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sábado, março 08, 2025

REFLEXÃO PARA O 1º DOMINGO DA QUARESMA – LUCAS 4,1-13 (ANO C)



Após uma sequência de oito domingos, a liturgia interrompe, temporariamente, o tempo comum para viver e celebrar um de seus tempos mais fortes, a Quaresma, iniciada na Quarta-Feira de Cinzas, com o convite à conversão, em preparação à Páscoa do Senhor. Hoje, celebramos o primeiro domingo deste tempo especial. Como acontece todos os anos, o evangelho do primeiro domingo da Quaresma compreende a narrativa das tentações pelas quais Jesus passou, no deserto, logo após ser batizado, como preparação para o início de seu ministério. Esse é um episódio presente nos três evangelhos sinóticos (Mateus, Marcos e Lucas), um dado que confirma a sua grande importância para as primeiras comunidades cristãs. Neste ano, por ocasião do ciclo litúrgico C, nós lemos a versão das tentações do Evangelho de Lucas – Lc 4,1-13. Se trata de um texto bastante rico, muito bem elaborado, tanto do ponto de vista literário quanto teológico, com uso abundante de linguagem simbólica. 

Marcado por forte simbologia, o relato evangélico de hoje corre o sério risco de ser mal compreendido, devido a nossa tendência equivocada de considerar os evangelhos como livros de crônicas exatas da vida de Jesus, esquecendo o aspecto simbólico que predomina neste tipo de literatura. Por isso, é necessário, a nível de introdução, fazer algumas considerações importantes, visando uma compreensão mais adequada. E começamos recordando que a fonte original deste relato, o Evangelho de Marcos, não dá nenhum detalhe sobre o nível e a modalidade das tentações; mas apenas diz que «Jesus esteve no deserto durante quarenta dias sendo tentado por Satanás» (Mc 1,13); dessa informação simples e vaga, o evangelista Lucas, com muita criatividade e atendendo às necessidades das suas comunidades, ilustrou a história que lemos na liturgia de hoje, como fez também Mateus (Mt 4,1-11). Certamente, ambos tiveram acesso a outras fontes que desenvolveram o enunciado de Marcos, transformando em uma verdadeira narrativa, ou seja, uma história com personagens em ação, com circunstâncias de espaço e tempo bem definidas. Apesar de muito parecidas, as versões de Lucas e Mateus apresentam pequenas divergências, que correspondem ao ponto de vista teológico de cada um.

A nível de contexto, é imprescindível ainda recordar que o relato das tentações segue, imediatamente, o relato do batismo – Lc 3,21-22 – e, por isso, ambos estão intrinsecamente relacionados. Ainda antes do batismo, João – o que batizava – tinha anunciado Jesus como o Messias, em sua pregação. Ora, no batismo o Espírito Santo desceu sobre Jesus e, do céu, o próprio Pai o declarou como o seu “Filho Amado”. Logo, o principal objetivo do evangelista com este episódio de hoje é apresentar o comportamento de Jesus como o enviado de Deus, ou seja, o “Filho amado do Pai”, conforme a revelação no batismo, cena anterior ao texto de hoje (Lc 3,22), o qual permanecerá fiel aos propósitos do Pai, rejeitando todas as propostas que não condizem com os valores do Reino, sintetizadas aqui pelas três tentações apresentadas pelo seu principal oponente: o diabo. Portanto, esse é um texto programático para a comunidade cristã, pois indica como deve agir e resistir ao mal quem se deixa conduzir pelo Espírito Santo, missão comum a todos os batizados e batizadas.

O primeiro versículo já apresenta a principal chave de leitura de todo o texto: «Jesus, cheio do Espírito Santo, voltou do Jordão, e, no deserto, ele era guiado pelo Espírito» (v. 1). Ora, o mesmo Espírito Santo que desceu em forma corpórea de pomba (Lc 3,22) no batismo, acompanhará Jesus em todos os seus passos e ações; com o batismo, foi inaugurada sua vida pública, e essa, do início ao fim, será marcada pela presença do Espírito Santo, e não apenas quando Ele vai ao deserto. Enquanto guia, pode-se dizer que o Espírito Santo é o grande pedagogo de Jesus, como deve ser dos seus seguidores e seguidoras de todos os tempos. Quanto ao deserto, aqui, convém recordar que, mais do que uma indicação geográfica, se trata de um indicativo teológico, por sinal, bastante relevante. A ida de Jesus ao deserto, antes de tudo, indica que ele está inserido na história do povo de Israel, fazendo parte desse e, portanto, estará sujeito aos mesmos riscos pelos quais Israel passou, desde a saída do Egito até à conquista da terra. Logo, também o caminho de Jesus, do seu nascimento à ressurreição, será marcado por riscos, perigos e provas, uma vez que Ele, mesmo sendo o “Filho Amado” de Deus, é verdadeiramente ser humano, pois assumiu a humanidade em todas as suas dimensões. 

