunta dos discípulos diante da declaração de Jesus sobre a destruição do templo de Jerusalém. Ora, quando Jesus afirmou que daquela faraônica construção “não restaria pedra sobre pedra” (cf. Mt 24,2), seus discípulos, certamente escandalizados, lhe perguntaram “como” e “quando” tudo isso aconteceria (cf. Mt 24,3). O amplo discurso escatológico é, portanto, a resposta de Jesus a essa pergunta. A nível de contexto sócio histórico, no entanto, esse discurso nasceu como resposta à situação de perseguição vivida pelas comunidades do evangelista. Perseguidos pelas autoridades romanas e pelo judaísmo oficial, os cristãos sentiam-se sufocados, desanimados porque não viam o Reino de Deus ser instaurado; sentiam-se quase sem forças para suportar o sofrimento e o desânimo. Por isso, com o discurso, o evangelista os convidava à resistência e à perseverança, alimentando a esperança de um mundo novo e estimulando a sua construção. De fato, a situação das comunidades da Palestina, nos anos 80 do primeiro século, era bastante adversa, e a tendência ao desânimo na vivência da mensagem de Jesus era forte. E Mateus, o evangelista que mais conhecia aquela realidade, foi quem mais desenvolveu o discurso escatológico, com o intuito de renovar a esperança e perseverança, e combatendo o medo causado por pregadores oportunistas que já existiam naquela época.

Voltando à pergunta dos discípulos sobre “quando e como” aconteceria a grande transformação do mundo, cujo primeiro grande sinal seria a destruição do templo de Jerusalém, é importante recordar que Jesus responde com bastante cuidado. Ele emprega uma linguagem altamente simbólica, típica do gênero apocalíptico, como era comum no seu tempo, e convida os interlocutores de todos os tempos a olhar para a história e observar o tempo presente. À história, se olha a partir da Escritura, ao tempo presente se olha a partir do cotidiano, da vida das pessoas mais simples, como o agricultor e a dona de casa. Em relação à dimensão temporal, ao seja, ao “quando”, disse Jesus: “Quanto àquele dia e hora, ninguém sabe, nem os anjos do céu e nem o Filho, mas somente o Pai” (Mt 24,36). Essa confissão de ignorância do Filho parece estranha, uma vez que Ele mesmo já tinha afirmado sua intimidade com o Pai, mostrando que tinham tudo em comum: “Tudo me foi entregue por meu Pai” (cf. Mt 11,27a). A afirmação de não conhecimento do momento exato da manifestação definitiva de Deus é, portanto, um alerta para a comunidade não se deixar levar por falsos anúncios de muitos supostos destinatários de visões e aparições. Quanto ao “como” da manifestação, Jesus também não apresenta muitos detalhes, embora seja menos ambíguo do que na resposta ao “quando”; inclusive, disse que haveria perseguição aos seus seguidores, e que muitos pregadores aproveitariam a ocasião para causar medo nas pessoas, o que exige bastante vigilância e cuidado para não se deixar enganar (cf. Mt 24,4-14). É, portanto, nesse contexto que o evangelho de hoje foi construído e transmitido na comunidade de Mateus e pensado também para as comunidades de todos os tempos e lugares.

É muito claro o interesse de Jesus em ponderar as expectativas e curiosidade dos discípulos. Na verdade, ele se preocupava bastante com tais expectativas, pois refletiam uma mentalidade incompatível com seu projeto de Reino. Por isso, ele ensina que, mais importante do que procurar descrever uma realidade desconhecida é estar preparado para acolher a novidade da vinda do Filho do Homem, como Ele mesmo se auto intitula, ao referir-se à sua segunda vinda. E, a melhor forma de preparar-se para tal evento é olhar com atenção para a história e perceber os sinais dos tempos. Por isso, Jesus cita o exemplo do tempo de Noé para apresentar a imprevisibilidade da sua vinda: “A vinda do Filho do Homem será como no tempo de Noé. Pois nos dias antes do dilúvio, todos comiam e bebiam, casavam-se e davam-se em casamento, até o dia em que Noé entrou na arca” (vv. 37-38). Assim, Ele mostra que a única coisa a ser feita é prevenir-se a partir do cotidiano, com discernimento e responsabilidade. Por isso, diz que “nos dias antes do dilúvio” (v. 38a), todos levavam uma vida normal, aparentemente, e muitos foram surpreendidos. Com isso, ele ensina que é necessário “normalizar” a vida a partir dos valores do Evangelho. Quer dizer, o ensinamento de Jesus deve ser regra e não exceção. Por regra, aqui, não se deve entender normas ou preceitos, mas o que deve ser prioridade e essencial, como o amor, a solidariedade, a justiça, a paz.  

