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sábado, dezembro 21, 2024

REFLEXÃO PARA O 4º DOMINGO DO ADVENTO – LUCAS 1,39-45 (ANO C)



À medida em que o Natal do Senhor se aproxima, a preparação para a sua plena vivência, proposta pelo tempo do advento, se torna mais intensa.. Nesse sentido, é importante evidenciar os personagens humanos que Deus escolheu para intermediarem a transição entre as duas etapas da história da salvação: a antiga, baseada na Lei e na expectativa do cumprimento de tantas promessas, e a nova, fundada em Jesus, o Cristo, nascido de Maria, ápice da comunicação entre Deus e a humanidade, e cumprimento das antigas promessas de salvação. Enquanto no domingo passado a liturgia destacava a figura de João – aquele que batizava – e os efeitos de sua pregação, o evangelho de hoje – Lucas 1,39-45 – destaca o encontro e o papel de duas mulheres na história da salvação – Maria e Isabel –, evidenciando cada vez mais as preferências e opções de Deus pelo que aparenta ser mais frágil e desprezado, como era vista a mulher na época da cena narrada no evangelho. Lucas quer mostrar que, para transformar o mundo, Deus não chama os grandes e poderosos, e sim os/as humildes e pequenos(a); a escolha de Maria para ser mãe de seu Filho, não por suas qualidades, e sim pela sua pequenez e simplicidade, é a maior demonstração, e o evangelho de hoje nos ajuda a perceber isso, ao colocar duas simples mulheres frente a frente, como as primeiras a compreender e perceber o início de uma nova história e de um mundo novo.

O texto – Lucas 1,39-45 – narra o episódio tradicionalmente chamado de “visitação”. Se trata de uma passagem bastante conhecida, muito utilizada nas solenidades e festas marianas. Muitas vezes, à leitura desse texto é acrescentado o Magnificat (Lc 1,46-56), que faz parte do mesmo episódio. Hoje, especificamente, a liturgia utiliza apenas os versículos que tratam da apressada viagem de Maria e o seu encontro com Isabel (vv. 39-45), omitindo o cântico. Esse é o episódio que sucede de imediato ao anúncio do anjo; é importante perceber a relação entre as duas cenas para melhor compreender o texto de hoje. Com o anúncio do anjo, Maria ficou espantada, e com razão (Lc 1,29), afinal, aquela história  parecia absurda: como ela poderia ser mãe sem ter ainda se relacionado com o prometido esposo? À primeira vista, o anúncio do anjo representou uma tragédia para Maria, colocando em risco seu futuro matrimônio, uma vez que ela já estava comprometida com José, e a gravidez precoce poderia acabar o relacionamento. Por isso, corajosamente, ela questionou o mensageiro divino, pedindo-lhe explicação (Lc 1,34). E o próprio anjo tratou de tranquilizá-la, mostrando que tudo aquilo que estava acontecendo era iniciativa do Deus que faz coisas impossíveis, agindo contra a lógica humana. E o anjo ainda lhe deu um exemplo: Isabel, uma mulher anciã e estéril já estava no sexto mês de gravidez (Lc 1,3-37). Esse exemplo parece ter ajudado a convencer Maria de que também nela poderia acontecer algo de maravilhoso e fora dos padrões e esquemas tradicionais; por isso, respondeu ela sim ao anjo, tomando uma decisão corajosa e ousada. Com efeito, na época, a mulher não tinha poder de decisão sobre nada; sendo solteira, deveria consultar o pai ou o irmão mais velho, antes de qualquer decisão; sendo casada, consultava o marido. A decisão livre de Maria, sozinha, sem ter um homem que decidisse por ela, representa um grande passo para o protagonismo da mulher na história, que Lucas introduz em seu Evangelho. E esse protagonismo é evidenciado de maneira privilegiada no evangelho de hoje, ao colocar duas mulheres como protagonistas da cena.

O texto começa afirmando que «Naqueles dias, Maria partiu para a região montanhosa, dirigindo apressadamente, a uma cidade da Judeia» (v. 39). O indicativo temporal “naqueles dias” revela a relação e a continuidade deste episódio com o anteriores, na trama narrativa de Lucas; quer dizer que, pouco depois da anunciação do anjo, “Maria partiu”. O texto não diz quais foram os motivos da partida de Maria; muitos interpretam como a vontade de Maria colocar-se a serviço do próximo, no caso, da sua parenta Isabel; porém, o texto não evidencia nem sinaliza para isso. O destino também é vago e genérico: “a uma cidade da Judeia”, na “região montanhosa”. Partir, sair de si “apressadamente”, é a postura de quem acolhe a salvação oferecida por Deus, postura essa assumida por Maria. Dizer sim aos propósitos de Deus, como ela fez, é deixar-se transformar pela sua Palavra. Quem sente a ação de Deus em sua vida, põe-se em marcha, não permanece na mesma posição, nem com a mesma mentalidade; é isso que o evangelista quer destacar. Como a gravidez de Isabel foi colocada pelo anjo como exemplo de que nada é impossível para Deus, a viagem de Maria pode também ser interpretada como expressão da sua curiosidade e vontade de comprovar a autenticidade do anúncio. Além disso, há uma clara intenção de Lucas de colocar as duas mães juntas: a jovem e a anciã, a virgem e a estéril, reforçando que, nas contradições da história, Deus se manifesta; colocando juntas as mães, também os filhos se encontram, os protagonistas implícitos da cena.

Ao apresentar Maria em viagem, Lucas antecipa um dos temas mais fortes da sua teologia: o caminho, como figura da dinâmica do Reino e da Palavra de Deus. Desde essa visita de Maria até a chegada de Paulo prisioneiro em Roma (At 28), Lucas faz de sua dupla obra – Evangelho e Atos dos Apóstolos – um longo itinerário da Palavra. Com isso, ele mostra que, mesmo encontrando obstáculos, a Palavra não pode ficar presa em nenhuma estrutura; ela deve ecoar sempre. Maria se torna, assim, modelo antecipado do discipulado que Jesus começará a formar logo no início da sua vida pública. É também imagem do modelo da Igreja querida por Jesus e tão bem apresentada por Lucas: uma Igreja em saída, ou seja, em estado permanente de missão. O evangelista não perde tempo descrevendo a viagem, e logo diz que Maria chegou ao destino: «Entrou na casa de Zacarias e cumprimentou Isabel» (v. 40). De fato, o objetivo de Lucas é mostrar a chegada da Boa-Nova e com os seus efeitos. Zacarias, o esposo de Isabel, foi o primeiro destinatário do anúncio do anjo (Lc 1,8-23), mas não acreditou, por isso aqui é um personagem secundário. É recordado apenas como o dono da casa. O que o evangelista quer mostrar é a experiência de fé das duas mulheres sendo partilhada.  A fé transformadora vivida por cada uma delas não poderia ficar oculta, por isso Lucas coloca as duas frente a frente; e essa fé, quando partilhada, cresce e se fortalece, como mostra a sequência do texto: a companhia de Maria faz aumentar as convicções da fé de Isabel e, consequentemente, de Maria, culminando no Magnificat (Lc 1,46-56), a sua explosão de louvor a Deus.

