sábado, julho 27, 2019

REFLEXÃO PARA O XVII DOMINGO DO TEMPO COMUM - LUCAS 11,1-13 (ANO C)




Após a acolhida de Jesus na casa das irmãs Marta e Maria, texto lido refletido no domingo passado, o evangelista Lucas nos apresenta uma verdadeira catequese sobre a oração, ainda no contexto do longo caminho para Jerusalém. O texto evangélico que a liturgia deste décimo sétimo domingo do tempo Comum nos oferece é, exatamente, essa catequese: Lc 11,1-13. É muito importante recordar que o caminho proposto por Jesus e evidenciado por Lucas, não se resume a um movimento físico, mas é uma metáfora da própria vida e, especialmente, da vida cristã. Por isso, além do movimento, o evangelista faz questão de mostrar momentos estáveis de paradas, nas quais Jesus ensina, visita pessoas e pára para rezar.  

Convém mencionar que, além de Lucas, também Mateus apresenta a oração ensinada por Jesus aos seus discípulos, transmitida pelas tradições cristãs com o título de “Pai Nosso”. Há uma pequena diferença entre as duas versões, como são diferentes também os contextos em que cada um a apresenta. Porém, a essência é a mesma em ambas as versões. A de Lucas é um pouco mais breve, por isso, considerada pela maioria dos estudiosos, a que corresponde melhor às palavras de Jesus. Supõe-se que Mateus adaptou-a às necessidades de suas comunidades, enquanto Lucas a conservou em sua forma mais original.

Ainda a nível de contexto, convém recordar que Lucas é, por excelência, o evangelho da oração; ele faz referência a Jesus rezando/orando sete vezes, do batismo à paixão, o que corresponde exatamente à totalidade do seu ministério (cf. 3,21; 5,16; 6,12; 9,18; 9,28-29; 11,1; 22,41). Obviamente, o evangelista quer mostrar que a oração foi o grande alimento de Jesus em sua vida pública. Foi pela força da oração que Ele levou a cumprimento o projeto do Pai em sua vida. Outro dado, não menos importante, é o fato de ser Lucas aquele que mais apresenta Jesus em relação de acolhida e atenção para com os pobres, as mulheres e os pecadores; constituindo como o Evangelho da misericórdia, por excelência. Certamente, a explicação para tudo isso está no fato de Jesus rezar constantemente, e claro, a oração era determinante para o seu agir, como deve ser para cada cristão e cristã. Podemos dizer, então, que Lucas apresenta com o exemplo de Jesus, a oração conjugada às suas implicações concretas, principalmente à atenção aos mais necessitados. É comum, portanto, Lucas afirmar que “Jesus estava rezando num certo lugar” (v. 1a). 

Independente das circunstâncias, Jesus reservava sempre uma parte do seu tempo para a oração, seu colóquio com o Pai. Sabemos que o contexto em questão é o da viagem para Jerusalém. É muito interessante que “Quando terminou, um de seus discípulos pediu-lhe: Senhor, ensina-nos a rezar, como também João ensinou a seus discípulos” (v. 1b). Certamente, era bonito seu jeito de rezar. Pelas entrelinhas do texto, podemos afirmar que os discípulos estavam olhando-o, admirados. Tanto que não ousaram interrompê-lo, mas esperaram que terminasse. Impressionados, tiveram vontade de fazer o mesmo. Talvez, e muito provavelmente, estavam angustiados porque conviviam com Ele há tanto tempo e ainda não tinham aprendido muita coisa, nem mesmo a rezar como Ele. E, o discípulo tem o dever de tornar-se parecido com o mestre, portanto, deve agir como ele, inclusive no jeito de rezar.

Todo mestre ou rabino tinha um jeito próprio de conduzir o seu grupo, com seus ensinamentos e fórmulas, inclusive, de oração. Geralmente, essas orações eram síntese da espiritualidade do grupo ou movimento. Parece que Jesus tinha deixado seu grupo muito à vontade, nesse sentido, o que poderia deixar seus discípulos até inseguros, pois não tinham regras estabelecidas a cumprir. A regra de Jesus era apenas o seu jeito de viver. Diante disso, seus discípulos  usam o exemplo de João Batista, cujo movimento tinha características semelhantes ao de Jesus, até certo ponto, obviamente, entre os tantos existentes na época. Assim como outros mestres, João Batista tinha ensinado seus seguidores a rezar, embora não tenhamos conhecimento do seu conteúdo. A particularidade do jeito de Jesus exercer sua liderança era exclusivamente pelo exemplo. Por isso, não tinha preocupação de ensinar fórmulas para serem repetidas.
Do jeito pessoal de Jesus rezar nasce a curiosidade e, da curiosidade, a necessidade nos seus discípulos. Por isso, pediram que lhes ensinasse. Ao pedido dos discípulos, Jesus responde. Mas, não dá uma fórmula, como davam os rabinos do seu tempo. Pelo contrário, dá-lhes uma “anti-fórmula”, pois as primeiras palavras da sua oração sugerem exatamente uma quebra de protocolos e paradigmas. Os judeus, ao rezar, faziam longas introduções, exaltando a grandeza de Deus, antes de fazer as suas súplicas; utilizavam termos como “Altíssimo, Todo-Poderoso, Onipotente, Senhor, Santo dos Santos”; esses termos ajudam a reconhecer a grandeza de Deus, mas como alguém distante, em um grau infinitamente superior e alheio à realidade das pessoas. Jesus quer abolir essa mentalidade, e ensina seus discípulos a fazer o mesmo. Por isso, introduz a sua oração ensinando a chamar Deus de Pai, ou seja, como uma pessoa íntima e próxima de quem o invoca. Seu jeito de rezar causa impacto, sobretudo porque ele ensina na oração a chamar a Deus de Pai. Para nós, hoje, parece não ser algo impactante. Mas, para a sua época foi, de fato, algo revolucionário.

