Chegamos ao último domingo do
ano litúrgico, o qual vem intitulado pela liturgia como solenidade de nosso
Senhor Jesus Cristo, rei do universo. Esse título, por si só, já nos desperta
bastante atenção e curiosidade, despertando também a necessidade de profunda
reflexão para não distorcermos a natureza da realeza de Jesus. Ao falar de
alguém como rei, a tendência imediata é atribuir-lhe as características
próprias dos reis deste mundo, como coroa, trono, cetro e poder; associar Jesus
a esses sinais de realeza é trair completamente o seu Evangelho, mesmo que as
imagens e representações usadas em muitas igrejas o representem assim. Dar a
Jesus trono, cetro e coroa é zombar dele; independente do contexto histórico, é
repetir a zombaria dos soldados que o crucificaram: “Os soldados, tendo
feito uma coro de espinhos, colocaram-na em sua cabeça, e o envolveram com um
manto de púrpura” (Jo 19,2).
Mesmo concentrando a nossa
reflexão no texto evangélico proposto – João 18,33b-37 – é oportuno e
necessário fazermos uma pequena contextualização histórica da instituição desta
solenidade; essa foi instituída no ano de 1925, pelo papa Pio XI. Aquele era um
momento conturbado para a Europa e todo o mundo: a primeira guerra mundial
tinha acabado há pouco tempo e já se sentia o clima da segunda; o desejo desenfreado
de poder com as consequências que desse derivam estavam em efervescência, mais
do que nunca. Na época, já estavam consolidados o fascismo na Itália, o
stalinismo na Rússia, e o nazismo estava em gestação na Alemanha. Havia muita
gente querendo ser “senhor do mundo”. Foi nesse contexto que o papa Pio XI
instituiu, com muita sabedoria, a solenidade de Cristo Rei, como um lembrete e
advertência para aqueles que almejavam o senhorio da história e o domínio do
mundo.
Uma vez instituída e
consolidada, essa festa não deixa de trazer certos perigos em sua
interpretação. O problema se dá na concepção e representação que se tem feito da
realeza de Jesus. Combater os reinos deste mundo para implantar o Reino de Deus
não é uma simples substituição na detenção do poder, mas uma mudança radical na
forma de conceber o seu reino. Assim como Jesus não pretendeu ocupar o lugar de
César (o imperador romano), jamais pretenderia também ocupar o lugar de
Mussolini, Stálin, Hitler ou qualquer outro dirigente totalitário. A sua
proposta de reinado é totalmente incompatível com as experiências de poder até
hoje experimentadas pela humanidade. Jesus não propõe apenas um mundo diferente
desse que tem proporcionado os detentores de poder, mas um mundo totalmente
oposto, com relações completamente novas, capazes de gerar paz, justiça e
fraternidade.
O texto evangélico específico
para a liturgia de hoje faz parte do relato da paixão de Jesus no Quarto
Evangelho; É um trecho do processo de Jesus diante de Pilatos, governador
romano da província da Judéia, na época. A capital da província era a cidade de
Cesaréia Marítima, onde morava o governador; porém, nos períodos das grandes
festas, como a páscoa, a governadoria se transferia para Jerusalém. Por isso,
Pilatos teve a oportunidade de interrogar Jesus, pois já se encontrava em
Jerusalém por ocasião da páscoa. Jesus estava sozinho diante de Pilatos, pois
os judeus não podiam entrar no palácio, com medo de ficarem impuros e, assim,
não poderiam celebrar a páscoa no dia seguinte. Por isso, Jesus entrou sozinho
no pretório para ser interrogado. O encontro de Jesus com Pilatos é apenas uma
formalidade; a sua morte já estava decidida. A cúpula da religião judaica,
incomodada com a pregação e a práxis de Jesus já planejava a sua morte há muito
tempo. Estava decidido que daquela páscoa ele não passaria! Como os chefes
religiosos não tinham poder de execução, mesmo com a pena decidida, era necessário
convencer o poder romano a fazer a execução.
Eis o que diz o texto: “Pilatos
chamou Jesus e perguntou-lhe: “Tu és o rei dos judeus?” (v. 33b). A
pergunta dá a entender que Pilatos já sabia que aquele caso se tratava de uma
questão muito interna da religião judaica, embora representasse também uma
ameaça de rebelião que poderia trazer consequências para o poder romano. Na
verdade, todos os governadores romanos enviados para a província da Judéia já
iam prevenidos do risco constante de rebeliões de líderes radicais dos
movimentos populares do judaísmo. A pergunta revela também uma espécie de
surpresa: o homem que está diante de Pilatos não aparenta causar perigo algum à
ordem imperial; embora tenha sido entregue como agitador, parece que Pilatos
não vê Jesus como ameaça. Além de surpresa, essa pergunta também expressa
escárnio. Jesus não se intimida com a pergunta do governador, e faz o diálogo
fluir: “Estás dizendo isto por ti mesmo ou outros te disseram isto de mim?” (v.
34). É costume de Jesus responder a uma pergunta com uma nova pergunta. Com isso,
ele chama a atenção de Pilatos para pensar por conta própria sem deixar-se
manipular pela opinião dos outros.
Na continuidade do diálogo,
Pilatos reage à pergunta provocatória de Jesus: “Pilatos falou: “Por acaso,
sou judeu? O teu povo e os sumos sacerdotes te entregaram a mim. Que fizestes?”