O evangelista não revela o conteúdo da saudação de Maria, mas certamente foi o tradicional shalom hebraico, saudação típica do povo judeu, no qual se expressa a totalidade dos bens messiânicos. Como modelo de discípulo e discípula, Maria antecipa o que Jesus pedirá aos seus discípulos quando enviá-los, mais tarde: «Em qualquer casa em que entrardes, dizei primeiro: paz para esta casa» (Lc 10,5). Essa saudação não é um mero palavreado, mas é comunicação de vida, doação de amor e de energia transformadora. Por isso, o evangelista diz que «Quando Isabel ouviu a saudação de Maria, a criança pulou no seu ventre e Isabel ficou cheia do Espírito Santo» (v. 41). Mãe e filho, ambos repletos do Espírito Santo, reagem, cada um à sua maneira e conforme as suas possibilidades, à chegada do Salvador que Maria já carregava em si: o filho pulando no ventre e a mãe com palavras, tornando-se verdadeira profetisa. Com efeito, tanto Isabel quanto a criança em seu ventre reconhecem que é o Senhor quem, por meio de sua mãe, está os visitando. Isso ela mesma vai expressar com palavras, na sequência do texto, agindo como profetisa e plenamente reconhecedora das maravilhas de Deus realizadas para ela e Maria.

De fato, após a saudação de Maria, o evangelista dá a palavra a Isabel que faz grandes declarações de fé e alegria diante de tudo o que estava contemplando em sua vida, e com razão. Ora, como Zacarias tinha ficado mudo, devido à sua incredulidade diante do anúncio do anjo (Lc 1,20), Isabel já não tinha com quem dialogar sobre os últimos acontecimentos; precisava de alguém que lhe ouvisse, por isso, é só ela quem fala na cena: «Com grande grito, exclamou: “Bendita és tu entre as mulheres e bendito é o fruto do teu ventre! Logo que a tua saudação chegou aos meus ouvidos, a criança pulou de alegria em meu ventre. Como posso merecer que a mãe do meu Senhor me venha visitar? Bem-aventurada aquela que acreditou, porque será cumprido o que o Senhor lhe prometeu”» (vv. 42-45). Inspirada no Antigo Testamento, Isabel expressa a imensa alegria de ser contemplada com os favores de Deus, principalmente a misericórdia. A sua anterior condição de estéril era motivo de vergonha e humilhação; provavelmente, ninguém no povoado lhe dirigia a palavra, a não ser com insultos, e ninguém a escutava, pois, devido à esterilidade, ela era considerada amaldiçoada. O menino concebido em seu ventre provoca um verdadeiro êxodo em sua vida, transformando-a em mulher livre, com vez e voz, para expressar seus anseios e alegrias. Tudo o que ela diz de Maria e do fruto do seu ventre – Jesus – serve de lição para a humanidade inteira, em todos os tempos: não basta que aconteça a visita do Senhor, é necessário que aqueles que recebem a visita o reconheçam. E o Senhor não para de visitar o seu povo.

Lucas constrói o discurso de Isabel recorrendo ao Antigo Testamento para mostrar, sobretudo, o cumprimento das antigas promessas, e o começo da distinção entre João Batista e Jesus. A primeira declaração é também a primeira bem-aventurança do Evangelho de Lucas; as bem-aventuranças proclamadas por Jesus serão expressão do retrato ideal do seu discipulado; aqui, Maria é, antecipadamente, proclamada a discípula ideal. Ora, a missão do discípulo e discípula de Jesus consiste em torná-lo presente onde quer que o discípulo esteja. Por isso, Isabel reconhece Maria como a primeira bem-aventurada, pois ela já era portadora da salvação e do Salvador, antes mesmo do nascimento da criança. Na época, quem interpretava os sinais de Deus na história eram os sacerdotes e mestres da Lei. Aqui, Lucas apresenta uma verdadeira reviravolta na história, ao mostrar uma mulher, até pouco tempo vista como amaldiçoada, devido à esterilidade, percebendo e interpretando os sinais de Deus presentes, não mais nas estruturas faraônicas do templo, mas na simplicidade de outra humilde mulher. E, já consciente de ser a mãe do precursor, e feliz por isso, Isabel reconhece que Maria é a mãe do Senhor, reconhecendo-se até indigna de recebê-la. Ora, como estéril, Isabel era vista como esquecida por Deus; de repente, cheia do Espírito Santo, se reconhece como hospedeira do Senhor, presente ainda no ventre de sua mãe, Maria. É o começo de uma nova história. É a expressão dos(a) humildes que reconhecem reciprocamente suas forças, seus valores e seu poder de transformação quando se dispõem a viver conforme a Palavra de Deus.

