Na conclusão
da oitava de Natal e o início do novo ano civil, a Igreja celebra a solenidade
da Santa Mãe de Deus, Maria, recordando a afirmação do Concílio de Éfeso (ano
431) que a definiu como “Theotókos”, cujo significado literal é “aquela que
gerou Deus”. O objetivo da Igreja com esta festa e com a definição conciliar,
no entanto, é afirmar a identidade de Jesus como verdadeiro Deus e verdadeiro
homem, e não necessariamente promover o culto e a devoção a Maria. Na verdade,
de todas as festas marianas, essa é a que melhor exprime as motivações e o
objeto do culto mariano, porque recorda que «a Virgem Maria é mãe de Deus
porque pariu, segundo a carne, o Verbo de Deus» (afirmação do Concílio de Éfeso,
ano 431). O sentido da festa, portanto, volta-se para o Cristo, recordando a
participação decisiva de Maria na sua vinda ao mundo. Trata-se da festa mariana
mais antiga, sendo celebrada desde o século VI. Ao longo do tempo, passou por
diversas modificações, inclusive no título e na data. Por sinal, o título e a data
atuais já são frutos da reforma litúrgica do Concílio Vaticano II. O último
título anterior ao Vaticano II era “festa da circuncisão” de Jesus,
fundamentada na tradição judaica de circuncidar as crianças do sexo masculino
no oitavo dia após o nascimento, como aconteceu, sem dúvidas, com Jesus. No ano
de 1968, o então papa Paulo VI proclamou este dia – primeiro de janeiro –
também como o Dia Mundial da Paz, convidando a inteira humanidade a empenhar-se
na construção da paz e da fraternidade universal. Isso torna esta celebração
ainda mais significativa.
O
evangelho lido na liturgia deste dia é a continuação quase exata daquele da
noite de Natal, sendo separado por apenas um versículo: Lc 2,15. Enquanto na
noite de Natal o evangelho foi Lc 2,1-14, na solenidade de hoje o texto
proposto é Lc 2,16-21. Inclusive, é o mesmo texto para todos os anos. Por isso, consideramos que o primeiro passo para uma boa
compreensão do evangelho de hoje é recordar o versículo que o antecede: «Quando
os anjos os deixaram e foram para o céu, os pastores disseram uns aos outros:
‘Vamos já a Belém para ver o que aconteceu e que o Senhor nos deu a
conhecer’» (Lc 1,15). Ora, os pastores ficaram maravilhados com a Boa
Notícia que o anjo lhes tinha anunciado: um Salvador nasceu para eles, naquela
noite (cf. Lc 2,10). E, ao anúncio do anjo, seguiu-se o canto da multidão da
corte celeste que desceu à terra, para junto dos pastores, proclamando a glória
de Deus nos céus e a correspondente paz na terra entre a humanidade (cf.
2,13-14). Portanto, era inevitável a surpresa e a perplexidade nos pobres
pastores, assim como a dúvida, afinal, conforme os parâmetros religiosos da
época, eles seriam os últimos a receber uma mensagem do céu, pois pertenciam à
categoria das pessoas mais simples e marginalizadas, e eram considerados
impuros, compondo o último estrato social e religioso da época.
Uma das
grandes novidades de Jesus, desde o nascimento, foi contradizer o que a sua
religião tinha afirmado sobre o Messias e sobre Deus. Ora, a religião oficial
tinha classificado as pessoas como puras e impuras, justas e pecadoras,
imaginando que a vinda do Messias seria marcada pelo extermínio das
classificadas como impuras e pecadoras, como eram considerados os pastores na
época. Ao invés de seguir as determinações da religião, Jesus preferiu, desde o
início, exatamente as categorias excluídas, contradizendo e frustrando muitas
expectativas. É nessa perspectiva que podemos e devemos compreender a reação
dos pastores ao anúncio do nascimento de Jesus. A eles, a religião tinha
ensinado que estava fora de cogitação a salvação, pois eram gente da pior qualidade
e que não observava a Lei. De repente, eles recebem um anúncio de salvação e
sentem-se amados por Deus. Além, disso, a religião de Israel tinha alimentado
as expectativas pela vinda de um messias poderoso, guerreiro e glorioso, e o
que veio foi uma criança pobre, nascida em condições sub-humanas. Perplexos
diante de tudo isso, eles decidiram ir a Belém para conferir e tirar todas as
dúvidas (Lc 2,15).