Embora o deserto evoque a provação, é também o lugar ideal para o bom relacionamento com Deus, por isso, quando o povo demonstrava infidelidade, os profetas apresentavam a necessidade de retornar ao deserto para voltar a viver o ideal da aliança, pois é o lugar onde Deus fala ao coração (Os 2,14; 9,10; 13,5; Am 2,10; 5,25). Por sinal, na palavra deserto em hebraico - midbar- encontra-se a raiz do termo DABAR, que significa palavra, discurso, bem como acontecimento, uma vez que, quando Deus fala, ele faz, ele realiza por meio da palavra. Uma vez que o deserto também é sinônimo de provação e perigo, o evangelista quer dizer que aquele que tem a sua vida conduzida pelo Espírito não está imune aos perigos da vida, não é uma pessoa blindada. Por isso, o texto diz que Jesus «ali foi tentado pelo diabo durante quarenta dias. Não comeu nada naqueles dias e, depois disso, sentiu fome» (v. 2). O protagonista da tentação é o diabo (em grego: διάβολος – diábolos), literalmente significa aquele que divide e atrapalha, o que age contra, como é tudo o que se opõe à concretização do Reino de Deus e ao caminho de Jesus. Logo, o diabo não é uma pessoa ou um ser específico que vem de outro mundo, mas todo percalço posto diante do projeto de Deus que Jesus veio apresentar ao mundo e realizar. Muitas vezes, o diabo é a própria estrutura das comunidades que teimam em ofuscar o Evangelho.

Se o deserto não é um dado geográfico, assim também os “quarenta dias” que Jesus lá passou não podem ser considerados como um dado meramente cronológico. Mais uma vez, trata-se de um dado teológico, e também de grande relevância. São muitas as ocorrências do número quarenta relacionado ao tempo no Antigo Testamento: a duração do dilúvio foi de quarenta dias e quarenta noites (Gn 7,4.12.17); Moisés passou quarenta dias sobre a montanha, antes de receber a Lei (Ex 32,28); a caminhada do povo de Deus no deserto durou quarenta anos, sendo esse um tempo de fidelidade e infidelidade, idolatria e prova (Ex 16,35; Dt 8,2-5; Sl 5,10); e o profeta Elias caminhou durante quarenta dias rumo ao monte Horeb (1 Rs 19,8). Além de evocar acontecimentos e personagens importantes da história de Israel, esse número quer dizer também uma etapa completa, ou seja, uma vida inteira, uma geração (quarenta anos). Trata-se de um tempo de maturação. Portanto, significa que toda a vida de Jesus foi marcada pela prova e, assim, é também a vida da comunidade cristã. Isso deve levar os cristãos e cristãs a uma vida vigilante e atenta ao Evangelho, com plena abertura ao Espírito Santo, para não cair nos comodismos e percalços que podem surgir. Quer dizer que a Igreja não pode, em momento algum da história, aceitar qualquer sinal de conforto, principalmente quando ofertado pelos detentores do poder.

A primeira tentação diz respeito à maneira de relacionar-se com as coisas; a lógica do império incentiva(va) o consumo e a satisfação dos desejos, enquanto Jesus propõe outro caminho. Eis o que diz a primeira tentação: «O diabo disse, então, a Jesus: “Se és Filho de Deus, manda que esta pedra se mude em pão. Jesus respondeu: “A Escritura diz: ‘Não só de pão vive o homem’”» (vv. 3-4). Embora faminto, Jesus percebe que não é suficiente saciar-se de pão naquele momento, pois a vida pede muito mais do que pão. Por isso, com base na Escritura (Dt 8,3), Ele não dispensa o pão, mas diz que o ser humano não pode viver “somente” dele. A vida digna e plena não depende apenas do alimento material, mas de todos os valores do Reino contidos na “Palavra que sai da boca de Deus”, que será explicitada no decorrer do seu ministério. Pelas expectativas messiânicas da época, imaginava-se um messias milagreiro, ao que Jesus se opõe radicalmente. Ele não veio ao mundo para resolver os problemas de maneira fácil e cômoda, como queriam e ainda querem muitos grupos e movimentos religiosos. Enfim, Jesus não se opõe ao pão material e sabe que as pessoas não podem viver sem ele. Inclusive, quando percebe que tem uma multidão faminta ao seu redor, ele faz de tudo para que a fome seja erradicada (Lc 9,10-17), responsabilizando seus discípulos a também fazerem o mesmo. Logo, ninguém tem o direito de usar a resposta de Jesus à primeira tentação como justificativa para não se sentir responsável diante do problema da fome, que continua a matar ainda milhões de pessoas.

A segunda tentação diz respeito à relação com o próximo, sobretudo quanto à maneira de conceber e exercer o poder: «O diabo levou Jesus para o alto, mostrou-lhe por um instante todos os reinos do mundo, e lhe disse: “Eu te darei todo este poder e toda a sua glória, porque tudo isso foi entregue a mim e posso dá-lo a quem eu quiser. Portanto, se te prostrares diante de mim em adoração, tudo será teu”. Jesus respondeu: “A Escritura diz: ‘Adorarás o Senhor teu Deus, e só a ele servirás’”» (v. 5-8). A lógica religiosa-imperial incentivava a busca constante por prestígio e poder e, consequentemente, de domínio sobre o outro. Cada vez mais alimentavam-se as expectativas de um messias glorioso e poderoso, capaz de julgar e condenar todos os ‘inimigos’ de Israel. Para decepção de muitos, Jesus apresentou-se como messias servo e sofredor, às avessas das expectativas. Por isso, rejeita toda e qualquer forma de poder, pois, mesmo que esse seja exercido em nome de Deus, será sempre de origem diabólica, uma vez que impede a concretização de uma fraternidade universal, ao cancelar o princípio básico da boa convivência: a igualdade.