A expressão de Isabel, sentindo-se indigna de receber a mãe do seu Senhor recorda a declaração de Davi, quando estava para receber a arca da aliança em sua casa: «Como virá a Arca de Iahweh para minha casa?» (2 Sm 6,9). Com isso, Lucas declara Maria como a nova arca da aliança, mas muito superior à antiga. Na antiga arca, estava a Lei escrita em tábuas de pedra, enquanto em Maria estava o próprio autor da Lei, não mais escrita em pedras, mas no coração, cujo efeito sobre o povo já não é o medo, mas a irradiação do amor e da misericórdia de Deus. E Isabel identifica o motivo da bem-aventurança de Maria, enquanto nova arca da aliança, e o que a habilita como modelo de discípula: a fé, pois é «Bem-aventurada aquela que acreditou»Essa declaração é muito importante! Talvez a mais relevante de todo o texto! O que Isabel identifica como excepcional em Maria não é a virgindade ou a prática de “bons costumes”, mas a fé. De fato, o texto bíblico, sobretudo o Evangelho de Lucas, aquele que mais fala sobre Maria, não apresenta um currículo da sua vida como atrativo para o chamado de Deus; apenas a descreve como alguém que foi agraciada por Deus e, diante disso, respondeu sim, deu uma adesão de fé. E, como mostra a Bíblia, Deus costuma escolher o que é historicamente rejeitado, excluído, humilhado, sem o mínimo poder de atração do ponto de vista humano. De fato, o que conta para Deus é a abertura ao seu projeto libertador. Maria abraçou esse projeto, por isso foi proclamada bem-aventurada. Bem-aventurança é a característica distintiva das pessoas preferidas de Deus, como o próprio Jesus irá proclamar: pobres, famintos, humildes e perseguidos (Lc 5,20-23). Maria é síntese de tudo isso. Por isso, é síntese e modelo da discípula e do discípulo ideal. 

Quem adere ao projeto libertador de Deus carrega em si Jesus, por onde passa faz ele nascer. Que este tempo do advento recorde à Igreja que esta é a sua missão originária. Fazer Jesus nascer em cada coração é missão da Igreja e caminho de humanização para o mundo. Acolhendo o Deus que se faz humano, o humano se humaniza, verdadeiramente. E, quanto mais humano for o ser humano, mais parecido com Deus ele se torna.

Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

sábado, dezembro 23, 2023

REFLEXÃO PARA O 4º DOMINGO DO ADVENTO – LUCAS 1,26-38 (ANO B)




A liturgia do quarto e último domingo do advento constitui o ápice da preparação para o Natal do Senhor. Por isso, todos os anos, neste domingo, se lê um trecho de um dos chamados “evangelhos da infância” (Mt 1–2; Lc 1–2), o que varia conforme o ciclo litúrgico vigente. Assim como nos dois últimos domingos – segundo e terceiro – fomos ajudados pelo testemunho de João Batista, hoje é a figura de Maria que nos é apresentada como testemunha exemplar de acolhida aos desígnios de Deus em sua vida e, portanto, como a personagem humana que melhor nos apresenta Jesus Cristo, o seu filho e salvador do mundo. Por isso, a liturgia deste dia recorre ao Evangelho de Lucas e nos oferece o texto da anunciação: Lc 1,26-38, uma vez que o evangelho predominante no ano litúrgico corrente – Marcos – não faz qualquer menção a este acontecimento. Esta última etapa litúrgica de preparação para o Natal tem a função de nos introduzir diretamente no mistério da encarnação, mostrando como Deus intervém na história, vindo ao encontro da humanidade de maneira extraordinária e, ao mesmo tempo, tão simples. A Palavra de Deus irrompe no cotidiano interagindo surpreendentemente com o ser humano através do diálogo, propondo ao invés de impor, escolhendo os pequenos e marginalizados ao invés dos poderosos e ricos, fazendo morada na periferia ao invés dos grandes centros. Essas pequenas observações constituem uma breve introdução e síntese do evangelho de hoje, objeto da nossa reflexão, como veremos a seguir.

Antes de tudo, convém recordar sempre que os evangelhos não são livros de crônicas, e sim relatos catequéticos e teológicos, pensados inicialmente para comunidades concretas com características e problemas bem específicos. Somente dois evangelistas sentiram necessidade de falar do nascimento e da infância de Jesus, a saber, Mateus e Lucas, e cada um o fez segundo uma perspectiva própria, considerando suas intenções teológicas específicas e as necessidades de suas respectivas comunidades, destinatárias primeiras de cada relato. Aliás, esse princípio vale para os inteiros evangelhos. No caso do “evangelho da infância” de Lucas, do qual é tirado o texto de hoje, ele escolheu a perspectiva da mulher na construção do seu relato, antecipando as linhas teológicas de toda a sua obra, com uma clara opção de Jesus pelos mais pobres e excluídos, destinatários primeiros do anúncio do Reino de Deus. No “evangelho da infância” de Lucas (Lc 1–2), portanto, vemos uma introdução e síntese de tudo o que ele desenvolve nos vinte e dois capítulos restantes. Desse modo, podemos dizer que as características que marcam o anúncio e o nascimento de Jesus são as mesmas que vão marcar o seu ministério: misericórdia, justiça, inclusão, valorização da mulher e de todas as categorias de pessoas marginalizadas da sociedade e da maioria das religiões institucionalizadas, o amor acima de qualquer preceito, enfim, todos os elementos indispensáveis à construção de um mundo novo, justo, fraterno e humanizado. Acrescenta-se a isso a força criativa e fecunda do Espírito Santo, tão marcante no “evangelho da infância”, como será no caminho da Igreja, e o mesmo Lucas demonstra tão bem no segundo volume da sua obra, o livro dos Atos dos Apóstolos.

Ainda a nível de contexto, é importante recordar que a anunciação do nascimento de Jesus pelo anjo Gabriel a Maria não é um episódio isolado no “evangelho da infância” lucano, mas é precedido pelo anúncio do nascimento de João a Zacarias (Lc 1,5-25). Ambos seguem um modelo bíblico consolidado de anúncios de nascimentos extraordinários, com a intervenção direta de Deus: de Isaac (Gn 17–18), de Sansão (Jz 13), de Samuel (1Sm 1). Porém, é com o anúncio do nascimento de João que o de Jesus mais se relaciona. O narrador conta as duas histórias em paralelo, com um esquema comum, mas com muitas diferenças internas, para ajudar a comunidade leitora a perceber a novidade de Jesus e, consequentemente, a sua superioridade no contexto narrativo da obra e na história da salvação. Inclusive, para compreender melhor o anúncio a Maria, é necessário recordar alguns elementos do anúncio a Zacarias, como: o ambiente urbano e solene do templo de Jerusalém, um sacerdote como destinatário, a idade avançada dos personagens (Zacarias e Isabel), a incredulidade. Esses elementos são importantes para as intenções teológicas de Lucas, o qual convida o ouvinte/leitor a perceber que no anúncio a Maria acontece praticamente o contrário, apesar do esquema comum, como sinal de que, em Jesus, começa uma nova história, escrita a partir dos pequenos, com uma verdadeira revolução de valores e relações.

