sexta-feira, maio 17, 2024

REFLEXÃO PARA O DOMINGO DE PENTECOSTES (II) – JOÃO 15,26-27;16,12-15

A liturgia da solenidade de Pentecostes oferece uma segunda opção de evangelho para a missa do dia. Trata-se de Jo 15,26-27;16,12-15, cujo contexto ainda é o da última ceia, ambientada no cenáculo em Jerusalém, e vivenciada por Jesus com seus discípulos, às vésperas da Páscoa. Como se vê, é um texto fragmentado, composto de passagens extraídas de dois capítulos diferentes. Mesmo assim, percebe-se que há uma clara unidade temática entre os dois fragmentos, e isso justifica o emprego na liturgia desde dia. Obviamente, o que une os dois fragmentos, formando um único texto, é a promessa do Espírito Santo por Jesus, assegurando aos seus discípulos uma assistência permanente na missão. No Evangelho de João, a missão cristã consiste no testemunho, acima de tudo. Em termos de contextualização, apresentaremos apenas o contexto narrativo do texto lido. Para o contexto bíblico e histórico da festa de Pentecostes, consultar a reflexão sobre Jo 20,19-23, disponível aqui: https://porcausadeumcertoreino.blogspot.com/2024/05/reflexao-para-o-domingo-de-pentecostes.html 

Como já afirmamos em outras ocasiões, a ceia no Quarto Evangelho não significa apenas o consumo de alimentos, nem a vivência de um rito, tampouco uma mera confraternização. Para a comunidade joanina a ceia é autorrevelação de Jesus, sendo o momento mais forte da sua catequese. Foi na ceia que Jesus apresentou o seu “testamento”, como é chamado o seu longo discurso de despedida, do qual faz parte o evangelho de hoje. A centralidade da ceia em João já é evidenciada pelo amplo espaço narrativo que ocupa: são cinco capítulos (Jo 13–17), totalizando cento e cinquenta e cinco versículos, o que corresponde a um quarto de todo o Evangelho. Esse momento foi iniciado com o lava-pés (13,1-15), e continuado pelo discurso de Jesus, com algumas interrupções dos discípulos (13,36-38; 14,5.8.22). Jesus sabia do que estava para acontecer: em pouco tempo, seria condenado à morte; os discípulos também imaginavam o que estava para acontecer, embora não tivessem ainda tanta clareza. Havia um clima de tensão e medo entre os discípulos, o que era inevitável para as circunstâncias. Por isso Jesus procurou tranquilizá-los em diversos momentos (14,1.27; 16,6.22). Por cinco vezes, durante o discurso, Jesus prometeu enviar o Espírito Santo quando retornar para o mundo do Pai (14,16-17.26; 15,26; 16,7-8.13), de modo que os discípulos não permaneceriam sozinhos, pois através do Espírito, a presença de Jesus se eternizaria no meio deles. O Evangelho de hoje contém a quinta e última promessa do Espírito Santo.

Durante o seu ministério, Jesus apresentou todo o seu programa aos discípulos, o seu “Evangelho”, compreendendo palavras e sinais; não escondeu nada, conforme Ele já tinha dito nesse mesmo discurso: «já não vos chamo servos, porque o servo não sabe o que faz o seu Senhor, mas vos chamo de amigos, porque tudo o que ouvi de meu Pai vos dei a conhecer» (Jo 15,15). Ser discípulo(a) de Jesus é entrar no seu círculo de profunda intimidade, é ser contado entre os seus amigos, de quem Ele nada esconde. E isso é uma demonstração muito grande de amor pelos seus discípulos, revelando-se por inteiro, falando claramente, deixando-se conhecer em plenitude. Isso se torna ainda mais concreto com a promessa da permanente assistência, mediante o Espírito Santo que será enviado: «Quando vier o Defensor que eu vos mandarei da parte do Pai, o Espírito da Verdade, que procede do Pai, ele dará testemunho de mim» (15,26). Essa promessa é muito significativa, porque pouco tempo antes Jesus tinha prevenido os discípulos sobre as perseguições que haveriam de sofrer, como consequência do ódio do mundo ao seu projeto de amor sem limites.

Sozinhos, obviamente, os discípulos de Jesus não poderiam suportar o ódio e as perseguições sofridas como consequência da fidelidade ao seu amor. Por isso, necessitam de quem os defenda. Isso justifica o emprego do título funcional dado ao Espírito Santo, aqui e em outras ocasiões (Jo 14,16.26) dentro deste mesmo discurso: o Defensor. Esse título traduz o termo grego “parákletos” (παράκλητος), empregado no texto original, posteriormente adaptado ao português como paraclito. Literalmente, significa “aquele que é chamado a ficar junto”, com a função de defender, consolar, encorajar e até falar em nome do outro. E equivalente a palavra latina “advocatus”, da qual provém o termo português advogado. É importante essa reconstrução, pois ajuda a perceber a real função do Espírito Santo na comunidade, como pensou o próprio Jesus. Não se trata apenas de um simples título, mas de realidade viva e vivificante, sem a qual a comunidade cristã pereceria, longe da Verdade e incapaz de dar testemunho. Por sinal, Verdade e testemunho são outras duas palavras-chaves deste primeiro versículo. O próprio Espírito, que é o Defensor da comunidade, é caracterizado aqui como o “Espírito da Verdade”. No Evangelho de João, a Verdade é Jesus mesmo (Jo 14,6), com sua mensagem de libertação (Jo 8,31-32). Ora, quem conhece a verdade se torna livre, e quem liberta é ele, Jesus, a verdade em pessoa. Portanto, o Espírito Santo, que é Defensor, é o Espírito da Verdade porque só Jesus, em comunhão com o Pai, pode oferecer, pois só ele liberta.