Com o imperativo “Quando rezardes, dizei: Pai, santificado seja o teu nome” (v. 2), Jesus quer dizer, antes de tudo, que o primeiro elemento necessário para uma oração autêntica é ter clareza do seu destinatário. É claro que é a Deus que deve ser direcionada toda oração. E, esse Deus é, antes de tudo, um Pai! Logo, Jesus não apenas inaugura uma nova fórmula de oração, mas propõe um novo jeito de se relacionar com Deus. Dessa maneira nova de se relacionar com Deus, emerge a certeza de que Ele está próximo de nós, como se fosse um amigo e, portanto, pode ser invocado a qualquer hora e em qualquer lugar. A “santificação do nome de Deus” (v. 2) e o “advento de seu Reino” (v. 2) estão intrinsecamente relacionados, a ponto de confundirem-se. Ora, o nome de Deus já é santificado, porque Ele é, essencialmente, santo. O pedido diz respeito ao reconhecimento dessa santidade. Reconhecer a santidade de Deus é saber que Ele é Pai, é aceitar a condição de filhos e filhas e, portanto, viver como irmãos e irmãs. Isso é permitir que o seu Reino seja instaurado entre nós. O Reino que já fora inaugurado por Jesus (cf. Lc 4,16-22), precisa ser difundido pelos discípulos até chegar a todos os lugares e épocas. A construção do Reino é, pois, a constatação se o nome de Deus está sendo santificado ou não, ou seja, se Ele está sendo reconhecido como realmente é:  um Pai.

Na sequência da oração, Jesus vai recomendando o que é necessário pedir, ou seja, quais são as reais necessidades do ser humano. O pedido pelo “pão necessário para cada dia” (v. 3), além de expressar uma necessidade concreta, a alimentação, exprime, sobretudo, a condição existencial do ser humano: ele não pode ser autossuficiente por um dia sequer, mas em tudo depende de Deus, até mesmo no que é mais básico, como o alimento de cada dia. Um elemento indispensável para que uma comunidade viva efetivamente segundo as características do Reino é a confiança e a solidariedade. Obviamente, Jesus alude ao antigo maná (cf. Ex 16) com essa petição. Há, aqui, um verdadeiro combate e denúncia à cultura do acúmulo, tema que será desenvolvido na sequência da viagem, principalmente com as parábolas do rico insensato (cf. 11,13-21) e do rico avarento com o pobre Lázaro (cf. 16,19-31).

A menção ao perdão não poderia faltar na oração que deve caracterizar a comunidade cristã. Por isso, Jesus recomenda que este pedido na sua oração: “Perdoa-nos os nossos pecados, pois nós perdoamos também a todos os nossos devedores” (v. 4). O pedido de perdão a Deus era comum nas orações dos diversos movimentos religiosos, daquela época e de todos os tempos. Realmente, é somente Deus quem pode perdoar pecados. Assim como o pedido do pão cotidiano, também esse visa conscientizar o ser humano de sua necessidade diante de Deus. A grande novidade apresentada por Jesus é a condição para buscar o perdão de Deus: “nós também perdoamos aos nossos devedores” (v. 4). Com isso, Ele ensina que o perdão de Deus deve ser mediado pelo perdão fraterno; n
ão porque a misericórdia de Deus esteja condicionada ao agir humano, mas porque a relação com Deus exige uma coerência de vida. A abertura total a Deus deve traduzir-se em uma relação nova com o próximo, tema tão caro a Lucas. Isso implica que, mais que ser perdoado, é necessário viver reconciliado. Por isso, o perdão deve ser mútuo.

A última das petições da oração de Jesus é “não nos deixes cair em tentação” (v. 4). A palavra tentação (em grego:  
πειρασμός  peirasmós), quando aplicada em relação aos discípulos, e aos cristãos em geral, significa desistir, abandonar. Assim, a comunidade é convidada a pedir ao Pai o dom da perseverança. Em outras palavras, é um pedido de coragem para levar adiante um projeto tão audacioso como o de Jesus. É necessário resistência para lutar pelo Reino, contentar-se apenas com o necessário para cada dia e perdoar aos devedores. Por isso, deve-se pedir constantemente para não abandonar essa proposta de vida tão revolucionária e desafiadora. Isso significa ainda que a nossa continuação no seguimento de Jesus não depende apenas da nossa força ou vontade, mas da graça de Deus, pois é Ele quem dá a força da perseverança.