Ao invés de poder, Jesus escolherá o serviço como meio de exercício de sua autoridade, e fruto de suas convicções de Filho Amado do Pai. Ao invés de ser servido, ele veio ao nosso meio para servir e dar sua vida (Lc 22,27). Ele não quis e nem quer o domínio do universo; quis e quer apenas que o seu amor chegue, através dos seus seguidores e seguidoras, a todos os confins da terra e, assim, que a humanidade seja transformada por esse amor, que é fonte de humanização. É claro que o evangelista não descreve o diabo como o dono do mundo; mas está denunciando que o poder exercido até então, em todos os reinos, marcado pela exploração, injustiça e opressão, segue a lógica diabólica, à qual o Evangelho se contrapõe com o Reino de Deus, marcado pelo amor, pelo serviço, a justiça e a fraternidade. Adorar e servir somente a Deus é a resposta à lógica desenfreada do mercado. Na linha dos grandes profetas de Israel, certamente, Jesus tinha em mente que a adoração e o serviço a Deus implicam em compromissos concretos com o próximo, especialmente os mais necessitados. Logo, também aqui, da segunda tentação, novamente vencida por Jesus, não se deve tirar motivos para uma religiosidade intimista e individualista, sem compromisso com o outro. 

A terceira tentação chama a atenção para a relação com Deus: «Depois o diabo levou Jesus a Jerusalém, colocou-o sobre a parte mais alta do Templo, e lhe disse: “Se és Filho de Deus, atira-te daqui abaixo! Porque a Escritura diz: ‘Deus ordenará aos seus anjos a teu respeito, que te guardem com cuidado!’ E mais ainda: ‘Eles te levarão nas mãos, para que não tropeces em alguma pedra’”. Jesus, porém, respondeu: “A Escritura diz: ‘Não tentarás o Senhor teu Deus’”» (v. 9-12) Ora, no templo de Jerusalém, onde a religião dizia que Deus morava, o que mais se podia esperar era milagres! Era inimaginável ali a presença do diabo, pela sacralidade que era atribuída àquele lugar. O evangelista denuncia, contudo, que os lugares considerados santos podem ser os mais perigosos e propícios à ação diabólica, pois é neles que é mais fácil de desvirtuar os propósitos de Deus, usando seu nome em vão. Jesus resiste à tentação do milagre fácil, rejeitando o Deus vendido pelo templo; o seu Deus não é aquele que distribui anjos por todas as partes para guiar e proteger os seus “filhos bons” e castigar os maus, como afirmava a religião da época; não é o Deus das visões e aparições nem dos espetaculares prodígios, mas é o Deus da simplicidade, das coisas pequenas, porque age a partir de dentro do ser humano, antes de tudo, humanizando-o.

Na conclusão, diz o evangelista que «Terminada toda a tentação, o diabo afastou-se de Jesus, para retornar no tempo oportuno» (v. 13). O diabo se afastou, momentaneamente, porque não encontrou em Jesus um aliado. De imediato, o evangelista já liga às tentações à cruz, o tempo oportuno (em grego: καιρός – kairós) em que o diabo retornou; de fato, também no calvário, já crucificado, Jesus foi tentado três vezes, por três categorias que assumiram o papel do diabo e o puseram à prova: o povo (multidão); os soldados e um dos malfeitores crucificado com ele (Lc 23,35-39); esses três grupos tentaram Jesus na cruz com a mesma tática do diabo: “se és o Cristo ou o rei dos judeus, salva-te a ti mesmo”. Também lá, Jesus resistiu. Assim, o evangelista mostra que as tentações são uma síntese da vida de Jesus, marcada pela sua incansável luta contra o mal, e uma clara antecipação da paixão. Do início do seu ministério, até a morte na cruz, ele foi tentado a abandonar o propósito de Deus, mas resistiu, ancorado na Palavra, que é fonte de vida, quando levada a sério, como levou Jesus, 

Concluindo, podemos dizer que as três tentações ou provas relatadas no evangelho de hoje são proposta e contraproposta de como o ser humano deve relacionar-se com as coisas, com o próximo e com Deus. São como uma parábola da vida de Jesus. O diabo apresenta a lógica da ordem vigente, seja religiosa ou política, e Jesus propõe um caminho alternativo, o que vai caracterizar o Reino de Deus como uma sociedade alternativa a todas formas de organização social até então experimentadas pela humanidade, amparadas ou não pela religião. Diante disso, parece haver um debate ou disputa de conhecimento da Escritura entre o diabo e Jesus. É uma nítida antecipação do que ocorrerá em toda a vida de Jesus, sobretudo quando terá de enfrentar os líderes religiosos do seu tempo e os maiores conhecedores da Palavra de Deus na sua época, os fariseus e mestres da Lei. 

A resistência de Jesus, recorrendo sempre à Palavra de Deus é uma indicação para as comunidades cristãs de todos os tempos: a perseverança e a fidelidade ao projeto de Jesus dependem essencialmente da atenção à Palavra. Ao mesmo tempo, há uma clara denúncia ao perigo do uso fundamentalista das Escrituras e tradições religiosas, pois também os argumentos do diabo são fundamentados na Palavra de Deus. É um alerta de que o mal age na história camuflado de diversas aparências, inclusive de pessoas muito religiosas.

Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

sábado, fevereiro 17, 2024

REFLEXÃO PARA O 1º DOMINGO DA QUARESMA – MARCOS 1,12-15 (ANO B)

 

Passada uma sequência de seis domingos, interrompe-se o tempo comum para a vivência de um dos tempos mais fortes do ano litúrgico, a Quaresma, iniciada na Quarta-Feira de Cinzas, com o convite à conversão, em preparação à Páscoa do Senhor. Inserida no ciclo pascal e distribuída ao longo de quarenta dias, a Quaresma é, na verdade, mais do que um tempo. É um verdadeiro itinerário catequético e espiritual, um caminho de conversão pessoal e comunitária, uma oportunidade de reconciliação de cada pessoa com Deus e consigo mesma, tendo em vista a celebração e a acolhida da Páscoa com sua riqueza de dons, a razão da fé cristã. Como acontece todos os anos, o evangelho do primeiro domingo da Quaresma compreende o relato das tentações pelas quais passou Jesus no deserto, logo após ser batizado, como preparação para o início de seu ministério. Esse é um episódio presente nos três evangelhos sinóticos (Mateus, Marcos e Lucas), um dado que confirma a sua grande importância para as primeiras comunidades cristãs. Neste ano, por ocasião do ciclo litúrgico B, nós lemos a versão das tentações do Evangelho de Marcos.