O primeiro efeito do Espírito Santo, enquanto Defensor da comunidade, é encorajá-la para o testemunho. Ora, no contexto da última ceia, os discípulos ficavam angustiados (Jo 14,1ss), à medida em que Jesus deixava mais claro o seu destino. Inclusive, tinha acabado de alertá-los sobre o ódio e perseguições que haveriam de sofrer (15,23-25), por isso, a necessidade da coragem é fundamental. E tanto o Espírito Santo dará testemunho quanto os discípulos por ele impulsionados: «E vós também dareis testemunho, porque estais comigo desde o começo» (15,27). Em todos os tempos, a coragem para o testemunho é requisito básico para o seguimento de Jesus. Aqui, ele recorda a necessidade urgente dos primeiros discípulos, que estiveram com ele desde o início, destinatários primeiros do Espírito Santo, de darem testemunho dele. Esse testemunho deve ser continuado pela comunidade em todos os tempos, e disso depende a adesão do mundo ao projeto de Jesus. O testemunho, motivado pelo Espírito Santo, é capaz de humanizar o mundo e libertá-lo, pois significa a irradiação do amor de Jesus.

Os primeiros discípulos de Jesus, como estavam com ele desde o início, tiveram o privilégio de conhecer integralmente toda a sua mensagem. Contudo, mediante o Espírito Santo e a continuidade do testemunho, os discípulos e discípulas de todos os tempos também têm a oportunidade de conhecer tudo o que ele ensinou, e é importante que esse ensinamento seja recebido sempre como novidade. Por isso, ele declara: «Tenho ainda muitas coisas a dizer-vos, mas não sois capazes de as compreender agora» (v. 12). Ora, Jesus já disse tudo; não há novas coisas para dizer ou ensinar. Logo, aqui, Ele não se refere a novos ensinamentos, mas à capacidade de compreensão dos discípulos. Muita coisa da vida e da mensagem de Jesus ainda não tinha sido assimilada pelos discípulos, porque a chave de interpretação da sua vida é a cruz e ressurreição. Na verdade, aqui o evangelista nem usa o verbo compreender, empregado equivocadamente pela tradução litúrgica, mas o verbo “suportar” (em grego: βαστάζω – bastázo); a tradução mais justa, portanto seria: “não sois capazes de suportar agora”. Antes da experiência da ressurreição, e sem o dom maior do Ressuscitado, que é o Espírito Santo, os discípulos não tinham forças para suportar a sua mensagem de libertação e vida em plenitude, sobretudo porque essa mensagem compreende a passagem pela cruz, como consequência de um amor incondicional.

Para compreender e suportar o peso da mensagem de Jesus, principalmente a cruz, os discípulos necessitam de uma força especial, de uma energia que os tire do medo e do comodismo. E Jesus garante que eles receberão essa força: «Quando, porém, vier o Espirito da Verdade, ele vos conduzirá à plena verdade. Pois ele não falará por si mesmo, mas dirá tudo o que tiver ouvido; e até as coisas futuras vos anunciará» (v. 13). A Verdade é o próprio Jesus, como Ele mesmo se auto intitulara antes: «Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida» (Jo 14,6). A “Verdade plena”, portanto, é o Cristo glorificado no mundo do Pai, realidade que só pode ser alcançada por quem se deixa conduzir pelo Espírito; significa o “conjunto da obra”: da preexistência do Verbo (Jo 1,1) à encarnação (Jo 1,14), passando pela cruz, até o retorno ao mundo do Pai. A função do Espírito é manter a comunidade alinhada ao projeto de Jesus, que é a Verdade em pessoa. As “coisas futuras” que serão anunciadas não são novas revelações ou visões; significa a capacidade de ler os eventos futuros à luz da mensagem de Jesus. A comunidade cristã – a Igreja – sempre encontrará situações novas e surpreendentes ao longo da história. Independentemente da época, a comunidade deverá interpretar tais situações à luz de tudo o que Jesus ensinou. E só é possível fazer isso deixando-se conduzir pelo Espírito da Verdade. Por isso, guiada pelo Espírito Santo, a comunidade mantém a atualidade da mensagem de Jesus em qualquer que seja a situação e a época histórica.

Continuando a explicação sobre os efeitos do Espírito Santo para a vida da comunidade, Jesus afirma: «Ele me glorificará, porque receberá do que é meu e vo-lo anunciará» (v. 14). Ora, o Espírito irá iluminar os discípulos para compreenderem e viverem o que Jesus já disse. Assim como Jesus glorificou o Pai fazendo a sua vontade, também o Espírito glorifica Jesus conduzindo a comunidade em conformidade com o Evangelho. Aqui, cabe destacar um aspecto importante da teologia do Quarto Evangelho. Ora, ao contrário dos sinóticos, que preveem uma vinda gloriosa de Jesus no final dos tempos, João segue outra perspectiva. Para o autor do Quarto Evangelho, a glória de Jesus é que Ele mesmo esteja permanentemente presente na comunidade através do Espírito. À medida em que a comunidade se deixa conduzir pelo Espírito Santo, ela põe em prática o programa de Jesus, cuja síntese é o novo mandamento do amor (cf. Jo 13,34). Fazendo assim ela revela Jesus presente no mundo. Fazer isso é glorificá-lo. Portanto, o efeito “glorificante” do Espírito Santo em relação a Jesus confere séria responsabilidade à comunidade.

A promessa do Espírito é concluída com uma afirmação muito profunda que enfatiza a comunhão de Jesus com o Pai: «Tudo o que o Pai possui é meu. Por isso, disse que o que ele receberá e vos anunciará, é meu» (v. 15). O Pai é a fonte originária de tudo. O que Jesus tem a oferecer ao mundo, o amor ilimitado e incondicional, pertence ao Pai; mas como Ele e o Pai são Um (cf. Jo 10,30), tudo o que é do Pai é também seu. Logo, o que o Espírito recebe de Jesus, recebe também do Pai. Aqui, nesse último versículo temos, mais uma vez, um eco trinitário bastante evidente, pois revela a comunhão dos três: o Espírito comunica à comunidade tudo o que recebe de Jesus, e tudo o que Jesus concede ao Espírito recebeu do Pai. Na comunhão trinitária, há uma cadeia de comunicação e de amor, de modo que tudo o que um faz tem a ver com o outro. E o Espírito Santo é quem faz a irradiação desse amor no mundo, por isso, fechando-se a ele a comunidade cristã perde a razão de existir. A presença perene de Jesus na comunidade, através do Espírito, é também presença do Pai. É essa relação que torna sempre novo e atual tudo o que Jesus viveu e ensinou. Deixar-se conduzir pelo Espírito Santo é entrar também nessa comunhão profunda com o Pai e o Filho.

Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

REFLEXÃO PARA O DOMINGO DE PENTECOSTES (I) – JOÃO 20,19-23



O evangelho da Solenidade de Pentecostes é sempre o mesmo, independentemente do ciclo litúrgico vigente:  Jo 20,19-23. Na verdade, a liturgia oferece também uma segunda opção de evangelho para este dia (Jo 15,26-27;16,12-15), mas tem sido pouco utilizado. O texto aqui tratado corresponde ao relato da primeira manifestação do Senhor Ressuscitado aos seus discípulos, ao anoitecer do primeiro dia da semana, ou seja, o domingo mesmo da ressurreição. Inclusive, esse texto já foi lido na liturgia dominical deste tempo pascal, como parte do evangelho do segundo domingo, como também acontece todos os anos. Naquela ocasião, no entanto, este trecho fora lido como parte de uma sequência maior: Jo 20,19-31, que compreende a manifestação do Ressuscitado também no domingo seguinte à ressurreição, ou seja, «oito dias depois» (Jo 19,26). Portanto, embora estejamos de fato há cinquenta dias da Páscoa, o evangelho de hoje nos remete ao dia mesmo da ressurreição.

Pentecostes era uma das três maiores festas do calendário litúrgico judaico, juntamente com as festas da Páscoa e das tendas. Era celebrada cinquenta dias após a Páscoa. Na Bíblia hebraica é chamada de “festa das semanas” (שָּׁבֻעוֹת – shavuot), pois contavam-se sete semanas após a Páscoa, mais um dia, totalizando cinquenta dias (7x7+1=50). Por isso, recebeu o nome de “Pentecostes” (em grego: πεντηκοστή – pentecostê) a partir da dominação grega, cujo significado é simplesmente quinquagésimo dia (Tb 2,1; 2Mc 12,32). O fato de ser o resultado numérico da operação 7x7 indica a ideia de plenitude que essa festa transmite: o número perfeito – sete – multiplicado por ele mesmo. Quer dizer que Pentecostes é a festa da plenitude da Páscoa, tanto para a mundo hebraico quando para a fé cristã. Como todas as festas judaicas, também pentecostes tem suas origens ligadas à vida agrícola do povo: era a festa da colheita. Os peregrinos iam a Jerusalém agradecer pela colheita, levando os melhores grãos e frutos da terra como oferta, em gratidão a Deus.

Com o passar do tempo, essa festa perdeu sua relação com a agricultura, e foi ganhando um novo significado, com uma conotação mais religiosa e histórica. O motivo da celebração passou, então, a ser o agradecimento a Deus pelo dom da Lei ao seu povo. Na época de Jesus e dos apóstolos, esse novo sentido já estava consolidado: os judeus de todas as partes do mundo, conforme as condições econômicas, iam a Jerusalém, para agradecer a Deus pelo dom da Lei, transmitida através de Moisés. Lucas, autor dos Atos dos Apóstolos, se serve desse contexto e faz coincidir o envio do Espírito Santo com a festa judaica de Pentecostes, como artifício literário e teológico, para ensinar às suas comunidades que a nova lei é o Espírito Santo, o dom pascal por excelência. Com isso, ele ensinar que, para permanecer fiel a Jesus e à sua mensagem, a comunidade cristã já não necessita das prescrições da Lei de Moisés; deve apenas estar sensível e aberta aos dons do Espírito Santo.

Por outro lado, o autor o evangelista João faz de tudo para que os referenciais da sua comunidade não coincidam com os esquemas litúrgicos judaicos. Para ele, as grandes festas dos judeus em Jerusalém sempre foram muito conflituosas para Jesus; eram momentos de confronto e ameaça (2,13ss; 5,1.18; 7,1ss; 10,31; 11,56), além de sinônimo de exploração e comércio. Por isso, ele situa a doação do Espírito Santo por Jesus aos discípulos, no dia mesmo da ressurreição. Embora a Igreja tenha adotado o esquema cronológico de Lucas, a perspectiva joanina tem mais sentido e responde melhor às necessidades dos discípulos, como mostra o Evangelho de hoje: «Ao anoitecer daquele dia, o primeiro da semana, estando fechadas, por medo dos judeus, as portas do lugar onde os discípulos se encontravam, Jesus entrou e, pondo-se no meio deles, disse: A paz esteja convosco!» (v. 19). Ora, amedrontada e sem poder de ação, essa comunidade não teria condições de esperar cinquenta dias para receber o Espírito Santo. É somente pela força do Espírito Santo que as portas são abertas e os dons comunicados pelo Ressuscitado podem ser experimentados por todos.

A comunidade dos discípulos estava em crise, profundamente abalada. Até aquele momento, somente Maria Madalena e o Discípulo Amado tinham convicção da ressurreição (Jo 20,8.16-18). A morte de Jesus na cruz foi um alerta para os discípulos: quem continuasse propagando ideias como as dele, poderia terminar da mesma forma. Por isso, estavam as portas trancadas, devido ao medo. Por “medo dos judeus” entende-se o medo das autoridades, e não de todo o povo; é típico de João usar o termo “judeus” referindo-se às autoridades de Jerusalém (Jo 9,22; 12,42; 16,16). Apesar do medo, o fato de estarem reunidos é um sinal de esperança; significava que não tinham perdido completamente as esperanças; o ideal que os unia não tinha ainda se apagado. Porém, não poderiam continuar naquela situação, ou seja, acuados pelo medo. Ora, o medo impede a missão, as portas fechadas bloqueiam o anúncio da Boa Nova. Enfim, o medo é falta de experiência com o Ressuscitado.