Na mentalidade hebraica, o filho é aquele que é parecido com o pai. Portanto, chamar a Deus de Pai era bastante comprometedor, pois exigia muitas implicações concretas. Era muito mais cômodo chamá-lo de Altíssimo, Onipotente ou Santíssimo, pois estas expressões evocam a alguém distante e inacessível, aquele não está presente no cotidiano da comunidade para relacionar-se com ela. O Deus de Jesus, que é Pai, está presente. Os discípulos deveriam, assim como Jesus, viver como filhos. Diante das exigências, a tendência à desistência era muito comum. Por isso, Jesus pede que eles peçam, constantemente, a graça de não abandonarem o seu projeto.

Como explicação para o conteúdo da oração ensinada, Jesus conta duas pequenas parábolas: a do amigo inoportuno (vv. 5-8) e a do pai terreno (v. 11). Ambas têm a função didática de explicitar a proximidade do Deus-Pai e a necessidade da perseverança da comunidade na oração. Esse Deus é muito mais disponível que um amigo, e muito melhor que um pai terreno. Desse modo, Ele ressalta que a qualquer momento se pode invocar esse Deus-Pai e, pedindo o que é justo, jamais Ele deixará de atender.

Mas, qual o critério para fazer o pedido justo? É exatamente pedindo, antes de tudo, o elemento imprescindível da oração, e este só pode ser dado pelo Pai: O Espírito Santo! (v.13). A comunidade que se deixa guiar pelo Espírito Santo, saberá discernir para pedir ao Pai o que é, de fato, essencial. E, pedindo o essencial, é claro que o Pai concederá, desde que em consonância com a sua vontade.

Pe. Francisco Cornelio Freire Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

sábado, julho 20, 2019

REFLEXÃO PARA O XVI DOMINGO DO TEMPO COMUM – LUCAS 10,38-42 (ANO C)




O Evangelho deste décimo sexto domingo do tempo comum continua a nos situar no longo caminho de Jesus para Jerusalém. Como temos afirmado nos últimos domingos, o caminho que Lucas apresenta é, mais do que um percurso físico, um itinerário teológico e catequético, no qual Jesus revela sua identidade messiânica e forma o seu discipulado, ao mesmo tempo em que antecipa a natureza missionária da comunidade cristã. O texto proposto para hoje é exclusivo de Lucas (Lc 10,38-42). Trata-se do relato da visita de Jesus às irmãs Marta e Maria. Embora simples do ponto de vista narrativo, esse texto é altamente rico e revolucionário, no qual diversos paradigmas são quebrados. Como já estamos bastante familiarizados com o contexto do caminho, ao invés de contextualizar o texto, recordaremos inicialmente alguns aspectos relacionados à sua interpretação ao longo da história.

Por muito tempo, esse texto foi usado simplesmente para fundamentar a distinção entre duas formas de vida caras ao cristianismo: a vida ativa e a contemplativa, com uma clara superioridade da vida contemplativa, reservada a pessoas criteriosamente escolhidas por Deus para viver separadas do mundo, preservadas em mosteiros e conventos. Nessa linha, a personagem Marta representa a vida ativa, enquanto Maria é o ícone da vida contemplativa. Manter o texto nesta perspectiva é aprisioná-lo e deixar de perceber a sua riqueza ímpar no conjunto da obra de Lucas, o autor do Novo Testamento que mais valoriza a participação das mulheres na vida de Jesus e das comunidades cristãs. Por sinal, uma outra recomendação importante para uma compreensão adequada deste relato é mantê-lo separado da passagem do Evangelho segundo João (cf. Jo 11,1-43) em que Jesus também aparece em relação com as mesmas irmãs Marta e Maria, por ocasião da morte e reanimação de Lázaro, também irmão das duas. Há uma tendência quase automática de relacionar os dois relatos, o que prejudica a compreensão da perspectiva de Lucas que, para evidenciar a importância do encontro de Jesus com as duas mulheres, faz de conta que Lázaro não existe. É nessa linha que devemos fazer a leitura.

Olhemos, portanto, atentamente para o texto, para perceber as novidades que Lucas apresenta nele: “Jesus entrou num povoado, e certa mulher, de nome Marta, recebeu-o em sua casa” (v. 38). Naquele contexto, a mulher não tinha autonomia para receber um homem em casa. Esse era papel do homem. Enquanto o homem dava atenção ao hóspede, as mulheres da casa permaneciam na cozinha, preparando o alimento e não ousavam, sequer, saudar o hóspede. Por isso, trata-se de algo novo. A atitude de Marta foi revolucionária. Ao acolher Jesus, ela rompeu barreiras. Revolucionária também foi a atitude de Jesus: no seu tempo, não era conveniente para um homem aceitar a acolhida de mulheres. Temos logo no primeiro versículo, portanto, uma dupla transgressão: de Marta e de Jesus; ambos fizeram o que era proibido. Com isso, o evangelista ensina que homem e mulher possuem a mesma dignidade e, consequentemente, os mesmos direitos. Por onde Jesus passa, Ele quebra barreiras, rompe condicionamentos e promove libertação.