Diante de
uma novidade sem precedentes, é impossível esperar, por isso diz o texto
que «Os pastores foram às pressas a Belém e encontraram Maria,
José, e o recém-nascido deitado na manjedoura» (v. 16). Merece
destaque a expressão adverbial “às pressas” (em grego: σπεύσαντες –
speussantes), a qual possui grande relevância no vocabulário da teologia
lucana: encontra-se logo após o anúncio do anjo a Maria, introduzindo a visita
a Isabel (cf. Lc 1,39), e na ordem de Jesus a Zaqueu, para que desça da
árvore, para acolher a salvação em sua casa (cf. Lc 19,5-6). Isso quer dizer
que, para Lucas, a salvação é uma Boa Notícia que não pode ser adiada, mas deve
ser experimentada sem demora, com urgência. Tanto quem recebe quanto quem
proclama o anúncio da salvação devem ter pressa. No caso dos pastores, mais
ainda: como passaram a vida inteira às margens, sofrendo o desprezo e a
exclusão, não poderiam mais perder tempo. Para eles e todas as categorias de
pessoas marginalizadas, a inclusão tem de ser agora, hoje. Por isso, foram às
pressas a Belém. Além da necessidade que sentiam, tendo em vista o histórico de
marginalização que sofriam, a pressa dos pastores é também uma demonstração de
fé e obediência a Deus. E, assim, o evangelista evidencia ainda mais as
diferenças na maneira de acolher a mensagem de Deus entre as pessoas simples e
os representantes da religião oficial: Maria e os pastores agiram com pressa
diante do anúncio, enquanto Zacarias, um sacerdote do templo, exitou em
acreditar. Com isso, Lucas vai, desde o início, delineando os traços de quem
vai se abrir à mensagem de Jesus, durante o seu ministério.
Se os
pastores ficaram surpresos com o anúncio do anjo, talvez tenham ficado mais
ainda com o que viram em Belém: «encontraram Maria, José, e o
recém-nascido deitado na manjedoura» (v. 16b). Na verdade, encontraram
tudo conforme lhes tinha sido anunciado (cf. Lc 2,12), mas é impossível que não
tenham se surpreendido, tamanha a reviravolta na história. Ouviram que tinha
nascido para eles um Salvador, e encontram na manjedoura, junto aos pais, uma
pequena criança, provavelmente em meio às moscas e esterco de gado, sem nenhum
sinal distintivo que revelasse glória ou poder, atributos próprios de um
salvador. Porém, o que encontraram confirmava o que lhes tinha sido anunciado
(cf. Lc 2,12). Apesar da inevitável surpresa, veio a consciência da novidade e
da nova história que estava começando. Ora, se tivesse nascido um Salvador
conforme as expectativas da religião oficial, os pastores não conseguiriam
sequer chegar perto, e seriam os últimos a saber. Aos poucos, foram
compreendendo que um novo tempo com uma nova ordem estava surgindo, quem estava
às margens estava passando para o centro, como eles. E essa mudança só se
tornava possível porque o Salvador veio identificado com eles. Nesta cena,
Lucas delineia o primeiro grande esboço de uma Igreja pobre e para os pobres!
Na
sequência, o evangelista diz que os pastores «tendo-o visto, contaram o
que lhes fora dito sobre o menino» (v. 17), tornando-se assim, também
eles, mensageiros de salvação, portadores de Boa Notícia. Contaram que o anjo
lhes aparecera anunciando o nascimento do Salvador, e que depois “uma multidão
da corte celeste” baixou perto deles glorificando a Deus e anunciando a paz em
toda a humanidade (cf. Lc 2,10-14). Contaram coisas maravilhosas, de modo que
quem os escutava também se maravilhava, ou seja, ficavam perplexos, admirados,
pois, até então, não se tinha notícia de um Deus que fizesse conta de gente
pouco importante e sem currículo, como eram eles, conforme os padrões da
sociedade e da religião da época. Com isso, o evangelista ensina que os pastores
foram os primeiros evangelizados com o nascimento de Jesus e se tornaram os
primeiros evangelizadores de tão grande acontecimento. Assim, Lucas faz deles
modelos de anunciadores, prefigurando neles a missão dos apóstolos e dos
discípulos e discípulas de todos os tempos. De fato, mais adiante, no auge da
missão e sofrendo as primeiras perseguições, os apóstolos vão confirmar a
fidelidade seguindo o exemplo dos pastores: «não podemos deixar de
falar sobre o que vimos e ouvimos» (At 4,20). Não calar diante do que
se vê e se ouve é exigência básica da evangelização. E os pastores foram os
primeiros a fazer isso.
De todas
as pessoas que ouviram o relato dos pastores e ficaram maravilhadas, o texto
destaca a reação de Maria como mais profunda, com menos surpresa e mais
reflexão. Afinal de contas, ela já estava habituada às maravilhas de Deus, pois
foi a primeira destinatária do anúncio salvífico através do anjo Gabriel (cf.
Lc 1,26-38) e tinha assistido à exaltação de Isabel quando a visitou (cf. Lc
1,39-52). No entanto, ela não deixará de maravilhar-se, pois a trajetória de
Jesus lhe trará outras surpresas, como no episódio da apresentação no templo,
quando ela e José ficarão admirados com o que se dizia do menino (cf. Lc 2,33).