Ao medo dos discípulos, o Ressuscitado responde com o dom da sua paz. Aqui, a paz não significa simplesmente a saudação típica do povo judeu, o famoso “shalom” (שָׁלוֹם). Inclusive, a tradução correta da expressão não é “a paz esteja convosco”, como está no texto litúrgico, mas “paz a vós”, sem a forma verbal “esteja”. O Ressuscitado não transmite um desejo de paz, mas traz a paz efetivamente, faz a paz acontecer. E quem faz experiência com Ele já tem a paz dentro de si, embora seja uma paz inquieta, como ele mesmo viveu. E imediatamente os discípulos sentiram a paz neles e entre eles, pois passaram do medo à alegria (v. 20). A paz é plenitude de vida e equilíbrio, o bem-estar da pessoa em todas as suas dimensões, condição indispensável para a felicidade. Jesus comunica a sua paz estando no meio, quer dizer, no centro da comunidade. Para que os dons do Ressuscitado sejam realmente acolhidos, é necessário que a sua centralidade na comunidade seja respeitada; isso vale para todos os tempos e lugares. Para uma comunidade viver realmente os propósitos do Evangelho é necessário, antes de tudo, que no centro do seu existir esteja o Ressuscitado e somente Ele, pois é Ele o único ponto de referência e fator de unidade. Por isso, ao se manifestar, o Ressuscitado aparece sempre no meio.

Na continuidade da experiência, diz o texto que Jesus «mostrou-lhes as mãos e o lado» (v. 20a). Ao mostrar as mãos e o lado, Jesus mostra a continuidade entre o Ressuscitado e o Crucificado; se trata da mesma pessoa. O Ressuscitado traz as marcas do Crucificado, porque cruz e glória não se separam. Nas mãos e no lado de Jesus está a sua identidade de quem viveu para servir e amar. As mãos são símbolo e recordação do serviço e de todo o bem que Jesus fez: são as mãos que tocaram em leprosos, mesmo sendo proibido (Mc 1,40), mãos que deram carinho a crianças (Lc 18,15-16; Mt 19,13-15), mãos que abriram olhos de cegos (Jo 9,6), mãos que curaram enfermos e expulsaram demônios (Lc 4,40; 13,13), mãos que lavaram os pés dos discípulos (Jo 13,1-12); enfim, são mãos que promoveram a vida e combateram o mal.

As marcas da cruz não apagaram a força das mãos de Jesus. Essas mãos continuam à disposição da comunidade, e a comunidade, por sua vez, tem a missão de fazer no mundo o mesmo que aquelas mãos do Ressuscitado fizeram, ou seja, servir infinitamente e sem distinção. Também o lado, ou seja, o peito aberto, tem o mesmo significado de continuidade: é o mesmo coração com o qual Ele amou até o fim (Jo 13,1), e continua amando da mesma forma. As mãos e o lado de Jesus são, portanto, a síntese da sua vida, da sua mensagem e da sua práxis. Ele doa o Espírito Santo aos discípulos para que suas mãos e o seu coração continuem presentes no mundo servindo e amando de modo ainda mais eficaz. Por isso, «os discípulos se alegraram por verem o Senhor» (v. 20b). Como fruto da paz transmitida pelo Ressuscitado, a alegria deve ser também uma das características da comunidade que deve viver para amar e servir.

A paz como bem-estar do ser humano é novamente oferecida: «novamente Jesus disse: A paz esteja convosco» (v. 21a). Novamente, não é um desejo, mas a afirmação de um dom já presente, já verificável. A passagem do medo à alegria poderia tornar-se uma simples euforia, por isso a paz é doada novamente para equilibrar a comunidade. Aqui, a paz não significa alívio ou tranquilidade, mas sinal de liberdade e vida plena; é a capacidade de assumir livremente as consequências das opções feitas. Tendo plenamente comunicado a paz como seu primeiro dom, o Ressuscitado os envia, como fora ele mesmo enviado pelo Pai: «Como o Pai me enviou, também eu vos envio» (v. 21b). É importante recordar que, embora cada evangelista narre as aparições do Ressuscitado à sua maneira, todos os quatro recordam um elemento comum: o envio missionário.  E trata-se de um elemento determinante para a construção da identidade da comunidade cristã, a Igreja. Não há seguimento de Jesus sem disposição para a missão. A Igreja nasceu para estar em saída. E a fonte da missão é o amor do Pai, o que confere à comunidade cristã uma responsabilidade ímpar: fazer no mundo o mesmo que Jesus fez, pois ele está enviando seus discípulos de todos os tempos conforme fora enviado pelo Pai.

Como Jesus tinha prometido o Espírito Santo aos discípulos na última ceia (Jo 14,16.26; 15,26), eis que a promessa é cumprida: «E depois de ter dito isso, soprou sobre eles e disse: Recebei o Espírito Santo» (v. 22). Aqui, o evangelista usa o mesmo verbo empregado no relato da primeira criação do ser humano: «O Senhor modelou o ser humano com a argila do solo, soprou-lhe nas narinas um sopro de vida, e o ser humano tornou-se vivente» (Gn 2,7). Com isso, o evangelista quer dizer que está sendo realizada uma nova criação. O verbo soprar (em grego: έμφυσάω – emfysáo) significa doação de vida. Assim, podemos dizer que Jesus recria a comunidade e, nessa, a humanidade inteira. Ao receber o Espírito, a comunidade se torna também comunicadora dessa força de vida. É o Espírito quem mantém a comunidade alinhada ao projeto de Jesus, porque é Ele quem faz a comunidade sentir, viver e prolongar a presença do Ressuscitado como seu único centro e fundamento, colocando à disposição da humanidade mãos e coração para servir e amar continuamente. O Espírito Santo é força dinâmica e vivificadora; é movimento. Logo, a Igreja não pode parar no tempo, não pode acomodar-se.