Na sequência, o evangelista introduz mais uma personagem, e com uma atitude ainda mais revolucionária que a de Marta: “Sua irmã, chamada Maria, sentou-se aos pés do Senhor, e escutava a sua palavra” (v. 39). A posição de Maria é muito importante e significativa, pois é a posição do discípulo, de acordo com o método rabínico de ensinamento. O gesto de sentar aos pés não quer dizer adoração nem devoção, como muitas interpretações afirmavam. Sentar aos pés para escutar quer dizer ser discípulo ou discípula; é aceitar o outro como mestre, como recordou Paulo em relação a Gamaliel, o seu mestre, ao defender-se dos judeus de Jerusalém: “Eu sou judeu, nascido em Tarso da Cilícia, mas criei-me nesta cidade. Fui educado aos pés de Gamaliel” (At 22,3). Portanto, Maria se torna discípula com essa atitude. Assim, também ela rompe muitas barreiras. Esse papel não era permitido às mulheres. Temos aqui, novamente, uma dupla transgressão: a de Maria, que exerce um papel inconcebível para uma mulher da sua época, e a de Jesus que, ao aceitar mulheres no seu discipulado, põe cada vez mais em xeque a sua condição de mestre. Inclusive, na época circulava o seguinte ditado: “é melhor queimar a Torá do que colocá-la nas mãos de uma mulher”. Com isso, Jesus rompe com todos os padrões de mestre da sua época. Rabino algum do seu tempo aceitava mulheres no discipulado.

Apesar de ter recebido um homem em casa, atitude revolucionária para uma mulher da sua época, Marta ainda estava condicionada, pelo menos em partes, aos padrões e normas do seu tempo, imaginando que a mulher não poderia fazer outra além dos cuidados do lar: “Marta, porém, estava ocupada com muitos afazeres. Ela aproximou-se e disse: ‘Senhor, não te importas que minha irmã me deixe sozinha, com todo o serviço? Manda que ela me venha ajudar!” (v. 40). Temos aqui a descrição de uma situação normal para uma dona de casa, principalmente tendo que preparar refeição para uma visita importante. É a imagem da dona de casa disciplinada que não perde tempo para manter a casa em ordem e servir da melhor maneira possível aos hóspedes. Por isso, ela pede que Jesus intervenha, pois, fazendo tudo sozinha, talvez, não conseguisse preparar a refeição a tempo. Embora normal para uma dona de casa, o pedido de Marta é absurdo para Jesus: tirar Maria dos seus pés seria fazê-la renunciar à condição de discípula e privá-la de um direito conquistado, um ato de emancipação feminina.

Com serenidade, Jesus responde à solicitação de Marta, sem, no entanto, atender ao seu pleito, ou seja, sem tirar Maria dos seus pés: “O Senhor, porém, lhe respondeu: “Marta, Marta! Tu te preocupas e andas agitada por muitas coisas” (v. 41). Antes de tudo, é necessário recordar que Jesus não está repreendendo Marta, como tem sido interpretado esse versículo. De fato, ver essa passagem como uma repreensão é um dos maiores equívocos das interpretações tradicionais. É inegável que Jesus vê o ativismo desenfreado, no qual Marta estava envolvida, como um empecilho à escuta da sua Palavra. Diante disso Ele não repreende, mas dá uma oportunidade, faz um convite ao discipulado. Na linguagem bíblica, a dupla invocação de um nome por Deus ou por um mensageiro seu, como aqui –  “Marta, Marta!” – é sinal de um chamado vocacional; recordemos alguns casos: “E Deus o chamou do meio da sarça, dizendo: ‘Moisés, Moisés!’ Este respondeu: ‘Eis-me aqui!” (Ex 3,4); “Veio o Senhor e chamou como das outras vezes: ‘Samuel, Samuel!’ e Samuel respondeu: “Fala, pois teu servo te escuta” (1Sm 3,10); “Saulo, Saulo, porque me persegues?” (At 9,4b). Como Maria já tinha abraçado o discipulado, o que foi demonstrado pelo gesto de sentar-se aos seus pés, Jesus chama também Marta a essa condição, ao invés de repreendê-la pelas suas preocupações. Esse chamado pode ser visto também como uma maneira de equilibrar a comunidade, pois já havia duas duplas de irmãos entre os discípulos: Simão e André, João e Tiago (cf. Lc 5,1-11; 6,14); é chegado também o momento de ter uma dupla de irmãs: Marta e Maria.

Assim como os discípulos pescadores foram chamados a deixar as redes para segui-lo, Marta é chamada a deixar certas preocupações e, assim como sua irmã, optar pela “parte boa”: “Porém, uma só coisa é necessária. Maria escolheu a melhor parte e esta não lhe será tirada” (v. 42). Embora a tradução litúrgica use a expressão “a melhor parte”, o correto é “a parte boa” (em grego: τήν άγαθήν μερίδα), pois é a única que realmente importa, e é incomparável. Essa “parte boa” é o Evangelho, o conjunto do ensinamento de Jesus e a sua própria pessoa. É escolhendo a “parte boa” que o ser humano encontra vida em plenitude e, por isso, se torna uma pessoa livre.