Como o relato das tentações em Marcos é muito curto, a liturgia acrescentou a leitura do primeiro resumo do ministério de Jesus na Galileia que, por sinal, combina muito bem com o início da Quaresma, pois contém o explícito convite à conversão, o fio condutor de toda a espiritualidade quaresmal. Por isso, o evangelho de hoje é Mc 1,12-15. Apesar de breve, é um texto bastante rico teologicamente, e de grande valor catequético para o percurso de preparação à Páscoa do Senhor. É surpreendente a capacidade de síntese do evangelista Marcos: em apenas quatro versículos, ele consegue transmitir muita coisa da vida de Jesus; claro que sob uma perspectiva catequética e teológica, e não propriamente histórica. Antes de nos determos diretamente no texto, é necessário fazer algumas considerações a respeito do contexto em que está inserido, recordando os eventos antecedentes. O episódio que o precede de imediato é o batismo de Jesus por João no Jordão (Mc 1,9-11). Enquanto realizava sua missão de batizador, João havia anunciado que viria alguém “mais forte” do que ele, o qual batizaria no Espírito Santo (vv. 7-8). De fato, veio esse “mais forte”, que foi batizado por João (v. 9), e sobre ele o Espírito se manifestou em forma de pomba (v. 10), e foi declarado pelo Pai como o “Filho Amado” que lhe dá prazer (v. 11). O texto de hoje é a sequência imediata desta série de eventos e sinais introdutórios da missão de Jesus.

Eis o início do texto: «logo o Espírito levou Jesus para o deserto» (v. 12). A versão litúrgica omitiu o advérbio “logo” ou “imediatamente” (em grego: εύθύς – euthis), mas é importante recordar, pois sua ausência compromete um pouco o sentido do texto, porque esconde o caráter de urgência e imediatez da ação do Espírito em impelir Jesus para o deserto. Por sinal, o verbo empregado pelo evangelista é muito mais intenso do que “levar”, que aparece na versão litúrgica; trata-se do verbo grego “ekbálo” (ἐκβάλλω), que significa empurrar, atirar, impelir, lançar fora com força. Essas observações são importantes para compreender a urgência do agir salvífico do Espírito e de Jesus. Significa que não havia tempo a perder; a situação caótica do mundo não permitia esperar. E a proclamação solene como “Filho Amado”, no batismo, não o isentou das provações e contradições da vida. A ida ao deserto, obviamente, não é apenas um movimento físico, mas um indicativo teológico. O deserto é um elemento de rico significado para a tradição bíblica. Nesse texto indica, antes de tudo, que Jesus está inserido na história do povo de Israel, fazendo parte desse e, portanto, estará sujeito aos mesmos riscos e perigos pelos quais esse povo passou, desde a saída do Egito até a conquista da terra, e ao longo de toda a história, incluindo os tempos obscuros de dominação e exploração romana. Assim, também o caminho de Jesus até a cruz e ressurreição será marcado por perigos e provas. Há, portanto, uma verdadeira pedagogia do deserto na Bíblia, e Jesus a atualiza com este episódio.

Embora o deserto evoque provação, é também o lugar ideal para o bom relacionamento com Deus. Por isso, quando o povo demonstrava infidelidade, os profetas apresentavam a necessidade de retornar ao deserto para voltar a viver o ideal da aliança (Os 2,16). A experiência do deserto na vida de Jesus representa, portanto, uma confirmação da sua condição de “Filho Amado” do Pai: «E ele ficou no deserto durante quarenta dias, e aí foi tentado por Satanás» (v. 13a). Associando deserto à provação, o evangelista chama a atenção da sua comunidade para um aspecto muito importante da vida cristã: deixar-se conduzir pelo Espírito não torna a pessoa imune às tentações e dificuldades que a vida apresenta. O tempo de permanência no deserto – quarenta dias – também possui um rico simbolismo na Bíblia. É uma clara alusão à experiência do êxodo, marcada por quarenta anos de caminhada no deserto (Nm 32,13; Dt 8,2), mas também a outros acontecimentos importantes do Antigo Testamento, como a duração do dilúvio de quarenta dias e quarenta noites (Gn 7,4.12.17), a caminhada de Elias rumo ao monte Horeb (1Rs 19,8), e outros. Além de evocar acontecimentos e personagens importantes da história de Israel, esse número quer dizer uma etapa completa, ou seja, uma vida inteira, uma geração. Portanto, significa que toda a vida de Jesus foi marcada pela prova, e assim é também a vida da comunidade cristã. Isso deve levar os cristãos a uma vida vigilante sem jamais cair em comodismos. Quer dizer que a Igreja não pode, em momento algum da história, aceitar qualquer sinal de conforto, principalmente quando ofertado pelos detentores de poder.