O dilúvio (em grego: κατακλισμός – kataklismós) é apresentado como exemplo de como Deus pode surpreender a humanidade e como essa costuma não se prevenir para uma questão tão fundamental, que é a própria relação com Deus. Ao afirmar que “todos comiam e bebiam, casavam-se e davam-se em casamento” (v. 38b), Ele quer dizer que se fazia o que era normal e consumia-se todas as energias em coisas efêmeras, embora necessárias. As atividades de “comer, beber e casar-se” representam o cotidiano, as coisas que sustentam a vida em sua rotina e normalidade, bem como o dar-se em casamento. São coisas essenciais, indispensáveis, bastante valorizadas nos livros proféticos e sapienciais da Bíblia Hebraica. Aqui, contudo, Jesus quer chamar a atenção para a comunidade não se contentar com a normalidade das coisas, pois foi por causa disso que muitos se perderam na história. Por isso, Noé é apresentado como exemplo de prudência, aquele que percebeu os sinais dos tempos, que são os sinais pelos quais Deus se comunica com a humanidade. Devido à sua prudência, “Noé entrou na arca” (v. 38c), enquanto os outros “nada perceberam, até que veio o dilúvio e arrastou a todos” (v. 39a). Mais do que um alerta, esse exemplo é uma advertência para a responsabilidade. Ora, considerando que o discurso escatológico é direcionado principalmente aos discípulos que viviam situação de perseguição e desilusão com os rumos da história, portanto, é inadmissível que esses não saibam perceber os sinais dos tempos. Por isso, Jesus não lhes dá respostas prontas, mas convida-os a, inseridos no mundo, perceberem como Deus age na história.

De um exemplo do passado, Jesus parte para o presente e percebe que também no seu tempo as coisas estavam acontecendo da mesma forma, ou seja, as atividades do cotidiano continuavam distraindo as pessoas. É claro que não se pode ignorar o cotidiano; pelo contrário, deve-se vivê-lo bem, com intensidade, e o trabalho, como é mostrado nos dois exemplos seguintes, é uma dimensão indispensável para se viver bem o cotidiano; é um direito e um meio essencial para a dignidade humano. Mas isso exige responsabilidade, o que passa pela busca de sentido para a vida, tanto em nível pessoal quanto comunitário. Por isso, Ele cita duas atividades típicas do seu tempo, uma para o homem e outra para a mulher: o trabalho no campo e a atividade doméstica, respectivamente: “Dois homens estarão trabalhando no campo: um será levado e o outro será deixado. Duas mulheres estarão moendo no moinho: uma será levada e a outra será deixada” (vv. 40-41). Ao afirmar que um(a) será levado(a) e outro(a) deixado(a), Jesus não está antecipando a condenação e nem a salvação de ninguém, mas está lamentando que, novamente, a humanidade está desperdiçando a oportunidade de renovar-se, já que nem todos vivem as mesmas situações com a intensidade e a responsabilidade devidos. É lamentável que milhões de pessoas não tenham acesso ao trabalho digno. É igualmente lamentável que tantas pessoas não façam do trabalho um instrumento favorável à edificação do Reino de Deus.