Ser discípulo ou discípula de Jesus é optar pela liberdade, abrir mão de todas as formas de prisão existentes. Esse chamado é aberto a todos e todas. Foi compreendido por Maria e Jesus o estende também à sua irmã. A própria Marta já tinha dado um grande passo de emancipação ao atrever-se a acolher um homem em sua casa. Faltava mais um, sentar-se aos pés do mestre para ouvi-lo. Fazendo isso, ela estaria escolhendo a “parte boa” e, logo, conquistando a liberdade plena. Esse chamado é dirigido a todas as pessoas, de todos os tempos e lugares. Com isso, Jesus declara que mulher não foi criada simplesmente para os cuidados do lar, mas para ser o que ela quiser ser, e estar onde quiser, inclusive discípula de um nazareno pobre e mal afamado, um mestre ao revés, como era Ele. 


Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

quinta-feira, julho 18, 2019

REFLEXÃO PARA O XV DOMINGO DO TEMPO COMUM - LUCAS 10,25-37 (ANO C)



A liturgia deste XV Domingo do Tempo Comum coloca-nos em contato com um dos textos mais belos e conhecidos de todo o Novo Testamento, a chamada “parábola do bom samaritano”. Trata-se de um texto próprio de Lucas, inserido na dinâmica do longo caminho empreendido por Jesus rumo a Jerusalém. É um daqueles episódios em que Jesus esbanja misericórdia, o que é muito comum no Evangelho segundo Lucas.
A parábola é usada como uma das respostas de Jesus em um interessante diálogo com um mestre da lei, assumindo a centralidade de todo o colóquio e constituindo-se como uma das principais páginas do terceiro Evangelho. É importante considerar isso: as parábolas de Jesus, sobretudo em Lucas, não surgem do nada, mas das situações concretas, a partir das interpelações dos seus interlocutores. Nesse caso específico, a parábola ilustra a resposta de Jesus a um mestre da lei que, embora fosse um grande conhecedor das Escrituras, lhe faltava a vivência do essencial, ou seja, a prática do amor ao próximo.
Diz o texto que "um mestre da lei se levantou e, para tentar Jesus, fez-lhe uma pergunta" (v 25a). Lucas apresenta aqui o mesmo verbo usado no episódio das tentações (cf. Lc 4,1-13): εκπειραζω (ekpeirazô), cujo significado é tentar, pôr alguém à prova. Esse indicativo é importante porque já confere um caráter diabólico às intenções do mestre lei, pois, tentar Jesus, pondo-o à prova é a atitude de satanás, conforme a linguagem bíblica e lucana, principalmente.
Após apresentar a intenção e a atitude do mestre da lei, tentar Jesus perguntando, temos, então, o conteúdo da pergunta: "Mestre, que devo fazer para receber em herança a vida eterna?" (v. 25b). Se trata de uma pergunta muito profunda e bem elaborada, própria de um bom conhecedor da Escritura, como, de fato ele era.
Como era próprio da cultura dos rabinos responder a uma pergunta com outra pergunta, Jesus assim o faz, e responde perguntando exatamente o que a lei dizia a propósito da observação do interlocutor. Como bom conhecedor, o mestre da lei responde prontamente com duas citações da Escritura: “Amarás o Senhor teu Deus, de todo o teu coração e com toda a tua alma, com toda a tua força e com toda a tua inteligência (cf. Dt 6,5); e ao teu próximo como a ti mesmo” (cf. Lv 19,18). Resposta própria de quem examinava a Lei dia e noite, como era próprio do seu ofício.
A continuidade do diálogo mostra a exterioridade e superficialidade daquele mestre da lei. Teoricamente, seu conhecimento era perfeito, tanto que o próprio Jesus reconheceu: “Tu respondeste corretamente. Faze isso e viverás” (v. 28). Mas, sua tentativa de justificar-se demonstrava o quanto era limitada sua vivência religiosa. Ele conhecia todas as passagens da Escritura, era um intérprete oficial e, no entanto, não sabia quem era seu próximo. E, percebendo o vazio de sentido naquela religião estéril defendida e praticada pelo mestre da lei, Jesus aproveita a oportunidade para apresentar um dos seus mais célebres ensinamentos, com a parábola do samaritano, como resposta.
Disse Jesus que “certo homem descia de Jerusalém para Jericó e caiu nas mãos de assaltantes” (v. 30a). Ora, embora a distância entre as duas cidades não fosse tão grande, apenas 27 km, grandes obstáculos componham aquele caminho. A começar pelo desnível entre as duas cidades. Enquanto Jerusalém estava a mais de 700 metros acima do nível do mar, Jericó estava a aproximadamente 300 metros sob o nível do mar. Além disso, tinha de atravessar o deserto de Judá. Era uma estrada tão perigosa, que somente se andava em grupo, considerando tanto os obstáculos da natureza quanto o perigo dos assaltantes. Logo, com esse primeiro dado Jesus não apresenta nenhuma novidade, uma vez que eram comuns os assaltos naquela estrada.