O tentador, segundo Marcos, é Satanás (em grego: σατανάς), e significa o adversário, aquele que se opõe ao plano de Deus. Não é um indivíduo ou um ser específico, mas toda e qualquer realidade adversa ao Reino de Deus. A vida cristã é um confronto constante com essa realidade. No decorrer do Evangelho, o adversário de Jesus assumirá diversos rostos: os fariseus, a hierarquia religiosa de Jerusalém, o poder político romano e até mesmo os seus discípulos (Mc 8,33), quando Pedro será explicitamente chamado de satanás e pedra de tropeço por opor-se aos propósitos do Reino de Deus. É importante também perceber que, ao contrário de Mateus e Lucas, Marcos não faz a mínima referência ao conteúdo das tentações, nem à quantidade e nem ao jejum praticado por Jesus; ao invés de empobrecer, esse dado só enriquece o seu relato. Ora, ao não descrever em pormenores essa realidade simbólica, o evangelista ajuda sua comunidade a não idealizar nem fantasiar uma cena, mas enfatiza que as tentações são imprevisíveis e indescritíveis porque são muitas e, portanto, não podem ser catalogadas ou delimitadas; a qualquer momento podem surgir, e isso durante toda a vida. De fato, sendo apresentadas logo no início da vida pública de Jesus, as tentações funcionam como um ensaio, indicando, assim, que durante toda a sua vida ele foi tentado, ou seja, posto à prova.

A segunda parte do versículo evoca a superação da prova com a conquista da paz messiânica: «Vivia entre os animais selvagens, e os anjos o serviam» (v. 13b). Ao invés da expressão animais selvagens, a palavra “feras” corresponde melhor ao termo empregado na língua original do texto (em grego: θερίων– therion). Inclusive, evidencia melhor o contraste com anjos. A convivência de Jesus entre as feras é um dado exclusivo de Marcos, enquanto o dado do serviço dos anjos é compartilhado também por Mateus (Mt 4,11). Lucas omite os dois dados. A presença das feras junto a Jesus significa que o antigo sonho profético de harmonia entre todos os elementos da criação é plenamente recuperado e realizado. Aquilo que fora sonhado durante muitos séculos por tantas gerações, tem em Jesus a oportunidade de ser realizado. A presença de Jesus entre feras e anjos significa sua missão de reconciliar o mundo consigo mesmo e com Deus. Jesus é habilitado pelo Pai, como “Filho Amado”, para combater as forças do mal e vencê-las pelo amor, fazendo acontecer a nova humanidade, instaurando, de fato, os “novos céus e nova terra” (Is 11,1-9). O serviço dos anjos quer dizer a adesão ao Reino da parte daqueles que compreendem a centralidade do Evangelho: servir por amor é o triunfo do bem. Feras e anjos juntos, tendo Jesus ao centro, significa a convivência pacífica entre todos os seres, por mais diferentes que sejam. É a criação recuperando sua ordem original. É imagem do mundo humanizado pelo Evangelho. As forças do mal já não têm o que fazer, se tornam impotentes quando o bem é abraçado e se faz serviço. A ida de Jesus pelo deserto é, portanto, uma antecipação e síntese de toda a sua vida. Quer dizer que o seu programa consiste no combate ao mal e a instauração definitiva do bem, cujo resultado é a plena humanização do mundo.

Aquilo que parecia apenas um ideal romântico, começa a concretizar-se com o anúncio do Evangelho e a instauração do Reino de Deus. Por isso, o evangelista afirmar que «Depois que João Batista foi preso, Jesus foi para a Galiléia, pregando o Evangelho de Deus» (v. 14). Temos aqui um divisor de águas na vida de Jesus: sendo comandada por Herodes (cf. Mc 6,17), a prisão de João se torna um apelo urgente para a instauração do Reino de Deus; é um triunfo temporário de satanás, o adversário, personificado no algoz do Batista, que precisa urgentemente ser combatido. A ação de satanás se torna evidente quando o sistema dominante oprime e mata. Quem se deixa conduzir pelo Espírito, não pode assistir passivamente a essa realidade. Por isso, Jesus entra em cena com seu anúncio do Evangelho de Deus. Evangelho, cujo significado literal é boa notícia, significa, em Marcos, tanto o conteúdo da pregação de Jesus quanto ele mesmo; o que Jesus diz é boa notícia, e a sua pessoa é a grande boa notícia de Deus à humanidade. E a luta contra o mal empreendida por Jesus não se dará pela força, nem pelo poder, mas pelo anúncio do “Evangelho de Deus”, ou seja, pelo seu jeito mesmo de ser e de viver. E ele mesmo é o Evangelho de Deus, enquanto Filho, enviado para humanizar o mundo, mediante sua mensagem e, sobretudo, o estilo de vida. Por isso, o Evangelho de Deus e o Evangelho de Jesus são uma coisa só, porque é a sua própria pessoa. É Jesus de Nazaré, aquele passou a vida fazendo o bem ( At 10,38).

A pregação de Jesus consistia no anúncio do Reino de Deus e o convite à conversão: «O tempo já se completou e o Reino de Deus está próximo. Convertei-vos e crede no Evangelho» (v. 15). A compreensão do cumprimento do tempo é essencial na pregação de Jesus. Aqui, o evangelista se refere ao tempo com o termo grego kairós (καιρός), que não significa o tempo cronológico, mas o tempo oportuno e favorável, uma oportunidade única que não pode ser desperdiçada. É o tempo que os profetas do Antigo Testamento tanto sonharam. E o inaugurador desse tempo é Jesus. De fato, em um mundo insuportável, marcado pelas injustiças e opressão, com lideranças religiosas e políticas totalmente corrompidas, a oportunidade de criação de um mundo novo não poderia ser desperdiçada e nem adiada. E esse mundo novo é o Reino de Deus, o conteúdo da pregação de Jesus, que consiste exatamente na alternativa de mundo e sociedade ao sistema vigente na época. É claro que essa proposta continua é válida para todos os tempos.