Feitas as devidas considerações contextuais, olhemos então para o texto, começando do primeiro versículo. De início, fazemos uma observação crítica a respeito da tradução do lecionário, que substituiu o indicativo temporal «No sexto mês» pela genérica e vaga fórmula de introdução «Naquele tempo». Essa observação é importante porque recorda a relação do que está para ser narrado com o episódio anterior. Portanto, assim é o primeiro versículo: «No sexto mês, o anjo Gabriel foi enviado por Deus a uma cidade da Galiléia, chamada Nazaré» (v. 26). Ora, o sexto mês tem como referência o anúncio feito a Zacarias, no templo de Jerusalém; seis meses depois, o anjo Gabriel foi enviado a Nazaré para fazer um novo anúncio e teve uma acolhida diferente. Aqui começa a novidade. Ora, a Galiléia era uma terra desprezada pelo judaísmo da época, considerada semipagã. Embora fossem judeus de origem, seus habitantes eram vistos com desconfiança pelas autoridades religiosas e políticas de Jerusalém. Do ponto de vista religioso, os galileus eram considerados hereges, pouco observantes da Lei; do ponto de vista político, eram vistos como subversivos, rebeldes, agitadores. Essa era a fama da região. Mas a fama de Nazaré, uma pequena aldeia, na qual viviam aproximadamente duzentas pessoas, parece que era ainda pior do que a da região. Esse lugar não é citado sequer uma vez em todo o Antigo Testamento. O Evangelho de João mostra o quanto Nazaré era menosprezada, como se percebe pelo questionamento preconceituoso de Natanael, ao saber de onde tinha saído Jesus: «De Nazaré pode sair algo bom?» (Jo 1,46). É, portanto, para onde a religião só dispensava desprezo e discriminação que Deus envia o seu mensageiro para dar uma Boa Notícia. E lá a novidade de Deus será acolhida, ao contrário do que aconteceu no templo, onde Zacarias duvidou do anúncio do anjo.

Além do lugar desprezível como cenário do anúncio, Deus surpreende também na escolha da destinatária da sua mensagem: «a uma virgem, prometida em casamento, a um homem chamado José. Ele era descendente de Davi, e o nome da virgem era Maria» (vv. 27). Embora a tradição cristã tenha transformado a virgindade em virtude, para a mentalidade semita a mulher virgem tinha uma conotação bastante negativa. Na verdade, ser virgem significava não ter capacidade de atrair os desejos e olhares de um homem, e numa cultura extremamente machista, de completo desprezo pela mulher, isso era lamentável, sendo considerado sinônimo de humilhação e até de castigo de Deus. No caso de Maria, ainda bem que já estava «prometida em casamento», e isso significa que já estava oficialmente casado. É importante recordar como se dava o casamento judaico, para compreender essa expressão e a situação de Maria. Ora, o casamento acontecia em duas fases: a primeira, chamada de “etapa da promessa”, durava cerca de um ano; nessa fase, os noivos já considerados casados, mas ainda não mantinham relações sexuais; a noiva continuava morando na casa de seus pais, que já tinham recebido o pagamento do noivo. Na verdade, o casamento era um negócio; quem acertava tudo era o pai da noiva com o noivo. Um ano após a “promessa”, acontecia a celebração das bodas, dando início à segunda fase; após cerca de uma semana de festa, os cônjuges passavam a viver juntos. O casamento era consumado na primeira noite das bodas, por isso a noiva permanecia virgem durante toda a fase da promessa. A etapa da promessa começava quando a mulher tinha entre doze e doze anos e meio, enquanto o noivo tinha entre dezoito e vinte e quatro anos. Os dados referentes ao esposo de Maria, José, são importantes para o evangelista afirmar as raízes messiânicas da criança que vai nascer: o homem que irá assumir sua paternidade é um descendente de Davi, por isso, tem tudo para ser acolhido como o Messias esperado, o que não acontecerá devido à incredulidade e fechamento de Israel.

Os dois primeiros versículos funcionam como introdução e ambientação da cena (vv. 26-27). Do versículo 28 em diante, o texto ganha vida, se transforma cena propriamente e se desenvolve em forma de um surpreendente diálogo entre o enviado de Deus e Maria. E se torna surpreendente porque cada fala dos personagens revela uma novidade de Deus. É importante perceber que, no diálogo, será evidenciada a identidade de Jesus, o que demonstra que o enfoque do evangelista é cristológico, e não mariológico, como às vezes se pensa. Eis a sequência: «O anjo entrou onde ela estava e disse: ‘Alegra-te cheia de graça, o Senhor está contigo!’» (v. 28). Ao dizer que o anjo entrou, o evangelista dá a entender que o anúncio aconteceu dentro de casa, contrapondo-o ao anúncio solene a Zacarias no templo de Jerusalém. Esse dado é extremamente importante, pois recorda que a vida cotidiana é lugar da revelação e manifestação de Deus. Através de seu mensageiro, ele rompe todas as barreiras de classe e cultura, dialogando com uma mulher jovem na casa de uma aldeia sem importância. Com isso, o evangelista já traça as primeiras linhas do modelo ideal de comunidade-igreja: a casa, como ambiente familiar onde todos se conhecem e se entendem. A casa é, portanto, o espaço do diálogo, das relações fraternas e sinceras, como deve ser a comunidade cristã. O imperativo “alegra-te” (em grego: χαῖρε – kaire) que abre o diálogo sinaliza para um novo tempo; é um convite a uma grande alegria, pois coisas boas estão para acontecer, uma nova história está surgindo. É também uma demonstração de que Deus não se deixa condicionar pelos esquemas da religião e da cultura, substituindo a tradicional fórmula de saudação hebraica “shalom”. Por isso, “alegra-te” não significa apenas uma saudação, mas um convite para participar de uma nova história.