Na descrição do assalto, Jesus acrescenta detalhes, enfatizando que os assaltantes, além de espancar o homem, levaram tudo e o deixaram “quase morto” (v. 30b). Claro que há, nisso tudo, uma clara intenção teológico-literária de Lucas visando supervalorizar a atitude do samaritano e contrapô-la à indiferença do sacerdote e do levita. Por isso, na continuidade, Ele diz: “Por acaso, um sacerdote estava descendo por aquele caminho” (v. 31a), ou seja, estava voltando de Jerusalém após uma semana inteira de serviço no templo, conforme a distribuição das classes sacerdotais durante o ano litúrgico judaico. Portanto, estava em seu grau máximo de pureza. Por isso, “quando viu o homem, seguiu adiante pelo outro lado” (v. 30b), exatamente porque o contato com um homem quase morto o tornaria impuro também, conforme determinava a lei. A lei estava acima da vida para a religião judaica do tempo de Jesus. O sacerdote cumpre rigorosamente a lei, assim como o mestre interlocutor de Jesus tinha dificuldade em reconhecer quem é o seu próximo porque vivia uma religiosidade meramente ritualista e vazia de amor.
A mesma indiferença do sacerdote é repetida por um levita, que era uma espécie de “sacristão”, o auxiliar dos sacerdotes no serviço litúrgico do templo: “chegou ao lugar, viu o homem e seguiu pelo outro lado” (v. 32). Como bom sacristão, o levita não poderia ter outro exemplo a seguir senão o do sacerdote, por isso, imita seus gestos, inclusive a indiferença diante do sofrimento do outro. Como voltava do serviço litúrgico, também não queria contaminar-se com um quase morto, certamente ensanguentado do espancamento.
A verdadeira afronta de Jesus ao mestre da lei vem colocada a partir do versículo 33, quando ele diz na parábola que “um samaritano que estava viajando, chegou perto dele, viu e sentiu compaixão”. Como sabemos, os samaritanos eram mal vistos pelos judeus; havia uma rivalidade secular entre eles. Quando a Assíria conquistou Samaria, a capital do Reino do Norte, em 722 a.C., deportou a população local e trouxe povos estrangeiros para habitar na cidade (cf. 2 Rs 17,24-28). Os novos habitantes levaram seus costumes e tradições religiosas, o que levou a Samaria a ser conhecida como terra de sincretismo, de heresias e povo impuro. É essa a origem histórica da relação conflituosa. Inclusive, quando os judeus retornaram do exílio e começaram a reconstruir o tempo e a cidade de Jerusalém, mesmo em meio às dificuldades, rejeitaram a ajuda oferecida pelos samaritanos, como atesta o livro histórico de Esdras (cf. Es 4,3). A maior ofensa que um judeu poderia receber era ser chamado de samaritano. Era o mesmo que dizer herege, pecador, impuro... alguém da pior qualidade possível.
Os próprios Jesus com seus discípulos tinham sido rejeitados pelos samaritanos no início do caminho (cf. Lc 9,53), e hoje Jesus apresenta um samaritano como alguém que age como Deus. De fato, ver e ter compaixão, são atitudes próprios de Deus. E, infelizmente, os homens que pareciam conhecer a Deus, o sacerdote e o levita, não conheciam seus sentimentos, mas um infiel aos olhos da religião.
O sacerdote e o levita viram o estado miserável em que se encontrava o homem, mas foram para o outro lado do caminho. O samaritano viu, sentiu compaixão e aproximou-se. Duas atitudes completamente opostas. A compaixão do samaritano fez com que ele se aproximasse e cuidasse do homem. Quase dez verbos são usados na sequência do texto, e todos eles são verbos de ação. Assim, Jesus contrapõe a omissão dos praticantes da religião à ação movida de compaixão da parte do herege, comovendo ainda mais o mestre da lei.
Uma vez que a parábola foi contada como resposta à pergunta “E quem é o meu próximo?” (v. 29), Jesus devolve novamente uma pergunta ao mestre: “Na tua opinião qual dos três foi o próximo do homem que caiu nas mãos dos assaltantes?” (v. 36). Da pergunta de Jesus emerge um dado muito importante: o próximo não é, o próximo faz-se. Para os judeus, o próximo era o parente, o companheiro de religião e, no máximo, o estrangeiro radicado entre eles. Portanto, era uma categoria estática. Jesus diz, com a parábola e a pergunta final, que o próximo se faz, ou seja, são as circunstâncias que tornam alguém próximo.
A resposta do mestre à pergunta de Jesus é correta, embora ele mesmo não a aceite: “Aquele que usou de misericórdia para com ele” (v. 36a) foi o próximo. Dois aspectos chamam a atenção nessa resposta: primeiro, o mestre evita mencionar “o samaritano”, o que para ele era uma espécie de palavrão, por isso, diz apenas “aquele”, quer dizer que o judeu fiel continuava fechado em sua mentalidade mesquinha e cheio de rancor; segundo, o uso da misericórdia que é atribuído somente a Deus em todo o Antigo Testamento e apenas a Jesus no Novo, é agora atribuído também a um homem e da pior qualidade possível, conforme tinha ensinado a religião dos judeus.
A única vez em que se atribui a um homem o uso da misericórdia é aqui. E não se atribui a um homem da religião, mas a um herege. Essa é uma das grandes novidades de Jesus e de Lucas em seu Evangelho. De todos os envolvidos na parábola, o único que foi considerado um exemplo e parecido com Deus foi um homem que a religião condenava. Ao mestre da lei, Jesus aconselha: “Vai e faze a mesma coisa” (v. 37), ou seja, pede que seja como um samaritano, um excluído e tratado como herege.
Com isso, Jesus aconselha o mestre da lei e a todos, de ontem e de hoje, a abrir mão de todos os preceitos impostos pela religião e perceber que o amor a Deus e ao próximo são inseparáveis.
Pe. Francisco Cornelio Freire Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

domingo, julho 07, 2019

REFLEXÃO PARA O XIV DOMINGO DO TEMPO COMUM – LUCAS 10,1-12.17-20 (ANO C)




