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sábado, agosto 24, 2024

REFLEXÃO PARA O 21º DOMINGO DO TEMPO COMUM – JOÃO 6,60-69 (ANO B)

 


Neste vigésimo primeiro domingo do tempo comum, a liturgia conclui a sequência de cinco domingos de leitura do sexto capítulo do Evangelho de João. Trata-se de um fenômeno exclusivo do “ano litúrgico B”, devido ao fato de o Evangelho de Marcos ser mais abreviado em relação aos outros sinóticos (Mt; Lc). Por isso, nesse ano, recorre-se mais ao Quarto Evangelho, como complemento, uma vez que os textos de Marcos não seriam suficientes para todos os domingos do tempo comum. No entanto, na sequência dos cinco domingos – do décimo sétimo ao vigésimo primeiro –, um deles foi saltado – o vigésimo –, devido à solenidade de Assunção da Bem-Aventurada Virgem Maria, celebrada no domingo passado. Após a interrupção, portanto, temos hoje a retomada e a conclusão, ao mesmo tempo. E o texto proposto para este dia é Jo 6,60-69. Nessa passagem, o evangelista mostra a reação final dos discípulos, incluindo os Doze, diante do longo e exigente discurso de Jesus sobre o pão da vida, que é ele mesmo, e a necessidade de alimentar-se dele para obter vida em plenitude. Tudo isso, ainda, como desdobramento do sinal da multiplicação (condivisão) dos pães no início do capítulo (6,1-15).

Como sempre, para compreender melhor o texto é necessário recordar o seu contexto narrativo. E o primeiro aspecto a ser recordado é a reação da multidão que tinha sido saciada com a partilha dos cinco pães e dois peixes: quiseram, de imediato, proclamar Jesus como rei (6,15), como consequência de uma compreensão equivocada do seu messianismo, uma visão totalmente incompatível com a missão de Jesus e o seu estilo de vida. Diante de uma ideia tão absurda, Jesus quis refugiar-se (6,15), por precaução, a fim de não alimentar ideias erradas sobre a sua missão, mas a multidão foi atrás dele e, no dia seguinte, o encontrou novamente, já na sinagoga de Cafarnaum, do outro lado do lago (6,22-25). Jesus percebeu logo o equívoco e, com muita franqueza e transparência, disse porque estavam lhe procurando: queriam, novamente, comer pão gratuito e em abundância (6,26). Diante disso, ao sentir-se incompreendido, Jesus aproveitou a oportunidade para fazer uma ampla catequese, apontando para a importância de se buscar não apenas o pão material, pois, embora necessário e essencial, esse é perecível e seus efeitos duram poucas horas. Por isso, apontou para a necessidade de um alimento que dura por toda a vida, mostrando que esse alimento é a sua própria pessoa (6,27-40), dom por excelência do Pai para a vida do mundo.

Ao apresentar-se como verdadeiro alimento, ou seja, como pão da vida ou pão vivo descido do céu, e convidar os seus ouvintes a comer a sua carne e beber o seu sangue, Jesus causou perplexidade, questionamentos, incredulidade e até ira, em seus interlocutores. Enfim, provocou as mais variadas reações. Inclusive, após a conclusão do discurso (6,59), instaurou-se uma grande crise entre os seus discípulos, pois, até então, ainda não tinham escutado exigências tão fortes para o seguimento. O evangelista João recorda tudo isso para ajudar a sua comunidade a discernir e tomar decisões: o seguimento de Jesus é comprometedor... ser discípulo e discípula dele não é memorizar uma doutrina para depois repeti-la, mas é entrar em comunhão plena com a sua pessoa, assimilando seu jeito de ser; é esse o sentido de comer a sua carne e beber o seu sangue (6,54). Recebê-lo como alimento é tornar-se também alimento para os outros. Uma proposta de vida tão exigente assim não poderia ser assimilada com facilidade. Certamente, entre as diversas formas de reação, houve também quem sentiu-se mais convicto e confiante para continuar no seguimento, como ser verá pela declaração de Pedro. Contudo, a crise foi instaurada no discipulado.

Tendo já mostrado as reações de outros interlocutores, como a própria multidão e “os judeus”, ao discurso de Jesus como verdadeiro alimento e pão para a vida eterna, o evangelista quis mostrar também a reação dos discípulos, pois era essa a que mais interessava à sua comunidade que se encontrava com a fé comprometida, devido as perseguições e o “esfriamento” no fervor de alguns membros, na época da redação do Evangelho. Olhemos então para o texto, começando pelo primeiro versículo, no qual se diz que «Muitos dos discípulos de Jesus, que o escutaram, disseram: “Esta palavra é dura. Quem consegue escutá-la?”» (v. 60). Como se vê, os próprios discípulos contestam o discurso que Jesus tinha acabado de proferir. E essa é a primeira grande novidade do evangelho de hoje. Ora, os evangelhos mostram muitas situações em que Jesus é contestado pelos seus tradicionais adversários (fariseus, saduceus, mestres da lei…), mas raramente pelos discípulos. O máximo que os discípulos ousavam era fazer perguntas e pedir esclarecimentos sobre alguns aspectos da sua vida e do seu ensinamento que não tinham ficado muito claros. Normalmente, eles concordam, ou pelo menos fingem concordar, com tudo o que Jesus diz, exceto quando escutam o primeiro anúncio da paixão (Mt 16,21-23; Mc 8,27-33).

Quando não concordam com o que Jesus diz, geralmente seus discípulos silenciam. É partindo desse dado que se percebe a profundidade da contestação apresentada no evangelho de hoje. Trata-se de um verdadeiro protesto contra Jesus e sua mensagem: «Esta palavra é dura». Muitos dos seus se sentiram realmente ofendidos, incapazes, incapazes de levar adiante um programa tão comprometedor. O adjetivo grego empregado pelo evangelista, traduzido por dura, é ‘sklerós’ (σκληρός), do qual deriva a palavra esclerosado/a. Além de dura, essa palavra – sklerós –pode ser traduzida também por insuportável, inadmissível, ofensivo e violento. Os discípulos se sentiam completamente incapacitados para continuar no seguimento, uma vez que o anúncio de Jesus parecia inviável para eles. A dureza da palavra de Jesus consiste no comprometimento que dela deriva: diante dela, é preciso tomar posições firmes, como tornar-se alimento para os outros, fazendo as mesmas opções de Jesus e, consequentemente, assumindo as consequências. É uma palavra dura porque não se trata de um discurso para ouvir uma vez por semana, como a liturgia da sinagoga, mas exige uma coerência de vida cotidiana; não é uma palavra para ser simplesmente proferida, mas para ser vivida, acima de tudo.

Além da reclamação de muitos discípulos em alta voz, Jesus percebeu também que outros de «seus discípulos estavam murmurando, e por causa disso mesmo, perguntou: “isto vos escandaliza?”» (v. 61). Ao murmurar, os discípulos de Jesus repetem um dos antigos pecados de Israel. No contexto do êxodo, os israelitas recém-libertados murmuravam constantemente contra Deus e Moisés (Ex 16,2-4). O verbo murmurar, como emprega o evangelista (em grego: γογγύζω – gonguízo) expressa uma verdadeira revolta contra Deus; considerando toda a simbologia do mundo bíblico, é a negação da fé. No contexto dos evangelhos, é o verbo empregado tradicionalmente para descrever a reação dos adversários de Jesus (fariseus, saduceus, sacerdotes, etc.). Portanto, os discípulos, ou pelo menos uma parte deles, estavam agindo como adversários de Jesus, pois se sentiram ofendidos pelo seu discurso tão exigente. Ao perguntar se aquilo – o discurso – os escandalizava, ou seja, se era impedimento para a fé deles, Jesus vai bem mais além, dizendo, em outras palavras, que era como se os discípulos “ainda não tivessem visto nada”, pois realidades mais difíceis de assimilação ainda estavam por vir: «E quando virdes o Filho do Homem subindo para onde estava antes?» (v. 62). Ora, uma das passagens mais chocantes do discurso de Jesus foi dizer ser ele “o pão vivo descido do céu”; um absurdo para seus ouvintes que conheciam até mesmo seus pais e sabiam que ele não passava de um filho de carpinteiro (6,41-42) e, por isso, não poderia ter uma origem no alto. Logo, a sua subida seria muito mais chocante para os discípulos, uma vez que compreendia a morte na cruz, que deveria ser o destino reservado também a eles, como consequência. Aqui, portanto, Jesus os previne: coisas piores estão por acontecer, humanamente falando. Ora, se ficaram escandalizados porque Jesus afirmou ter descido do céu, muito mais ficariam vendo a sua subida, sobretudo porque essa pressuponha a cruz, e o destino dos crucificados, conforme a tradição, era a condenação eterna. Portanto, tendo a cruz no horizonte, a tendência é que muitos dos discípulos sentissem as exigências do programa de Jesus ainda mais duras, tornando-se cada vez mais difíceis de ser assimiladas.