A sequência da saudação também é muito importante, e muitas vezes distorcida: «cheia de graça, o Senhor está contigo»Algumas práticas devocionais mais exageradas tendem a supervalorizar os méritos de Maria, afirmando que Deus a premiou por isso, escolhendo-a para mãe de seu Filho; essa concepção distorce a gratuidade do amor e da benevolência de Deus que, historicamente, se dirige com predileção aos pequenos e fracos, que não têm capacidade de retribuir os dons recebidos. Logo, a saudação do anjo não é um atestado das virtudes de Maria, mas o anúncio de uma promessa maravilhosa. Inclusive, uma tradução mais justa seria: «O Senhor está contigo, te enchendo de dons gratuitamente». O anjo está garantindo que Deus não vai abandoná-la na missão que está lhe confiando, que lhe trará muitos riscos. A escolha de Maria, portanto, é uma demonstração da gratuidade do amor de Deus e sua predileção pelos pequenos e marginalizados, e não um prêmio por suas virtudes, que são indiscutíveis, mas não a causa da escolha de Deus. Inclusive, no Magnificat ela mesma reconhecerá que foi a sua pequenez que atraiu o olhar benévolo de Deus (Lc 1,48), e não os seus méritos. Como é normal nos grandes anúncios bíblicos, recebendo uma visita tão inesperada como a de um mensageiro divino, e recebendo uma notícia tão desconcertante, a reação inicial de Maria não poderia ser diferente, como diz o evangelista: «Maria ficou perturbada com essas palavras e começou a pensar qual seria o significado da saudação» (v. 29). O embaraço criado é consequência da novidade que estava acontecendo. Tanto o interlocutor de Maria quanto a mensagem que ele trazia eram inesperados. Num lugar simples como Nazaré, as coisas nunca mudavam, tudo permanecia do mesmo jeito. Por isso, Maria não poderia imaginar uma visita tão diferente. Mas, diante da novidade e ainda embaraçada, Maria começou a pensar, refletindo e questionando sobre o significado de tudo aquilo, o que mostra a qualidade da sua fé.

O embaraço de Maria diante da novidade de Deus provou até medo, o que também é compreensível, tamanha a grandeza do acontecimento. Daí, o encorajamento do próprio Deus, por meio de seu mensageiro: «Não tenhas medo, Maria, porque encontraste graça diante de Deus» (v. 30). Aqui, é a primeira vez que ela é chamada pelo nome pelo próprio mensageiro divino. No início do texto ela foi chamada assim pelo narrador (v. 27). Ser chamada pelo nome pelo mensageiro de Deus é sinal de muita predileção. É sinal da grandeza da missão para a qual ela está sendo chamada. Na Bíblia, o nome de uma pessoa indica sua identidade e sua missão. Quando Deus chama pelo nome, quer dizer que ele escolheu criteriosamente e, portanto, vai ficar sempre do lado daquela pessoa. A graça de Deus em sua vida é um dom gratuito e permanente, o que garante o êxito na missão. Não é resultado de um esforço humano, mas fruto do amor livre e gratuito de Deus. Por isso, tendo-a encorajado após o natural turbamento, o mensageiro de Deus explica os acontecimentos e diz qual será o papel de Maria na nova história que está sendo inaugurada: «Eis que conceberás e darás à luz um filho, a quem porás o nome de Jesus. Ele será grande, será chamado Filho do Altíssimo, e o Senhor Deus lhe dará o trono de seu pai Davi. Ele reinará para sempre sobre os descendentes de Jacó, e o seu reino não terá fim» (vv. 31-33). A missão de Maria é de uma mulher autônoma, emancipada: conceber, dar à luz, pôr o nome. Pela tradição, quem dava o nome à criança era o pai, principalmente se o filho fosse varão. No entanto, com limiar de um novo tempo, a história toma um novo rumo com o protagonismo da mulher. É o começo de uma história a partir dos pequenos.

Simultâneo à explicação da missão de Maria, também vem explicada a missão e a identidade do filho, que é o centro do relato, começando pelo nome Jesus, o qual significa «Deus salva»; de fato, aqui está o sentido de todos estes acontecimentos. A ação salvífica de Deus, até então bloqueada pela religião do templo, de agora em diante se estenderá a todas as gerações e a todos os lugares. Sendo «Filho do Altíssimo»ninguém terá poder sobre Ele, como a religião tinha sobre a interpretação da Lei. Esse Filho ocupará de uma vez por todas o trono de Davi; não terá sucessores, como acontecera no passado, inaugurando um reino novo, na certeza de que esse não cairá nas mesmas contradições que ocorreram no antigo reino de Israel. Assim, cumprem-se as promessas do Antigo Testamento, mas não conforme as expectativas. «Deus salva» a partir dos pequenos e das margens; será essa a principal característica do Reino que está prestes a ser inaugurado. A interação de Maria com o anjo revela uma nova concepção de Deus. O Deus soberano e distante é coisa do passado. O Deus do diálogo entra em cena: vindo ao encontro da humanidade, escolhendo o lado mais fraco da história, permite ser questionado por uma jovem mulher. Assim, Maria antecipa um jeito novo de relacionar-se com Deus, quebrando protocolos, abandonando rituais, interagindo diretamente: «Como acontecerá isso, se eu não conheço homem algum?» (v. 34). Ela compreende que é possível dialogar com Deus e até questioná-lo, afinal, Ele quis ser um de nós! Mais do que percepção e cognição, o verbo conhecer (em grego: γινώσκω – guinôsko) na tradição bíblica significa intimidade, e até mesmo relação sexual; é nesse sentido que Lucas o emprega aqui. De fato, embora já fossem considerados marido e mulher, na primeira etapa do casamento não era permitido ter relação sexual. Na pergunta de Maria, Lucas antecipa o modelo ideal de discipulado: crente, confiante, perspicaz e questionador. A fé autêntica não está imune a questionamentos, pelo contrário. Com a crescente mercantilização do sagrado, o exemplo questionador de Maria se torna cada vez mais necessário no discipulado de Jesus; isso vale para todos os tempos. O questionamento de Maria, portanto, é fruto de uma fé madura e ativa.

