sábado, outubro 28, 2023

REFLEXÃO PARA O 30º DOMINGO DO TEMPO COMUM – MATEUS 22,34-40 (ANO A)



A liturgia deste trigésimo domingo do tempo comum continua apresentando Jesus em Jerusalém, vivendo a etapa final do seu ministério, marcada por uma série de confrontos e disputas com as classes dirigentes e os grupos mais influentes da vida política e religiosa de Israel. O texto selecionado para este dia – Mt 22,34-40 – compreende a disputa sobre o maior dos mandamentos. Trata-se de um episódio pertencente à tradição sinótica, ou seja, consta nos três evangelhos sinóticos (Mt 22,34-40; Mc 12,28-34; Lc 10,25-28), embora cada versão possua características próprias, correspondentes às necessidades das comunidades destinatárias e às perspectivas teológicas dos respectivos evangelistas. Em Mateus e Marcos, o episódio localiza-se no contexto do ministério de Jesus em Jerusalém, sendo que em Mateus a tonalidade polêmica é mais evidenciada. Em Lucas, esse episódio situa-se no contexto do caminho de Jesus para Jerusalém, funcionando como motivação para a famosa parábola do bom samaritano (Lc 10,30-35), omitindo-se também a tonalidade mais polêmica, tão evidenciada por Mateus. A ênfase mais polêmica em Mateus é consequência da situação das suas comunidades, na época da redação do seu Evangelho, em meados dos anos oitenta do primeiro século, quando havia forte disputa, e até rivalidade, entre os membros do movimento cristão e os membros da sinagoga, quase todos pertencentes ao movimento dos fariseus.

A série de polêmicas entre Jesus e os grupos hegemônicos de Israel, em Jerusalém, começou com a corajosa denúncia à transformação do templo em casa de comércio e covil de ladrões (Mt 21,12-17), logo após sua entrada triunfante na cidade. Daquele momento em diante, cada passo de Jesus passou a ser milimetricamente vigiado. Havia uma espécie de consórcio entre os diversos grupos hegemônicos – sacerdotes, anciãos, herodianos, saduceus, fariseus, escribas – com o objetivo de colocar Jesus em situações constrangedoras, até encontrar motivos para condená-lo, seja por subversão política seja por transgressão religiosa. Havia até rivalidades entre alguns desses grupos, mas tendo Jesus como inimigo comum, eles se uniam por conveniência no intuito de derrotá-lo. Esses grupos se alternavam no confronto: quando um deles ficava sem argumentos, outro entrava em cena com uma questão ainda mais embaraçante. Os primeiros grupos a confrontá-lo diretamente foram os sacerdotes e anciãos, questionando com que autoridade Jesus ensinava no templo (Mt 21,23-27). A esses, Jesus respondeu com uma série de três parábolas (Mt 21,28–22,14), deixando-os sem argumentos, pelo menos momentaneamente. Em seguida, entraram em cena os fariseus e os herodianos, questionando sobre a legitimidade do pagamento do imposto romano (Mt 22,15-22), a quem Jesus também deixou sem palavras. Depois, entraram em cena os saduceus perguntando sobre a ressurreição, com a estranha parábola da mulher que ficou viúva sete vezes, cujos maridos eram todos irmãos (Mt 22,23-33); também a eles Jesus deixou calados. À exceção da disputa com os saduceus, todas as demais foram lidas na liturgia dos últimos domingos.

O texto lido hoje mostra uma nova investida dos fariseus, o grupo mais preparado em relação ao conhecimento da doutrina e da Lei. Inclusive, a maioria dos mestres da Lei pertenciam ao grupo dos fariseus. Como a questão tratada no evangelho de hoje refere-se à Lei, e o principal interlocutor de Jesus é um fariseu mestre da Lei, tudo aponta para um embate bastante acirrado. No entanto, a disputa é resolvida rapidamente, devido à prontidão e coerência de Jesus em sua resposta. Eis o início do texto: «Os fariseus ouviram dizer que Jesus tinha feito calar os saduceus. Então eles se reuniram em grupo» (v. 34). As primeiras palavras do texto já denunciam o complô: os grupos agiam em comum acordo, de modo que se um deles falhasse, o outro já estaria pronto para agir, mostrando que havia um verdadeiro cerco a Jesus. Ele tinha feito calar os saduceus na disputa sobre a ressurreição (Mt 22,23-33), um episódio saltado pela liturgia. Diante disso, os fariseus percebem que fica cada vez mais difícil vencê-lo com argumentos, por isso se preparam melhor dessa vez, reunindo-se em grupo para traçar uma melhor estratégia, provavelmente para elaborar uma pergunta mais difícil e escolher o mais capacitado entre eles para perguntar. O fato de provocar uma reunião entre eles demonstra o quanto Jesus tinha se tornado perigoso para eles, devido à sua mensagem libertadora humanizante.

E a intenção da reunião dos fariseus é logo denunciada pelo evangelista, ao dizer qual o objetivo da pergunta: O objetivo da pergunta é muito claro: «e um deles – um mestre da Lei – perguntou a Jesus, para experimentá-lo» (v. 35). A tradução litúrgica omite a especificação “mestre da Lei” ou “legista” (em grego: νομικὸς - nomikós), mas é importante recordar, pois demonstra a relevância da pergunta e a intenção do grupo que queria emparedar Jesus. Não é qualquer fariseu que faz a pergunta, mas um especialista, alguém muito preparado, tendo em vista que nas questões anteriores Jesus tinha deixado seus interlocutores sem palavras. E a intenção da pergunta é muito clara: colocar Jesus à prova, ou seja, tentá-lo. Embora a tradução litúrgica empregue o verbo experimentar, o que melhor corresponde à língua original do texto é tentar. Inclusive, é o mesmo verbo empregado no episódio das tentações para descrever a ação de satanás (em grego: πειράζω – peirázo) no início da vida pública de Jesus (Mt 4,1). Com isso, o evangelista recorda que, do início ao fim, a vida de Jesus foi marcada pela tentação, pelo confronto com os inimigos, opositores do Reino, sendo que na maioria das vezes são as próprias pessoas religiosas que assumem o papel de satanás; às vezes, são os próprios discípulos, como Pedro, a quem Jesus chegou a chamá-lo explicitamente de satanás (Mt 16,23).

Escolhido a dedo pelo grupo, o fariseu mestre da Lei faz uma pergunta interessante, teologicamente, mas ao mesmo tempo maliciosa, tendo em vista as intenções de tentar Jesus. Eis a pergunta: «Mestre, qual é o maior mandamento da lei?» (v. 36). A falsidade deles, pois aquele que interroga o faz em nome do grupo, já é perceptível pela introdução da pergunta: chama a Jesus de mestre (em grego: διδάσκαλος – didáskalos) sem reconhecê-lo como tal. A especialidade dos fariseus, sobretudo dos que se especializavam, era exatamente o estudo minucioso da Lei e dos mandamentos. Com essa pergunta eles não pretendiam aprender algo novo, mas fazer Jesus cair em contradição até ser acusado de blasfemo e transgressor da Lei. Nas escolas rabínicas, essa pergunta era muito frequente e gerava grandes debates. Isso porque tinham elaborado um catálogo com 613 mandamentos, encontrados na Torá, divididos entre 365 proibições, correspondentes à quantidade de dias do ano, e 248 obrigações, que correspondiam ao número de partes do corpo, conforme a mentalidade semítica vigente. Diante de um número tão alto, sendo difícil até a memorização, surgiam muitas perguntas a respeito. Ora, não sendo possível observar todos, quais seriam os essenciais? Havia uma diversidade de posições: entre os fariseus, predominava a ideia do sábado como o maior mandamento, com a alegação de que até Deus observava esse mandamento (Gn 2,2-3; Ex 20,8-11; Dt 5,12-15). Inclusive, já tinham entrado em conflito com Jesus, ainda no seu ministério na Galileia, acusando-o de relativizar o sábado (Mt 12,1-13). Outros grupos consideravam que o essencial era a observação do decálogo (Ex 19,3-17; Dt 5,6-21). E outros, ainda, defendiam a igualdade entre todos os mandamentos, uma vez que todos tinham a mesma origem divina.