Não é fácil dar uma definição completa e precisa de Reino de Deus. Nem os evangelhos dão, apesar das inúmeras referências que fazem. O próprio Jesus, quando fala do Reino de Deus não o faz a partir de conceitos, mas com parábolas, que têm a função de tornar o ensinamento mais acessível e, ao mesmo tempo, manter um certo mistério. Contudo, é certo que o Reino de Deus não é uma promessa de esperança para um bem-estar futuro, não é uma promessa para o além, mas a proposta de Deus para o hoje da história. No Pai-nosso, a oração cristã por excelência, não se pede para alcançar o Reino no futuro, mas que o Reino venha até nós. Logo, trata-se de algo concreto e urgente. A instauração do Reino consiste na transformação deste mundo num mundo novo, numa sociedade com novas relações, baseadas na justiça, no amor, no perdão e no serviço; um mundo marcado pela igualdade e fraternidade. Resumindo, podemos dizer que a o Reino é a realização do projeto libertador de Deus no mundo, que consiste, acima de tudo, num mundo humanizado. Esse Reino “está próximo”, diz Jesus, porque é Ele o Reino em pessoa. Aqui, mais do que a temporalidade do Reino, a proximidade exprime a materialidade. A presença de Jesus no mundo significa que o Reino de Deus começou a ser construído. Essa proximidade do Reino será evidenciada pelo modelo de vida de Jesus e pelos sinais realizados por Ele, os quais dirão que o Reino, de fato, chegou.

Para participar do Reino não são necessários rituais de purificação, mas apenas conversão e adesão ao Evangelho. A participação na comunidade da antiga aliança, por exemplo, dependia de questões genealógica e étnica, além da observação minuciosa de inúmeros preceitos. O Reino de Deus comporta uma lógica diferente, tendo como condição a adesão ao imperativo «Convertei-vos e crede no Evangelho» (v. 15a). A necessidade de conversão é uma constante na vida do seguidor de Jesus. Converter-se e crer no Evangelho é, portanto, uma atitude contínua. Ora, converter-se não significa assimilar um rito, nem intensificar as práticas penitenciais e devocionais; não significa tornar-se uma pessoa mais religiosa. Conversão significa mudança radical de mentalidade, que envolve o jeito de ser, de pensar e de agir. Essa mudança de mentalidade se torna verificável na vida da pessoa pela adesão ao Evangelho, cujo resultado concreto é a assimilação do estilo de vida de Jesus de Nazaré. E crer no Evangelho, por consequência, significa aceitar e aderir ao projeto libertador de Deus por meio de Jesus Cristo, fazendo opções iguais às dele.

A Quaresma, portanto, mais do que um tempo, é um caminho oportuno para a conversão e a renovação das convicções do seguimento de Jesus e da adesão ao seu projeto de Reino que, desde o primeiro momento, se mostra incompatível com os reinos deste mundo. Por isso, para abraçá-lo é necessário converter-se e crer no Evangelho. E para ajudar a trilhar esse caminho com mais fidelidade, a Igreja no Brasil oferece a Campanha da Fraternidade como instrumento de vivência da espiritualidade quaresmal e oportunidade de reflexão sobre a amizade, neste ano. É da fraternidade que emana a amizade. O cultivo da amizade significa o aprofundamento da fraternidade. Jesus quer que seus discípulos e discípulas sejam, acima de tudo, irmãos e irmãs uns dos outros e de todas as pessoas.

Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

sexta-feira, fevereiro 24, 2023

REFLEXÃO PARA O 1º DOMINGO DA QUARESMA – MATEUS 4,1-11 (ANO A)

 


Após uma sequência de seis domingos, a liturgia interrompe o tempo comum para viver e celebrar um de seus tempos mais fortes, a Quaresma, iniciada na Quarta-Feira de Cinzas, com o convite à conversão, em preparação à Páscoa do Senhor. Hoje, celebramos o primeiro domingo deste tempo especial. Como acontece todos os anos, o evangelho do primeiro domingo da Quaresma compreende a narrativa das tentações pelas quais passou Jesus no deserto, logo após ser batizado, como preparação para o início de seu ministério. Esse é um episódio presente nos três evangelhos sinóticos (Mateus, Marcos e Lucas), um dado que confirma a sua grande importância para as primeiras comunidades cristãs. Neste ano, por ocasião do ciclo litúrgico A, nós lemos a versão das tentações do Evangelho de Mateus –  4,1-11. Se trata de um texto bastante rico, muito bem elaborado, tanto do ponto de vista literário quanto teológico, com uso abundante de linguagem simbólica. 

Marcado por forte simbologia, o evangelho de hoje corre o sério risco de ser mal compreendido, devido a nossa tendência equivocada de considerar os evangelhos como livros de crônicas exatas da vida de Jesus, esquecendo o aspecto simbólico que predomina neste tipo de relato. Por isso, é necessário, a nível de introdução, fazer algumas considerações importantes para uma adequada compreensão. A fonte original deste relato é o Evangelho de Marcos, e não dá nenhum detalhe sobre o nível e a modalidade das tentações. Marcos apenas diz que «Jesus esteve no deserto durante quarenta dias sendo tentado por Satanás» (Mc 1,13); dessa informação simples e vaga, o evangelista Mateus, com muita criatividade, e atendendo às necessidades da sua comunidade, ilustrou a história que lemos hoje na liturgia, como fez também Lucas (cf.  Lc 4,1-13).