À nova humanidade questionadora, prefigurada por Maria, Deus não responde com castigo, como muitos ainda hoje insistem. A resposta de Deus, através do anjo, é de quem acredita no ser humano e tem paciência com ele: «O Espírito virá sobre ti, e o poder do Altíssimo te cobrirá com sua sombra. Por isso, o menino que vai nascer será chamado Santo, Filho de Deus» (v. 35). Além da capacidade de Deus agir de modo completamente novo, extraordinário e surpreendente, a concepção divina de Jesus, dispensando a intervenção masculina, marca também um rompimento com a tradição familiar patriarcal. A figura masculina deixa de ser o centro da família e da sociedade, preconizando um mundo novo marcado pela igualdade nas relações. Com a promessa da vinda do Espírito sobre Maria, Lucas introduz um dos temas mais importantes da sua teologia, mostrando que é o Espírito Santo quem anima e conduz a vida da comunidade cristã, o que ficará mais claro no segundo volume da sua obra, o livro dos Atos dos Apóstolos. Ainda em resposta ao questionamento de Maria, o mensageiro de Deus cita, como sinal, o exemplo de Isabel, uma anciã considerada estéril, porém fecundada graças à intervenção divina (v. 36). Os dois casos, uma anciã estéril e uma jovem virgem grávidas, ressaltam a grandeza e a bondade de Deus; mostram que para Ele nada é impossível (v. 37). Como é a partir das dúvidas que a fé se torna sólida, Maria chega à conclusão da veracidade do anúncio e se prontifica a colaborar decisivamente com o projeto de Deus para a construção de um mundo novo e de uma humanidade renovada: «Eis aqui a serva do Senhor» (v. 37a). Mais do que uma prova de humildade, a resposta de Maria é uma profissão de fé, amor e confiança. Com a expressão «a serva do Senhor», Maria não dá uma simples declaração de humildade, mas se apresenta como colaboradora de Deus. Ora, no Antigo Testamento, “servo do Senhor” era um título de honra, aplicado apenas a figuras masculinas, tanto individuais quanto corporativas. O servo é aquele que participa da obra. Aplicando a si, Maria diz que também as mulheres podem ser colaboradoras de Deus e de seu plano salvífico.

O consentimento livre e espontâneo, depois de um diálogo franco e sincero, demonstra a autonomia e a confiança de Maria: «faça-se em mim segundo a tua palavra» (v. 37b). Naquelas circunstâncias históricas, a mulher não tinha nenhum poder de decisão; só o pai ou o marido poderiam decidir por ela. Inclusive, a etapa da promessa, na qual Maria se encontrava, era a fase de maior submissão da mulher, pois ela estava submissa simultaneamente a dois homens: ao pai e ao futuro marido. Antes dessa etapa, era submissa apenas ao pai, e depois das bodas passa a ser submissa apenas ao marido. Ao ser consultada e responder sozinha, sem pedir permissão a nenhum homem, Maria rompe completamente com os condicionamentos culturais da época, tirando a mulher da humilhante situação de submissão. O seu sim é um ato de fé, de confiança em Deus, mas também de coragem e subversão. Assim, ela afirma a dignidade da mulher, e reivindica o primado da Palavra na vida da Igreja, da qual ela é modelo. Abrindo-se com disponibilidade para o cumprimento da palavra, ela se torna exemplo de discípula, sendo a primeira a compreender o programa de Jesus, cujas relações são definidas mais pela escuta da Palavra do que pelos laços sanguíneos (Lc 8,19-21).

Neste contexto de preparação para a acolhida do Senhor, é indispensável olhar para o exemplo de Maria. Com seu testemunho de fé no Senhor, com o espírito questionador, com sua autonomia e coragem, ela se torna modelo e exemplo para o discipulado de todos os tempos. Tudo isso porque deixou a Palavra “fazer-se” em sua vida. E para sentir os sinais da sua vinda/presença, o Senhor nos convida, através do exemplo de Maria, a olhar para as margens, ouvir os silenciados de sempre e, assim, construir uma nova história. Isso é fazer acontecer conforme a Palavra.

Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

sábado, dezembro 17, 2022

REFLEXÃO PARA O 4º DOMINGO DO ADVENTO – MATEUS 1,18-24 (ANO A)

 


O quarto domingo do advento marca o ápice da preparação para o Natal do Senhor. Por isso, neste domingo, sempre se lê um trecho de um dos chamados “evangelhos da infância” (Mt 1–2; Lc 1–2). Neste ano, por ocasião do ciclo litúrgico A, o texto lido é Mt 1,18-24. Nesse sentido, a liturgia propõe um verdadeiro caminho pedagógico para expressar as dimensões teológica e espiritual próprias do advento. Ora, à medida em que o Natal se aproxima, a liturgia recorda os acontecimentos que antecedem o nascimento de Jesus, bem como os personagens escolhidos por Deus como mediadores imediatos da sua entrada definitiva na história da humanidade. Se nos dois últimos domingos – segundo e terceiro do advento – foi evidenciada a figura de João Batista, enquanto profeta precursor, neste quarto domingo são recordados José e Maria, os agentes humanos mais próximos do mistério da encarnação e, consequentemente, os destinatários primeiros do fazer-se humano de Deus.

No texto de hoje, tudo gira em torno do anúncio da inesperada gravidez de Maria, por obra do Espírito Santo, o embaraço criado em José, e a providência divina na resolução do problema criado. Ao contrário de Lucas, que evidencia mais a figura de Maria, na narrativa mateana o personagem humano que se destaca neste contexto do nascimento de Jesus é José, sendo ele o destinatário do anúncio divino. É importante recordar que, mais do que descrever fatos, o autor quer mostrar que a vinda de Jesus Cristo não é obra humana, e que, através dessa vinda, Deus faz uma séria interpelação à humanidade. De fato, à humanidade, representada no texto por José, é lançada uma proposta de vida e libertação, tendo ela a liberdade de acolher ou não.

O texto inicia com um enunciado bastante rico de informações: “A origem de Jesus Cristo foi assim: Maria, sua mãe, estava prometida em casamento a um homem chamado José, e, antes de viverem juntos, ela ficou grávida pela ação do Espírito Santo” (v. 18). Tudo o que será desenvolvido nos versículos seguintes é esmiuçamento desse primeiro enunciado. Além das informações explícitas no texto, também as entrelinhas são importantes, como veremos ao longo da reflexão. O primeiro passo importante para compreender melhor a “origem” de Jesus Cristo é recordar a “genealogia” apresentada nos versículos anteriores (Mt 1,1-16), na qual prevalece a fórmula “X gerou Y”, com o uso predominante do verbo gerar (em grego: γεννάω – ghennáo) aplicado a grandes personagens da história de Israel, começando por Abraão, e terminando com o desconhecido Jacó, o pai de José. Para falar do nascimento de Jesus, o evangelista abandona a fórmula “X gerou Y”, e apenas diz que ele nasceu de Maria, esposa de José. Com isso, ele quer mostrar que, mesmo inserido na história do povo eleito, Jesus provoca rupturas com os esquemas tradicionais desde a sua concepção. Nenhuma tradição religiosa ou estrutura familiar e social conseguem controlar a pessoa de Jesus e sua mensagem libertadora.