Neste décimo quarto domingo do tempo comum, a liturgia retoma a leitura do Evangelho segundo Lucas. O texto proposto para hoje é Lc 10,1-12.17-20, tradicionalmente conhecido como a “missão dos setenta e dois discípulos”, um episódio exclusivo de Lucas, que funciona como uma síntese antecipada da missão universal, o que o autor irá desenvolver com mais precisão no segundo volume da sua obra, o livro dos Atos dos Apóstolos. O contexto é o da grande viagem (ou caminho) para Jerusalém, a seção narrativa mais extensa de todo o Evangelho de Lucas, totalizando dez capítulos (9,51 – 19,28). Com essa viagem, o evangelista não trata apenas de um percurso físico, mas de um itinerário teológico e catequético, ressaltando a itinerância do movimento de Jesus e preparando a missionariedade futura da Igreja.

Como literalmente ser discípulo é ser seguidor de alguém (de um mestre), é na dinâmica do caminho que o discipulado se constrói. Por isso, essa etapa corresponde ao ponto alto da formação dos discípulos de Jesus, na perspectiva lucana. Inclusive, é durante essa seção narrativa que o evangelista mais apresenta elementos exclusivos seus, ou seja, elementos que não constam nos outros evangelhos. Com exceção do chamado “Evangelho da Infância” (Lc 1 – 2), podemos dizer que a etapa do caminho para Jerusalém corresponde ao que Lucas apresenta de mais original em seu Evangelho. É importante recordar que os três evangelhos sinóticos mostram o envio missionário dos Doze discípulos (cf. Mt 10,1-11; Mc 6,7-13; Lc 9,1-6), cujas regras são praticamente as mesmas do episódio de hoje; mas a missão dos setenta e dois é exclusividade de Lucas.

Não obstante as exigências para o seguimento de Jesus, como mostrava o Evangelho de dois domingos atrás (cf. Lc 9,18-24) o discipulado crescia cada vez mais: “O Senhor escolheu outros setenta e dois discípulos e os enviou dois a dois, na sua frente, a toda cidade e lugar aonde ele próprio devia ir” (v. 1). O número setenta e dois evoca o universalismo, pois os judeus imaginavam que fosse esse o número das nações da terra (cf. Gn 10). Com isso, o evangelista recorda que o mundo todo será contemplado com o anúncio do Reino de Deus. O envio “dois a dois” recorda a importância da vida comunitária; o ser humano não foi criado para estar sozinho, mas acompanhado (cf. Gn 1,18). Aqui há também uma maneira de chamar a atenção para o compromisso dos discípulos: a chegada de Jesus e sua mensagem a um lugar depende essencialmente da presença dos seus seguidores. Com a imagem da messe (v. 2), Jesus alerta para a urgência do anúncio. A messe (colheita) deve ser feita no tempo oportuno, para que não se perca, por isso, os discípulos não podem perder tempo durante o anúncio.

Jesus prevê hostilidades aos discípulos durante a missão, por isso os adverte: Eis que vos envio como cordeiros para o meio de lobos” (v. 3). O anúncio do Reino vai de encontro a projetos de poder que incentivam a violência e fazem uso dessa. Para Jesus, é inadmissível o uso da força pelos seus discípulos, nem mesmo para autodefesa. O cordeiro é a imagem de quem não reage à violência com violência em hipótese alguma. Faz parte da missão confiar na bondade das pessoas, inclusive para a própria sobrevivência: “Não leveis bolsa, nem sacola, nem sandálias, e não cumprimenteis ninguém pelo caminho!” (v. 4). Bolsa e sacola significam desejo de acúmulo e apego ao supérfluo, e sandálias aqui, especificamente, significa comodidade; portanto, são coisas incompatíveis com o seguimento de Jesus. A recomendação para não cumprimentar ninguém no caminho diz respeito à urgência do anúncio, pois as saudações pessoais nas antigas culturas orientais compreendiam rituais bastante longos.

Na continuidade das recomendações, Jesus ensina o que é realmente essencial anunciar: “Em qualquer casa em que entrardes, dizei primeiro: ‘A paz esteja nesta casa!’. Se ali morar um amigo da paz, a vossa paz repousará sobre ele; se não, ela voltará para vós” (vv. 5-6). A paz era o bem mais almejado para o ser humano, de acordo com a mentalidade bíblica, pois compreendia a felicidade e o bem-estar integral do ser humano, contemplando todas as dimensões da vida, e isso coincide exatamente com a proposta do Reino de Deus: promover o bem do ser humano, acima de tudo.