Como se sabe, desde o início da sua vida pública, Jesus tinha demonstrado muita liberdade ao interpretar os mandamentos e toda a Lei, colocando sempre o bem da pessoa e da criação acima de qualquer preceito. E isso tinha comprometido a sua reputação no ambiente religioso da época. Por isso, os fariseus imaginavam que com essa pergunta teriam argumentos para deixá-lo em situação difícil, uma vez que Jesus já tinha fama de relativizar a Lei e até transgredi-la. Mas, como sempre, ao invés de incompleta, a resposta de Jesus vai muito além do que lhe fora perguntado: «Amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração, de toda a tua alma e de todo o teu entendimento!» (v. 37). Jesus encontra uma resposta que transcende o decálogo, ao mesmo tempo em que o sintetiza. Essa resposta encontra seu fundamento justamente no credo de Israel, o “Shemá”, que os fariseus tão bem conheciam: «Escuta, ó Israel: O senhor é nosso Deus e único Senhor! Por isso, amarás o Senhor teu Deus com todo o teu coração, com toda a tua alma e com toda a tua força» (Dt 6,4-5). Com pequenas modificações, Jesus confirma que o ser humano deve amar a Deus com o máximo de si. Como ele mesmo diz, «esse é o maior e o primeiro mandamento» (v. 38), qualificando-o com dois adjetivos de valor absolutos: maior (em grego: μεγάλη – megále) e primeiro (em grego: πρώτος – protos), significando aquilo que é essencial e irrenunciável. Porém, a resposta de Jesus não visa uma hierarquização dos mandamentos, mas uma denúncia: enquanto os fariseus buscavam classificar os mandamentos, Jesus diz que basta viver a genuína fé israelita, da qual eles se achavam os primeiros guardiões. O “Shemá”, enquanto credo de Israel, era proclamado duas vezes ao dia pelos fariseus, ao amanhecer e ao anoitecer, mas na verdade eles não viviam aquilo que proclamavam. Se vivessem em comunhão com Deus, não ficariam presos a preceitos e nem teriam Jesus como inimigo.

E Jesus continua sua resposta, demonstrando, como sempre, que vai além daquilo que lhe fora perguntado: «o segundo é semelhante a esse: ‘Amarás ao teu próximo como a ti mesmo’» (v. 39). Ora, ninguém perguntou a Jesus qual era o segundo maior mandamento. Mas ele prossegue com a resposta para desmascarar os fariseus e esclarecer ainda mais a essência da sua mensagem, ensinando como deve ser a autêntica relação com Deus. Aqui, ele cita o livro do Levítico (Lv 19,18b). É importante perceber a introdução: “é semelhante”, quer dizer, é equivalente, está no mesmo nível. Para Jesus, o amor a Deus não pode ser separado do amor às pessoas; aqui está a singularidade e a novidade do seu ensinamento. É evidente que ele não inventa esse segundo mandamento, pois já estava na Lei. Mas ninguém antes dele tinha ousado considerar o amor ao próximo no mesmo nível do amor a Deus. Inclusive, o conceito de próximo na Lei era restrito ao compatriota, o membro do mesmo povo, embora as leis de Israel protegessem o estrangeiro melhor do que as leis de qualquer outra nação antiga. E Jesus já tinha ensinado que até aos inimigos deve-se amar (Mt 5,44). Portanto, é inegável a novidade do seu ensinamento.

Enquanto os fariseus procuravam classificar os mandamentos, focando em minuciosidades, Jesus toma o todo da Lei e dos profetas e faz a sua própria síntese, conforme relata o evangelista, na conclusão: «Toda a Lei e os profetas dependem desses dois mandamentos» (v. 40). Aqui, faz-se necessário mais um esclarecimento de nível semântico: o verbo traduzido por depender possui um significado ainda mais intenso. Literalmente, significa pendurar/suspenso (em grego: κρέμαται – krematai). Inclusive, é o mesmo verbo empregado por Lucas, no discurso de Pedro na casa de Cornélio, ao afirmar que Jesus foi «pendurado/suspenso no madeiro» (At 10,39). Isso quer dizer que toda a Lei e os profetas estão pendurados no duplo mandamento do amor a Deus e ao próximo. Uma vez separados esses dois mandamentos, toda a Lei e os profetas desmoronam, caem por terra, ou seja, perdem o sentido. É na síntese desses dois mandamentos que a Lei e os profetas se apoiam e podem constituir regra de vida com sentido, não apenas para o povo judeu, mas para a humanidade inteira, em todos os tempos. Ora, Os fariseus queriam distinguir preceitos, e Jesus mostrou a unidade e coerência da Lei e dos profetas. Sem essa visão de conjunto, a religião excluía e até matava. Ao mostrar que o amor a Deus é inseparável do amor ao próximo, Jesus prega a unidade, coesão e coerência na comunidade. É provável que a conclusão da resposta também tenha sido ainda mais chocante para os fariseus, ao colocar os profetas no mesmo nível da Lei, no conjunto das Escrituras. Por mais que os profetas fossem estimados pelos fariseus, para eles o valor da Lei era absoluto, incomparável a qualquer outro conjunto de livros sagrados. E Jesus os iguala, coloca-os no mesmo nível.

Jesus dá um passo muito importante com a sua resposta, o que já era referendada pelo seu jeito de viver. A sua vida foi toda marcada pelo amor intenso ao Pai e pelo amor concreto ao próximo, cuja demonstração fora mais visível na sua relação com as pessoas marginalizadas e excluídas da época, sobretudo pela religião. Por isso, respondeu de modo tão enfático, sobretudo, no que diz respeito ao próximo: o ser humano é colocado em uma tríade, cujo centro é o próximo, conforme a ordem da resposta: Deus – Próximo – Eu. Essa relação tríade deve ser guiada por um amor semelhante, para ser verdadeiro. Com isso, Jesus deixa claro que só há uma maneira de demonstrar que amamos a Deus e a nós mesmos: quando o próximo ocupa o centro da nossa vida. O próximo é, portanto, o critério do amor a Deus e a si mesmo.

Pe. Francisco Cornélio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

sábado, outubro 21, 2023

REFLEXÃO PARA O 29º DOMINGO DO TEMPO COMUM – MATEUS 22,15-21 (ANO A)



O evangelho lido na liturgia deste vigésimo nono domingo do tempo comum continua ambientado em Jerusalém, mais precisamente nas dependências do templo, onde Jesus viveu a fase mais tensa e intensa do seu ministério. Na verdade, até a conclusão do ano litúrgico, que já se aproxima, o evangelho será tirado desse contexto. O texto lido hoje – 22,15-21 – abre uma série de controvérsias ou disputas dos fariseus com Jesus. Trata-se da disputa sobre a legitimidade do imposto a César, um episódio que consta também em Marcos e Lucas (Mc 12,13-17; Lc 20,20-26), embora a versão de Mateus possua mais particularidades. Os fariseus já tinham sido os principais opositores de Jesus na Galileia, desde o início do seu ministério, e continuam sendo também em Jerusalém, juntando-se a outros grupos que fazem complô, até a aliança final com os romanos que terá a morte de cruz como desfecho. Esses grupos – fariseus, saduceus, sacerdotes, anciãos, herodianos – se alternavam nas tentativas de emparedar Jesus e silenciá-lo, até forjarem sua condenação. Enquanto nos últimos três domingos o confronto direto se deu com os sacerdotes e anciãos, que saem de cena momentaneamente, outros personagens entram em evidência, nesse caso são os fariseus, mas sempre com os mesmos propósitos de questionar e deslegitimar a autoridade de Jesus ensinar e agir de maneira livre, humanizante e libertadora.

Os questionamentos dos sacerdotes e anciãos tinham um viés mais político, pois viam o ensinamento de Jesus como uma ameaça ao poder que exerciam. Já as questões levantadas pelos fariseus são mais relacionadas à doutrina, sobretudo em relação à interpretação da Lei, embora o caso retratado no texto de hoje possua também uma acentuada dimensão política. Como sabemos, logo ao entrar na cidade de Jerusalém, Jesus fez uma grande denúncia contra a situação em que se encontrava o templo: uma casa de oração transformada em covil de ladrões (Mt 21,12-17), estendendo essa denúncia a todos os que mantinham a religião como instrumento de exploração e dominação, que eram a casta sacerdotal e os anciãos do povo, especialmente. A primeira seção dessa denúncia foi ilustrada por três ricas parábolas, lidas na liturgia dos últimos três domingos: a) O pai, os dois filhos e a vinha em Mt 21,28-32; b) Os vinhateiros homicidas em Mt 21,33-43; c) A festa de casamento do filho do rei em Mt 22,1-14. Com essa série de parábolas, Jesus denunciou a ilegitimidade do poder exercido pelas autoridades religiosas e políticas de Jerusalém, ao mesmo tempo em que afirmava sua condição de messias e único autorizado a falar e agir em nome de Deus, o seu Pai. Ao desmascarar o sistema religioso vigente, Jesus deixava claro o seu projeto de restituir ao Pai aquilo que o poder político-religioso tinha roubado: o ser humano e sua dignidade em todas as dimensões. Para isso, ele propõe o Reino de Deus como única alternativa e realidade que possibilita ao ser humano viver em plenitude e abundância.

A proposta de Jesus soava absurda para a elite de Jerusalém, de modo que quanto mais ele falava, mais essa elite se organizava para pôr fim à sua vida. Como as três parábolas recordadas deixaram os chefes – sacerdotes e anciãos – sem palavras, novos grupos entram em cena com o mesmo propósito: provocar em Jesus uma autocondenação, armando-lhe ciladas. Dessa vez, foram os fariseus quem armaram a cilada, como atesta o texto: «Os fariseus fizeram um plano para apanhar Jesus em alguma palavra» (v. 15). O plano consistia em colocar Jesus em situação constrangedora e, assim, acusá-lo publicamente. Queriam eles que o próprio Jesus entrasse em contradição e fosse desmoralizado, dando motivo para ser acusado seja no âmbito religioso ou no campo político. Por isso, procuram aliados para a execução do plano: «Então mandaram os seus discípulos, junto com alguns do partido de Herodes» (v. 16a). A existência de discípulos dos fariseus revela o quanto o movimento era organizado, inclusive com escolas de formação para rabinos. Esse dado é exclusivo de Mateus; nos outros dois sinóticos fala-se apenas dos fariseus junto com os partidários de Herodes, sem referência à categoria de “discípulos” dos fariseus. O dado reflete a situação da comunidade de Mateus, na época da redação do seu Evangelho, em meados dos anos oitenta, quando havia uma forte polarização entre as escolas rabínicas e o movimento dos discípulos de Jesus.

O que mais chama a atenção, no entanto, é a aliança dos fariseus com os partidários de Herodes, pois eram grupos rivais, considerados até inimigos. O acordo dos dois grupos ou movimentos mostra que a conveniência leva adversários a se unirem quando há um inimigo comum. Os herodianos, como eram chamados os membros do partido de Herodes, constituíam o grupo de apoio público à dominação romana, e reconheciam a divindade do imperador. Já os fariseus, como o mais devoto dos grupos religiosos judaicos, viam a dominação romana como um abomínio, por isso esperavam constantemente pelo envio de um Messias glorioso e guerreiro que ressuscitasse o reino davídico-salomônico, para libertar Israel da dominação romana. Mesmo assim, pagavam convenientemente todos os impostos exigidos por Roma para evitar o rótulo de rebeldes e subversivos, como os zelotas. Apesar de contrários à dominação romana, não apresentavam nenhum tipo de resistência. O jogo de conveniência entre fariseus e herodianos é imagem do plano futuro que levará Jesus à morte; significa a religião e o império unidos para pôr fim a um personagem incômodo e indesejado para os dois: Jesus de Nazaré.

Como o plano era apanhar Jesus pela palavra, eis a investida deles: «Mestre, sabemos que és verdadeiro e que, de fato, ensinas o caminho de Deus. Não te deixas influenciar pela opinião dos outros, pois não julgas um homem pelas aparências» (v. 16). Todas estas palavras elogiosas faziam parte do plano. São palavras que demonstram respeito, admiração e conhecimento da pessoa de Jesus, mas pronunciadas ironicamente por pessoas falsas e mal-intencionadas. Se, de fato, reconhecessem Jesus como mestre, não estariam armando-lhe ciladas. Pelo contrário, aceitariam sua mensagem libertadora e sua proposta de vida. Essa descrição correspondia mesmo à identidade humana de Jesus era: um homem sincero, autêntico e verdadeiro, que não julga pelas aparências. Inclusive, é o maior elogio que Jesus recebe no Evangelho de Mateus. Nem mesmo seus discípulos jamais dirigiram-lhe palavras assim. Contudo, era um elogio falso, pois não correspondia ao que eles – os fariseus, sobretudo – pensavam de Jesus. Na verdade, o falso elogio não passava de um pretexto ou um passo a mais para chegarem ao golpe final, com a pergunta tendenciosa e maliciosa: «Dize-nos, pois, o que pensas: é lícito ou não pagar imposto a César?» (v. 17). Era aqui aonde eles queriam chegar, imaginando estar colocando Jesus em um beco sem saída. E, realmente, a situação era desfavorável para Jesus, pois ele deveria opinar sobre um dos temas mais delicados da vida cotidiana do povo judeu da época.

Na verdade, a questão do imposto é uma questão difícil de lidar em todas as épocas. Já foi motivo de muitas guerras e rebeliões, sobretudo na antiguidade, inclusive em Israel. por isso, os cobradores de impostos eram pessoas tão odiadas naquele tempo, como retratam os evangelhos. Poucos anos antes da atuação de Jesus, houve uma revolta na Galileia contra Roma, liderada por Judas, o Galileu, cuja motivação foi o aumento dos impostos. Dessa revolta, nasceu o movimento dos zelotas, que pregava a lutava armada contra a dominação romana. Com a pergunta sobre o imposto, portanto, os adversários de Jesus imaginavam deixar Jesus sem possibilidade de saída. Se respondesse que é lícito pagar imposto a César, Jesus estaria agradando aos herodianos e, consequentemente, sendo conivente com a dominação romana e seu sistema de exploração. Ao mesmo tempo, estaria ganhando a antipatia das multidões que até pouco tempo lhe tinham aclamado na entrada de Jerusalém (Mt 21,1-11), passando a ser considerado um traidor do seu povo. Além disso, estaria reconhecendo o senhorio de César, ou seja, do imperador romano. Se respondesse que não é lícito pagar o imposto, agradaria às multidões, ao povo simples que o acompanhava e, ao mesmo tempo, anteciparia a sua condenação como um rebelde e subversivo político. Recusar pagar o imposto significava declarar guerra ao sistema dominante. O que seus adversários queriam era um motivo para condená-lo a partir da sua resposta: respondendo sim, seria condenado pelo povo e pela religião como traidor; respondendo não, seria preso e condenado imediatamente pelo império. A pergunta, portanto, refletia um plano que parecia perfeito.

Exatamente por ser verdadeiro e não julgar pelas aparências (v. 16), Jesus não caiu na armadilha seus adversários, e logo os repreendeu, desmascarando-os: «Jesus percebeu a maldade deles e disse: ‘Hipócritas! Por que me preparais uma armadilha?” (v. 18). Nessa resposta, o autor emprega duas palavras duras para caracterizar os adversários de Jesus: maldade (em grego: πονηρία – poneria) e hipócritas (em grego: ὑποκριταί – hipocritai). Isso quer dizer que os fariseus e herodianos, juntamente com os adversários da controvérsia anterior, eram pessoas más, falsas, dissimuladas, mascaradas e, por isso, não mereciam nenhuma credibilidade. Estavam agindo por conveniência para encontrar uma maneira de eliminar Jesus, esperando que ele mesmo pronunciasse palavras que servissem de prova para a sua condenação. Como já tinha acontecido em outras ocasiões, Jesus se sobressai de uma situação desconfortável e termina deixando seus adversários em apuros: «‘Mostrai-me a moeda do imposto!’ Levaram-lhe então a moeda» (v. 19). Diante de questões delicadas, Jesus nunca dava respostas simples como “sim” ou “não”, mas provocava uma reflexão mais profunda, como tinha feito pouco tempo antes com os sumos sacerdotes, contando-lhes três parábolas, ao invés de responder diretamente ao questionamento sobre a sua autoridade. E o que os interlocutores queriam era uma resposta com um sim ou um não.

Como estavam na área interna do templo, espaço considerado sagrado, não era permitido circular ali com a moeda romana. Por isso, havia as bancas de câmbio de moeda na entrada do templo. Jesus começa a desmascará-los daí, e eles que tinham armado a cilada, são agora os que caem: na moeda romana havia a figura e os títulos do imperador com seu reconhecimento divino inscritos: “Tibério César, Augusto filho do divino Augusto, Sumo Sacerdote”. A figura e a inscrição gravadas na moeda poderiam ser consideradas como idolatria, pois transgredia o primeiro mandamento do decálogo (Ex 20,4), conforme a interpretação rígida dos fariseus, os mais fiéis observadores da Lei. Jesus, ao ver a moeda, perguntou-lhes: «De quem é a figura e a inscrição desta moeda?» (v. 20). Eles não tinham outra resposta senão admitir: «De césar» (v. 21a). Ora, os mesmos que demonstravam observar a Lei com tanta fidelidade, eram os primeiros a transgredi-la, pois, a moeda era uma forma de propaganda do império e da pessoa do imperador como ser divino e absoluto. Certamente, os adversários ficaram desconcertados, talvez até arrependidos da pergunta, uma vez que a armadilha tinha falhado. Como a pergunta tinha sido se era lícito ou não pagar o imposto, a resposta de Jesus vai muito além disso. Se seus adversários carregavam a imagem de César, participavam da sua dominação, eram adeptos do sistema. Logo, não havia motivo para questionar se era lícito ou não o imposto, pois eles já estavam a serviço de César. Aqui, César não é um nome próprio, mas um título. É o símbolo do poder e dominação romana.

Ao longo de seu ministério, Jesus já tinha manifestado sua posição frente ao império romano e a todo sistema injusto de poder, como a aristocracia sacerdotal de Jerusalém. O embate anterior com os sumos sacerdotes demonstra isso. Sua resposta a tudo isso foi a proposta do Reino de Deus. Ele já tinha rejeitado a política falsa da “pax romana” logo no início de seu ministério, com a proclamação das bem-aventuranças, e na continuação do discurso da montanha tinha desmascarado a prática religiosa dos fariseus, ensinando o jeito certo de relacionar-se com Deus (Mt 5–7). Agora deixa ainda mais claro o seu posicionamento com a sua resposta: «Dai, pois, a César o que é de César e a Deus o que é de Deus» (v. 21). A tradução do lecionário se equivoca ao empregar o verbo dar; na verdade, o verbo empregado na língua original do texto corresponde a restituir ou devolver (em grego: ἀποδίδωμι – apodídomi), uma vez que a César nada deve ser dado, mas apenas devolvido, tendo em vista que nada dele é bom e, por isso, ninguém deve reter para si o que é dele. A resposta de Jesus parece complexa, à primeira vista, e fácil de ser distorcida, como foi por muito tempo e continua sendo.

Com essa clássica afirmação, que na verdade é um imperativo, Jesus não estabeleceu duas esferas de poder, uma temporal e outra espiritual, nem traçou a harmonia das relações entre estado e igreja, como frequentemente se tem interpretado. A ordem para devolver a César o que lhe pertence consiste em abandonar tudo o que não condiz com o Reino. Nesse sentido, o imposto passa a ser apenas um aspecto de uma realidade muito mais ampla e complexa. É necessário deixar de compactuar com a lógica imperial de um modo geral. Isso exige uma consciência nova e uma atitude vigilante constante. É necessário construir uma nova sociedade a partir de perspectiva e lógica diferentes, substituindo o poder pelo serviço, com uma nova justiça baseada no amor. Devolver a César o que é dele exige um esforço da comunidade, a começar por uma autocrítica. Muitas lideranças religiosas parecem combater o poder de César para assumir o seu lugar. Essa mentalidade estava presente em alguns dos primeiros discípulos, na comunidade de Mateus e tem estado em muitos momentos da história do cristianismo.

Devolver a Deus o que lhe pertence é restituir o ser humano, imagem única de Deus, à sua dignidade originária, incluindo o cuidado com a criação inteira. A religião do templo de Jerusalém e o império romano tinham roubado o que Deus fez de melhor: o ser humano, transformado em produto, em mera mercadora, pela combinação dos poderes político-econômico-religioso. A mercantilização do ser humano fere e nega a sua dignidade. Esse foi um problema denunciado pelos profetas desde os tempos de Amós, o qual denunciou que o ser humano tinha se tornado um produto comprado ou vendido por um par de sandálias (Am 2,6; 8,6). Esse ser humano que tem a imagem de Deus, tem de ser, de novo, humanizado e devolvido a Deus; a moeda com a figura de César seja restituída a César, juntamente com toda a lógica perversa do império.

A opção pelo Reino apresentada por Jesus torna-se cada vez mais exigente, à medida que a sua vida vai sendo ameaçada. Longe de ser uma via conciliatória entre duas realidades, a frase imperativa de Jesus é um convite à reflexão e a uma tomada de posição. A comunidade cristã deve se posicionar diante dos acontecimentos, eliminando de suas bases e estruturas tudo o que não pertence à lógica do Reino, ou seja, o que não é de Deus. Se Jesus tivesse buscado conciliação entre o projeto de César e o de Deus, não teria morrido na cruz.

 Pe. Francisco Cornélio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

sábado, outubro 14, 2023

REFLEXÃO PARA O 28º DOMINGO DO TEMPO COMUM – MATEUS 22,1-14 (ANO A)



A liturgia deste vigésimo oitavo domingo do tempo comum propõe, para o evangelho, a leitura da parábola da festa de casamento do filho do rei – Mt 22,1-14. Com ela, conclui-se a série de três parábolas contadas por Jesus em seu primeiro confronto direto com as lideranças religiosas e políticas de Jerusalém. O contexto, portanto, é o mesmo dos dois últimos domingos. Jesus se encontrava em Jerusalém, vivendo a última etapa de seu ministério, e enquanto estava ensinando no templo, foi questionado pelos sacerdotes e anciãos a respeito da sua autoridade para ensinar e agir como agia (Mt 21,23-23). Em sua resposta, Jesus contou três parábolas sobre o Reino de Deus (ou dos Céus, como prefere Mateus), sendo a de hoje a terceira. Ao responder aos seus interlocutores, mais do que provar a sua autoridade, pois ele não tinha necessidade disso, Jesus queria mesmo era denunciar a hipocrisia e ilegitimidade com que os chefes de Israel exerciam o poder. O evangelista recorda isso como advertência para as comunidades do seu tempo e do futuro não reproduzirem o modelo de religião que Jesus contestou.

Como a contextualização já foi bastante enfatizada nos dois últimos domingos, não é necessário repeti-la minuciosamente hoje. Contudo, é importante recordar que a parábola lida hoje se destaca sobre as outras duas da série, lidas na liturgia dos dois últimos domingos: a do pai e os dois filhos (Mt 21,28-32) e a dos vinhateiros homicidas (Mt 21,33-43). Nelas, o ambiente retratado, ao qual o Reino era comparado, pertencia ao mundo agrícola. Na de hoje, o Reino dos Céus é comparado a um banquete, mais precisamente a uma festa de casamento do filho de um rei. Portanto, retrata um ambiente urbano. Enquanto a imagem da vinha, predominante nas duas primeiras, possuía um significado mais restrito, com mais poder de impacto para a cultura semita, a imagem de um banquete possui um significado bem mais universalista, podendo ser compreendida com mais facilidade também em outras culturas, embora o casamento em si seja uma imagem muito empregada para representar a relação entre Deus e Israel. Convém recordar, ainda, que essa parábola se encontra também no Evangelho de Lucas, embora localizada num contexto diferente e com algumas diferenças internas (Lc 14,15-24).

O primeiro versículo nos insere diretamente no contexto, e nos faz perceber que essa parábola é a continuidade de um discurso já iniciado, embora a tradução do texto litúrgico não expresse bem isso, ao afirmar que «Jesus voltou a falar em parábolas» (v. 1). Essa expressão dá a entender que houve uma interrupção no discurso. Conforme o contexto narrativo do Evangelho e a língua original do texto – o grego – a tradução mais adequada para essa expressão introdutória seria “Jesus continuou falando em parábolas”. O auditório é o mesmo das duas parábolas anteriores: os sumos sacerdotes e anciãos do povo, ou seja, a elite religiosa de Jerusalém, e não houve interrupção entre a parábola anterior e a de hoje que conclui a sequência. A propósito do auditório, deve-se recordar sempre que, independentemente de quem sejam os interlocutores diretos de Jesus no contexto narrativo, neste caso os sacerdotes e anciãos, os destinatários primeiros do ensinamento são sempre os discípulos e discípulas de todos os tempos. À medida em que continua falando em parábolas, Jesus provoca ainda mais os seus adversários, devido ao aspecto enigmático que as parábolas possuem, deixando-os pensativos.

Eis, então, a parábola: «O Reino dos Céus é como a história do rei que preparou a festa de casamento do seu filho» (v. 2). Trata-se de uma imagem impactante para o imaginário semita, embora não chegue a ser novidade na linguagem bíblica, pois os profetas já tinham anunciado a consumação dos tempos messiânicos com a imagem do banquete (Is 25,6-10). É uma imagem que evoca amor, alegria, fraternidade. Aqui, Jesus dispensa a linguagem litúrgico-religiosa. Não faz menção a sacrifício, nem a culto, nem a peregrinações, nem a um templo, mas a uma festa comum a todos os povos e culturas. E a festa por excelência, na antiguidade, era a festa de casamento, sobretudo no mundo oriental. Era uma festa que durava em média sete dias, podendo ser ainda prolongada, a depender das condições econômicas dos noivos. No caso da parábola, sendo o casamento do filho de um rei, a duração seria bem maior, assim como a comida e a bebida seriam da melhor qualidade possível. Dessa imagem usada por Jesus, evocamos, de imediato, algumas das mais importantes características do Reino: a alegria, o amor e a perenidade.

A festa em si, é sinônimo de alegria e fartura, ainda mais preparada por um rei. É certa a abundância de comida e bebida, música e muita alegria entre os convivas. O fato de ser uma festa de casamento, lembra o amor, elemento indispensável para a vida da comunidade. Sendo uma festa com duração de sete dias ou mais, lembra a perenidade: um tempo completo e perfeito, que transmite uma ideia de eternidade. De fato, pelo costume de durar uma semana ou mais, as festas de casamento eram tidas como festas sem fim, tamanha a grandeza e o cuidado com que eram preparadas. Por isso, a festa de casamento, literalmente bodas – em grego: γάμος = gamos – era a mais bela de todas as festas, inclusive sonhada por tanta gente. As pessoas, na antiguidade, aguardavam com ansiedade um convite para uma festa assim. Era o momento de exibir roupas, adornos e exagerar na alegria, inclusive na bebida (Jo 2,1-12), como atesta a própria Bíblia. É surpreendente que seja com esse tipo de festa que Jesus comparou o Reino, ao invés de uma reunião litúrgica, como vigília ou procissão.

Além de um ensinamento para o presente, com essa parábola Jesus dá uma verdadeira lição sobre a história da salvação aos seus interlocutores, considerando o significado da imagem e o próprio enredo da parábola. Diz ele que o rei «mandou os seus empregados para chamar os convidados para a festa, mas estes não quiseram vir» (v. 3). Aqui, Jesus recorda aos seus interlocutores que foi Israel o destinatário predileto de Deus, a quem foram enviados os profetas, os quais não foram ouvidos. O povo de Israel, portanto, é representado na parábola pelos primeiros convidados. A recusa ao convite de um rei equivale a uma rebelião. Nesse caso, Jesus enfatiza a rebelião de Israel aos apelos de seu Deus. Um povo fechado, de coração duro, que não escuta o seu Senhor. Mas, como Deus não desiste do seu povo, e nem da humanidade, eis que o convite continuou sendo feito até que, aborrecidos pela insistência do rei, os primeiros convidados passaram da indiferença à violência, chegando a matar os emissários do rei (vv. 5-6). Com a insistência do convite e a recusa dos destinatários, Jesus apresenta uma síntese de toda a história da salvação, denunciando Israel e advertindo os seus seguidores de outrora e de sempre a não repetirem o mesmo.

Diante da recusa dos convidados, que agiram não apenas com indiferença, mas também com violência, chegando a matar os empregados que saíram para convidá-los (v. 6), o rei toma uma decisão drástica: «O rei ficou indignado e mandou suas tropas para matar aqueles assassinos e incendiar a cidade deles» (v. 7). Esse versículo tem gerado muitas discussões entre os estudiosos. Certamente, é um acréscimo da comunidade de Mateus, pois não consta na versão desta parábola do Evangelho de Lucas. Alguns vêem aqui uma alusão à destruição da cidade de Jerusalém e do seu templo pelos romanos, no início dos anos 70 d.C., um fato já consumado na época da redação do Evangelho de Mateus, escrito já em meados dos anos 80 d.C. De acordo com essa explicação, a destruição de Jerusalém teria sido um castigo por ter rejeitado o Messias. Contudo, o atual estágio da pesquisa já não admite tal hipótese, embora o conflito entre a comunidade cristã e a sinagoga estivesse muito aceso quando Mateus escreveu o seu Evangelho. Insistir com ela seria alimentar o antissemitismo. Os anúncios de castigo na linguagem bíblica funcionam como advertência. Aplicá-los a fatos históricos concretos não passa de oportunismo. A atitude do rei aqui descrita exprime sua indignação pela rejeição sofrida e, aplicada à comunidade, visa advertir os ouvintes/leitores que a vida fora do banquete, ou seja, fora do Reino, é totalmente privada de sentido.

A parábola continua a sua sequência natural no versículo oitavo: «Em seguida, o rei disse aos empregados: ‘a festa de casamento está pronta, mas os convidados não foram dignos dela’» (v. 8) A conclusão do rei é uma acusação ao fechamento dos primeiros convidados – Israel – à não aceitação do convite, ou seja, à conversão. De fato, é notório, ao longo da história, o quanto a mensagem profética foi rechaçada em Israel, sobretudo pelas autoridades religiosas. A falta de dignidade dos convidados foi comprovada pela indiferença e violência com que trataram os enviados do rei. Porém, a rejeição dos primeiros convidados não muda os propósitos salvíficos de Deus para com a humanidade inteira, ou seja, não levam o rei a desistir da festa. Ora, a imagem da festa de casamento expressa, de modo condensado, a totalidade dos bens messiânicos, com abundância de amor, alegria e fraternidade. É uma das melhores imagens aplicadas ao Reino, pois simboliza a vida plena. Por isso, o rei não desiste dela, assim como Deus não abre mão do seu projeto de Reino. Ser digno ou indigno de participar da festa é uma questão de aceitação dos valores do Reino, o que passa pela assimilação da mensagem dos profetas e de Jesus, para a comunidade cristã.

Tendo constatado a rejeição – indignidade – dos primeiros convidados, o rei toma uma decisão que corresponde à insistência de Deus e à perenidade de sua oferta de vida plena para toda a humanidade: «Portanto, ide até às encruzilhadas dos caminhos e convidai para a festa todos os que encontrardes» (v. 9). Podemos considerar esse o versículo central de toda a parábola. Aqui está o embrião de uma Igreja-comunidade em saída! A expressão “encruzilhadas” significa o encontro com as periferias. A expressão usada na língua original do texto significa a literalmente a saída da cidade (em grego: διεξόδος – diecsódos). Portanto, faz parte do vocabulário do êxodo e evoca libertação. Era na saída da cidade onde ficavam todas as pessoas de atividades “vergonhosas”, ou seja, o que era considerado escória da sociedade, como prostitutas, mendigos, assaltantes e doentes considerados impuros. Quem não tinha acesso aos bens que a cidade oferecia, incluindo os serviços religiosos, ficava nas encruzilhadas. Eram as pessoas descartadas pela sociedade da época, mas destinatárias da libertação oferecida por Jesus, com sua mensagem humanizante. Esse versículo é um convite claro para que os seguidores e seguidoras de Jesus se voltem para as margens, para as periferias. Aqui, de modo definitivo, é apresentada a nova dinâmica do Reino, destacando seu aspecto inclusivo: todos os que forem encontrados devem ser convidados! Acabou o tempo das distinções, dos rótulos, das separações.

Finalmente, o convite tornou-se efetivo: quando foi endereçado a todos, sem distinção: a maus e bons. O resultado foi este: «a sala ficou cheia de convidados» (v. 10c). Enquanto os enviados dirigiam-se a uma elite privilegiada e indiferente, a sala permaneceu vazia. Somente quando saíram para as margens o convite encontrou adesão. Aqui está um alerta da comunidade de Mateus para as comunidades de todos os tempos. O convite, ou seja, o anúncio, deve ser feito a todos e todas, sem distinção alguma. Maus e bons são convidados para o Reino. Porém, aceitar o convite-anúncio comporta exigências e compromissos da parte dos convidados. Considerando a trama da parábola, para a gente simples das encruzilhadas o convite para uma festa de casamento de um filho de rei não passava de um sonho muito distante, como foi a proximidade de Jesus com os pecadores, prostitutas, leprosos, crianças. Nunca um mestre tinha se misturado tanto com o povo simples quanto Jesus. Por isso, a parábola se torna metáfora do seu ministério inclusivo e próximo de todos. A sala cheia, portanto, é imagem de um mundo justo, fraterno e igual, como é o Reino de Deus.

Há espaço para todos no banquete do Reino, sobretudo depois de Jesus ter aberto as suas portas com sua mensagem e práxis humanizantes. Contudo, as pessoas são livres e podem se autoexcluir, ao não fazer comunhão com os demais. É esse o sentido do convidado que não portou o «traje de festa» (v. 11), uma imagem importante, mas fácil de ser distorcida. Ora, caso se tratasse de uma veste real, nenhum dos convidados estaria apto, afinal, todos foram pegos de surpresa com o convite feito de última hora. Através da percepção do rei, o evangelista, chama a atenção da sua comunidade, fazendo uma advertência que serve para as comunidades de todos os tempos: não basta estar na sala, participar de reuniões e atos litúrgicos, receber sacramentos, sem disposição para a vida comunitária. O traje de festa é, aqui, o sinal de unidade entre os convivas do banquete e, portanto, dos membros da comunidade cristã: a prática das bem-aventuranças – síntese da justiça do Reino –, o conteúdo programático do discipulado no Evangelho de Mateus. Todas as pessoas são convidadas e podem entrar na sala de festa, mas só permanece quem se abre ao espírito das bem-aventuranças. É o “revestir-se” de Cristo, expressão que foi inserida nas fórmulas de batismo desde as primeiras comunidades cristãs (Rm 13,14; Gl 3,27).

A reação do rei ao convidado sem o traje de festa parece violenta (vv. 12-13), mas apenas reflete o uso do gênero literário apocalíptico, tão empregado na época entre os rabinos e utilizado também pelos pregadores cristãos das primeiras gerações. Equivale à destruição da cidade diante da rejeição dos primeiros convidados, como vimos anteriormente (v. 7). Não significa um castigo propriamente, mas, dentro da pedagogia divina, indica uma advertência. Visa evidenciar o perigo da autoexclusão do próprio convidado. A ausência do traje de festa é, portanto, a falta de abertura e disposição para “revestir-se” de Cristo, ou seja, é o fechamento ao espírito das bem-aventuranças (Mt 5,1-12). As bem-aventuranças são o caminho da felicidade e da realização plena. Quem as vive, permanece no banquete do Reino; quem não as vive, priva-se de viver plenamente feliz e realizado, e é isso o que a imagem tão forte indica: perder o sentido da vida. Ter os pés e as mãos amarrados, chorar e ranger os dentes (v. 13), é a imagem do desespero último do ser humano. Só é desesperado quem não aceita participar do banquete da vida. Não se trata de uma descrição, mas de uma comparação, como é toda a parábola. Não aceitar participar do banquete com alegria, amor e justiça é, portanto, privar-se da vida em plenitude.

O evangelista ensina, com tudo isso, que o simples fato de alguém participar de uma comunidade ou igreja não é sinal de nenhuma garantia de vida. Só vive plenamente quem aceita fazer comunhão e põe em prática o programa de vida de Jesus. A parábola é concluída com uma nota proverbial explicativa: «Porque muitos são os chamados, e poucos são os escolhidos» (v. 14). Mesmo dentro da comunidade, lugar do início da concretização do Reino, há sérios riscos de alguém ficar privado de vida plena. O evangelista enfatiza exatamente isso: não basta ter sido convidado ou convidada, afinal, todos são, indistintamente: bons e maus. O importante é, ao sentir o chamado, conduzir a vida segundo o programa de vida daquele que chama. Portanto, a expressão «poucos são os escolhidos» significa que nem todos escolhem participar e permanecer no banquete do Reino, porque nem todos tem a disposição de viver à maneira de Jesus.

Todos são chamados, mas só participa plenamente da festa, ou seja, do Reino, quem porta o traje das bem-aventuranças, sinal único e distintivo dos cristãos e cristãs. O certo mesmo é que Deus quer a sala cheia; para as igrejas e comunidades eclesiais precisam ir às encruzilhadas e fazer o convite com amor, alegria diálogo e espírito de acolhimento.

Pe. Francisco Cornélio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

sábado, outubro 07, 2023

REFLEXÃO PARA O 27º DOMINGO DO TEMPO COMUM – MATEUS 21,33-43 (ANO A)



O evangelho do vigésimo sétimo do tempo comum continua apresentando Jesus em Jerusalém, vivendo a última fase do seu ministério, marcada pelo confronto direto com as lideranças religiosas e políticas de Israel. Esse conflito foi decisivo para a sua morte de cruz, que não foi acidente nem predestinação, e sim consequência de uma vida com opções sempre muito claras, marcada pela fidelidade plena ao Pai e pelo agir amoroso e humanizador em favor das pessoas menos favorecidas, sendo um verdadeiro manifesto contra-hegemônico. O texto lido hoje – Mt 21,33-43 – contém mais uma parábola que emprega a vinha como imagem do Reino de Deus proposto por Jesus. Ao todo, o Evangelho de Mateus contém três parábolas com a imagem da vinha, sendo duas delas exclusividade sua, as quais foram lidas nos dois últimos domingos: a “parábola dos trabalhadores da vinha” ou do “patrão generoso” (20,1-16) e a “parábola dos dois filhos” (21,28-32). A primeira foi narrada ainda na etapa do caminho para Jerusalém, portanto, faz parte de outro contexto, enquanto a segunda já pertence à seção narrativa do ministério de Jesus em Jerusalém, como a terceira, lida neste domingo, chamada convencionalmente de “parábola dos vinhateiros homicidas”. Essa está presente também nos outros dois evangelhos sinóticos, embora cada versão possua elementos próprios que correspondem às necessidades das comunidades destinatárias e à visão teológica de cada autor (Mc 12,1-12; Lc 10,20,9-19).

Como já fizemos uma contextualização mais ampla no domingo passado, e o texto de hoje faz parte do mesmo contexto, recordaremos somente alguns aspectos mais importantes. Jesus se encontrava nas dependências do templo de Jerusalém, ensinando. Como é sabido, os ensinamentos de Jesus contrariavam a ortodoxia da época. À medida em que apresentava o Reino de Deus como proposta de vida e de sociedade alternativa ao sistema vigente, Jesus denunciava a hipocrisia e os privilégios das lideranças políticas e religiosas de Israel, que tinham distorcido completamente a imagem de Deus, o seu Pai, transformando-o em patrão vingativo e em mercadoria, uma vez que o templo, que deveria ser casa de oração, tinha se tornado casa de comércio e covil de ladrões (Mt 21,12-13). E isso foi duramente combatido por ele, seja por meio de palavras seja através de gestos proféticos simbólicos, como a expulsão dos vendedores do templo.

A mensagem de Jesus era insuportável para quem explorava o povo em nome de Deus, como faziam as lideranças religiosas e políticas da sua época. Por isso, enquanto ensinava nas dependências do templo, ele foi questionado pelos sacerdotes e anciãos, as lideranças de Israel: «Com que autoridade fazes isso? Quem te deu essa autoridade?» (Mt 21,23). A esse questionamento, Jesus não respondeu com uma definição conceitual, mas por meio de novos questionamentos e três parábolas, das quais a de hoje é a segunda. A primeira, a “parábola dos dois filhos” (Mt 21,28-32), fora lida no domingo passado, e a terceira, a do “banquete de casamento” (Mt 22,1-14), será lida no próximo domingo. Ao ter sua autoridade questionada, terminou Jesus denunciando a ilegitimidade de seus interlocutores, mostrando a hipocrisia com que exerciam o poder na época, pois tinham transformando o Deus da vida em mercadoria. É importante recordar que, embora os interlocutores diretos de Jesus nestas parábolas, conforme o contexto narrativo do evangelho, sejam os sacerdotes e anciãos, ou seja, as lideranças religiosas da época, o seu ensinamento é destinado primordialmente aos discípulos e discípulas de todos os tempos, começando por aqueles de primeira chamada, passando pelos membros da comunidade de Mateus, até os cristãos de hoje e sempre.

Passada a contextualização, voltamos a atenção para o próprio texto, começando pela introdução: «Escutai esta outra parábola» (v. 33a). Com essa fórmula introdutória fica claro que essa parábola é a continuidade de um discurso já iniciado. Ora, se essa é “outra parábola” (em grego: Ἄλλην παραβολὴν – alen parabólen), significa que já fora contada alguma antes dela, como já acenamos na contextualização. Logo, essa é “outra” em relação àquela dos “dois filhos” (Mt 21,28-32), lida no último domingo. A sucessão de parábolas em um mesmo discurso e com um mesmo tema é sinal de importância do que está sendo ensinado, pois revela uma insistência do parabolista. Recordemos, por exemplo, a série de parábolas sobre o Reino (Mt 13), a série de parábolas da misericórdia (Lc 15) e, ainda, a série de parábolas escatológicas (Mt 24 – 25). Portanto, as denúncias de Jesus às lideranças religiosas do seu tempo foi um elemento de fundamental importância no seu ministério, chegando a ser o ponto culminante de sua pregação. Prova disso é a morte de cruz, decretada como consequência de tudo isso.

Ainda sobre a introdução da parábola, é importante recordar o imperativo “escutai” (em grego: ἀκούσατε – akússate), com o qual a parábola é introduzida. Esse é mais um indicativo de importância do que está sendo ensinado. Mais do que um exercício da audição, o verbo escutar na linguagem bíblica, sobretudo quando vem empregado no modo imperativo, significa uma fórmula de denúncia e um convite à conversão, uma exigência de mudança. Não por acaso, esse é um dos verbos prediletos dos grandes profetas de Israel que mais se destacaram pela mensagem crítica de denúncia às injustiças sociais (Is 1,10; Os 4,1; Am 3,1; 4,1; 5,1; 8,4; Mq 1,2; 3,1.9; 6,1.9). E, Considerando as peculiaridades de seus interlocutores, Jesus os convida a olhar para a história de Israel e para Escritura, o que eles conheciam tão bem, mas pareciam ignorar. Isso se evidencia pela apresentação da parábola: «Certo proprietário plantou uma vinha, pôs uma cerca em volta, fez nela um lagar para esmagar as uvas, e construiu uma torre de guarda. Depois arrendou-a a vinhateiros, e viajou para o estrangeiro» (v. 33). Aqui, fica claro que Jesus tinha em mente o “Cântico da vinha” do profeta Isaías (Is 5,1-7) ao propor esta parábola, e sabia que seus interlocutores conheciam muito bem esse texto profético.

Como se sabe, a vinha é a uma imagem privilegiada do povo de Deus, usada principalmente nas tradições proféticas (Is 5,1-7; 27,2-3; Jr 2,21; Ez 15,2-8; Os 9,10; etc). Trata-se de uma imagem clássica. Ao ouvir falar de uma vinha, quem tinha familiaridade com as Escrituras, como os interlocutores de Jesus, logo percebia que ele falava da relação de Deus com Israel. Todos sabiam que Deus possuía uma vinha e que a amava tanto. E a parábola ressalta isso. Os cuidados do proprietário acenam para uma grande expectativa em relação à produtividade daquela vinha: ele mesmo a plantou e a cercou. O lagar para esmagar as uvas significa a expectativa de boas colheitas: uvas boas e em abundância para produzir vinho, símbolo do amor e da alegria. A torre de guarda construída significa o cuidado e o quanto a vinha é preciosa para o seu dono. A ausência do dono durante o cultivo e a colheita é sinal de muita responsabilidade confiada aos trabalhadores. Esse detalhe ressalta a confiança que Deus deposita na humanidade; foi ele quem tudo plantou, ao criar o mundo, confiando à humanidade o cuidado de toda a criação.

Quem planta espera colher frutos. E assim aconteceu com o dono da vinha, conforme a parábola: «Quando chegou o tempo da colheita, mandou seus empregados para receber seus frutos» (v. 34). Embora ele mesmo tenha plantado, ele não vai receber os frutos pessoalmente, mas envia seus “servos” (em grego: δούλοι – duloi), termo que o lecionário traduziu por empregados. O envio dos servos para receber os frutos da colheita significa a confiança que o dono lhes deposita, tendo-os como seus colaboradores muito próximos. À confiança do dono, contrapõe-se a brutalidade dos vinhateiros, que «agarraram os empregados, espancaram a um, mataram a outro, e ao terceiro apedrejaram» (v. 35). Uma série de ações violentas é anunciada. Isso tudo é consequência do abuso de poder da parte dos vinhateiros, com quem Jesus compara os líderes religiosos e políticos de Jerusalém, os quais se apossaram da vinha indevidamente. As ações violentas dos vinhateiros – agarrar, espancar, matar, apedrejar – se contrapõem completamente às iniciativas do proprietário, marcadas pelo cuidado – plantou, cercou, cavou e protegeu (v. 33). Essa contraposição revela a distância que se tinha criado entre Deus e a religião de Israel, no respectivo contexto. Para o evangelista, funciona também como advertência às comunidades da sua época e do futuro, para não se distanciarem do ensinamento de Jesus.

A sequência do texto mostra a paciência e tolerância do proprietário da vinha, que «mandou de novo outros empregados, em número maior que os primeiros» (v. 36). O dono que ama a sua vinha não desiste dos frutos e não sossega enquanto não os colher. Porém, aconteceu o mesmo com a segunda comitiva de servos, ou seja, foram tratados com violência, como os primeiros. É quase consenso entre os estudiosos que os servos enviados duas vezes à vinha para receber os frutos significam os profetas anteriores e posteriores, conforme a divisão tradicional da Bíblia Hebraica. Essa interpretação ajuda a identificar os vinhateiros, aqueles que se apossaram da vinha, fazendo do que é de Deus uma propriedade particular: as autoridades e instituições políticas e religiosas de Israel, da antiga monarquia davídica à aristocracia sacerdotal da época de Jesus. Em todos as épocas, o poder exercido em Israel foi danoso, até mesmo na época dos reis considerados “bons”, como Davi e Salomão. Sempre houve abuso de poder e injustiça. Sempre usurparam a vinha de Deus. Ao invés de facilitar os devidos frutos ao único dono da vinha, a religião de Israel tinha se tornado o maior obstáculo para a colheita. Um simples olhar na história já seria suficiente para essa conclusão: a rejeição aos profetas, quase todos hostilizados pelos detentores de poder.

No final, depois de várias tentativas, o dono da vinha da vinha toma uma decisão definitiva que, que mais uma vez, evidencia seu pleno amor e cuidado com a vinha, como mostra o texto com muita clareza: «Finalmente, o proprietário enviou-lhes o seu filho, pensando: ‘Ao meu filho eles vão respeitar’!» (v. 37). Essa expressão revela a grandeza do amor desse proprietário. É a imagem de um Deus que não desiste nunca de esperar bons frutos da humanidade. Porém, a reação dos vinhateiros se torna ainda mais violenta com o filho. Tendo já tomado posse da vinha, não permitindo mais que o dono recebesse seus frutos, os falsos proprietários viam o filho do dono como uma ameaça ainda maior, por isso procuram eliminá-lo de uma vez: «Este é o herdeiro. Vinde, vamos matá-lo e tomar posse da sua herança» (v. 38). Ao relatar a violência sofrida pelo filho do dono da vinha, Jesus chega ao ápice do ensinamento da parábola: os chefes que interrogaram sua autoridade são os vinhateiros que se apossaram da vinha. Eles que hostilizaram os profetas do Antigo Testamento, rejeitaram a pregação de João Batista, e agora estão quase matando o filho. Aqui, Jesus faz um novo anúncio da paixão, dessa vez implícito, uma vez que já havia feito os três anúncios explícitos (Mt 16,21-18; 17,22-23; 20,17-19). Os três anúncios anteriores foram feitos aos discípulos, agora é aos futuros algozes que ele anuncia. Com isso, a parábola ganha um sentido ainda mais amplo, funcionando como síntese da história de Israel e autobiografia de Jesus.

Ao concluir a parábola descrevendo o tratamento dado ao filho do dono da vinha pelos vinhateiros, «agarraram-no, jogaram-no para fora da vinha e o mataram» (v. 39), Jesus deixa novamente os sumos sacerdotes e anciãos do povo em situação constrangedora: «Quando o dono da vinha voltar, o que fará com esses vinhateiros?» (v. 40). A resposta deles é praticamente uma sentença de autocondenação: «Com certeza mandará matar de modo violento esses perversos e arrendará a vinha a outros vinhateiros, que lhe entregarão os frutos no tempo certo» (v. 41). Os sumos sacerdotes e anciãos parecem não perceber que Jesus está falando deles. Continuam ignorando e insistindo em não acatar o ensinamento de Jesus, exatamente porque tomaram posse indevidamente do que não lhes pertencia, estavam movidos pelo orgulho, pela mentira e violência e, por isso, fechados ao que Jesus ensinava. Ao contrário da resposta deles, Jesus não fala em momento algum de vingança ou violência da parte do dono da vinha. Por outro lado, ele mostra uma reviravolta na história, com base na Escritura que seus interlocutores deveriam conhecer, mas a ignoravam: «Então Jesus lhes disse: ‘Vós nunca lestes nas Escrituras: ‘A pedra que os construtores rejeitaram tornou-se a pedra angular; isto foi feito pelo Senhor e é maravilhoso aos nossos olhos?’» (v. 42). Essa citação da Escritura (Sl 118,22-23) é uma palavra de reprovação a quem se impõe pela força, e de esperança às vítimas de todo sistema opressor, enfatizando qual é o lado de Deus na história: o lado dos descartados, das pessoas marginalizadas, sobretudo pela religião.

Ao propor a vingança do dono da vinha, os sacerdotes e anciãos revelam a religião que eles praticavam e o Deus em quem acreditavam: uma religião mercantilista, baseada na lei do “olho por olho e dente por dente” (Mt 5,38), condenada por Jesus, e um Deus severo e castigador, diferente do Deus Pai revelado por Jesus. A atitude do dono, ao contrário do que pensam os interlocutores de Jesus, será apenas destituir os vinhateiros de um poder que eles tinham usurpado. Eles foram encarregados de cuidar, isto é, cultivar, produzir, colher os frutos e restitui-los ao dono; ao invés disso, tomaram posse como se a vinha fosse propriedade particular. Ora, o que pertence a Deus é direito de todos; ninguém pode considerar propriedade sua o que é dom, o que é fruto do amor e da graça de Deus. Porém, Jesus não anuncia castigo, mas apenas a destituição do poder: «o Reino de Deus vos será tirado e será entregue a um povo que produzirá frutos» (v. 43). A ironia de Jesus, aqui, chega ao ápice: os que questionaram sua autoridade são exatamente aqueles que não tinham autoridade para falar em nome de Deus, uma vez que Deus só autoriza a falar em seu nome quem produz frutos em favor de todos, e não quem pensa somente em si e age com violência e mentira.

Ao ler essa parábola e, quase de imediato, perceber que Jesus aplica o dono da vinha ao seu Pai, os vinhateiros às classes dirigentes de Jerusalém, e o filho rejeitado a si mesmo, corremos o risco de imaginar também uma simples passagem do Reino, saindo das mãos do judaísmo para a Igreja nascente. É importante perceber que o Reino de Deus não é transferido de uma religião para outra; é apenas confiado a quem produzir frutos, independentemente da origem. A entrega do Reino “a um povo” não determinado significa a universalidade da salvação e a dimensão inclusiva do Reino, composto de judeus, gregos, romanos e todos os povos da terra. Não é a pertença a uma raça, cultura ou religião específica que dá acesso ao Reino, mas a “produção de frutos”, quer dizer, a prática da justiça e a vivência do amor (Mt 5-7), como já fora antecipado no discurso da montanha, especialmente com as bem-aventuranças (Mt 5,1-12).

Produz frutos e participa do Reino, portanto, quem faz a vontade do Pai que está nos céus, e não quem apenas diz “Senhor, Senhor!” (Mt 7,21). O Reino é entregue a toda pessoa que aceita o desafio de viver segundo as bem-aventuranças. Toda vez que alguém quer controlar o agir de Deus, determinando quem está salvo e quem está condenado, está agindo como os vinhateiros homicidas. O fato de alguém pertencer a uma comunidade/igreja cristã não garante participação no Reino de Deus. Por isso, mais do que uma ameaça ao judaísmo da época, essa parábola é uma séria advertência ao cristianismo de todos os tempos. Jesus nos desafia a produzir frutos de amor, justiça, solidariedade, enfim, nos convida a viver humanizados e a humanizar o mundo, tornando-o semelhante ao Reino que ele veio instaurar. Essa é a missão contínua da comunidade cristã.

Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

REFLEXÃO PARA O 4º DOMINGO DA PÁSCOA – JOÃO 10,11-18 (ANO B)

O evangelho do quarto domingo da páscoa é sempre tirado do capítulo décimo do Evangelho de João, no qual Jesus se auto apresenta como o ún...