O primeiro versículo do evangelho de hoje já constitui um grande elemento de ruptura: a origem de Jesus é, ao mesmo tempo, a origem de uma nova humanidade, uma nova criação e, portanto, de novas relações. No entanto, é importante recordar que nos referimos a ruptura enquanto quebra de paradigmas. Ao afirmar que Jesus não foi gerado por José, o evangelista está dizendo que Ele não está atrelado a nenhuma estrutura familiar, é independente, ou seja, ninguém terá domínio sobre Ele. Com isso, quebram-se os paradigmas da sociedade patriarcal fundada no clã e no domínio do masculino. Aqui, apesar de não ser mencionado, o Reino dos Céus, nome dado por Mateus ao que os outros sinóticos chamam de Reino de Deus, o que mais tarde será o objeto da pregação de Jesus, começa a ser delineado como uma sociedade alternativa, em contraposição às antigas instituições, principalmente a instituição familiar patriarcal.

O outro passo necessário é a compreensão do contexto, recordando a estrutura do casamento judaico no tempo de Jesus, como recurso para entender o significado da expressão “Maria estava prometida em casamento a José” (v. 18b). Ora, isso quer dizer que, para efeitos legais, eles já estavam casados. O casamento se realizava em duas etapas: a primeira, a da promessa, consistia no compromisso firmado entre os noivos e suas respectivas famílias, inclusive com assinatura de contrato, não podendo mais ser dissolvido, a não ser por motivo grave. Essa etapa durava aproximadamente um ano, sendo que os noivos continuavam morando com os pais e ainda não podiam ter relações sexuais. Como casava-se muito cedo, geralmente as mulheres tinham entre 12 e 13 anos nessa etapa, e os homens entre 18 e 24. Esse costume dos homens casarem mais velhos era a principal causa para a existência de muitas viúvas em Israel, passando a ser sinônimo de vulnerabilidade social, necessitando de proteção especial na Lei e, posteriormente, na comunidade cristã (cf. At 6,1-7). Foi, então, durante a fase da promessa que Maria quando ficou grávida. Embora ainda não vivessem juntos, já estavam literalmente casados. A segunda etapa do casamento iniciava-se quando os esposos passavam a viver juntos. Essa etapa era marcada por uma grande festa, que poderia durar até uma semana, a depender das condições econômicas dos noivos, sendo que na primeira noite da festa já havia a consumação, ou seja, a relação sexual.

A grande surpresa do texto é a afirmação de que “antes de viverem juntos, ela ficou grávida pela ação do Espírito Santo” (v. 18c). Trata-se de um fenômeno extraordinário e inexplicável, como, de fato, são os planos de Deus. A originalidade de Jesus começa exatamente aqui: gerado pelo Espírito Santo, sem a participação da figura masculina, marcando, assim, uma ruptura total com a sociedade patriarcal. Isso será determinante para a independência e liberdade do seu ministério, como será demonstrado ao longo do Evangelho. Inclusive, ele mesmo vai confirmar, já no ápice da vida pública, ao declarar aos seus discípulos: “Na terra, não chamem a ninguém de Pai, pois um só é o Pai de vocês, aquele que está no céu” (Mt 23,9). Ora, a figura do pai na família patriarcal, como expressão de autoridade máxima, era um impedimento à construção de uma comunidade igualitária. Por isso, Jesus faz de tudo para tirar essa figura do horizonte da comunidade de seus discípulos e discípulas. Assim, mais do que a contemplar um nascimento prodigioso, o evangelista nos convida a aderir às novas relações inauguradas com esse nascimento. É o surgimento de um mundo novo e um novo tempo.

A sequência do texto, como desenvolvimento do primeiro versículo (v. 18), apresenta o esposo de Maria com boas credenciais: “José, seu marido, era justo e, não querendo denunciá-la, resolveu abandonar Maria, em segredo” (v. 19). Uma informação que o texto não traz de modo explícito, mas implicitamente devemos imaginar, é a forma como José tomou conhecimento da gravidez de Maria. É necessário percebermos o vácuo entre o versículo 18 e o 19 para imaginarmos essa cena: o texto diz que ela ficou grávida do Espírito Santo (v. 18) e, em seguida, que José, como homem justo, não quis denunciá-la (v. 19), mas não diz como ele ficou sabendo. É muito provável que Maria mesma tenha lhe contado. Aqui, recordemos que o anjo do Senhor só entra em cena quando José pensa em abandoná-la. O plano de abandoná-la prova que a explicação de Maria não fora convincente. Reconstruir essas entrelinhas do texto é essencial para colher e acolher melhor a mensagem.

Diz o texto que, como “José, seu marido era justo e, não querendo denunciá-la, resolveu abandonar Maria em segredo” (v. 19). Aqui, ao afirmar que José era esposo, mais uma vez se confirma a informação de que os dois já eram casados, de fato, embora ainda na primeira etapa do casamento. Mas, o centro do versículo é o adjetivo atribuído a José: justo (em grego: δίκαιος – dikaios), o que confirma, ainda mais, a revolução e inversão de valores apresentada por Mateus. Ora, o que caracterizava um judeu como “justo” era a observância minuciosa e exata da Lei, e aqui, José é considerado justo por recusar-se a aplicar a lei que recomendava o apedrejamento para a mulher que engravidasse de outro na primeira etapa do casamento, a fase da promessa (cf. Dt 22,23-27). O plano de abandonar Maria em segredo mostra que José já tinha compreendido o sentido verdadeiro da Lei, da qual Jesus será constituído o intérprete oficial, credenciado por Deus, o verdadeiro Pai (cf. Mt 5,17-48), ao trocar o mero preceito pela misericórdia. De fato, abandonar Maria em segredo quer dizer que ele se recusou a expô-la publicamente, rompeu com a sinagoga ao não buscar testemunhas entre os anciãos da sua cidade para testemunharem o divórcio e o consequente apedrejamento, como era o costume. Certamente, uma grande crise envolveu José, levando-o a muitas reflexões e discernimento.