A reação de Maria é diferenciada, pois nela o evangelista está construindo a
imagem da discípula modelo: «guardava todos esses fatos e meditava
sobre eles em seu coração» (v. 19). Se na atitude dos pastores já
havia esboço do modelo de discípulo e discípula, esse modelo se aperfeiçoa em
Maria: não basta contar o que se vê e se escuta, mas é necessário também
meditar, assimilar bem, interiorizar. O verbo grego empregado pelo evangelista,
traduzido pelo lecionário como “meditar” (συμβαλλω –
symbálô), possui um significado muito mais profundo: quer dizer “colocar
junto”, “unir”, “reunir”, “interpretar”. E era isso que Maria fazia: percebia
os diversos sinais e acontecimentos do agir de Deus e juntava-os, fazendo sua
própria interpretação, cuja melhor demonstração está no canto do Magnificat:
uma síntese da história da salvação, com ênfase na opção de Deus pelos pobres e
humildes de sempre.
Certamente,
a meditação de Maria consistia em relacionar os acontecimentos do presente com
as ações libertadoras de Deus ao longo da história, como ela mesma já
expressara no Magnificat (cf. Lc 1,46-55) e experimentara em sua vida. É
exatamente aqui que ela se sobressai sobre os demais ouvintes, porque ela
guardava, ou seja, escutava com atenção tudo o que os pastores tinham dito, e
juntava com o que já sabia: as palavras do anjo Gabriel e as declarações de
Isabel, e o histórico de Deus em favor dos pobres e humildes. Aquela que já era
mãe, inicia agora uma nova etapa, o discipulado, e isso ela vai fazer ao longo
de toda a sua vida e a de Jesus. Ao invés de ver os fatos isoladamente, ela vai
juntando cada um, unindo as peças e percebendo, no seu coração, que a história
da salvação está sendo reescrita com novos parâmetros, uma inversão de ordem:
os últimos, como ela e os pastores, passaram a ser os primeiros. E é essa a
prova de que o Reino de Deus, de fato, irrompeu na história. Nesse sentido,
Maria se torna autêntica intérprete da nova história da salvação, sendo, por
isso, modelo ideal de discípula e discípula.
Tendo
comprovado e visto que tudo o que lhes tinha sido anunciado era verdade, «os
pastores regressaram, glorificando e louvando a Deus» (v. 20).
Realmente, não faltavam motivos para os pobrezinhos dos pastores glorificarem a
Deus! É importante lembrar que a alegria e o louvor também são traços bem
característicos de Lucas; quem faz a experiência do amor misericordioso de Deus
reage louvando e glorificando. O louvor dos pastores mostra que, em Jesus, o
abismo entre o humano e o divino foi eliminado; céus e terra foram unidos
definitivamente. Cantar glória a Deus era função dos anjos no céu que,
excepcionalmente desceram à terra e louvaram a Deus diante dos pastores (cf. Lc
1,13-14), mas logo retornaram para o céu. Agora, também aos pastores, os
últimos da terra, tem esse direito. Temos aqui uma mudança completa de
paradigma: o que era privilégio dos primeiros do céu, se torna acessível aos
últimos da terra. O louvor continuado dos pastores mostra que a experiência
vivenciada por eles foi verdadeira. O mistério contemplado deixou marcas
permanentes. Eles não assistiram apenas a um evento, mas se tornaram
participantes e construtores de uma etapa nova da história. Regressaram
transformados, renovados, animados, se sentindo gente de verdade. Por isso,
daquele momento em diante, dificilmente eles deixaram de anunciar tudo o que
tinham visto, escutado e vivido.
No final,
vem evidenciado o papel importante de José e Maria na educação de Jesus,
levando para a circuncisão conforme previa a lei e, ao mesmo tempo, a liberdade
que tinham para seguir mais a Deus do que a Lei: «Quando se completaram
os oitos dias para a circuncisão do menino, deram-lhes o nome de Jesus como
fora chamado pelo anjo antes de ser concebido» (v. 21). A circuncisão
não era exclusividade de Israel. Era um costume comum a vários povos do antigo
Oriente, sendo que a motivação era por questão de higiene e saúde. Em Israel se
transformou em preceito religioso, passando a ser o principal sinal de pertença
de um homem ao povo eleito. Com esse dado, Lucas reforça a concretude da
encarnação. O que está sendo evidenciado mesmo é o nome dado à criança: Jesus,
cujo significado é o “Senhor salva”. A Lei determinava que se desse o nome de
um parente próximo. Contudo, o nome Jesus fora indicado pelo anjo, no momento
do anúncio (cf. Lc 1,31). Com isso, Lucas mostra que, entre a Lei e o Espírito
Santo, Maria e José preferiram se orientar pelo Espírito Santo, prefigurando,
assim, mais uma característica da comunidade cristã. E Lucas faz essa
referência à circuncisão mais como dado cronológico do que mesmo identitário. O
importante aqui é o nome que sintetiza a missão de Jesus. E o conjunto dos
eventos, do anúncio do nascimento até aqui, mostra a atualidade desse nome.
O
significado do nome Jesus é “Deus salva”, porque agora a salvação entrou
definitivamente na história, como o anjo tinha anunciado aos pastores: «Hoje,
nasceu para vós um Salvador, que é o Cristo Senhor» (2,11). Portanto,
hoje, especialmente, é mais do que justo recordarmos a Mãe desse Salvador, e
seguir seu exemplo de discípula fiel.
Pe.
Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN
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