A nível de contexto, é imprescindível recordar que o relato das tentações segue, imediatamente, ao relato do batismo – cf. Mt 3,13-17 – e, por isso, ambos estão intrinsecamente relacionados. Ainda antes do batismo, João tinha anunciado Jesus como o Messias, em sua pregação. Ora, no batismo o Espírito Santo desceu sobre Jesus e, do céu, o próprio Pai o declarou como o seu “Filho Amado”. Logo, o principal objetivo do evangelista com este episódio de hoje é apresentar o comportamento de Jesus como o enviado de Deus, ou seja, o “Filho amado do Pai”, conforme a revelação no batismo, cena anterior ao texto de hoje. E ele vai mostrar que Jesus permanecerá fiel aos propósitos do Pai, rejeitando todas as propostas que não condizem com os valores do Reino, sintetizadas aqui pelas três tentações apresentadas pelo diabo. Portanto, esse é um texto programático para a comunidade cristã, pois indica como deve agir e resistir ao mal quem se deixa conduzir pelo Espírito Santo, missão comum a todos os batizados e batizadas.

Iniciamos nossa reflexão considerando os dois primeiros versículos do texto: «O Espírito conduziu Jesus ao deserto, para ser tentado pelo diabo. Jesus jejuou durante quarenta dias e quarenta noites, e, depois disso, sentiu fome» (vv. 1-2). Ora, o mesmo Espírito Santo que desceu em forma de pomba (cf. Mt 3,16) no batismo, acompanhará Jesus em todos os seus passos e ações; com o batismo, foi inaugurada sua vida pública, e essa, do início ao fim, será marcada pela presença do Espírito Santo, e não apenas quando Ele vai ao deserto. Aqui, o deserto não é um indicativo geográfico, mas teológico. A ida de Jesus ao deserto, antes de tudo, indica que ele está inserido na história do povo de Israel, fazendo parte desse e, portanto, estará sujeito aos mesmos riscos pelos quais Israel passou, desde a saída do Egito até a conquista da terra. Logo, também o caminho de Jesus, do nascimento à ressurreição, será marcado por riscos, perigos e provas, uma vez que Ele, mesmo sendo o “Filho Amado” de Deus, é verdadeiramente ser humano, assumiu a humanidade em todas as suas dimensões. Embora o deserto evoque a provação e a dificuldade, é também o lugar ideal para o bom relacionamento com Deus, por isso, quando o povo demonstrava infidelidade, os profetas apresentavam a necessidade de retornar ao deserto para voltar a viver o ideal da aliança (cf. Os 2,14; 9,10; 13,5; Am 2,10; 5,25). Uma vez que o deserto também é sinônimo de provação e perigo, o evangelista quer dizer que aquele que tem a sua vida conduzida pelo Espírito, não está imune aos perigos da vida, não é uma pessoa blindada. O autor das tentações é o diabo (em grego: διαβολος – diábolos), palavra grega que literalmente significa aquele que divide e atrapalha, como é tudo o que se opõe à concretização do Reino de Deus e ao caminho de Jesus. Logo, o diabo não é uma pessoa ou um ser específico, mas todo percalço posto diante do projeto de Deus; muitas vezes é a própria estrutura das comunidades que teimam em ofuscar o Evangelho.

Se o deserto não é um dado geográfico, assim também os “quarenta dias” que Jesus lá passou não podem ser considerados como um dado cronológico exato. Mais uma vez, trata-se de um dado teológico, e de grande relevância. São muitas as ocorrências do número quarenta relacionado ao tempo no Antigo Testamento: a duração do dilúvio foi de quarenta dias e quarenta noites (cf. Gn 7,4.12.17); Moisés passou quarenta dias sobre a montanha, antes de receber a Lei (cf. Ex 32,28); a caminhada do povo de Deus no deserto durou quarenta anos, sendo esse um tempo de fidelidade e infidelidade, idolatria e prova (Ex 44,28); e o profeta Elias caminhou durante quarenta dias rumo ao monte Horeb (cf. 1 Rs 19,8). Além de evocar acontecimentos e personagens importantes da história de Israel, esse número quer dizer também uma etapa completa, ou seja, uma vida inteira, uma geração (quarenta anos). Quando se trata de dias, é o tempo necessário para assimilar um grande ensinamento. Portanto, significa que toda a vida de Jesus foi marcada pela prova e, assim, é também a vida da comunidade cristã. Isso deve levar os cristãos e cristãs a uma vida vigilante sem, jamais, cair nos comodismos que podem surgir. Quer dizer que a Igreja não pode, em momento algum da história, aceitar qualquer sinal de conforto, principalmente quando ofertado pelos detentores do poder.

A primeira tentação diz respeito à maneira de relacionar-se com as coisas; a lógica do império incentivava o consumo e a satisfação dos desejos, o que Jesus rejeita. Eis o que diz a primeira tentação: «Então, o tentador aproximou-se e disse a Jesus: ‘Se és o Filho de Deus, manda que estas pedras se transformem em pães! Mas Jesus respondeu: ‘Está escrito: ‘Não só de pão vive o homem, mas de toda palavra que sai da boca de Deus’» (vv. 3-4). Embora faminto, Jesus percebe que não é suficiente saciar-se de pão naquele momento, pois a vida pede muito mais do que pão. Por isso, com base na Escritura (cf. Dt 8,3), Ele não dispensa o pão, mas diz que o homem não pode viver “somente” dele. A vida digna e plena não depende somente do alimento material, mas de todos os valores do Reino contidos na “Palavra que sai da boca de Deus”, que será explicitada no dec0rrer do seu ministério. O messianismo da época previa um messias milagreiro, ao que Jesus se opõe radicalmente; Ele não veio ao mundo para resolver os problemas de maneira fácil e cômoda, como queriam e ainda querem muitos grupos e movimentos religiosos. Por sinal, essa é única vez em que o evangelista Mateus dá ao diabo o nome de “tentador” (em grego: πειράζων – peirazón), uma derivação do verbo tentar (em grego: πειράζω – peirázo), o mesmo verbo que ele aplica aos líderes religiosos, especialmente os fariseus, que põe Jesus à prova durante o evangelho (16,1; 19,3; 22,18.35).