Como Deus tinha agido em Maria, também agiu nele: “Enquanto José pensava nisso, eis que o anjo do Senhor apareceu-lhe, em sonho, e lhe disse: ‘José, Filho de Davi, não tenhas medo de receber Maria como tua esposa, porque ela concebeu pela ação do Espírito Santo” (v. 20). Certamente, ele não tinha acreditado plenamente na explicação de Maria, ficando na dúvida e amadurecendo a ideia de abandoná-la. Algo de extraordinário se apresenta, introduzido pela expressão “eis que”. Sempre que essa fórmula de introdução “eis que” (em grego: δο – idú) aparece no Novo Testamento, é sinal de que a informação que lhe segue é uma novidade e tem grande importância; é sempre algo surpreendente; inclusive, no idioma original do Evangelho, o grego, se trata de uma interjeição com função demonstrativa, cuja tradução literal seria “vê!”. De fato, é muito importante a intervenção de Deus através do anjo, seu mensageiro, personagem relevante para a mentalidade judaica, considerando a distância entre Deus e os seres homens e, portanto, muito propícia para a existência de um ser intermediário. Assim, a expressão “anjo do Senhor” significa o próprio Deus; os autores bíblicos a empregam para diminuir o impacto de uma intervenção direta de Deus na vida do ser humano.

As palavras do anjo são encorajadoras e convidam José a participar diretamente da nova humanidade criada por Deus, recebendo Maria como esposa, ou seja, levando o casamento à segunda etapa. Mas, ao mesmo tempo deixa claro que ele não terá nenhum domínio sobre o menino, uma vez que Maria concebeu pelo Espírito Santo. Contudo, a José, cabe um papel relevante: “Ela dará à luz um filho, e tu lhe darás o nome de Jesus, pois ele vai salvar o seu povo dos seus pecados” (v. 21). Na Bíblia, o nome significa a identidade e a própria essência da pessoa. Como o nome Jesus significa “Deus salva”, isso já indica a sua missão: salvar o seu povo de seus pecados. Essa informação é carregada de significado e, mais uma vez, expressa a novidade de Jesus. Ora, esperava-se um Messias para condenar o povo por causa dos pecados; Jesus vem salvar o povo dos seus pecados, o que significa libertar o povo das injustiças e dos erros, individuais e comunitários, inclusive do sentimento de culpa por erros do passado, o que tanto pesava sobre o povo judeu. Isso Jesus fará muito bem ao longo do seu ministério, com sua práxis libertadora.

Como é típico nos evangelhos, e mais ainda no de Mateus, o uso de textos e expressões do Antigo Testamento é imprescindível, sobretudo em momentos marcados pela dúvida e o medo. A citação do Antigo Testamento tem a função de confirmar, dar respaldo ao que está para ser dito. Por isso, o autor recorre ao profeta Isaías com o “oráculo do Emanuel” (Is 7,14) para confirmar que o fato presente tem respaldo na história da salvação: “Tudo isso aconteceu para se cumprir o que o Senhor havia dito pelo profeta: ‘Eis que a virgem conceberá e dará à luz um filho. Ele será chamado de Emanuel, que significa Deus está conosco’” (v. 23). Como se vê, o nome de Isaías não é mencionado, embora o texto citado seja dele. De fato, quando se fazia uma citação dele, não tinha necessidade de dizer o seu nome. Quando se dizia “o profeta”, os ouvintes e leitores já sabiam que se tratava de Isaías, cujo livro é o texto profético mais lido na liturgia da sinagoga e das comunidades cristãs. Mais do que cumprimento de promessa e atestado da virgindade de Maria, a citação profética quer evidenciar que é necessário buscar referências nas Sagradas Escrituras para a construção da história e a compreensão do presente e, sobretudo, para afirmar no que consiste o nascimento de Jesus: a presença definitiva de Deus Conosco, ou seja, Deus no meio da gente e como gente. Quer dizer que o divino veio definitivamente ao encontro da humanidade para habitar em seu meio. Como se sabe, nem a criança anunciada por Isaías, que provavelmente foi o rei Ezequias, e nem Jesus receberam o nome de Emanuel. Na verdade, não se trata de um nome próprio, mas de um título funcional, que expressa um traço característico de Deus: ele está próximo da humanidade, ou seja, está conosco.

Com a citação de Isaías 7,14, Mateus apresenta uma das principais chaves de leitura de sua grande obra: Deus está presente no dia-a-dia da comunidade. Por isso, o seu Evangelho pode ser chamado o “evangelho da presença”, pois do começo ao fim, essa presença é evidenciada: no início, com o anúncio do anjo (cf. 1,23), no discurso sobre a vida em comunidade, quando Jesus promete ficar junto “quando dois ou mais se reunirem em seu nome” (cf. 18,20), e no final, nas últimas palavras do Ressuscitado, quando Jesus promete estar com os discípulos para sempre, até o fim dos tempos (cf. 28,20). À comunidade, de outrora e de hoje, foi conferida a responsabilidade de manifestar essa presença com o anúncio e o testemunho, sobretudo. Após o anúncio do anjo, o evangelista diz que “José fez conforme o anjo do Senhor havia mandado e aceitou sua esposa” (v. 24). Ao invés de seguir a letra morta da Lei, José obedeceu à Palavra dinâmica de Deus, anunciada pelo anjo, antecipando o que Jesus recomendará aos seus discípulos (cf. Mt 5,17-48; 9,13). José foi o primeiro a perceber, segundo a perspectiva de Mateus, que Deus não estava mais na antiga Lei, mas está conosco, no próximo que necessita de acolhida e compreensão. Por isso, o que Maria representa no “evangelho da infância” de Lucas (cf. Lc 1–2), José representa em Mateus: modelo antecipado de discípulo que soube trocar a Lei pelo amor e a misericórdia. Enfim, ele foi o primeiro a superar os fariseus na justiça, como Jesus exigirá dos seus discípulos, mais tarde (cf. Mt 5,20)

Nas entrelinhas, Mateus diz que Deus deixou a letra, o livro, para tornar-se humano. E, no discurso escatológico (cf. Mt 25,31-46), ele vai especificar a categoria humana que Deus se fez: os pequeninos – pobres e desvalidos, famintos, nus, prisioneiros, pessoas marginalizadas em geral. Logo, a preparação para o Natal depende essencialmente da nossa capacidade de acolher e estar do lado destas pessoas que são carne viva do Emanuel.

Pe. Francisco Cornélio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

REFLEXÃO PARA O 23º DOMINGO DO TEMPO COMUM – LUCAS 14,25-33 (ANO C)

A liturgia deste vigésimo terceiro domingo do tempo comum continua a nos situar no contexto do caminho de Jesus para Jerusalém, com seus dis...