Além do desapego aos bens materiais, o discipulado exige também o abandono de mentalidades fechadas e de preceitos separatistas, como as leis de pureza alimentar: “Permanecei naquela mesma casa, comei e bebei do que tiverem, porque o trabalhador merece o seu salário. Não passeis de casa em casa. Quando entrardes numa cidade e fordes bem recebidos, comei do que vos servirem, curai os doentes que nela houver e dizei ao povo: ‘O Reino de Deus está próximo de vós (vv. 7-9). Um dos maiores entraves para a convivência dos judeus com não-judeus era a observância rígida das regras de pureza alimentar; eles não entravam de casa em casa com medo de se contaminarem; tinham uma lista de alimentos “puros” e só comiam daquilo, o que faz com que essa recomendação de Jesus se torne altamente revolucionária. A missão dos enviados de Jesus, independente da época histórica, consiste na promoção da vida e da dignidade das pessoas. Curar e expulsar demônios, na linguagem bíblica, é combater tudo o que impede o bem-estar do ser humano, incluindo a cura das doenças e a libertação das estruturas injustas e toda forma de escravidão; e esses são os sinais de que o Reino de Deus está se concretizando.

Jesus previne os discípulos também para a possibilidade de não aceitação da sua mensagem, não pregando vingança, mas alertando para que não insistam diante da recusa e partam logo para outros lugares: Mas, quando entrardes numa cidade e não fordes bem recebidos, saindo pelas ruas, dizei: ‘Até a poeira de vossa cidade, que se apegou aos nossos pés, sacudimos contra vós. No entanto, sabei que o Reino de Deus está próximo!’ Eu vos digo que, naquele dia, Sodoma será tratada com menos rigor do que essa cidade” (vv. 10-12). O anúncio cristão é uma proposta de vida que não pode ser imposta, mas apenas oferecida. Aqui, Jesus não propõe a vingança para quem não aceita o anúncio do Reino, mas alerta os discípulos a não perderem tempo e deixa claro que há consequências para quem recusa o anúncio do Reino; essas consequências não são castigo, mas a privação da vida plena e abundante que somente com a vivência do Evangelho é possível experimentar.

A liturgia salta alguns versículos (vv. 13-16) e já passa para o retorno dos discípulos, bastante entusiasta, por sinal: “Os setenta e dois voltaram muito contentes, dizendo: “Senhor, até os demônios nos obedeceram por causa do teu nome” (v. 17). A alegria dos discípulos pelo êxito da missão corresponde à força da Palavra por eles anunciada. A “obediência dos demônios” significa o mal combatido em todos os sentidos, incluindo a superação das doenças, da violência, das injustiças e preconceitos. Isso só é possível quando tudo é feito no nome de Jesus, o Reino de Deus em pessoa.

Diante do entusiasmo dos discípulos, Jesus toma novamente a palavra: “Jesus respondeu: “Eu vi Satanás cair do céu, como um relâmpago. Eu vos dei o poder de pisar em cima de cobras e escorpiões e sobre toda a força do inimigo. E nada vos poderá fazer mal” (vv. 18-19). Jesus interpreta o sucesso da missão dos setenta e dois como o fim do domínio das forças do mal sobre o mundo. A imagem de “satanás caindo do céu” não significa a queda de um monstro das alturas, mas a superação do mal pelo bem. Quer dizer que a missão transforma realidades, não obstante as hostilidades, representadas nas palavras de Jesus pelas imagens das “cobras e escorpiões”. O Evangelho liberta das mais perversas estruturas de poder que geram morte, dor, injustiça e preconceito. Onde o Reino se instaura, o mal desaparece.

Por último, Jesus recomenda aos discípulos que não se entusiasmem demais com os resultados, inclusive por precaução de um possível envaidecimento da parte deles: “Contudo, não vos alegreis porque os espíritos vos obedecem. Antes ficai alegres porque vossos nomes estão escritos no céu” (v. 20). O que importa para o discipulado é a certeza de estar em sintonia com os propósitos de Deus, ajudando a construir o seu Reino. Ter o nome inscrito no céu significa a certeza de ser amado por Deus, e é isso que conta na vida do ser humano, e não os méritos pessoais de cada um. É a certeza desse amor que deve motivar o ser humano a lutar para que esse mesmo amor chegue a todos os lugares e corações e, para isso, é necessária a missão.

A missão dos setenta e dois é um aceno do evangelista Lucas à inclusão e à superação de círculos fechados que muitas vezes aprisionam o Evangelho nas comunidades. Jesus não deixou a sua mensagem a encargo somente dos Doze, mas de qualquer pessoa que esteja disposta a colaborar com a missão de fazer o Reino de Deus acontecer. Para colaborar com o Reino é necessário colocar-se em caminho com Jesus, com disposição para amar indistintamente, conviver com as diferenças, criar laços e superar barreiras. A luta contra o mal exige essa disposição.

Pe. Francisco Cornelio Freire Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

REFLEXÃO PARA O 4º DOMINGO DA PÁSCOA – JOÃO 10,11-18 (ANO B)

O evangelho do quarto domingo da páscoa é sempre tirado do capítulo décimo do Evangelho de João, no qual Jesus se auto apresenta como o ún...