Na sequência, o Ressuscitado recorda os efeitos principais do Espírito Santo na vida da comunidade, conferindo-lhe uma grande responsabilidade: «A quem perdoardes os pecados eles lhes serão perdoados; a quem não perdoardes, eles lhes serão retidos» (v. 23). Por muito tempo, esse versículo foi usado simplesmente para fundamentar o sacramento da penitência ou confissão. No entanto, não é um sacramento o que Jesus está instituindo, tampouco conferindo um poder aos seus discípulos para determinar se um pecado pode ser perdoado ou não. O que perdoa mesmo os pecados é o amor infinito de Deus que Jesus revelou. Logo, ficam pecados sem perdão quando os discípulos e discípulas de Jesus deixam de comunicar esse amor. Em outras palavras, os pecados ficarão retidos quando houver omissão da comunidade, ou seja, quando essa deixar de produzir os frutos que Jesus pediu (Jo 15,1-17). Ora, Jesus envia os discípulos como Ele mesmo fora enviado pelo Pai (v. 21), confiando-lhes a continuidade da sua própria missão. E a missão de Jesus foi sintetizada pelo Batista como “tirar o pecado do mundo” (Jo 1,29). Tirar o pecado do mundo significa promover intensamente o bem até eliminar o mal pela raiz, o que só se faz através do amor, com ousadia profética. Agora, é Jesus quem confia à sua comunidade de discípulos essa responsabilidade. Logo, os pecados são perdoados à medida em que o amor de Jesus vai se espalhando pelo mundo, quando seus discípulos se deixam conduzir pelo Espírito Santo.

É na comunidade que o Ressuscitado se manifesta, fazendo essa perder o medo e insegurança. Somente uma comunidade que tem o Ressuscitado como centro, pode viver plenamente reconciliada, em paz e animada pelo Espírito. São essas as condições para que a alegria do Evangelho seja, de fato, anunciada! Deixando-se conduzir pelo Espírito Santo, a comunidade atualiza e prolonga, no tempo e no espaço, a missão única do próprio Jesus de revelar o amor de Deus a todas as pessoas.

Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

quinta-feira, maio 09, 2024

REFLEXÃO PARA A SOLENIDADE DA ASCENSÃO DO SENHOR – MARCOS 16,15-20 (ANO B)



Neste domingo em que celebramos a solenidade da Ascensão do Senhor, o evangelho proposto pela liturgia é Mc 16,15-20. Esta solenidade marca a consumação da ressurreição: o Ressuscitado retorna ao mundo do Pai, confiando a continuidade da sua obra à comunidade dos seus seguidores e seguidoras – a Igreja –, enviando-a a anunciar o Evangelho a toda a criação. Conforme o movimento do ciclo litúrgico, a cada ano se lê o relato de um dos evangelhos sinóticos. Contudo, somente Marcos e Lucas chegam a narrar a ascensão propriamente. Em Mateus consta apenas o discurso de despedida de Jesus, numa montanha da Galileia (Mt 28,16-20). O texto que descreve e narra a ascensão com mais riqueza de detalhes se encontra em Atos dos Apóstolos e, por isso, é usado como primeira leitura desta solenidade, todos os anos (At 1,1-11). No entanto, assim como a ressurreição, a ascensão é uma realidade indescritível. Os autores bíblicos quiseram representá-la narrativamente visando imprimir na comunidade cristã a responsabilidade de ser a continuadora da presença do Ressuscitado no mundo. Para isso, empregaram os diversos artifícios literários à disposição. Jesus retorna ao Pai, mas quer continuar agindo no mundo: salvando, humanizando, espalhando amor e justiça por todos os lugares. E faz isso por meio dos seus seguidores e seguidoras, que são fortalecidos pelo Espírito Santo, enviado por ele em comunhão com o Pai. Antes de analisar o texto lido neste “ano B” do ciclo litúrgico, faremos, como de costume, algumas considerações a nível de contexto.

E começamos recordando que é praticamente unanimidade entre os estudiosos que o evangelho original de Marcos termina em 16,8. Os versículos de 9 a 20 deste último capítulo, dos quais é tirado o trecho lido neste dia, foram acrescentados posteriormente, já em meados do segundo século. Dois motivos principais contribuem para essa afirmação: o primeiro é a mudança de estilo literário entre esses versículos e o restante do livro; o segundo motivo é a ausência desses versículos nos manuscritos mais antigos que contém o Evangelho de Marcos: os códigos Vaticano e Sinaítico. Vejamos as razões para esse acréscimo. Ora, Mc 16,1-8 relata a experiência das mulheres diante do sepulcro vazio, naquele primeiro dia semana, que corresponde ao domingo da ressurreição. Elas receberam o anúncio da ressurreição por um jovem vestido de branco (anjo), o qual mandou por elas um recado, para Pedro e os demais discípulos, que o Senhor Ressuscitado os esperava na Galileia (Mc 16,7). No entanto, no versículo 8, que é o último, está escrito o seguinte: «Então as mulheres saíram do túmulo correndo, porque estavam com medo e assustadas. E não disseram nada a ninguém, porque tinham medo» (Mc 16,8). Como se vê, o texto termina sem uma confirmação da ressurreição pelos discípulos, pois não diz se as mulheres acreditaram e tampouco se deram o recado aos outros discípulos.

Por mais que o redator original do Evangelho de Marcos tenha buscado ser o mais realista possível, o fato de concluir sua obra com a palavra medo poderia se tornar desagradável para as gerações posteriores. Com o passar do tempo, esse final tão brusco, além da lacuna, pois não havia sequer um relato de aparição do Ressuscitado, tornou-se problemático para a pregação sobre a ressurreição. Para solucionar o problema, a comunidade acrescentou um apêndice, fazendo uma síntese dos relatos de aparição do Ressuscitado dos outros três evangelhos, o que corresponde aos versículos de 9 a 20 (Mc 16,9-20). De fato, nesse acréscimo são notórios os traços característicos de cada um dos outros evangelhos: há uma alusão implícita aos discípulos de Emaús (v. 12), característica de Lucas; há uma menção à incredulidade dos que não deram crédito ao anúncio dos que viram o Ressuscitado (v. 14), característica de João; e há o envio missionário universal associado ao batismo (vv. 15-16), característica de Mateus. Portanto, a comunidade juntou um pouco de cada e compôs esse acréscimo, ao qual pertence o trecho lido hoje. Isso serviu para cancelar o rótulo de “evangelho incompleto”, como estava se espalhando pelas comunidades por onde o livro circulava.