(v. 35). A intenção do governador é isentar-se o máximo possível da
responsabilidade pela condenação de Jesus. Ao tentar provar neutralidade,
Pilatos exerce a pior das hipocrisias: a indiferença diante da injustiça. Ao
mesmo tempo, sintetiza uma realidade que já fora demonstrada ao longo de todo o
Quarto Evangelho: toda a classe dirigente dos judeus estava contra Jesus: “o
teu povo e os sumos sacerdotes” significa o complô dos grupos judaicos
hegemônicos com os dirigentes do templo. No final, por mais que o poder romano
tenha sido conveniente e executor da condenação de Jesus, o evangelista deixa
claro de onde partiu a iniciativa: das autoridades religiosas judaicas.
Pilatos tinha perguntado o que Jesus
tinha feito para ser entregue pelo seu próprio povo; a essa pergunta Jesus não respondeu,
mas preferiu voltar para o tema da primeira pergunta, a respeito da natureza do
seu reino: “O meu reino não é deste mundo. Se o meu reino fosse deste mundo,
os meus guardas lutariam para que eu não fosse entregue aos judeus. Mas o meu
reino não é daqui” (v. 36). A declaração “o meu reino não é deste mundo”
é bastante esclarecedora, mas também fácil de ser distorcida. Antes de tudo,
não se trata de uma contraposição entre o céu e a terra. Aqui, Jesus se refere
à origem, à concepção do seu reino, e não à sua efetivação; os reinos deste
mundo se sustentam com o uso da força, da violência, da injustiça e da hipocrisia
de um modo geral. Jesus, com essa afirmação, diz que seu reino não se baseia
nesses meios. Porém, ele não está falando de um reino para o além ou outro mundo.
O seu reino, baseado na justiça, no amor e na fraternidade deve ser efetivado
nesse mundo, onde estão as pessoas com suas necessidades e angústias. O reino
de Jesus não é deste mundo por não se assemelhar aos reinos deste mundo, mas
deve ser construído e vivido já nesse mundo.
A Pilatos, Jesus dá uma prova
de que seu reino não é deste mundo: não tem exército nem guardas para lutar
contra a sua condenação. Um exército era a primeira necessidade para a formação
de um reino na antiguidade. Inclusive, os movimentos judaicos de resistência
que, vez ou outra preocupavam à casta sacerdotal e ao poder romano, proponham a
luta armada, faziam recruta de militantes; nem com esses o movimento de Jesus
se assemelhava. Para Jesus e seus seguidores, a violência nunca pode ser a resposta.
À violência, ao ódio e à injustiça e ao mal em geral, a resposta ensinada por
Jesus é sempre o amor. Por isso, é sempre incoerente caricaturá-lo com os sinais
de realeza terrena, come ele vem caracterizado na maioria das imagens e
pinturas. É uma verdadeira traição ao seu projeto.
Ao dizer que tem um reino, mesmo
não sendo deste mundo, Jesus despertou ainda mais a curiosidade de Pilatos, que
perguntou novamente: “Então tu és rei?” (v. 37a). A insistência com a
mesma pergunta revela a insegurança e o medo de um possível concorrente, o que
faz parte da lógica dos reinos deste mundo, compostos por oprimidos e
opressores, privilegiados e não privilegiados. A concorrência é a negação da
fraternidade e da igualdade. À nova indagação de Pilatos, finalmente, Jesus
confirma que é rei, mas faz questão de reforçar a incompatibilidade entre o seu
reino e aquele que Pilatos representava: Jesus respondeu: “Tu o dizes: eu
sou rei. Eu nasci e vim ao mundo para isto: para dar testemunho da verdade.
Todo aquele que é da verdade escuta a minha voz” (v. 37). Pilatos
perguntou, no início, se Jesus era rei dos judeus; a essa pergunta Jesus se
negou a responder. Quando responde ser rei, não se diz de um povo específico, o
que mostra o alcance universal de sua mensagem. Jesus não veio ao mundo com uma
missão restrita a uma nação, mas trouxe um projeto de reino universal, baseado
na verdade.
A verdade (em grego αληθεια = aletéia) é uma palavra
chave para a construção da missão e da identidade de Jesus no Evangelho segundo
João. Ainda no prólogo, no versículo chave, quando o evangelista afirma que “a
Palavra se fez carne, como Unigênito do Pai”, ele diz que esse Unigênito,
Jesus, veio “cheio de verdade” (cf. Jo 1,14); ainda no prólogo, o evangelista
contrapõe a graça à lei, dizendo que junto com a graça, veio a verdade ao
mundo, por meio de Jesus Cristo (cf. Jo 1,17). Na ceia, ao responder a uma
pergunta de Tomé, Jesus se revelou como “o caminho, a verdade e a vida” (cf. Jo
14,6). Finalmente, no processo, diante de Pilatos, Jesus reafirma a sua relação
com a verdade e sua missão de testemunhá-la. A verdade é um atributo de Jesus e
ao mesmo tempo a sua meta e missão, como deve ser de seu discipulado. Não se
trata de uma doutrina para ser preservada e anunciada, mas de uma realidade a
ser vivida e testemunhada, o que só é possível em estreita comunhão de vida com
ele. É essa comunhão que faz nascer o verdadeiro reino por Jesus anunciado.
Pe. Francisco Cornelio
F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN