sexta-feira, agosto 24, 2018

REFLEXÃO PARA O XXI DOMINGO DO TEMPO COMUM – JOÃO 6,60-69 (ANO B)




Neste vigésimo primeiro domingo do tempo comum, concluímos a sequência de cinco domingos em que a liturgia faz uso do sexto capítulo do Evangelho segundo João, embora nos tenha restado somente quatro domingos, devido a interrupção para a solenidade da Assunção de Nossa Senhora no domingo passado. O Evangelho de hoje é João 6,60-69, e contempla a reação final dos discípulos, incluindo os Doze, ao longo e exigente discurso de Jesus sobre o pão da vida, ele mesmo, e a necessidade de alimentar-se dele. Tudo isso, ainda, como desdobramento do sinal da multiplicação ou condivisão dos pães no início do capítulo (cf. 6,1-15).

A multidão que tinha sido saciada a partir da partilha dos cinco pães e dois peixes quis, de imediato, proclamar Jesus como rei (cf. 6,15. Diante de uma ideia tão absurda, Jesus refugiou-se (cf. 6,15), mas a multidão o encontrou novamente, já na sinagoga de Cafarnaum, do outro lado do lago (cf. 6,22-25), esperando comer de novo pão gratuito e em abundância (cf. 6,26).. Ao sentir-se incompreendido, Jesus aproveitou a oportunidade para fazer uma ampla catequese, apontando para a importância de se buscar não apenas o pão material, pois, embora necessário e essencial, esse é perecível e seus efeitos duram poucas horas. Por isso, apontou para a necessidade de um alimento que dura por toda a vida, mostrando que esse alimento é a sua própria pessoa (cf. 6,27-40).

Ao apresentar-se como verdadeiro alimento, ou seja, como pão da vida ou pão vivo descido do céu, e convidar os ouvintes a comer a sua carne e beber o seu sangue, Jesus causou perplexidade, questionamentos, incredulidade e ira, gerando as mais diversas reações. O evangelista João recorda tudo isso para ajudar a sua comunidade a discernir e tomar decisões: o seguimento de Jesus é comprometedor... ser discípulo e discípula dele não é memorizar uma doutrina para depois repeti-la, mas é entrar em comunhão plena com a sua pessoa, assimilando seu jeito de ser; é esse o sentido de comer a sua carne e beber o seu sangue (cf. 6,54). Recebe-lo como alimento é tornar-se também alimento para os outros. Uma proposta de vida tão exigente assim não poderia ser absolvida com facilidade.

Tendo já mostrado as reações de outros interlocutores, como a própria multidão e as autoridades judaicas, ao discurso de Jesus como verdadeiro alimento e pão para a vida eterna, o evangelista quis mostrar também a reação dos discípulos, pois era essa a que mais interessava à sua comunidade que se encontrava com a fé comprometida, devido as perseguições e o “esfriamento” no fervor de alguns membros. Por isso, o evangelista recordou que “Muitos dos discípulos de Jesus, que o escutaram, disseram: ‘Esta palavra é dura. Quem consegue escutá-la’?” (v. 60). Os próprios discípulos contestam o discurso de Jesus, e essa é a grande novidade do evangelho de hoje. Ora, os evangelhos mostram muitas situações em que Jesus é contestado pelos seus tradicionais adversários (fariseus, saduceus, mestres da lei), mas nunca pelos discípulos. O máximo que os discípulos ousavam era fazer perguntas e pedir esclarecimentos sobre alguns aspectos da sua vida e do seu ensinamento.

A reclamação dos discípulos é um verdadeiro protesto contra Jesus: “Esta palavra é dura”. O evangelista emprega o adjetivo grego sklerós (sklhro,j), o qual, além de duro significa também difícil, insuportável, inadmissível, ofensivo e violento. Os discípulos se sentiam completamente incapacitados para continuar no seguimento, uma vez que o anúncio de Jesus parecia inviável. A dureza da palavra de Jesus consiste no comprometimento que dela deriva: diante dela, é preciso tomar posições firmes como tornar-se alimento para os outros, fazendo as mesmas opções de Jesus e, consequentemente, assumindo as consequências. É uma palavra dura porque não se trata de um discurso para ouvir uma vez por semana, como a liturgia da sinagoga, mas exige uma coerência de vida cotidiana; não é uma palavra para ser simplesmente proferida, mas para ser vivida.

Além da reclamação, Jesus percebeu que seus discípulos estavam murmurando, e por causa disso mesmo, perguntou: ‘isto vos escandaliza?” (v. 61). Murmurando, os discípulos repetem um dos antigos pecados de Israel. Os israelitas, recém-libertados, murmuravam constantemente contra Deus e Moisés (cf. Ex 16,2-4). O verbo murmurar, como emprega o evangelista (em grego: goggu,zw – gonguízo) expressa uma revolta contra Deus, considerando toda a simbologia do mundo bíblico, é a negação da fé. Portanto, os discípulos, ou pelo menos uma parte desses, fizeram revolta contra Jesus, pois se sentiram ofendidos pelo seu discurso. Ao perguntar se aquilo, o discurso, os escandalizava, ou seja, se era impedimento para a fé deles, Jesus vai bem mais além, dizendo, em outras palavras, que era como se os discípulos “ainda não tivessem visto nada”: “E quando virdes o Filho do Homem subindo para onde estava antes?” (v. 62). Uma das passagens mais chocantes do discurso de Jesus foi dizer ser ele “o pão vivo descido do céu”; um absurdo para seus ouvintes que conheciam até mesmo seus pais e sabiam que ele não passava de um carpinteiro (cf. 6,41-42). Logo, a sua subida seria muito mais chocante para os discípulos, uma vez que compreendia a passagem pela cruz, destino reservado também aos discípulos. Aqui, Jesus os previne: coisas piores estão por acontecer.

Diante da reação negativa, Jesus não procura conformar seu discurso e suas exigências às capacidades e disposições dos discípulos; pelo contrário, reforça o que já havia dito e deixa claro que já previa a resistência e até mesmo a negação completa de seu projeto por alguns discípulos: “O Espírito é que dá vida, a carne não adianta nada. As palavras que vos falei são espírito e vida. Mas entre vós há alguns que não crêem’. Jesus sabia desde o início, quem eram os que tinham fé e quem havia de entrega-lo” (vv. 63-64). A revolta dos discípulos não faz Jesus alterar seu projeto. Ele reforça sua confiança no Pai e a relação intrínseca entre os dois: “É por isso que vos disse: ninguém pode vir a mim, a não ser que lhe seja concedido pelo Pai” (v. 65). Se foi o Pai quem o enviou, é também o Pai quem chama e atrai para o seu seguimento. Na história da salvação, a iniciativa é sempre de Deus. Quem se deixa atrair pelo Pai e vai a Jesus, terá a plenitude da vida, não como prêmio, mas como consequência.

Aquele momento foi um divisor de águas na vida de Jesus e dos discípulos, pois fora a sua máxima revelação, até então, na dinâmica do Quarto Evangelho. Foi o momento em que Jesus mais falou de si, deixando-se conhecer completamente. O evangelista sentia que a sua comunidade, vivendo momentos de altos e baixos no discipulado, precisava tomar decisões importantes e, para isso, era necessário tornar Jesus cada vez conhecido em toda a sua profundidade, inclusive deixando claro o seu programa de vida com as exigências nesse implicadas. Até mesmo o encontro semanal da fração do pão (eucaristia) estava perdendo a sua importância na comunidade, passando a ser apenas um conjunto de ritos, deixando de ser verdadeiro encontro de comunhão transformadora. Assim como Jesus mesmo fez, também o evangelista quis mostrar que o discipulado não é uma obrigação, e sim uma opção radical e exigente. Por isso, “A partir daquele momento, muitos discípulos voltaram atrás e não andavam mais com ele” (v. 66). Houve desistência entre os discípulos porque nem todos estavam dispostos a aderir aos compromissos do discipulado. As “palavras duras” são realmente difíceis de ser assimiladas e vividas, de modo que um seguimento superficial não tem como se sustentar. Por isso, muitos desistiram de continuar seguindo-o.

Entre os discípulos e discípulas, estava o seu núcleo primeiro, o chamado grupo dos Doze, a quem Jesus se dirige com muita firmeza: “Vós também vos quereis ir embora?”  (v. 67). Com essa pergunta, Jesus mostra seu respeito pela liberdade de cada pessoa e, sobretudo, as convicções do seu projeto: é mais fácil ficar sem discípulos do que mudar o seu programa. Suas exigências são inegociáveis. Em uma sociedade dominada pelo egoísmo, injustiça, privação de liberdade, exclusão e hipocrisia, as “palavras duras” são necessárias para desestabilizar o sistema e, assim, iniciar a construção de um mundo novo repleto de amor, justiça, fraternidade e paz.

Mesmo não sendo totalmente coerente, o grupo dos Doze optou por continuar no seguimento, como mostra o evangelista com a resposta de Pedro: “Simão Pedro respondeu: “A quem iremos, Senhor? Tu tens palavras de vida eterna. Nós cremos firmemente e reconhecemos que tu és o santo de Deus” (v. 68-69). Ao responder no plural, Pedro fala em nome dos Doze. É a resposta da comunidade que, embora pequena numericamente, procura perseverar com fidelidade no seguimento, reconhecendo que, mesmo duras, as palavras de Jesus contém vida, são palavras de vida eterna, as únicas que podem restituir vida em abundância e esperança para todos, sobretudo os mais necessitados.

Além da confiança nas palavras de Jesus, a resposta de Pedro também expressa a fé da comunidade: “nós cremos firmemente e reconhecemos que tu és o Santo de Deus”. Provavelmente, essa expressão é uma adaptação que o evangelista faz da solene profissão de fé de Pedro nos evangelhos sinóticos: “Tu és o Cristo” (cf. Mc 8,29; Mt 16,16; Lc 9,20). Quem o reconhece como o “Santo de Deus” não se deixa escandalizar pelas suas declarações como pão descido do céu; pelo contrário, nessas palavras encontra forças para crescer na fé. Assim, os Doze conseguem assimilar a outra dimensão da dureza: a firmeza, a coragem e a força, elementos necessários e essenciais para implantar, no mundo, a civilização do amor.

Que saibamos reconhecer que as palavras duras de Jesus são também portadoras de espírito e vida, por isso, indispensáveis para a missão. Que essas mesmas palavras nos ajudem a discernir e escolher a qual projeto e religião seguir: um projeto de vida consistente e comprometedor, que não exige meios termos, mas apenas um engajamento total e transformador ou, simplesmente, uma religião como conjunto de ritos e normas com encontros dominicais fervorosos e semanas vazias de sentido e de amor. O Evangelho de hoje nos coloca na encruzilhada; é preciso tomar decisão: continuar seguindo-o ou abandoná-lo. Ele nada impõe, cada pessoa é livre para segui-lo ou não. Porém, de quem escolhe segui-lo exige-se o compromisso de ser portador de uma palavra dura, embora portadora de vida, esperança e amor.

Pe. Francisco Cornelio Freire Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

sábado, agosto 18, 2018

REFLEXÃO PARA A SOLENIDADE DA ASSUNÇÃO DE MARIA – LUCAS 1,39-56




Ao celebrarmos, neste domingo, a solenidade da assunção de Maria, a liturgia propõe para o evangelho, o texto de Lucas 1,39-56, trecho que compreende a visitação de Maria à sua parenta Isabel, cujo ápice é a proclamação das maravilhas cumpridas por Deus ao longo da história da salvação, através do cântico que Lucas põe nos lábios de Maria, o Magnificat. Concentraremos a nossa reflexão somente no texto evangélico proposto, sem colocar em discussão as outras leituras propostas pela liturgia, nem as afirmações do dogma da Assunção, proclamado em 1950 pelo papa Pio XII.

O texto evangélico proposto é, sem dúvidas, um dos trechos mais apreciados no Evangelho segundo Lucas, sobretudo, nas tradições católicas, devido a relevância dada à figura de Maria. É uma das raras cenas do Novo Testamento que tem somente mulheres como protagonistas, o que já é um índice de sua importância. Com isso, o evangelista preconiza o início de uma nova história para a humanidade, com novas perspectivas e esperanças; essa história será escrita a partir dos pobres, desprezados e marginalizados da sociedade, como eram as mulheres na época em que Evangelho foi escrito.

Como pessoas simples e humildes, Maria e Isabel, protagonistas do episódio, são a prova de que o Deus de Israel tem um lado na história: o lado dos pobres, humildes e marginalizados, a quem ele dirige o seu olhar misericordioso (v. 48). O contexto do episódio é o da dupla anunciação do: do nascimento de João a Zacarias, esposo de Isabel (cf. Lc 1,5-25), e do nascimento de Jesus a Maria (cf. Lc 1,26-38), dentro do chamado “Evangelho da Infância”, em Lucas.

Após a retirada do anjo de perto dela (cf. Lc 1,38), tendo ficado embaraçada com o anúncio (cf. Lc 1,29), Maria tomou a firme decisão de ir visitar sua parenta, certamente com o propósito de conferir a veracidade do anúncio feito pelo anjo: “Também Isabel, tua parenta, concebeu um filho na velhice, e este é o sexto mês para aquela que a chamavam de estéril” (cf. Lc 1,36). Realmente, a gravidez de uma mulher estéril e anciã seria tão surpreendente quanto a de uma jovem sem relação com homem. Por isso, Maria não pensou duas vezes e “partiu para a região montanhosa, dirigindo-se, apressadamente, a uma cidade da Judeia” (v. 39). Muito tem se discutido a respeito da finalidade dessa partida tão apressada. As interpretações mais populares e devocionais atribuem essa partida à vontade de Maria de servir, de ajudar à sua parenta. Porém, em momento algum o texto afirma isso, nem mesmo dá indícios.

O anjo afirmou a Maria que Isabel, sua parenta, já estava no sexto mês de gravidez, e logo que o anjo a deixou, imediatamente, Maria partiu com pressa para a casa de Isabel. Ora, diz o texto que Maria permaneceu três meses na casa da parenta e retornou para casa. Tendo retornado após três meses, fica claro que seu propósito não era propriamente o serviço, uma vez que é exatamente após o parto que a mulher mais necessita de cuidados e ajuda. E, Maria voltou para casa antes do parto. Se o objetivo da viagem fosse apenas o serviço à parenta, ela teria permanecido com a mesma após o parto.

Portanto, podemos concluir, sem dificuldade, que Maria pôs-se a caminho para a casa de Isabel com o intuito de comprovar a veracidade do anúncio da parte do anjo. Como uma mulher atenta e perspicaz, sensível aos sinais dos tempos, ela fez bem em conferir esse fato. Isso apenas comprova que era uma mulher prudente, de fé sólida. Além disso, o texto revela, de modo antecipado, muitos aspectos da teologia tratada por Lucas ao longo de toda a sua obra (Evangelho segundo Lucas e Atos dos Apóstolos). É típico de Lucas, o movimento, o sair de si. O constante partir de um lugar para outro é um traço característico do Evangelho de Lucas, principalmente da parte de Jesus com os discípulos. Essa partida imediata de Maria faz dela um modelo de discípula e, ao mesmo tempo, inaugura o primeiro movimento de Jesus: ainda no ventre, Ele já estava inquieto e pronto a romper qualquer situação de estabilidade e tranquilidade, mesmo enfrentando adversidades e perigos, como Maria enfrentou ao partir sozinha para uma região montanhosa e de difícil acesso.

O fato de Maria não ter ido à casa de Isabel apenas para servi-la não diminui o seu papel e o seu valor. Antes de tudo, merece atenção e reverência a sua coragem e determinação de partir sozinha e apressada para uma região distante, percorrendo caminhos difíceis e perigosos. Para uma mulher, isso era praticamente inadmissível, e ela, com muita audácia o fez, rompendo muitas barreiras, antecipando o papel da Igreja, da qual ela é modelo: romper barreiras, colocar-se em estado constante de saída, independente do perigo a ser enfrentado. 

Ao chegar ao destino, Maria “Entrou na casa de Zacarias e cumprimentou Isabel” (v. 40). Muito mais que cumprimentar, o verbo "saudar" seria mais apropriado na tradução do texto, por ser mais compatível com a língua original e o contexto em questão. A expressão hebraica para a saudação é desejar a paz (em hebraico: shalom). Ao enviar os discípulos em missão, Jesus ordenou que eles desejassem a paz em cada casa que entrassem (cf. Lc 10,5). Aqui, mais uma vez, Maria antecipa a atitude de cada discípulo e discípula: ser portador (a) da paz! Como mulher inovadora e corajosa, ela ignora a tradição patriarcal e saúda a mulher em lugar do homem (v. 40). Assim, ela provoca uma verdadeira revolução e inversão de valores nas relações sociais, como aprofundará no seu hino, o Magnificat. Na sociedade do seu tempo, o primeiro a receber a saudação era o dono da casa. Saudando primeiro a mulher, ela afirma que um tempo novo está surgindo, com novas relações e uma nova ordem.

A saudação de Maria irradia paz no ambiente, a ponto de fazer até mesmo a criança, ainda no ventre, agitar-se (v. 41a). Isso porque Isabel fica “cheia do Espírito Santo” (v. 41b). Trata-se do mesmo Espírito prometido pelo anjo a Maria no momento do anúncio: “O Espírito Santo descerá sobre ti” (cf. Lc 1,35a). Como força vital, o Espírito Santo é luz irradiante e interpelante, que pode ser sentido quando transmitido por pessoas cheias dele, como Maria. A atitude de Isabel não poderia ser outra, senão exclamar, gritando: “Bendita és tu entre as mulheres e bendito é o fruto do teu ventre!” (v. 42). É a palavra profética que nela se atualiza. Sabendo que Maria carregava dentro de si o Messias, isso fazia dela a mais ‘bendita’ entre todas as mulheres. Assim, Isabel torna-se a primeira a proclamar ‘bem-aventuranças’ no Evangelho segundo Lucas. Ora, gerar filhos na mentalidade bíblica, era sinal de bem-aventurança e bênção; uma confirmação de que se tinha Deus a seu favor. Logo, gerar o Messias seria prova de uma dignidade inigualável.

Tendo composto seu Evangelho com muita atenção para a escritura hebraica, o Antigo Testamento, Lucas procura atualizá-lo no ‘evento Cristo’. Assim, na continuação da exclamação de Isabel, o evangelista desenha Maria como a nova ‘Arca da Aliança’. Como sabemos, na arca da aliança eram guardadas as tábuas da lei, sinal máximo da presença de Deus no meio do seu povo. Com a exclamação de Isabel: “Como posso merecer que a mãe do meu Senhor me venha visitar? ” (v. 43), Lucas relembra e atualiza as palavras de Davi quando estava para receber a Arca em sua casa: “Como virá a Arca de Iahweh para minha casa?” (2 Sm 6,9). Portanto, Lucas percebe em Maria a arca da nova aliança, não mais portadora da lei, mas portadora do amor e da misericórdia de Deus. Davi exclamou com medo (cf. 2 Sm 6,10), enquanto Isabel exclamou de alegria.

E, mais uma vez, Maria é reconhecida como bem-aventurada: “Bem-aventurada aquela que acreditou, porque será cumprido o que o Senhor lhe prometeu” (v. 45). Além de exaltar as qualidades de Maria, as palavras de Isabel são também uma repreensão ao seu esposo Zacarias, o qual, ao contrário de Maria, não acreditou no anúncio do anjo (cf. Lc 1,20), por isso ficou mudo até que o menino nascesse. Isabel combate a incredulidade do marido, por sinal um sacerdote, e reforça a sua fé renovada pela presença de Maria, como ela confessou: “Será cumprido o que o Senhor lhe prometeu” (v. 45b). Ao repreender a incredulidade do esposo sacerdote, Isabel proclama a decadência da antiga religião oficial, demonstrando que somente os pobres, simples e humildes são capazes acolher as intuições do Espírito Santo, como Maria. Assim, a religião do rigor e da lei está completamente falida.

Provavelmente constrangida com tantos elogios da parte da sua parenta, Maria a interrompe e, exultando de alegria, expressa seu louvor a Deus com o hino conhecido como Magnificat (vv. 46-54). Isso reflete também a preocupação do evangelista com a construção futura da imagem de Maria na Igreja; o centro do culto e da vida cristã é sempre Deus, pois é ele o autor das maravilhas operadas e, portanto, é a ele que o reconhecimento e o louvor devem ser dirigidos. O Magnificat é o primeiro dos hinos que Lucas apresenta em seu Evangelho. Trata-se de uma composição que sintetiza todo o Antigo Testamento. Lucas faz uma construção nova com pedras antigas, pois o texto é um verdadeiro mosaico de citações do Antigo Testamento. A estrutura geral é tomada do cântico de Ana (cf. 1Sm 2,1-10), o que se explica pela analogia das duas situações. Se Isabel estava maravilhada por contemplar grandes coisas (vv. 42-45), Maria lhe ajuda a compreender melhor tal situação, convidando-lhe a olhar para a história e perceber que, na verdade, esse Deus de Israel nunca esqueceu o seu povo, sempre fez grandes coisas em seu favor e, portanto, é a Ele que o louvor deve ser dirigido. Tudo o que está acontecendo é dom de Deus.

Maria personifica todo o Israel e resume os grandes feitos de Deus na história, destacando, sobretudo, a sua predileção pelos pobres, humildes e humilhados. Quando reconhece que “o Todo-Poderoso fez e faz grandes coisas” (v. 49), ao mesmo tempo se afirma que não há outros poderosos, exatamente porque devem ser derrubados de seus falsos tronos (v. 52). É o início do cumprimento das antigas promessas, agora sob a responsabilidade de Jesus e a comunidade dos discípulos, da qual Maria é modelo. A versão das bem-aventuranças e maldições é também aqui antecipada: “Encheu de bens os famintos” (v. 53a) antecipa as bem-aventuranças dirigidas aos pobres (cf. Lc 6,20-21); “Despediu os ricos de mãos vazias” (v. 53b) antecipa as repreensões dirigidas aos ricos (cf. Lc 6,24-25). É, sem dúvidas, a síntese da oração de Israel que deverá ser continuada pela comunidade dos discípulos, a Igreja cristã.

A conclusão do texto reafirma a imagem de Maria como nova arca da nova aliança: “Maria ficou três meses com Isabel; depois voltou para casa” (v. 56). Uma expressão muito parecida aparece em 2Sm 6,11: A Arca de Iahweh ficou três meses na casa de Obed-Edom de Gat, e Iahweh abençoou a Obed-Edom e a toda a sua família”. A presença de Maria na casa de Isabel foi, com certeza, a confirmação da bênção de Deus sobre ela, seu esposo Zacarias e o filho esperado, João Batista. Na arca da nova aliança não há tábuas da lei, não há norma nem preceito, há apenas Jesus, expressão máxima do amor e da misericórdia de Deus para com a humanidade.

  
Pe. Francisco Cornelio Freire Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

sábado, agosto 11, 2018

REFLEXÃO PARA O XIX DOMINGO DO TEMPO COMUM – JOÃO 6,41-51 (ANO B)




Na liturgia deste décimo nono domingo do tempo comum, continuamos a leitura do capítulo sexto do Evangelho segundo João. No texto proposto para hoje – Jo 6,41-51 – Jesus continua seu discurso de auto apresentação como pão descido do céu e alimento para a vida. Esse discurso é a resposta de Jesus à multidão que, alimentada pelo pão partilhado na outra margem do mar (ou do lago), e maravilhada com o sinal cumprido, quis logo proclamá-lo rei, imaginando tirar cada vez mais proveito de suas ações prodigiosas. Jesus refugiou-se, percebendo a interpretação equivocada, mas a multidão o encontrou novamente querendo pão gratuito com fartura. Jesus percebeu tais intenções e, aproveitando a oportunidade, chamou a atenção para a importância de um alimento duradouro e essencial: a sua própria pessoa, pão vivo descido do céu, enviado pelo Pai para dar vida ao mundo.

A auto apresentação de Jesus como pão descido do céu e alimento para a vida eterna foi duramente criticada e questionada pelos seus ouvintes, praticantes da religião tradicional. Para esses, a única referência de pão descido céu era o maná do deserto, mas aquele era um alimento perecível, tanto que os antepassados que dele se alimentaram, morreram todos. Portanto, a afirmação de Jesus soava como pretensão e afronta. Por isso, o questionamento: “Os judeus começaram a murmurar a respeito de Jesus, porque havia dito: ‘Eu sou o pão que desceu do céu” (v. 41). Quando João menciona “os judeus”, não se refere a todo o povo, mas às autoridades religiosas, quem mais se incomodava com as afirmações de Jesus. De fato, as declarações de Jesus eram verdadeiras ameaças para aquela religião, pois abriam caminho para a humanidade encontrar-se diretamente com Deus, através da sua pessoa, dispensando a mediação dos líderes religiosos.

O murmúrio, mais que um simples lamento, é uma contestação da graça e do poder de Deus, por isso, é um pecado. É a atitude de um povo rebelde e fechado que rejeita a libertação oferecida por Deus, como acontecera no deserto: “Murmuraram contra Moisés e contra Aarão todos os filhos de Israel, dizendo consigo toda a assembleia: antes tivéssemos morrido na terra do Egito! Estamos morrendo neste deserto!” (Nm 14,2). O murmúrio das autoridades religiosas contra Jesus é, portanto, a confirmação do fechamento de Israel, desde o antigo êxodo, à proposta libertadora de Deus, levada a cumprimento em Jesus de Nazaré.

Para desqualificar Jesus e negar a sua condição divina, alegam a sua origem humana e simples: “Eles comentavam: ‘Não é este Jesus, o filho de José? Não conhecemos seu pai e sua mãe? Como então pode dizer que desceu do céu?” (v. 42). Como a religião oficial tinha caricaturado Deus como um soberano distante da terra, inacessível ao ser humano, as afirmações de Jesus soavam como absurdas. Segundo aquela mentalidade, era impossível que aquele Deus pudesse ser manifestar através de um simples carpinteiro. Sendo habitante da região, com pai e mãe conhecidos, Jesus não tinha credencial de revelador de Deus, segundo a imagem de Deus criada por aquela religião. Como ser imensamente superior, Deus só poderia se manifestar através de sinais extraordinários, jamais em um homem pobre e ousado como Jesus. Se aceitassem Jesus como revelador do Pai, estariam desconstruindo um discurso sustentado há séculos e colocando em risco seus privilégios. Ao associar Jesus a seus pais terrenos, os judeus afirmavam que ele não poderia ter descido do céu.

Jesus não entra diretamente na discussão, pois não sente necessidade de reafirmar a sua origem divina para aquele povo duro de coração. Apenas interrompe o comentário, repreendendo as murmurações: “Jesus respondeu: Não murmureis entre vós” (v. 43). Jesus não quer a perpetuação dos erros de Israel que, historicamente, tem interpretado mal a presença de Deus em seu meio, rejeitando-o inúmeras vezes. Com muita tranquilidade e consciência, Jesus deixa claro que é preciso deixar-se atrair pelo Pai para chegar até ele: “Ninguém pode vir a mim, se o Pai que me enviou não o atrai. E eu o ressuscitarei no último dia” (v. 44). Não obstante as rejeições sofridas, Jesus reforça sua confiança no Pai e a relação intrínseca entre os dois. Se foi o Pai que o enviou, é também o Pai que atrairá cada um a si. Na história da salvação, a iniciativa é sempre de Deus, cuja expressão máxima é a ressurreição. Quem se deixa atrair pelo Pai e vai a Jesus, terá a plenitude da vida, não como prêmio, mas como consequência.

Em Jesus, toda a humanidade tem a oportunidade de unir-se a Deus, através do discipulado gerado pela escuta do Pai (cf. v 45). Ora, escuta o Pai quem se deixa conduzir pela sua Palavra eterna, o seu filho Jesus, cujo convite já ressoava desde os tempos dos profetas. O Evangelho de Jesus é a voz do Pai ecoante no mundo e acessível a toda a humanidade. Ainda como resposta ao murmúrio dos seus adversários, Jesus reforça sua condição de único mediador entre o Pai e a humanidade: “Só aquele que vem de junto de Deus viu o Pai” (v. 46). Somente pode revelar com clareza o rosto amoroso do Pai quem vive em comunhão plena com ele e dele foi gerado. Enquanto a religião oficial comercializava um personagem distante, violento e vingativo, caricaturado de Deus, Jesus em sua simples condição humana revelava de modo claro a identidade do Pai, o qual não exige sacrifícios nem ofertas, mas apenas uma adesão de fé.

 De fato, disse Jesus: “Em verdade, em verdade, vos digo, quem crê, possui a vida eterna” (v. 47). Crer (em grego: pisteu,wn – pistêuo), aqui, significa deixar-se conduzir pelo Evangelho, aceitando-o como único programa de vida. Como consequência, quem faz essa adesão se torna possuidor da vida eterna, a qual não é uma vida no além, como prêmio para quem praticou boas obras, mas um dom oferecido já nesta vida a quem conduz a sua existência de acordo com o Evangelho. O evangelista faz questão empregar o verbo possuir no tempo presente: quem crê já é possuidor da vida eterna. Essa, a vida eterna (em grego: zwh.n aivw,nion – zoén aiónion) é a vida conduzida conforme a de Jesus, a qual nem a morte é capaz de destruí-la.

Mais uma vez se apresentando como pão da vida e alimento perene (cf. v. 48), Jesus põe em questão o maná comido pelos antepassados no deserto, mostrando a ineficácia daquele alimento: “Os vossos pais comeram o maná no deserto e, no entanto, morreram” (v. 49). Jesus dá mais um sinal de rompimento com aquela tradição ao falar “vossos pais” ao invés de “nossos pais”, pois ele também era judeu de origem; ele quer se distanciar de uma tradição ultrapassada, fechada em seus próprios conceitos e incapaz de abrir-se ao novo. Todos os que foram alimentados pelo maná no deserto, morreram sem entrar na terra prometida. Mesmo assim, os judeus continuavam “devotos” do maná, considerando-o como o único alimento descido do céu. Jesus quer se contrapor: está sendo dada a oportunidade de provarem um alimento verdadeiramente descido do céu, ele mesmo, como disse: “Eis aqui o pão que desce do céu: quem dele comer, nunca morrerá” (v. 50).

Apresentando-se como pão, Jesus garante a sua eficácia como alimento e deixa ainda mais clara a oferta total de si para a vida do mundo: “Eu sou o pão vivo descido do céu. Quem comer deste pão viverá eternamente. E o pão que eu darei é a minha carne dada para a vida do mundo” (v. 51). Ora, o maná no deserto fora dado a um povo específico e privilegiado que, mesmo assim, murmurava constantemente. A oferta de Jesus é universal, não é mais para a vida de um povo, mas para a vida do mundo. A sua oferta é universal, porque tem a humanidade toda como destinatária, e total, porque é a inteireza do seu ser, é carne e espírito. Aceitar essa oferta é condição para viver eternamente. Se é pelo dom da sua carne que é dada vida ao mundo, também é na condição carnal que o ser humano é chamado a acolher a salvação, quer dizer, nas contradições da existência terrena. Do pão enquanto palavra, passa-se ao pão enquanto carne, abrindo assim o discurso para uma perspectiva eucarística. Porém, a leitura do discurso será interrompida no próximo domingo para a solenidade da assunção de Nossa Senhora.

Acolher Jesus como pão descido do céu é aceita-lo como único mediador e revelador do Pai. Recebe-lo como alimento perene é aceitar o Evangelho como único programa de vida. A insuficiência e ineficácia do maná está ficando cada vez mais clara no discurso de Jesus, assim como o pão partilhado para a multidão no outro lado do mar. Com isso, se torna cada vez mais necessário e urgente que o único alimento, realmente duradouro e capaz de gerar vida eterna é o próprio Jesus na inteireza do seu ser.

Pe. Francisco Cornelio Freire Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

sábado, agosto 04, 2018

REFLEXÃO PARA O XVIII DOMINGO DO TEMPO COMUM – JOÃO 6,24-35 (ANO B)




Neste décimo oitavo domingo do tempo comum, continuamos a leitura do capítulo sexto do Evangelho segundo João. Embora a liturgia salte alguns versículos (cf. Jo 6,16-23), o texto proposto para hoje – João 6,24-35 – está em perfeita continuidade com aquele do domingo passado (cf. Jo 6,1-15). Após o sinal da partilha ou multiplicação dos pães, a multidão, saciada e impressionada com o sinal cumprido por Jesus, teve a tentação de querer proclamá-lo rei, o que fez com que Jesus se afastasse, pois aquela ideia era uma distorção do sinal cumprido e da sua própria missão de enviado de Deus. Uma interpretação equivocada dos sinais cumpridos por Jesus e da sua identidade de messias servidor colocava em risco a eficácia do seu projeto de redenção e vida plena para a humanidade inteira.

Enquanto Jesus se refugiou para não alimentar os anseios triunfalistas e interesseiros da multidão, essa o procurou até encontra-lo, já na outra margem do mar ou lago, na cidade de Cafarnaum, como mostra o texto: “Quando a multidão viu que Jesus não estava ali, nem os seus discípulos, subiram ás barcas e foram à procura de Jesus, em Cafarnaum” (v. 24). Embora Jesus mesmo tenha se afastado, era compreensível a ânsia da multidão querendo estar ao seu redor, uma vez que essa é a mesma multidão que padecia, abandonada como ovelha sem pastor, de quem Jesus sentiu compaixão (cf. Mc 6,34). Diante da multidão abandonada, Jesus agiu como pastor e guia, ensinando o dom da partilha como primeiro meio de superação da crise material pela qual passava. Porém, Jesus se preocupava com as reais intenções da multidão à sua procura e não queria alimentar falsas e ilusórias expectativas.

Ao encontrar Jesus, a multidão interage com ele, pela primeira vez: “Quando o encontraram no outro lado do mar, perguntaram-lhe: “Rabi, quando chegaste aqui?” (v. 25). A pergunta em si é pouco significativa e carente de profundidade, mas muito importante porque abre caminho para uma interação cada vez maior entre o Mestre – Rabi, em hebraico – e o povo. Ao dirigir essa pergunta, a multidão consegue ver Jesus como alguém acessível, o que poderia ser o início de uma nova compreensão a seu respeito. De fato, essa é a primeira vez que a multidão fala direta e abertamente com Jesus. Ao considera-lo mestre, abre-se a possibilidade para o nascimento de um novo discipulado. De fato, fazia parte da pedagogia de Jesus gerar discípulos e discípulas a partir das multidões anônimas.

À pergunta da multidão, “Jesus respondeu: ‘Em verdade, em verdade, eu vos digo: estais me procurando não porque vistes os sinais, mas porque comestes pão e ficastes satisfeitos” (v. 26). Com bastante clareza e objetividade, Jesus expõe as intenções da multidão lhe procurar. Não se tratava de reconhece-lo e aceita-lo como aquele que Deus enviou ao mundo para salvar e dar vida em abundância (cf. Jo 3,16; 10,10), mas de querer perto de si alguém que fornece pão gratuitamente. Jesus sabia que estava sendo procurado pelo que tinha feito, e não pelo que realmente era. Porém, não desperdiçou a ocasião, mas aproveitou para iniciar uma ampla e profunda catequese, recordada pelo evangelista João como essencial para a sua comunidade e para a comunidade cristã de todos os tempos.

Cercado por uma multidão saciada recentemente por poucos pães e peixes, mas já faminta de novo, Jesus a convida a buscar algo muito maior e mais eficaz: “Esforçai-vos não pelo alimento que se perde, mas pelo alimento que permanece até a vida eterna, e que o Filho do Homem vos dará. Pois este é que o Pai marcou com seu selo” (v. 27). Esse convite-imperativo se assemelha muito ao que Jesus já tinha feito à mulher samaritana que buscava água no poço de Jacó; ali, Jesus falara que a água daquele poço saciava por alguns momentos e, embora necessária, beber dela não era suficiente para o ser humano viver saciado. Por isso, ele falou de uma água que saciava para sempre (cf. Jo 4,1-42). Aqui, com a multidão, ele faz praticamente o mesmo: convida a alimentar-se com um alimento que não se perde, mas que permanece até a vida eterna. Esse alimento só pode ser dado por ele mesmo, pois é ele o Filho do Homem, marcado pelo Pai com o seu selo, o Espírito Santo e o amor que os une.

Com o sinal da partilha dos pães, Jesus tinha ensinado a multidão a superar, por si mesma, as suas dificuldades, principalmente o problema da fome. Com os pães e peixes apresentados pelo menininho, ficou a lição da partilha e solidariedade que brota dos pequenos. Aquele gesto poderia ser feito sem a presença física de Jesus, por isso, ele via como desnecessária a busca da multidão por algo que ela mesma era capaz de fazer. Daí, o convite para buscar algo mais profundo e não menos necessário: o alimento para uma vida plena, com sentido e dignidade plenos, a vida eterna, imune até mesmo à morte. O pão que nutre para a vida eterna, de fato, só pode ser dado por Jesus, porque é ele mesmo na inteireza do seu ser. Alimentar-se desse pão é assumir na concretude da vida o estilo de Jesus, fazendo escolhas semelhantes às suas, amando com um amor à sua maneira. É isso que gera eternidade de vida, pois, uma vida autêntica assim não pode ser destruída nem mesmo pela morte.

As palavras de Jesus geraram reflexão na multidão, e um desejo de aprofundamento, embora essa ainda estivesse presa à teologia retributiva da lei: “Então perguntaram: “Que devemos fazer para realizar as obras de Deus?” (v. 28). A pergunta sobre “o que fazer” é típica da mentalidade judaica, de quem foi educado para fazer e não para ser. Fazer obras para merecer algo é negar a salvação como dom de Deus. Por isso, a resposta de Jesus é categórica: “A obra de Deus é que acrediteis naquele que ele enviou” (v. 29). Embora fosse uma característica das comunidades paulinas, parece que a dicotomia entre fé e obras estava presente também na comunidade joanina. Pelo menos é isso que esse trecho revela. A resposta Jesus esclarece que não se trata de um fazer, mas de acreditar nele. É claro que aquilo que se deve fazer é importante, mas isso deve partir de uma adesão livre e consciente, e não de uma mera imposição legal. A vida cristã é marcada pelo agir, mas não porque há uma regra que determine, mas sim porque quem dá adesão a Jesus, pela fé, é motivado a agir como ele, servindo, sanando dores e feridas, sobretudo, dos mais necessitados.

Na continuidade da interação entre Jesus e a multidão, da qual surgirá a grande catequese eucarística, a qual será continuada nos próximos domingos, percebemos a curiosidade e o desejo da multidão em aderir à proposta de Jesus, e ao mesmo tempo os entraves ideológicos de uma religião conservadora, ritualista e legalista, como era o judaísmo da época. Por isso, a exigência de sinais e prodígios, e a comparação com o passado: “Eles perguntaram: “Que sinal realizas, para que possamos ver e crer em ti? Que obra fazes?  Nossos pais comeram o maná no deserto, como está na Escritura: ‘Pão do céu deu-lhes a comer” (vv. 30-31). O evangelista mostra, com isso, a sua preocupação com a comunidade que necessita ver a realização de sinais para crer. Isso é impor condições, o que faz tornar secundário aquilo que é essencial: o amor gratuito e incondicional de Deus, ou seja, a graça. Catequizados pelas narrativas portentosas do Pentateuco – a Lei/Torah – as quais exaltam exageradamente os atos de Moisés, as pessoas tinham dificuldades de assimilar e aceitar que Deus pudesse se revelar na simplicidade de Jesus. A menção à experiência do deserto e aos pais que lá comeram o pão, o maná, evidencia a denúncia que o evangelista mostra de como o apega às tradições podem bloquear a comunidade de sentir a graça e o amor vivificante e gratuito de Deus revelado em Jesus.

Jesus responde de modo categórico: “Em verdade, em verdade vos digo, não foi Moisés quem vos deu o pão que veio do céu. É meu Pai que vos dará o verdadeiro pão do céu, pois o pão de Deus é aquele que desce do céu e dá vida ao mundo” (v. 32-33). A fórmula “em verdade, em verdade” (em grego: avmh.n avmh.n – amén, amén) sempre introduz um ensinamento de fundamental importância. E a distinção entre Jesus e todos os personagens do Antigo Testamento é muito importante e indispensável para a sobrevivência da comunidade cristã. Jesus esclarece que, na verdade, até mesmo aquele pão comido no deserto pelos antepassados já era dom de Deus, e não obra de Moisés; e aproveita para apresentar a sua novidade, como o verdadeiro “pão de Deus”, o que continua despertando curiosidade e interesse na multidão que pediu: “Senhor, dá-nos sempre desse pão” (v. 34), assim como a samaritana tinha pedido a água eterna.

Jesus percebe que o caminho estava preparado para iniciar a sua grande catequese eucarística: “Eu sou o pão da vida. Quem vem a mim não terá mais fome e quem crê em mim nunca mais terá sede” (v. 35). De doador de pão que alimenta por poucas horas, Jesus se apresenta como o próprio pão que alimenta para a vida toda. Aceitar essa revelação implica criar intimidade com ele, deixar-se alimentar pela sua vontade e, consequentemente, ter toda a vida conduzida conforme o seu modo de viver. Aqui está o início do grande discurso eucarístico de Jesus no Quarto Evangelho, o qual será continuado na liturgia dos próximos domingos.

Impressiona a pedagogia de Jesus: de uma realidade material e efêmera, o pão partilhado que alimentou a multidão, ele eleva o seu auditório ao conhecimento de algo muito mais profundo, que é o dom da sua pessoa como enviado do Pai para, nele, o mundo todo ter vida em abundância. Para isso, a comunidade deve tê-lo como único centro e referência a ser seguida. Se a eucaristia dominical, e até diária, não leva a essa centralidade, não passa de uma versão nova do maná comido pelos antigos israelitas no deserto. A eucaristia alimenta para a vida eterna quando seus partícipes aderem à maneira de viver de Jesus.

Pe. Francisco Cornelio Freire Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

REFLEXÃO PARA O 4º DOMINGO DA PÁSCOA – JOÃO 10,11-18 (ANO B)

O evangelho do quarto domingo da páscoa é sempre tirado do capítulo décimo do Evangelho de João, no qual Jesus se auto apresenta como o ún...