Passada a contextualização, olhemos para o texto que nos é oferecido, começando pelo primeiro versículo, no qual se diz que: «Jesus se manifestou aos onze discípulos, e disse-lhes: “Ide pelo mundo inteiro e anunciai o Evangelho a toda criatura!”» (v. 15). Lendo o versículo anterior, sabemos que foi na mesa, durante uma refeição, que o Ressuscitado apareceu (Mc 16,14). A comunidade se encontrava fechada, amedrontada e incrédula, totalmente acuada. Diante dessa situação, a presença do Ressuscitado deve impulsioná-la, provocando abertura de perspectiva e compromisso. Ora, a comunidade não poderia continuar como estava, acuada pelo medo. As palavras do Ressuscitado são claramente de um envio universal. A novidade desse envio é que os destinatários do Evangelho não são apenas os seres humanos, nem as nações ou povos, mas a criação inteira: toda criatura. Inclusive, ao invés de criatura, a melhor tradução para a palavra grega empregada no texto original (κτίσις- ktíssis) seria criação ou criado. Logo o mandato é «anunciai o Evangelho a toda a criação». Como boa notícia, o Evangelho, anunciado e vivido fielmente pela comunidade cristã, comporta uma forma de vida totalmente nova em relação a todas as experiências até então vivenciadas, propondo uma relação harmoniosa com a criação inteira, e não apenas entre os seres humanos. Como obra de Deus, toda a criação precisa ser revestida do amor do Pai revelado em Jesus, a essência do Evangelho, uma vez que o mal presente no mundo atinge a também ela. De fato, Paulo já tinha se dado conta dessa realidade: «a criação inteira e sofre como em dores de parto» (Rm 8,22). E somente o amor do Pai revelado em Jesus, vivido e transmitido pela comunidade de seus seguidores e seguidoras, pode restaurá-la. Por isso, é urgente que toda a criação seja revestida de amor. O anúncio e a vivência do Evangelho exigem, portanto, um cuidado especial com a casa comum.

O Evangelho é dom gratuito, não uma doutrina a ser imposta; por isso, pode ser aceito ou não. E o anúncio cristão só é autêntico se respeitar a liberdade dos destinatários. E, como toda escolha tem consequências, assim também é a adesão ao Evangelho: «Quem crer e for batizado será salvo. Quem não crer será condenado» (v. 16). Crer, aqui, é aderir, dar adesão plena a uma proposta de vida; é aceitar o amor de Jesus e deixar-se envolver por ele, e não simplesmente repetir fórmulas. É assimilar o estilo de vida de Jesus. Como afirmado na contextualização inicial, o acréscimo posterior dos versículos 9-20 ao Evangelho de Marcos foi construído com base nos outros evangelhos, e nesse versículo preciso percebe-se claramente uma influência do Evangelho de João, o que mais enfatiza o não crer como como de autocondenação. A aceitação do Evangelho é seguida pelo batismo, sinal dessa adesão e de comunhão com a comunidade. Quem faz essa experiência, será salvo, ou seja, terá sua vida ressignificada, plenificada e cheia de sentido, já não mais vulnerável aos efeitos da morte. Não crer, ou seja, rejeitar o amor de Jesus também traz consequências. O texto diz que «aquele que não crer será condenado»mas não diz que é Deus quem condena; de fato, sendo Deus essencialmente amor, ele não condena ninguém. É o próprio ser humano que se autocondena quando não aceita o amor como estilo de vida. É condenado, portanto, quem não consegue dar sentido à sua existência, e isso é perder a vida. Fechar-se ao amor de Deus é deixar de viver plenamente, e isso é condenar-se.

Quem aceita a proposta de amor contida no Evangelho tem a vida transformada, não como passe de mágica, mas como forma de viver e de compreender as coisas. Por isso, Jesus elenca alguns sinais: «Os sinais que acompanharão aqueles que crerem serão estes: expulsarão demônios em meu nome, falarão novas línguas, se pegarem em serpentes ou beberem algum veneno mortal, não lhes fará mal algum; quando impuserem as mãos sobre os doentes, eles ficarão curados» (vv. 17-18). Antes de tudo, é importante recordar que os sinais elencados não são dons conferidos aos anunciadores, mas aos que creem. Logo, Jesus não está dotando os seus discípulos de poderes e dons extraordinários, mas comprometendo-os: o anúncio deve ser transformador de vidas. Quem recebe o anúncio e dá adesão ao projeto de Jesus se transforma e se torna transformador de realidades, fazendo o bem prevalecer sempre. Por expulsar demônios e curar doentes, entende-se a eliminação do mal do mundo e o triunfo do bem; não se trata de práticas de exorcismos, mas de compromisso com o bem. Quem adere ao Evangelho elimina o mal da sua vida e da vida do seu próximo. E o antídoto ao mal é o amor. Falar novas línguas significa a abertura ao universalismo da salvação e a convivência fraterna das diversas culturas em torno do Evangelho; quer dizer que o amor quebra barreiras e abre perspectivas sem impor nada. Pegar em serpentes, beber veneno mortal e não ser atingido significa a harmonia com a criação; é o sonho de um mundo completamente harmônico, com todas as criaturas convivendo entre si, sem nenhuma causar dano à outra. Trata-se de uma imagem pertencente à tradição profética de Isaías (cf. Is 11,1-19). O sonho de um mundo novo inspirava a criatividade dos profetas para descreverem a realidade imaginada e desejada, conforme o amor de Deus. Com imagens tão interpelantes, o texto quer ressaltar a força transformadora do Evangelho e mostrar que tanto o anúncio quanto a adesão a esse implicam em compromisso transformador de vidas e situações.