Diante da reação negativa, Jesus não procura conformar seu discurso e suas exigências às capacidades e disposições dos discípulos. Pelo contrário, ele reforça o que já havia dito e deixa claro que já previa a resistência e até mesmo a negação completa de seu projeto por alguns discípulos. Ele sabia que somente deixando-se guiar pelo Espírito os discípulos poderiam manter-se firmes no seu seguimento. Por isso, declara: «O Espírito é que dá vida, a carne não adianta nada. As palavras que vos falei são espírito e vida. Mas entre vós há alguns que não crêem» (vv. 63-64a). A reação negativa dos discípulos não faz Jesus alterar seu projeto. Ele sabia que muitos ainda não tinham se deixado conduzir pelo Espírito e abraçado a fé, continuavam vendo as coisas apenas no plano material e conforme a Lei, por isso, não tinham assimilado a vida contida em suas palavras. Inclusive, «Jesus sabia desde o início, quem eram os que tinham fé e quem havia de entregá-lo» (v. 64b). A contraposição entre ter fé e entregar – trair – reforça que o contrário da fé não é a incredulidade, mas a covardia. Diante de tudo isso, percebendo a oposição de muitos de seus discípulos, Jesus reforça sua confiança no Pai, ressaltando sua relação intrínseca com ele: «É por isso que vos disse: ninguém pode vir a mim, a não ser que lhe seja concedido pelo Pai» (v. 65). Se foi o Pai quem o enviou, é também o Pai quem chama e atrai as pessoas para o seu seguimento. Isso recorda que, na história da salvação, a iniciativa é sempre de Deus. Quem se deixa atrair pelo Pai e vai a Jesus, terá a plenitude da vida, não como prêmio, mas como consequência. Os evangelistas fazem questão de ressaltar, e João com mais precisão ainda, que a salvação é um projeto originado no Pai, de quem Jesus é o agente autorizado para torná-la acessível a toda a humanidade.

O evangelista apresenta esse momento como um divisor de águas na vida de Jesus e dos discípulos, pois foi no discurso do pão da vida que Jesus apresentou a sua máxima revelação, até então, na dinâmica do Quarto Evangelho. Foi o momento em que Jesus mais falou de si, deixando-se conhecer completamente. O evangelista sentia que a sua comunidade, vivendo momentos de altos e baixos no discipulado, precisava tomar decisões importantes e, para isso, era necessário tornar Jesus cada vez mais conhecido em toda a sua profundidade, inclusive deixando mais claro o seu programa de vida com as exigências implicadas no seu seguimento. Até mesmo o encontro semanal da fração do pão – a eucaristia – estava perdendo a sua importância na comunidade joanina, passando a ser apenas um conjunto de ritos, deixando de ser verdadeiro encontro de comunhão transformadora. Assim como Jesus mesmo fez, também o evangelista quis mostrar que o discipulado não é uma obrigação, e sim uma opção, por sinal, radical e exigente. Por isso, ele diz que «A partir daquele momento, muitos discípulos voltaram atrás e não andavam mais com ele» (v. 66). Houve desistência entre os discípulos porque nem todos estavam dispostos a aderir aos compromissos do discipulado. Mas não se trata apenas de uma desistência e sim de um rompimento total. Voltar atrás, aqui, é mais do que desistir, significa uma negação completa. Não quer dizer que apenas deixaram de andar com ele, como faz entender a tradução do texto litúrgico. Quer dizer que romperam completamente, deixando de acreditar. As “palavras duras” são realmente difíceis de ser assimiladas e vividas, de modo que um seguimento superficial não tem como se sustentar. Por isso, muitos desistiram de continuar seguindo-o. A “debandada” de discípulos nas comunidades de tradição joanina parece ter sido marcante, pois na Primeira Carta o autor faz referência, embora com outras palavras, ao mesmo fato: «Eles saíram de nosso meio, mas não eram dos nossos; se fossem dos nossos, teriam permanecido conosco». (1Jo 2,19). Por isso, no discurso de despedida, o verbo mais utilizado por Jesus será o verbo “permanecer” no modo imperativo (Jo 14-17). 

Entre os discípulos e discípulas, estava o seu núcleo primeiro, o chamado grupo dos Doze, a quem Jesus se dirige com muita firmeza: «Vós também vos quereis ir embora?»  (v. 67). Com essa pergunta, Jesus mostra seu respeito pela liberdade de cada pessoa e, sobretudo, as convicções do seu projeto: ele prefere ficar sem discípulos do que mudar o seu programa. Suas exigências são inegociáveis. Em uma sociedade dominada pelo egoísmo, injustiça, privação de liberdade, exclusão e hipocrisia, as “palavras duras” são necessárias para desestabilizar o sistema e, assim, iniciar a construção de um mundo novo, humanizado, repleto de amor, justiça, fraternidade e paz. Jesus quer saber com quem pode contar, embora esteja disposto a seguir com seu projeto mesmo ficando sozinho, se necessário. Essa é a primeira vez que o evangelista João se refere ao grupo dos discípulos como os Doze; e só fará isso mais três vezes (Jo 6,69.71; 20,24). No contexto do sinal da partilha dos pães, essa menção adquire um sentido ainda maior: assim como sobraram doze cestos de pães, após a multidão ficar saciada (Jo 6,13), sobraram doze discípulos para Jesus. É um claro recado do evangelista às suas comunidades e aos seus leitores de todos os tempos: a comunidade de Jesus é feito das sobras, das margens, dos excluídos. Os Doze não foram os melhores, escolhidos a dedo, na verdade foi o que sobrou para Jesus. É com esse resto que ele vai contar na continuação do seu projeto. Prova que foi realmente uma sobra é o fato de que, desse mesmo grupo, ainda vai sair um traidor e outro que o negará. Humanamente falando, esse episódio é um atestado do fracasso da missão de Jesus, por isso, se torna um divisor de águas no plano narrativo do Quarto Evangelho.

Mesmo não sendo totalmente coerente, o grupo dos Doze optou por continuar no seguimento, como mostra o evangelista com a resposta de Pedro: «Simão Pedro respondeu: “A quem iremos, Senhor? Tu tens palavras de vida eterna. Nós cremos firmemente e reconhecemos que tu és o santo de Deus”» (v. 68-69). Do que sobrou, Jesus encontrou resposta para seu projeto de libertador. Ao mostrar que Pedro respondeu no plural – nós –, o evangelista afirma que Pedro fala em nome dos Doze. É a resposta da comunidade que, embora pequena numericamente, procura perseverar com fidelidade no seguimento, reconhecendo que, apesar de duras, as palavras de Jesus contêm vida, são palavras de vida eterna, as únicas que podem restituir vida em abundância e esperança para todos, sobretudo os mais necessitados, ou seja, os restos descartados pelos sistemas de dominação. A resposta de Pedro indica reflexão. Não há outro a quem ir; não há outro que tenha uma proposta tão inclusiva e humanizante. Num mundo hostil e perverso, explorado pela religião e pelo império romano, a comunidade joanina, mesmo sendo um pequeno resto, não via outra possibilidade de encontrar vida e sentido para a existência senão nas palavras de Jesus. Talvez isso explique o fato de ser o Evangelho que contém mais palavras e discursos de Jesus; é o Evangelho no qual Jesus mais fala. Certamente, o evangelista sentia a necessidade de alimentar sua comunidade com palavras de vida eterna. E somente as palavras que saem da boca de Jesus geram vida eterna. Isso porque ele é a própria Palavra-Verbo que se faz carne. Logo, o que ele fala vivifica.

Além da confiança nas palavras de Jesus, a resposta de Pedro também expressa a fé da comunidade e o quanto essa deve ser sólida: «nós cremos firmemente e reconhecemos que tu és o Santo de Deus» (v. 69)Com essa afirmação, o evangelista traz outra informação importante que reflete a situação da sua comunidade: a necessidade de conciliar fé e conhecimento. De fato, não há contraposição entre essas duas realidades. O evangelista emprega dois verbos fundamentais da sua catequese e teologia: crer (em grego: πιστεύω – pistêuo) e conhecer/saber (em grego: γινώσκω – guinôsko). Na época, havia muitas correntes teológicas equivocadas que tentavam separar a fé do conhecimento. É claro que não basta o conhecimento para um seguimento autêntico; tampouco tem sentido uma fé cega, desprovida de razão. O evangelista mostra a necessidade de conciliar fé e conhecimento a fim de garantir solidez na vivência dos ensinamentos de Jesus. E o objeto da fé e do conhecimento da comunidade deve ser a identidade de Jesus, como Pedro confessa: «tu és o Santo de Deus». Sem dúvidas, temos aqui o equivalente à solene confissão de Pedro dos evangelhos sinóticos, na região de Cesareia de Filipe (Mc 8,29; Mt 16,16; Lc 9,20). É claro que há diferenças na formulação da confissão, mas possui valor equivalente. Inclusive, também entre os sinóticos há pequenas diferenças na expressão. Mas é inegável a equivalência. Quem o reconhece Jesus como o “Santo de Deus” não se deixa escandalizar pelas suas declarações como pão descido do céu; pelo contrário, nessas palavras encontra forças para crescer na fé. Assim, os Doze conseguem assimilar a outra dimensão da dureza: a firmeza, a coragem e a força, elementos necessários e essenciais para implantar, no mundo, a civilização do amor. A proclamação de Jesus como “O Santo de Deus” é também uma forma de dizer que ele é o único agente de Deus para agir em seu nome com legitimidade. Desse modo, a religião do templo – da sinagoga na época, da redação do evangelho – não tinha mais autoridade para revelar Deus e agir em seu nome. Só Jesus revela Deus. Só se conhece Deus passando por Jesus, e só passa por Jesus quem come sua carne e seu sangue, ou seja, quem assimila seu jeito de viver.

Que saibamos reconhecer que as palavras duras de Jesus são também portadoras de espírito e vida, por isso, indispensáveis para a missão. Que essas mesmas palavras nos ajudem a discernir e escolher a qual projeto e religião seguir: um projeto de vida consistente e comprometedor, que não exige meios termos, mas apenas um engajamento total e transformador ou, simplesmente, uma religião como conjunto de ritos e normas com encontros dominicais fervorosos e semanas vazias de sentido e de amor. O Evangelho de hoje nos coloca numa verdadeira encruzilhada; é preciso tomar decisão: continuar seguindo-o ou abandoná-lo. Ele nada impõe, cada pessoa é livre para segui-lo ou não. Porém, de quem escolhe segui-lo exige-se o compromisso de ser portador de uma palavra dura, embora portadora de vida, esperança, amor e força humanizadora.

Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

sábado, agosto 10, 2024

REFLEXÃO PARA O 19º DOMINGO DO TEMPO COMUM – JOÃO 6,41-51 (ANO B)


A liturgia do décimo nono domingo do tempo comum continua a leitura do capítulo sexto do Evangelho de João, iniciada há dois domingos. O trecho lido hoje é Jo 6,41-51. Apesar de saltar alguns versículos, é clara a continuidade entre o texto de hoje e aquele do domingo passado (Jo 6,24-35). É a sequência do discurso de autoapresentação de Jesus como pão vido descido do céu e alimento para a vida eterna, proferido na sinagoga de Cafarnaum. Esse discurso é a resposta de Jesus à multidão que, alimentada pelo pão partilhado na outra margem do mar – ou do lago –, e maravilhada por causa do sinal cumprido, quis logo proclamá-lo rei, imaginando tirar cada vez mais proveito de suas ações prodigiosas (Jo 6,1-15). Diante disso, Jesus refugiou-se (Jo 6,15b-21), ao perceber a interpretação equivocada e as pretensões interesseiras, mas a multidão o encontrou novamente querendo pão gratuito com fartura (Jo 6,22-25). Conhecendo as intenções da multidão, Jesus aproveitou a oportunidade para apresentar uma ampla catequese, chamando a atenção para a importância de um alimento duradouro e essencial: a sua própria pessoa, pão vivo descido do céu, enviado pelo Pai para dar vida ao mundo. Por tratar-se de uma realidade difícil de ser assimilada, o evangelista organizou essa catequese em forma de um longo discurso de revelação, e a liturgia do “ciclo B” o distribuiu na sequência de domingos que estamos celebrando. O contexto, brevemente recordado acima, é o mesmo dos últimos domingos, o que torna desnecessário recordá-lo de modo mais pormenorizado.

A autoapresentação de Jesus como pão descido do céu e alimento para a vida eterna foi duramente criticada e questionada pelos seus ouvintes, praticantes da religião tradicional. Para eles, a única referência de pão descido céu era o maná do deserto, mas aquele era um alimento perecível, tanto é que os antepassados que dele se alimentaram, morreram todos. Portanto, a afirmação de Jesus soava como pretensiosa e uma verdadeira afronta aos parâmetros da religião judaica. Por isso, o protesto questionador: «Os judeus começaram a murmurar a respeito de Jesus, porque havia dito: ‘Eu sou o pão que desceu do céu» (v. 41). Geralmente, quando o evangelista João menciona “os judeus”, não se refere ao povo judeu propriamente, mas às autoridades religiosas, que eram bastante hostis aos ensinamentos e à pessoa de Jesus. Contudo, neste caso, quase excepcionalmente, a expressão “os judeus” designa o povo mesmo, a multidão que estava ao redor de Jesus, que tinha se alimentado fartamente com o pão multiplicado, mas era manipulada ideologicamente pelas classes dirigentes de Israel. Ora, Jesus com sua mensagem libertadora era visto como uma verdadeira ameaça para aquela religião, pois ele abria caminho para a humanidade encontrar-se diretamente com Deus, através da sua pessoa, dispensando a mediação dos líderes religiosos. Por isso, era frequente o murmúrio diante da sua mensagem, tanto da parte das lideranças quanto do povo por elas manipulado, como neste caso. A proposta humanizadora de Jesus soava altamente desestabilizadora para a religião e todo o sistema vigente.

Na linguagem bíblica, o verbo murmurar (em grego: γογγύζω – gonghýzo) não significa uma simples crítica ou discordância. Trata-se de um lamento que afronta, negando a autoridade. Por isso, é um pecado, pois nega a graça e o poder de Deus. É a atitude de um povo rebelde e fechado que rejeita a libertação oferecida por Deus, como acontecera no deserto: «Murmuraram contra Moisés e contra Aarão todos os filhos de Israel, dizendo consigo toda a assembleia: antes tivéssemos morrido na terra do Egito! Estamos morrendo neste deserto!» (Nm 14,2). Portanto, o murmúrio do povo contra Jesus é a confirmação do fechamento de Israel, desde o antigo êxodo, à proposta libertadora de Deus, levada a cumprimento em Jesus de Nazaré. Ao se autoapresentar como pão descido do céu, Jesus quis mostrar o fim da distância entre o humano e o divino; decretou a proximidade de Deus com a humanidade, mas foi rejeitado pelo povo que estava manipulado por uma religião que imaginava ter o monopólio de Deus. Por isso, o discurso se prolonga bastante, pois Jesus insiste na emancipação do povo, mesmo que não alcance o objetivo, pois o murmúrio indica o fechamento de perspectiva e mentalidade, o que impede a necessária conversão.

Para desqualificar Jesus e negar a sua condição de enviado de Deus, seus contestadores alegam a sua origem humana e simples: «Eles comentavam: “Não é este Jesus, o filho de José? Não conhecemos seu pai e sua mãe? Como então pode dizer que desceu do céu?”» (v. 42). Vale lembrar que o fato de seus interlocutores conhecerem seus familiares por nome é mais uma demonstração de que, neste caso, os judeus são mesmo o povo simples da Galileia, e não as autoridades de Jerusalém. Como a religião oficial tinha caricaturado Deus como um soberano distante da terra, inacessível ao ser humano, as afirmações de Jesus soavam como absurdas. Segundo aquela mentalidade, era impossível que um Deus tão grande pudesse ser manifestar na pessoa de um simples carpinteiro. Sendo habitante da região, com pai e mãe conhecidos, Jesus não tinha credencial de revelador de Deus, segundo a imagem de Deus difundida por aquela religião. Como ser imensamente superior, Deus só poderia se manifestar através de sinais extraordinários, jamais em um homem pobre e ousado como Jesus. Se aceitassem Jesus como revelador do Pai, os judeus do seu tempo estariam desconstruindo um discurso sustentado há séculos e colocando em risco os privilégios dos poderosos. Ao associar Jesus a seus pais terrenos, os judeus afirmavam que ele não poderia ter descido do céu, pois possuía origem comum a todos os homens.

Jesus não entra diretamente na discussão, pois não sente necessidade de reafirmar a sua origem divina para aquele povo duro de coração. Apenas interrompe o comentário, repreendendo às murmurações: «Jesus respondeu: “Não murmureis entre vós”» (v. 43). Jesus não quer a perpetuação dos erros de Israel que, historicamente, tem interpretado mal a presença de Deus em seu meio, rejeitando-o inúmeras vezes. Ele combate o murmúrio porque deseja que Deus, o seu Pai, quer que todos o reconheçam e o aceitem como ele realmente é: um Pai doador de vida, por amor. E tudo o que um pai realmente necessita é de filhos sintam-se amados e se amem reciprocamente. Por isso, com muita tranquilidade e consciência, Jesus deixa claro que é preciso deixar-se atrair pelo Pai para chegar até ele e sentir-se filhos e filhas: «Ninguém pode vir a mim, se o Pai que me enviou não o atrai. E eu o ressuscitarei no último dia» (v. 44). Não obstante as rejeições sofridas, Jesus reforça sua confiança no Pai e a relação intrínseca entre os dois. Se foi o Pai quem o enviou, é também o Pai quem atrairá cada pessoa ele. Na história da salvação, a iniciativa é sempre de Deus, o Pai. Quem se deixa atrair pelo Pai e vai a Jesus, terá a plenitude da vida, não como prêmio, mas como consequência. Ao reconhecer o Pai como agente de atração, Jesus dispensa qualquer forma de proselitismo e fundamentalismo no seu seguimento. A atração do Pai se dá por uma espécie de contágio, cujo elemento determinante é o amor. Quem faz a experiência de encontro com um Deus que é essencialmente amor, sente-se atraído por ele. E muitas vezes o que desperta para esse encontro é a maneira de viver das pessoas que já se encontraram com ele. Por isso, na relação com Jesus, sobretudo na perspectiva do evangelista João, o testemunho é tão indispensável. Por isso, o proselitismo é, além de desnecessário, também nocivo.

Em Jesus, toda a humanidade tem a oportunidade de unir-se a Deus, através do discipulado gerado pela escuta do Pai (v. 45). Ora, escuta o Pai quem se deixa conduzir pela sua Palavra eterna, o seu filho Jesus, cujo convite já ressoava desde os tempos dos profetas (Hb 1,1ss). O Evangelho de Jesus é, portanto, a voz do Pai ecoante no mundo e acessível a toda a humanidade. Por Evangelho, aqui, compreende-se a vida e a mensagem de Jesus. Assim como Jesus é o Reino em pessoa, ele é também o Evangelho em pessoa, pois é melhor de todas as boas notícias que o Pai já comunicou ao mundo. Por isso, ainda como resposta ao murmúrio dos seus adversários, Jesus reforça sua condição de único mediador entre o Pai e a humanidade: «Só aquele que vem de junto de Deus viu o Pai» (v. 46). Somente pode revelar com clareza o rosto amoroso do Pai quem vive em comunhão plena com ele e dele foi gerado. Enquanto a religião oficial comercializava um personagem distante, violento e vingativo, caricaturado de Deus, Jesus em sua simples condição humana revelava de modo claro a identidade do Pai, o qual não exige sacrifícios nem ofertas, mas apenas uma adesão de fé, pois é ele mesmo quem se oferece à humanidade.

E Jesus continua sua catequese como resposta às incompreensões e murmúrio da multidão que lhe cercava, expondo agora o resultado direto para quem, atraído pelo Pai, lhe der adesão pela fé: «Em verdade, em verdade, vos digo, quem crê, possui a vida eterna» (v. 47). O verbo crer (em grego: πιστεύω – pistêuo) é um dos mais relevantes para a comunidade do evangelista João, sendo utilizado noventa e oito vezes no seu Evangelho, enquanto Marcos o emprega doze vezes, Mateus trezes vezes e Lucas apenas nove vezes. Significa dar plena adesão a Jesus, deixando-se conduzir pelo seu Evangelho, aceitando-o como único programa de vida. Como consequência, quem faz essa adesão se torna possuidor da vida eterna, a qual não é uma vida para o além, como prêmio para quem praticou boas obras, mas um dom oferecido já nesta vida a quem conduz a sua existência de acordo com o Evangelho. O evangelista faz questão de empregar o verbo possuir no tempo presente: quem crê já é possuidor da vida eterna. Essa, a vida eterna (em grego: ζωὴν αἰώνιον – zoén aiónion) é a vida conduzida conforme a de Jesus, a qual nem a morte foi capaz de destruí-la. A eternidade dessa vida não significa a duração, mas a qualidade: é a vida em abundância, que já começa neste mundo; é uma vida tão autêntica, tão cheia de sentido, que nem a morte destrui-la-á.

Mais uma vez se apresentando como pão da vida e alimento perene (v. 48), Jesus põe em questão o maná comido pelos antepassados no deserto, mostrando a ineficácia daquele alimento: «Os vossos pais comeram o maná no deserto e, no entanto, morreram» (v. 49). Aqui, Jesus dá mais um sinal de ruptura com aquela tradição ao falar de “vossos pais” ao invés de “nossos pais”, pois ele também era judeu de origem. Ele quer se distanciar de uma tradição ultrapassada, fechada em seus próprios conceitos e incapaz de abrir-se ao novo. O apego aos “pais” encobria o rosto paterno de Deus. Essa tradição impedia o povo de viver uma relação filial com Deus. Eles colocavam personagens do passado no lugar do Pai, colocando Deus num trono imaginário inacessível. Jesus quer que todos tenham Deus como único Pai; para isso, é preciso sentir-se filhos e filhas dele. Seus interlocutores, pelo contrário, sentiam-se clientes de Deus, no máximo servos, devido à manipulação da religião. Na referência ao maná está implícita a referência à Lei. Assim como o maná não evitou a morte dos antepassados, também a observância da Lei não garante a vida em abundância. Mesmo assim, os judeus continuavam “devotos” do maná, considerando-o como o único alimento descido do céu. Jesus se contrapõe a essa mentalidade: está sendo dada a oportunidade de provarem um alimento verdadeiramente descido do céu, que é ele mesmo, como disse: «Eis aqui o pão que desce do céu: quem dele comer, nunca morrerá» (v. 50).

Apresentando-se como pão, Jesus garante a sua eficácia como alimento e deixa ainda mais clara a oferta total de si para a vida do mundo: «Eu sou o pão vivo descido do céu. Quem comer deste pão viverá eternamente. E o pão que eu darei é a minha carne dada para a vida do mundo» (v. 51). Ora, o maná no deserto fora dado a um povo específico e privilegiado que, mesmo assim, murmurava constantemente. A oferta de Jesus é universal, não é mais para a vida de um povo, mas para a vida do mundo. Toda a humanidade é destinatária: é uma oferta universal e plena, porque é a inteireza do seu ser, é carne e espírito, é sua vida e mensagem dadas plenamente. Aceitar essa oferta é condição para viver eternamente. O evangelista usa a palavra carne (em grego: σάρξ – sarx), um hebraísmo que exprime a totalidade da pessoa, ao invés de corpo, que poderia ser facilmente interpretado a partir da dicotomia grega corpo-espírito. É, portanto, pelo dom da carne de Jesus que é dada vida ao mundo. Logo, é também na condição carnal que o ser humano é chamado a acolher a salvação, quer dizer, na concretude da existência terrena, mesmo marcada por contradições. Do pão enquanto palavra, passa-se ao pão enquanto carne, abrindo assim o discurso para uma perspetiva ainda mais eucarística, mas não no sentido ritual, ainda, mas enquanto vida que se doa. A expressão «carne dada para a vida do mundo» indica, acima de tudo, a entrega de Jesus na cruz, consequência de seu amor infinito e sua fidelidade ao Pai. Se foi na carne que ele veio ao mundo, enquanto Palavra eterna, é também na carne que ele dá vida ao mundo.

Acolher Jesus como pão descido do céu é aceitá-lo como único mediador e revelador do Pai. Recebê-lo como alimento perene é aceitar o Evangelho como único programa de vida. A insuficiência e ineficácia do maná está ficando cada vez mais clara no discurso de Jesus, assim como o pão partilhado para a multidão no outro lado do mar. Com isso, se torna cada vez mais claro que o único alimento, realmente duradouro e capaz de gerar vida eterna é o próprio Jesus na inteireza do seu ser. Comê-lo é assimilar o Evangelho com todas as consequências que dele emanam.

Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

 

sexta-feira, agosto 02, 2024

REFLEXÃO PARA 18º DOMINGO DO TEMPO COMUM – JOÃO 6,24-35 (ANO B)


Neste décimo oitavo domingo do tempo comum, continuamos a leitura do capítulo sexto do Evangelho segundo João. Embora a liturgia salte alguns versículos (Jo 6,16-23), o texto proposto para hoje – Jo 6,24-35 – está em perfeita continuidade com aquele do domingo passado (Jo 6,1-15). Após o sinal da partilha ou multiplicação dos pães, a multidão, saciada e impressionada com o sinal cumprido por Jesus, teve a tentação de querer proclamá-lo rei, o que fez com que ele se afastasse, pois, aquela ideia era uma distorção do sinal cumprido e da sua própria missão de enviado de Deus. Ora, uma interpretação equivocada dos sinais cumpridos por Jesus e da sua identidade de messias servidor colocava em risco a eficácia do seu projeto de libertação e vida plena para a humanidade inteira. Por isso, João mostra Jesus mesmo corrigindo as incompreensões da multidão e explicando o verdadeiro sentido do sinal realizado, como mostram o evangelho de hoje e dos próximos três domingos. Isso faz de Jesus o exegeta de si mesmo no Quarto Evangelho, pois é ele quem explica sua identidade e seu agir.

Enquanto Jesus se refugiou para não alimentar os anseios triunfalistas e interesseiros da multidão, essa o procurou até encontrá-lo, já na outra margem do mar ou lago, na cidade de Cafarnaum, como mostra o texto: «Quando a multidão viu que Jesus não estava ali, nem os seus discípulos, subiram às barcas e foram à procura de Jesus, em Cafarnaum» (v. 24). Embora Jesus mesmo tenha se afastado, era compreensível a ânsia da multidão querendo estar ao seu redor, uma vez que essa é a mesma multidão que padecia, abandonada como ovelha sem pastor, de quem ele sentiu compaixão, provendo-a da necessidade mais urgente: o pão (Mc 6,34). Diante da multidão abandonada, Jesus agiu como pastor e guia, ensinando o dom da partilha como primeiro meio de superação da principal crise concreta pela qual passava. Porém, ele se preocupava com as reais intenções da multidão à sua procura e não queria alimentar falsas e ilusórias expectativas, tendo em vista a natureza do seu reino e da sua missão no mundo enquanto Palavra incarnada.

Ao encontrar Jesus, a multidão interage com ele, pela primeira vez, em forma de diálogo: «Quando o encontraram no outro lado do mar, perguntaram-lhe: “Rabi, quando chegaste aqui?”» (v. 25). Convém recordar que, no episódio da partilha dos pães propriamente, não houve uma interação direta; Jesus simplesmente percebeu a fome da multidão, se preocupou com a situação e providenciou a solução, por meio da partilha dos pães e dos peixes, a partir do que o menininho trazia. Agora, há um verdadeiro diálogo. A pergunta em si é pouco significativa e carente de profundidade, mas muito importante porque abre caminho para uma interação cada vez maior entre o Mestre – Rabi, em hebraico – e o povo. Ao dirigir essa pergunta, a multidão consegue ver Jesus como alguém acessível, o que poderia ser o início de uma nova compreensão a seu respeito, pois os mestres convencionais da época não eram acessíveis às multidões, mas apenas aos seletos grupos de discípulos. Portanto, ao interagir com Jesus, as multidões se dão conta de tratar-se de um mestre diferente. Ao considerá-lo mestre, abre-se a possibilidade para o nascimento de um novo discipulado. De fato, fazia parte da pedagogia de Jesus gerar discípulos e discípulas a partir das multidões anônimas. Jesus não responde objetivamente à pergunta da multidão, ou seja, ele não diz quando chegou ali, conforme queriam saber. Sua resposta será muito mais profunda.

À pergunta da multidão, «Jesus respondeu: “Em verdade, em verdade, eu vos digo: estais me procurando não porque vistes os sinais, mas porque comestes pão e ficastes satisfeitos”» (v. 26). Como se vê, a resposta de Jesus não responde à pergunta que lhe fora dirigida. Com bastante clareza e objetividade, ele expõe as intenções que levaram a multidão a procurá-lo e nada diz a respeito de quando chegou na outra margem do mar, como tinha sido perguntado. Em sua resposta, ele escancara a verdade sobre as motivações da multidão: não estava interessada em reconhecê-lo e aceitá-lo como aquele que Deus enviou ao mundo para salvar e dar vida em abundância (Jo 3,16; 10,10), mas apenas queriam perto de si alguém que fornecesse pão gratuitamente. De fato, Jesus sabia que estava sendo procurado pelo que tinha feito, e não pelo que realmente era. Porém, não desperdiçou a ocasião, mas aproveitou para iniciar uma ampla e profunda catequese, recordada pelo evangelista João como essencial para a sua comunidade e para a comunidade cristã de todos os tempos.

Cercado por uma multidão saciada recentemente por poucos peixes e pães multiplicados pela partilha, mas já faminta de novo, Jesus a convida a buscar algo muito maior e mais eficaz: «Esforçai-vos não pelo alimento que se perde, mas pelo alimento que permanece até a vida eterna, e que o Filho do Homem vos dará. Pois este é que o Pai marcou com seu selo» (v. 27). Esse convite-imperativo se assemelha muito ao que Jesus já tinha feito à mulher samaritana que buscava água no poço de Jacó; ali, Jesus falara que a água daquele poço saciava por alguns momentos e, embora necessária, beber dela não era suficiente para o ser humano viver plenamente saciado. Por isso, ele falou de uma água que saciava para sempre (Jo 4,1-42). Aqui, com a multidão, ele faz praticamente o mesmo: convida-a a alimentar-se com um alimento que não se perde, mas que permanece até a vida eterna. Esse alimento só pode ser dado por ele mesmo, pois é ele o Filho do Homem, marcado pelo Pai com o seu selo, que é o Espírito Santo e o amor que os une. O pão que alimenta apenas o corpo pode ser dado por qualquer pessoa, basta o dinheiro necessário para comprá-lo ou os meios necessários para produzi-lo. Já o pão que não perece e, por isso, alimenta para a vida eterna, só pode ser dado por ele porque é a sua própria vida, a sua pessoa em plenitude.

Com o sinal da partilha dos pães, Jesus tinha ensinado a multidão a superar, por si mesma, as suas dificuldades, principalmente o problema da fome. Com os pães e peixes apresentados pelo menininho, ficou a lição da partilha e da solidariedade que brota dos pequenos. Aquele gesto poderia e pode ser feito sem a presença física de Jesus, por isso, ele via como desnecessária a busca da multidão por algo que ela mesma seria capaz de fazer, se tivesse aprendido a lição da partilha. Daí, o convite para buscar algo mais profundo e não menos necessário: o alimento para uma vida plena, com sentido e dignidade plenos, a vida eterna, imune até mesmo à morte. O pão que nutre para a vida eterna, de fato, só pode ser dado por Jesus, porque é ele mesmo na inteireza do seu ser. Alimentar-se desse pão é assumir na concretude da vida o estilo de Jesus, fazendo escolhas semelhantes às suas, amando com um amor à sua maneira. É isso o que gera eternidade de vida, pois, uma vida autêntica assim não pode ser destruída nem mesmo pela morte.

Parece que as palavras de Jesus geraram reflexão na multidão, e um desejo de aprofundamento, embora essa ainda estivesse presa à teologia retributiva da lei. É, pois, muito relevante a nova pergunta que a multidão lhe dirige, pois demonstra interesse por algo superior, como se vê: «Então perguntaram: “Que devemos fazer para realizar as obras de Deus?”» (v. 28). A pergunta sobre “o que fazer” é típica da mentalidade judaica, de quem foi educado para fazer e não para ser. Fazer obras para merecer algo é negar a salvação como dom de Deus e graça. É demonstração de quem está totalmente moldado pela teologia retributiva. Por isso, a resposta de Jesus é categórica: «A obra de Deus é que acrediteis naquele que ele enviou» (v. 29). Embora fosse uma característica das comunidades paulinas, parece que a dicotomia entre fé e obras estava presente também na comunidade joanina. Pelo menos é isso o que esse trecho revela. A resposta de Jesus esclarece que não se trata de um fazer, mas de acreditar nele. É claro que aquilo que se deve fazer é importante, mas isso deve ser consequência de uma adesão livre e consciente, e não de uma mera imposição legal. A vida cristã é marcada pelo agir, mas não porque há uma regra que determine esse agir, e sim porque quem dá adesão a Jesus, pela fé, é motivado a agir como ele, servindo e amando, sanando dores e feridas, estando sempre do lado das pessoas mais necessitadas, promovendo a humanização do mundo.

Na continuidade da interação entre Jesus e a multidão, da qual surgirá a grande catequese eucarística, que será continuada nos próximos domingos, percebemos a curiosidade e o desejo da multidão em aderir à proposta de Jesus, e ao mesmo tempo os entraves ideológicos de uma religião conservadora, ritualista e legalista, como era o judaísmo da época. Por isso, a exigência de sinais e prodígios, e a comparação com o passado: «Eles perguntaram: “Que sinal realizas, para que possamos ver e crer em ti? Que obra fazes? Nossos pais comeram o maná no deserto, como está na Escritura: ‘Pão do céu deu-lhes a comer’”» (vv. 30-31). O evangelista mostra, com isso, a sua preocupação com a comunidade que necessita ver a realização de sinais para crer. Isso é impor condições, o que faz tornar secundário aquilo que é essencial: o amor gratuito e incondicional de Deus, ou seja, a graça. Catequizados pelas narrativas portentosas do Pentateuco – a Lei/Torah – as quais exaltam exageradamente os atos de Moisés, as pessoas tinham dificuldades de assimilar e aceitar que Deus pudesse se revelar na simplicidade de Jesus. A menção à experiência do deserto e aos pais que lá comeram o pão – o maná – evidencia a denúncia que o evangelista mostra de como o apega às tradições podem bloquear a comunidade de sentir a graça e o amor vivificante e gratuito de Deus revelado em e por Jesus.

A isso, Jesus responde de modo categórico: «Em verdade, em verdade vos digo, não foi Moisés quem vos deu o pão que veio do céu. É meu Pai que vos dará o verdadeiro pão do céu, pois o pão de Deus é aquele que desce do céu e dá vida ao mundo» (v. 32-33). A fórmula “em verdade, em verdade” (em grego: ἀμὴν ἀμὴν – amén, amén) sempre introduz um ensinamento solene e irrevogável, um conteúdo de fundamental importância para a comunidade. E a distinção entre Jesus e todos os personagens do Antigo Testamento é muito importante e indispensável para a sobrevivência da comunidade cristã em todos os tempos. Jesus esclarece que, na verdade, até mesmo aquele pão comido no deserto pelos antepassados já era dom de Deus, e não obra de Moisés; e aproveita para apresentar a sua novidade, como o verdadeiro “pão de Deus”, o que continua despertando curiosidade e interesse na multidão que pediu: «Senhor, dá-nos sempre desse pão» (v. 34), assim como a samaritana tinha pedido a água eterna. Ora, os grandes prodígios realizados durante a longa travessia pelo deserto, no contexto do êxodo, eram atribuídos mais a Moisés do que ao próprio Deus, pelo povo. A associação do maná – o pão caído do céu no deserto – a Moisés comprometia sua identificação como prefiguração da Eucaristia, o pão verdadeiro descido do céu porque é o próprio Jesus, na plenitude da sua pessoa. É certo que Deus já tinha dado um pão, o maná, mas o pão verdadeiro que ele tem para dar à humanidade inteira é Jesus. É Deus, o Pai, quem o doa, mas ele é tão parecido com o Pai, que ele mesmo se doa livremente.

Jesus percebeu que o caminho estava preparado para iniciar a sua grande catequese eucarística: «Eu sou o pão da vida. Quem vem a mim não terá mais fome e quem crê em mim nunca mais terá sede» (v. 35). Com a fórmula “Eu sou” (em grego: ἐγώ εἰμι – egô eimí) ele afirma sua condição divina, pois essa é a fórmula clássica de revelação de Deus (Ex 3,6.14). com isso, ele reafirma também a sua superioridade em relação a Moisés. De provedor de pão que alimenta por poucas horas, ele se apresenta como o próprio pão que alimenta para a vida toda. Para a mentalidade semita, o pão significava a própria vida, era símbolo e síntese de todo o necessário para viver. Logo, ao apresentar-se como pão, Jesus se autorrevela fonte de vida em abundância. Aceitar essa revelação implica criar intimidade com ele, deixar-se alimentar pela sua vontade e, consequentemente, ter toda a vida conduzida conforme o seu modo de viver. Aqui está o início do grande discurso eucarístico de Jesus no Quarto Evangelho, o qual será continuado na liturgia dos próximos domingos. A verdadeira explicação do sinal da partilha dos pães começa aqui. É interessante recordar que, apesar de ser o sinal (milagre) mais recordado, pois é narrado seis vezes, o sinal da partilha dos pães é o mais incompreendido. Por isso, João dá a palavra a Jesus para explicá-lo com um longo discurso, o qual será distribuído na liturgia dos próximos três domingos.

Impressiona a pedagogia de Jesus: de uma realidade material e efêmera, o pão partilhado que alimentou a multidão, ele eleva o seu a multidão ao conhecimento de algo muito mais profundo, que é o dom da sua pessoa como enviado do Pai para, nele, o mundo todo ter vida em abundância. Para isso, a comunidade deve tê-lo como único centro e referência a ser seguida. Se a eucaristia dominical, e até diária, não leva a essa centralidade, não passa de uma versão nova do maná comido pelos antigos israelitas no deserto. A eucaristia alimenta para a vida eterna quando seus partícipes aderem à maneira de viver de Jesus. Para concluir, é importante salientar que a catequese eucarística de Jesus no Evangelho de João não é uma relativização da fome de pão material; tanto é que ela vem depois do sinal da partilha (multiplicação). Como necessidade urgente e concreta, o problema da fome foi resolvido primeiro; depois veio a catequese. Isso só reforça que a práxis de Jesus era marcada pelo “fazer e ensinar”, como deve ser na vida da comunidade cristã.

Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

 

sábado, julho 27, 2024

REFLEXÃO PARA O 17º DOMINGO DO TEMPO COMUM – JOÃO 6,1-15 (ANO B)

 


Neste décimo sétimo domingo do tempo comum, a liturgia inicia uma sequência de cinco domingos de leitura do capítulo sexto do Evangelho de João, dando uma pausa temporária na leitura de Marcos. Trata-se de uma particularidade do ano litúrgico B, em virtude da brevidade do Evangelho de Marcos, comparado aos outros sinóticos. Por não ter material suficiente para todo o ano, recorre-se ao Quarto Evangelho, como complemento. Para hoje, especificamente, a liturgia contempla os primeiros quinze versículos deste capítulo: Jo 6,1-15. É o relato do episódio chamado popularmente de “multiplicação dos pães”, embora esse não seja o título mais apropriado. Se a liturgia estivesse seguindo a sequência de Marcos, seria também esse o episódio lido, pois corresponde à sequência imediata do que fora lido domingo passado. Portanto, a liturgia trocou o livro, mas não alterou a sequência temática.

É importante recordar que, no domingo passado, o evangelho foi concluído com a afirmação que Jesus, ao ver a multidão, «teve compaixão, porque eram como ovelhas sem pastor. Começou, pois, a ensinar-lhes muitas coisas» (Mc 6,34). A primeira reação de Jesus, ao ver a multidão, foi a compaixão, e a primeira atitude foi ensinar. Mas, como não bastava o ensinamento, a esse seguiu-se o gesto da partilha dos pães (Mc 6,35-42), como resposta à situação de abandono e sofrimento vividos pela multidão. Ora, a primeira consequência do abandono vivido pelo povo era a fome, como continua sendo hoje, devido à negligência dos maus governantes. A passagem do ensinamento à partilha do alimento mostra como Jesus sabia associar bem o ensinamento com a práxis, como deve fazer a comunidade cristã em todos os tempos. Os sentimentos de Jesus eram acompanhados de respostas concretas aos sofrimentos das pessoas. Portanto, apesar de estarmos hoje lendo outro Evangelho, é importante que este episódio seja compreendido como consequência da compaixão de Jesus diante do abandono e sofrimento do povo.

O episódio da “condivisão dos pães”, expressão mais apropriada do que multiplicação, é o único milagre ou sinal de Jesus narrado pelos quatro Evangelhos, com seis versões (Mateus e Marcos narram duas vezes), sendo que a versão joanina é a mais rica em detalhes e, consequentemente, em teologia, sendo ainda completada por um longo discurso de revelação de Jesus, no qual ele se autoapresenta como pão vivo e alimento verdadeiro para todas as pessoas, como veremos nos domingos seguintes. Esse discurso é considerado uma verdadeira catequese eucarística. Convém recordar que o Evangelho de João é muito contido em relação aos milagres de Jesus. Narra somente sete, aos quais nem sequer chama de milagres, mas de sinais, o que revela bastante prudência e profundidade da parte do evangelista. Ora, o sinal não é um fim em si mesmo, mas aponta para uma realidade que lhe ultrapassa, que vai além do que se experimenta e se vê. E no conjunto do Quarto Evangelho, a condivisão dos pães (e peixes) é o quarto sinal; está localizado exatamente no meio dos sete, e no centro literário da primeira parte da obra, chamada de “Livro dos sinais” (Jo 1–11). Logo, é clara também a sua centralidade teológica.

O texto diz que «Jesus foi para o outro lado do mar da Galileia, também chamado de Tiberíades» (v. 1). Como se sabe, o que os evangelhos chamam de mar da Galileia era apenas um grande lago. O único evangelista que o chama de lago mesmo é Lucas. Os demais chamam de mar, certamente, por razões teológicas, tendo em vista o significado de adversidade e hostilidade que o mar representava para a mentalidade semita, o qual era considerado a morada do mal e, por isso, era sinônimo de perigo. Logo, atravessá-lo significava superar o mal. Enquanto nos sinóticos a passagem para outra margem significa a abertura ao mundo pagão e o encontro com as pessoas marginalizadas, em João é mais uma recordação do êxodo. Essa abertura ao mundo pagão já estava consolidada na época da redação do Quarto Evangelho, por isso, já não entra em discussão aqui. A travessia de uma margem a outra do mar por Jesus recorda o primeiro êxodo, mas não como mera repetição, e sim como superação.

A superioridade do novo êxodo proposto por Jesus ficará mais evidente no evangelho do próximo domingo (Jo 6,24-35), quando ele fará a contraposição entre o pão dado por ele, que é a sua própria pessoa, e o pão dado aos antepassados no deserto (o maná), por intercessão de Moisés. Ora, mesmo vivendo na terra dado por Deus, o povo tinha perdido a verdadeira liberdade; logo, os efeitos do êxodo já não eram mais experimentados. O sistema religioso vigente, aliado ao sistema político dominante – o império romano – tinha assumido o papel do faraó do Egito, oprimindo o povo em todos os sentidos, desde o campo ideológico ao econômico. Por isso, a mensagem de Jesus é um convite à libertação porque o povo tinha se tornado escravo novamente. O destino do novo êxodo não é uma terra distante nem uma vida no além: é o Reino de Deus, uma sociedade alternativa, com um sistema baseado na partilha, solidariedade, amor, justiça e dignidade.

Jesus chamava a atenção das pessoas e atraía a multidão em seu seguimento «porque viam os sinais que ele operava a favor dos doentes» (v. 2). O termo que o texto litúrgico traduz por “doentes” significa muito mais, na língua original (em grego: ἀσθενούντων - asthenunton): significa as pessoas fracas, debilitadas, sem forças, fragilizadas, dentre as quais incluem-se os doentes; enfim, significa a totalidade das pessoas das marginalizadas, sendo que uma das principais causas da marginalização era mesmo a doença. Eram as pessoas que a religião tinha descartado, exatamente porque não tinham o que oferecer aos cofres do templo. E os sinais operados por Jesus eram, preferencialmente, em favor dessas pessoas, visando restituir-lhes a dignidade e o sentido para a vida. Portanto, as multidões se admiravam com Jesus, devido ao seu jeito de acolher, porque se sentiam representadas pela sua mensagem humanizadora e, é claro, porque também queriam aproveitar-se materialmente dos sinais realizados por ele, o que será advertido por ele mesmo no discurso seguinte, como veremos nos próximos domingos.

As multidões seguiam Jesus enquanto «estava próxima a Páscoa, a festa dos judeus» (v. 4). Com isso, o evangelista enfatiza Jesus como único sinal autêntico de libertação e alternativa para aquele povo abandonado como ovelha sem pastor. A Páscoa, como “festa dos judeus”, tinha sido transformada em instrumento de exploração, dominação e manutenção da ordem vigente. Por isso, mesmo sutilmente, o evangelista apresenta uma grande ironia: aquela festa celebrada em Jerusalém já não era Páscoa de Iahweh, não era mais a celebração da libertação do povo pobre escravizado, mas a “festa dos judeus”. É importante recordar que quando João usa o termo judeus, e o faz com bastante frequência, não se refere a todo o povo, mas às classes e grupos dirigentes, principalmente aos sacerdotes do templo que, de fato, tinham desfigurado o rosto verdadeiro de Deus. Assim, Jesus é apresentado como a alternativa de Deus à religião opressora do templo, e os primeiros a perceber isso são as pessoas mais simples e humildes, os pobres e excluídos que o seguem, as pessoas que tinham sido abandonadas pelos maus pastores de Israel.

A multidão que segue Jesus é um povo com necessidades concretas que não podem ser ignoradas. E Jesus reconhece logo qual é a primeira necessidade: o alimento. De acordo com o texto, ninguém lhe pediu nada, ninguém lhe disse que estava com fome; foi ele mesmo quem percebeu e logo se solidarizou, se preocupou com a fome do povo. Jesus se sente responsável, junto com seus discípulos, e transmite essa responsabilidade para a sua comunidade cristã, ao longo da história. Ele percebeu que aquele seria um bom momento para medir o aprendizado e a maturidade dos seus discípulos, por isso, provocou Filipe, mesmo já sabendo o que iria fazer: «Onde vamos comprar pão para que eles possam comer?» (v. 5). A resposta de Filipe é baseada em cálculos. Ele simplesmente apela para o campo da economia, avaliando a situação com as categorias do mercado: «Nem duzentas moedas de prata bastariam para dar um pedaço de pão a cada um» (v. 7). Como se vê, a tentação de Filipe é de reproduzir na comunidade do Reino as relações do sistema econômico, baseado na lógica de compra e venda, enquanto a dinâmica da comunidade cristã deve ser outra: a partilha.

André, o outro discípulo que interage com Jesus e atua diretamente no episódio, parece começar a compreender a lógica de Jesus, embora ainda não tivesse muita convicção: «Está aqui um menino com cinco pães de cevada e dois peixes. Mas o que é isso para tanta gente?» (v. 9). Ora, enquanto Filipe pensou em solucionar o problema com base na lógica do mercado, através das relações de compra-venda, André olhou para a própria comunidade, percebendo o que já tinha para ser colocado em comum, mesmo reconhecendo não ser suficiente. Aqui está a transição para a proposta de Jesus, que é a lógica do Reino: a solução dos problemas da comunidade deve ser buscada em seu próprio interior, ou seja, a partir de dentro. Os cristãos e cristãs não podem esperar chegarem as condições ideais para o Reino de Deus se estabelecer plenamente; devem começar a viver os valores do Reino, mesmo em condições desfavoráveis, com o pouco que tem, e é assim que o Reino vai se edificando na história, aos poucos, a tempo e contratempo.

Embora considerando insuficiente, a observação de André é muito importante e merece ser recordada: «um menino tem cinco pães de cevada e dois peixes». Um menino era uma figura muito pouco representativa na época, sem nenhum valor reconhecido, uma vez que não produzia. Para enfatizar ainda mais esse aspecto, o evangelista emprega o diminutivo: um menininho (em grego: παιδάριον – paidárion), embora a tradução do lecionário não favoreça a percepção desse detalhe. À luz da lógica vigente, um menininho era uma pessoa que nada nada teria a contribuir na solução de um grande problema. Pelo contrário, ele era visto como parte do problema, ao invés de iluminar a solução. Isso torna a ideia de André altamente revolucionária para o contexto, embora necessite aprimorá-la. O pão de cevada era o alimento dos pobres, pois a cevada era o grão mais barato; os ricos comiam o pão de trigo. Os dois peixes servem de complemento numérico para chegar a sete, número que evoca completude. Certamente, essa quantidade era tudo o que a família do menininho tinha levado. Com isso, o evangelista indica que, para resolver os problemas mais urgentes, é suficiente cada um colocar à disposição de todos o pouco que tem, o que André ainda não tinha compreendido suficientemente, mas estava a caminho da plena compreensão. O menininho com os cinco pães e os dois peixes é, portanto, a imagem ideal do discípulo/discípula e da comunidade cristã. Antes de tudo, para entrar na lógica do Reino é necessário fazer-se e reconhecer-se pequeno. Reino de Deus e grandeza são incompatíveis. Não importa a quantidade daquilo que se tem, mas a disposição de colocar a serviço do próximo é o que realmente conta. As soluções para os problemas da comunidade devem vir de dentro, e dependem essencialmente dos pequeninos. A comunidade é saciada quando o pouco que cada um tem é colocado em comum; isso ocorre quando cada um considera aquilo que tem como dom de Deus e, por isso, destina à partilha.

O menininho não mostrou resistências, entregou tudo o que tinha e «Jesus tomou os pães, deu graças e distribuiu-os aos que estavam sentados, tanto quanto queriam. E fez o mesmo com os peixes» (v. 11). André lamentou que somente cinco pães e dois peixes não seriam suficientes. Jesus foi mais além: “tomou os pães e deu graças”, ou seja, agradeceu pelo pouco que se tinha! O evangelista usa aqui o verbo grego do qual originou-se a palavra eucaristia (verbo εὐχαριστέω – eukharistêo). Eucaristia é, portanto, agradecimento, ação de graças pelos dons partilhados. Logo, para ter sentido na vida das comunidades, a eucaristia deve estar relacionada à partilha, à vivência da comunhão fraterna, incluindo a condivisão do pão e de outras necessidades, conforme a realidade de cada comunidade. O pão aparece como primeiro sinal, porque a fome é o problema urgente, é algo que não pode esperar. Sem essa relação com as necessidades concretas, o que as comunidades chamam de Eucaristia pode não passar de teatro, sem sequer aproximar-se da Eucaristia de Jesus. Assim como o evangelista começava a distinguir a Páscoa dos judeus da páscoa de Jesus, nos tempos atuais pode-se distinguir a Eucaristia de Jesus do conjunto de ritos que certos grupos fechados chamam de eucaristia, onde os pequeninos não tem espaço.

Ainda sobre a(s) atitude(s) de Jesus, ao receber os pães e os peixes, merece atenção a sequência apresentada pelo evangelista, que indica a lógica do Reino e constitui uma verdadeira rede de solidariedade: «tomou os pães, deu graças e distribuiu-os», dito de maneira mais simples, temos: “receber – agradecer – partilhar”. É essa lógica que o evangelista quer imprimir em cada comunidade leitora da sua obra, à luz dos ensinamentos e atitudes de Jesus. Muitos pormenores e dúvidas ficam, certamente, nas entrelinhas do texto, o que não ofusca o grande ensinamento de Jesus para a sua comunidade. André observou que um menininho estava com cinco pães e dois peixes, mas não diz que era somente aquele que tinha algo que poderia ser partilhado. O importante é que alguém teve coragem de começar a colocar à disposição dos outros o pouco que tinha, e Jesus deu graças por aquilo. No final, todos ficaram satisfeitos. A solução veio de dentro da comunidade, e começando por quem menos parecia ter condições de ajudar a solucionar um grande problema: um menininho. Tendo ficado todos satisfeitos, percebendo o que ainda tinha sobrado, «Jesus disse aos discípulos: “Recolhei os pedaços que sobraram, para que nada se perca!” Recolheram os pedações e encheram doze cestos com as sobras dos cinco pães, deixadas pelos que haviam comido”» (v. 12-13). O número doze simboliza a totalidade do povo, a nação inteira de Israel, reconfigurada na comunidade cristã pelos doze apóstolos. A quantidade recolhida, doze cestos, significa, portanto, que quando a partilha é praticada, tem alimento para todos e todas, ou seja, ninguém passaria fome se todos vivessem concretamente o espírito da partilha. Essa não deve ser um ato isolado, mas uma prática constante na comunidade.

Assim como todos os sinais cumpridos por Jesus no Evangelho de João visam a manifestação da glória de Deus e o despertar da fé no Verbo Encarnado, também o sinal da condivisão dos pães despertou reação e reconhecimento: «Este é verdadeiramente o Profeta, aquele que deve vir ao mundo» (v. 14). Porém, essa é uma imagem insuficiente para descrever Jesus. Vê-lo como apenas como profeta é colocá-lo em continuidade com a antiga aliança e, portanto, negar a insuficiência e decadência daquela aliança que ele denuncia com os sinais cumpridos. Inclusive, a continuidade dos sinais ao longo do livro, mostra a necessidade de Jesus continuar revelando sua novidade messiânica e a superação da antiga aliança. A prova definitiva da incompreensão do povo em relação a Jesus está no último versículo: «Mas, quando notou que estavam querendo levá-lo para proclamá-lo rei, Jesus retirou-se de novo, sozinho, para o monte» (v. 15). Enquanto Jesus queria ver o povo livre e emancipado, ensinando inclusive a encontrar a solução para os problemas dentro da própria comunidade, o povo faz o contrário: ao invés de viver a liberdade, quer um soberano para si, alguém que o domine e governe. Para o problema da fome, por exemplo, Jesus mostrou que a comunidade tem capacidade de superar quando vive o espírito da partilha e da solidariedade. A proclamação de Jesus como rei seria uma deformação do seu messianismo, o que persistirá por muito tempo na comunidade, inclusive entre os discípulos, como mostrará João na última ceia, com a resistência de Pedro à atitude serviçal de Jesus no lava-pés (Jo 13,6ss).

O Evangelho de hoje mostra que a comunidade deve ter prioridades irrenunciáveis, e deve saber reconhecer as situações que não podem esperar, como a fome. O exemplo do menininho, colocando à disposição da comunidade os cinco pães e os dois peixes, e a atitude de Jesus rendendo graças pelo pouco que tinha, oferecem muitas luzes para os cristãos de todos os tempos. A comunidade não pode esperar ter condições necessárias para viver o programa do Reino, mas é ela mesma que tem de criar tais condições, encontrando dentro de si mesma a solução para os seus problemas, vencendo o egoísmo, a inveja, o orgulho e o desejo de poder. É claro que o Evangelho não tem respostas apenas para as necessidades materiais das pessoas, como veremos nos próximos domingos. Mas, no texto específico de hoje, a ênfase do evangelista é a necessidade de superar a fome de pão das pessoas necessitadas, ou seja, das almas de carne e osso!

Pe. Francisco Cornélio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

 

REFLEXÃO PARA A FESTA DA EXALTAÇÃO DA SANTA CRUZ – JOÃO 3,13-17

  Neste ano, a liturgia do vigésimo quarto domingo do tempo comum é substituída pela Festa da exaltação da Santa Cruz, cujo evangelho é Jo...