A segunda tentação chama a atenção para a relação com Deus: «Então o diabo levou Jesus à Cidade Santa, colocou-o sobre a parte mais alta do Templo, e lhe disse: ‘Se és Filho de Deus, lança-te daqui abaixo! Porque está escrito: ‘Deus dará ordens aos seus anjos a teu respeito, e eles te levarão nas mãos, mas para que não tropeces em alguma pedra’. Jesus lhe respondeu: ‘Também está escrito: ‘Não tentarás o Senhor teu Deus’» (v. 5-7). Ora, no templo de Jerusalém, onde a religião dizia que Deus morava, o que mais se podia esperar era milagres! Jesus resiste à tentação do milagre fácil, rejeitando o Deus vendido pelo templo; o seu Deus não é aquele que distribui anjos por todas as partes para guiar e proteger os seus “filhos bons” e castigar os maus, como afirmava a religião da época, não é o Deus das visões e aparições nem dos espetaculares prodígios, mas é o Deus da simplicidade, das coisas pequenas, porque age a partir de dentro do ser humano.

A terceira tentação diz respeito à relação com o próximo, sobretudo quanto à maneira de conceber e exercer o poder: «Novamente, o diabo levou Jesus para um monte muito alto. Mostrou-lhe todos os reinos do mundo e sua glória, E lhe disse: ‘Eu te darei tudo isso, se te ajoelhares diante de mim, para me adorar’. Jesus lhe disse: ‘Vai-te embora, Satanás, porque está escrito: ‘Adorarás ao Senhor, teu Deus, e somente a ele prestarás culto’» (vv. 8-10). A lógica religiosa-imperial incentivava a busca constante por prestígio e poder e, consequentemente, de domínio sobre o outro. Cada vez mais alimentavam-se as expectativas de um messias glorioso e poderoso, capaz de julgar e condenar todos os ‘inimigos’ de Israel. Para decepção de muitos, Jesus apresentou-se como messias servo e sofredor. Por isso, rejeita toda e qualquer forma de poder, pois, mesmo que esse seja exercido em nome de Deus, será sempre de origem diabólica, uma vez que impede a concretização de uma fraternidade universal. O diabo apresenta a Jesus todos os reinos do mundo; significa que há muitos, enquanto Jesus falará de um único Reino, o Reino dos Céus, como sinal de unidade e fraternidade. A multiplicidade de reinos do mundo significa a falta de concórdia e harmonia, decorrente das formas tirânicas e ilegítimas do exercício do poder.

Ao invés de poder, Jesus escolherá o serviço como meio de exercício de sua autoridade, e fruto de suas convicções de Filho Amado do Pai. Ele não quis e nem quer o domínio do universo; quis e quer apenas que o seu amor chegue, através dos seus seguidores e seguidoras, em todos os confins da terra e, assim, que a humanidade seja transformada por esse amor. É claro que o evangelista não descreve o diabo como dono do mundo; mas está denunciando que o poder exercido até então, em todos os reinos, marcado pela exploração, injustiça e opressão, segue a lógica diabólica, à qual o Evangelho se contrapõe com o Reino dos Céus anunciado por Jesus, marcado pelo amor, pelo serviço, a justiça e a fraternidade. 

Na conclusão, diz o evangelista: «Então o diabo o deixou. E os anjos se aproximaram e serviram a Jesus» (v. 11). O diabo se afastou porque não encontrou em Jesus um aliado. Devido à sua comunhão de amor com o Pai, Jesus sabia discernir e fazer opção pelo lado do amor e da justiça, inclusive, foi para isso que o Pai lhe enviou ao mundo. Ao falar do serviço dos anjos a Jesus, o evangelista emprega um verbo que significa especificamente o serviço de mesa, ou seja, o serviço do pão. É esse o sentido do verbo grego “diakonêo” (διακονέω), do qual deriva o termo diácono (em grego: διάκονος – diáconos). Ao invés de comer um pão fruto de uma mera demonstração de poder, Jesus recebe o pão como dom gratuito; e aquilo que é dom deve ser partilhado, como ele mesmo fará, seja partilhando o pão com as multidões famintas (cf. Mt 15,32-39), seja doando a sua própria vida como alimento (cf. Mt 26,26-30).

As três tentações ou provas relatadas no evangelho de hoje são proposta e contraproposta de como o ser humano deve relacionar-se com as coisas, com Deus e com o próximo. São como uma parábola da vida de Jesus. O diabo apresenta a lógica da ordem vigente, seja religiosa ou política, e Jesus propõe um caminho alternativo, o que vai caracterizar o Reino dos Céus como uma sociedade alternativa a todas formas de organização social até então experimentadas pela humanidade, amparadas ou não pela religião. Diante disso, parece haver um debate ou disputa de conhecimento da Escritura entre o diabo e Jesus. É uma nítida antecipação do que ocorrerá em toda a vida de Jesus, sobretudo quando terá de enfrentar os líderes religiosos do seu tempo.

A resistência de Jesus, recorrendo sempre à Palavra de Deus é uma indicação para as comunidades cristãs de todos os tempos: a perseverança e a fidelidade ao projeto de Jesus dependem essencialmente da atenção à Palavra. Ao mesmo tempo, há uma clara denúncia ao perigo do uso fundamentalista das Escrituras e tradições religiosas, pois também os argumentos do diabo são fundamentados na Palavra de Deus. É um alerta de que o mal age na história camuflado de diversas aparências, inclusive de pessoas muito religiosas.

Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

 

 

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