Com uma imagem típica de entronização, o texto narra brevemente a ascensão propriamente dita: «Depois de falar com os discípulos, o Senhor Jesus foi levado ao céu, e sentou-se à direita de Deus» (v. 19). Sentar-se à direita significa uma posição de honra. Essa imagem era muito usada nas cortes do antigo Oriente, influenciando bastante a literatura bíblica. Aqui, significa a soberania de Jesus sobre universo e a história e, acima de tudo, que ele cumpriu fielmente a sua missão de revelar, com palavras e ações, o rosto amoroso do Pai; por isso, está ao seu lado, ocupando seu lugar de direito, após cumprir tão fielmente tudo o que lhe tinha designado para fazer neste mundo. Ao invés de suscitar sentimentos de triunfalismos nos seguidores de Jesus, essa imagem deve despertar compromisso: tendo ele retornado ao Pai, cabe agora aos discípulos e discípulas a missão de irradiar o seu amor no mundo, continuando seu projeto humanizador, cujo resultado deve ser a edificação do Reino de Deus já neste mundo. A ascensão, portanto, não é um distanciamento ou simples despedida, mas o começo de um novo modo de presença do Senhor no mundo, agora por meio dos seus seguidores e seguidoras, à medida em que anunciam e testemunham o Evangelho com a vida.

E o versículo conclusivo diz como a primeira comunidade de discípulos e discípulas realizou o mandato missionário do Ressuscitado: «Os discípulos então saíram e pregaram por toda parte. O Senhor os ajudava e confirmava sua palavra por meio dos sinais que os acompanhavam» (v. 20a).  A resposta da comunidade ao retorno de Jesus ao Pai não é a contemplação com espera passiva pela sua segunda vinda, mas a missão: Jesus sobe ao céu, e os discípulos saem por toda parte. A missão de Jesus, portanto, não se conclui com a ascensão, mas ganha com ela novos contornos e dimensões; ela deve continuar através dos discípulos, e o texto atesta como as primeiras gerações de cristãos e cristãs levaram a sério esse mandato. De fato, quando a comunidade assume a missão, ela nunca está sozinha, o Senhor está presente. E o anúncio, se autêntico, deixa marcas, transforma as situações, humanizando as pessoas e o mundo. Os sinais concretos que devem marcar o anúncio não são condições para despertar a fé, mas consequência: «O Senhor os ajudava e confirmava sua palavra por meio dos sinais que a acompanhavam» (v. 20b). Os sinais apenas confirmavam o anúncio, e esse detalhe é muito importante. Esses sinais são os frutos de amor gerados: a justiça, a fraternidade, a aceitação das diferenças, o acolhimento, a solidariedade, a tolerância e o cuidado com a criação inteira. Enfim, um mundo humanizado, como pensado pelo Criador desde o princípio.

O Ressuscitado está presente onde o Evangelho é anunciado e vivido. Onde frutos de amor e justiça são produzidos, o Ressuscitado está. Por outro lado, onde há convivência com o mal, onde a violência é alimentada, ele está ausente. Os sinais que acompanham o anúncio são consequências da força indescritível do amor; é essa a energia vital de qualquer comunidade cristã; amor que aumenta à medida em que é experimentado. Por isso, ao invés de despedida, a ascensão é a festa da presença e da missão.

Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

sábado, maio 04, 2024

REFLEXÃO PARA O 6º DOMINGO DA PÁSCOA – JOÃO 15,9-17 (ANO B)


A liturgia deste sexto Domingo da Páscoa continua a leitura do décimo quinto capítulo do Evangelho de João, iniciada no domingo passado. O texto lido hoje – Jo 15,9-17 – pode ser considerado como a explicação daquele lido no último domingo (Jo 15,1-8). O que Jesus falou de maneira simbólica, empregando a imagem da videira e dos ramos, fala hoje em linguagem clara. Por fazer parte do chamado “Testamento de Jesus”, esse texto assume uma centralidade ímpar para a vida dos cristãos e cristãs de todos os tempos. Se trata de um ensinamento essencial para a comunidade permanecer fiel aos propósitos de Jesus, não obstante as dificuldades e, ao mesmo tempo, para fazer retornar à essência da fé, quando, porventura, tiver se distanciado. É uma resposta para situações de crise, principalmente, quando a identidade cristã estiver ameaçada, seja por fatores externos (perseguição), ou internos (autoritarismo, centralização, divisão, rivalidade, etc.).  

Com a imagem da videira e seus ramos, Jesus exortou simbolicamente os discípulos a permanecerem unidos a ele, apresentando também a sua relação com o Pai, que é modelo da sua relação com os discípulos. Agora, a fim de evitar qualquer ambiguidade, ele deixa a linguagem simbólica de lado, e fala claramente que a maneira ideal e única para alguém se unir a ele é permanecendo no seu amor: «Como meu Pai me amou, assim também eu vos amei. Permanecei no meu amor» (v. 9). Como se vê, além de exortar os discípulos a permanecerem no seu amor, ele anuncia, mais uma vez, a qualidade do amor com o qual ama seus discípulos: um amor semelhante ao do Pai por ele. Quer dizer que não se trata de um ensinamento teórico ou abstrato, mas bem concreto e real, pois ele mesmo deu o exemplo, amando-os primeiro com um amor inconfundível, igual ao do Pai por eleO parâmetro do amor, o exemplo a ser seguido na comunidade não pode ser outro senão o próprio Jesus, e a comunidade só é autenticamente cristã quando nela são vividas relações de amor tão intensas quanto as de Jesus com o Pai. O verbo permanecer tem o sentido de fazer morada, estar dentro. Os discípulos são chamados, portanto, a morar no amor de Jesus sendo também eles morada desse amor e fonte de irradiação do mesmo.

O discípulo se torna “ramo unido à videira” permanecendo no amor de Jesus. Mas esse amor, para ser verdadeiro, precisa ser manifestado concretamente, como ele mesmo explica na sequência: «Se guardardes os meus mandamentos, permaneceis no meu amor, assim como eu guardei os mandamentos do meu Pai e permaneço no seu amor» (v. 10). Os mandamentos que devem ser guardados pelos discípulos de Jesus já não são as normas e preceitos da Lei, mas é todo o conjunto da sua mensagem e da sua práxis, o que pode ser resumido pela prática do amor, como ele mesmo faz (v. 12). E é sempre oportuno recordar como ele praticou esse amor: lavando os pés dos outros, perdoando, acolhendo, defendendo os humildes e excluídos, curando feridas, e não julgando nem condenando. Foi com essas atitudes que ele guardou os mandamentos do Pai, ou seja, fez a sua vontade, e é assim que a comunidade dos seus seguidores e seguidoras também deve fazer para guardar os seus. É sempre importante notar o quanto é significativo Jesus colocar a relação dos discípulos com ele no mesmo nível da sua relação com o Pai. Isso atesta a qualidade do seu amor para com os discípulos e a humanidade inteira. Trata-se de um verdadeiro dom que implica em grande responsabilidade, pois ao guardar seus mandamentos, seus discípulos revelam sua presença no mundo, como ele revelou o Pai com o seu jeito de viver. Logo, é vivendo à maneira de Jesus que seus discípulos e discípulas de todos os tempos manifestam a sua presença.