O Reino de Deus, cuja irrupção na história corresponde, neste caso, à manifestação do Filho do Homem, não é excludente, mas é a própria humanidade que está rejeitando inserir-se nele. Enquanto alguns estão se esforçando para entrar nele, outros simplesmente o ignoram e, por isso, ficarão de fora. As atividades agrária e doméstica nesse contexto representam também o fechamento da humanidade a uma mentalidade antiga. Quem contentar-se somente em fazer estas coisas, sem preocupar-se com nada além disso, obviamente não está interessado no Reino, embora sejam atividades indispensáveis que não podem ser ignoradas. Aos discípulos e discípulas, é necessária uma abertura de horizonte. Estar atento à vinda do Filho do Homem é estar disposto a lutar e trabalhar pela instauração do Reino, e isso não se faz sem uma mudança de mentalidade. O Filho já veio; o discípulo e a discípula são desafiados, hoje, a reconhecer a sua presença e, assim, dar um novo sentido ao seu cotidiano, sobretudo, transformando-o. Por isso, é importante fazer bem-feitas as atividades do dia-a-dia, sem fechar-se nelas. Logo, quem trabalha no campo que o faça visando a construção do Reino, da mesma forma quem exerce atividade doméstica e qualquer que seja o trabalho. A instauração do Reino exige o esforço responsável e a esperança ativa de todas as pessoas.

O último exemplo usado para alertar os discípulos sobre a imprevisibilidade da vinda do Filho do Homem é aquele, tão conhecido, do dono da casa que não sabe a que hora pode ser surpreendido por um ladrão: “Compreendei bem isso: se o dono da casa soubesse a que horas viria o ladrão, certamente vigiaria e não deixaria que a sua casa fosse arrombada” (v. 43). Essa imagem tornou-se clássica entre os pregadores e escritores do cristianismo nascente (cf. 2Ts 5,2; 2Pd 3,10; Ap 3,3; 16,15), como sinônimo de advertência para manter um espírito de vigilância na vida cotidiana, tendo em vista a imprevisibilidade da manifestação do Senhor e a construção contínua do Reino. Infelizmente, essa imagem ajudou a criar um certo medo e angústia entre os primeiros cristãos, levando-os até a distorcerem o sentido da vigilância, que corresponde à corresponsabilidade de tornar, cotidianamente, o mundo melhor. Muitos pregadores, ao longo da história, tem se apropriado desta imagem para provocarem terror nas pessoas. No entanto, o que importa é o convite feito aos discípulos para não desanimarem um único instante, como a exortação do último versículo: “Por isso, ficai preparados! Porque na hora em que menos pensais, o Filho do Homem virá” (v. 44). Essa vinda coincide com a destruição da ordem opressora vigente e o estabelecimento do Reino de Deus, por isso, a vigilância é fundamental, pois esse processo exigirá muito empenho dos cristãos e cristãs.

O convite feito por Jesus no Evangelho de hoje é, portanto, que vivamos em estado constante de preparação para o encontro do Senhor, uma vez que Ele já veio e precisa apenas ser reconhecido e acolhido. Por isso, é preciso fazer do cotidiano uma constante preparação, ou melhor, preparar-se no cotidiano. Longe de ser uma mensagem de medo, o Evangelho é mensagem de salvação e boa-nova para todos. A “Boa Nova” de hoje é que, sem alarde algum, somos chamados a realizar nossas tarefas cotidianas já na presença dEle, tendo em vista que já veio, para que o fazer cotidiano já seja direcionado à chegada do Reino de Deus, com a superação de todas as injustiças e violências que continuam ofuscando a presença do Senhor que já é “Deus conosco”, expressão que orienta toda o Evangelho de Mateus do começo ao fim (cf. Mt 1,23; 18,20; 28,20).

Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

REFLEXÃO PARA O 23º DOMINGO DO TEMPO COMUM – LUCAS 14,25-33 (ANO C)

A liturgia deste vigésimo terceiro domingo do tempo comum continua a nos situar no contexto do caminho de Jesus para Jerusalém, com seus dis...