O amor vivido e praticado reciprocamente na comunidade tem como primeiro fruto a alegria: «Eu vos disse isso para que a minha alegria esteja em vós e a vossa alegria seja plena» (v. 11). A alegria aqui não significa um simples estado de exaltação emotiva, e sim a expressão de quem encontrou o verdadeiro sentido da vida. E o sentido da vida que Jesus experimentou pessoalmente e propõem aos seus seguidores e seguidoras consiste exatamente na capacidade de entregá-la por amor, porque nem a morte é capaz de destruir uma vida assim. Por isso, na comunidade onde se vive realmente o amor de Jesus, a alegria está presente porque essa atesta a convicção de que o amor do Ressuscitado está sendo vivido. O amor de Jesus pelos discípulos e, obviamente, pela humanidade é tão grande, que ele compartilha tudo. Ele quer que a comunidade experimente a sua alegria de Filho Amado do Pai, e isso se faz permanecendo no seu amor, guardando seu mandamento fundamental. Na verdade, quem permanece nele experimenta todas as dimensões da sua vida, o que inclui a alegria. E quem imensamente, a ponto de dar a vida, o faz com alegria, apesar dos sofrimentos implicados como consequência. Alegria e sofrimento não são realidades antagônicas. A vida de Jesus foi toda marcada pela alegria, não obstante as perseguições sofridas desde o início do seu ministério. Na vida dos discípulos, a alegria pode passar por crises, adormecimentos, como passou, sendo recuperada plenamente na Páscoa, logo a partir da primeira manifestação do Ressuscitado entre eles: «Os discípulos se alegraram ao verem o Senhor» (Jo 20,20b). A alegria é, portanto, um dom pascal, e só pode ser experimentada em plenitude por quem permanece no amor de Jesus.

De mandamentos, agora Jesus passa a falar de um único mandamento: «Este é o meu mandamento: amai-vos uns aos outros, assim como eu vos amei» (v. 12). Aqui está a grande síntese de todo o seu ensinamento e, ao mesmo tempo, a responsabilidade da comunidade: essa não tem outro critério para afirmar sua pertença a Jesus a não ser o amor vivido reciprocamente entre os cristãos e cristãs. Por isso, na conclusão ele irá repetir esse imperativo do amor (v. 17). E esse amor deve ser incondicional e ilimitado, pois tem como parâmetro o amor de Jesus, e esse, por sua vez, é igual ao amor do Pai. É importante ainda perceber que Jesus já nem pede que os discípulos lhe amem, até porque o amor do Pai já lhe é suficiente, mas pede que se amem entre si, formando, de fato, uma comunidade de amor. Ele insiste em colocar-se como parâmetro: o amor só vale se for como o seu, ou seja, incondicional e intenso, capaz de dar a vida. É importante deter-se a isso: não basta amar, não serve qualquer amor; é preciso amar à maneira de Jesus. Na verdade, nesse versículo que sintetiza toda a sua mensagem, ele ensina a quem amar e como amar, o que torna seu ensinamento tão concreto, sem qualquer margem para distorção. Deve-se amar o irmão/irmã da comunidade, a pessoa próxima, a quem se conhece e com quem convive. O imperativo é muito claro: “amai-vos uns aos outros”. A comunidade, portanto, é o lugar do amor. E é do seu jeito que se deve amar: “assim como eu vos amei”. E o seu jeito de amar é intenso, pleno, ilimitado, capaz de lavar os pés dos outros e dar a vida.

Como parâmetro único de amor para a sua comunidade, Jesus diz o porquê: «Ninguém tem amor maior do que aquele que dá sua vida pelos amigos» (v. 13). E ele foi capaz disso, por isso fala com autoridade e propriedade. Dar a vida pelo outro significa viver o amor intensamente, até as últimas consequências. Geralmente, interpreta-se a capacidade de “dar a vida” como a coragem de morrer no lugar do outro, se for necessário. Mas não é somente isso. Até porque essa necessidade é rara. Reduzir a expressão de Jesus a essa perspectiva seria transformar a sua mensagem em mera possibilidade ou utopia, acessível apenas a poucos heróis. O ato extremo de doação da vida, como ele estava prestes a fazer na cruz, só tem sentido se for consequência de uma vida inteira doada, como foi a dele. Dá a vida pelos amigos, pelo próximo de uma maneira geral, quem conduz a existência toda voltada para o bem dos outros, como ele fez. Não é todo dia que é preciso morrer pelo outro; mas todo dia é necessário ajudar o outro a viver, porque todo dia deve-se amar o outro. E isso se faz amando, «não com palavras e de boca, mas com ações de verdade!» (1Jo 3,18), como ensina tradição do evangelista João. A doação da vida, portanto, se faz cotidianamente, à medida em que se ama concretamente, e não apenas quando se morre numa cruz.

Além de enfatizar o caráter insuperável do seu amor, Jesus acrescenta uma novidade, mostrando que na sua comunidade, se o amor for realmente levado a sério, as relações serão de amizade: «Vós sois meus amigos, se fizerdes o que eu vos mando» (v. 14). É a primeira vez que ele chama seus discípulos de amigos, embora já tivesse se referido a Lázaro como amigo seu e dos discípulos (Jo 11,11). Amigo (em grego: φίλος – fílos) é uma pessoa cara, dileta, especial, amada gratuitamente, em uma relação de igualdade. Ser amigo de Jesus é fazer o que ele pede, e o que ele manda é apenas amar como ele amou. Portanto, nenhum fardo é imposto, mas apenas uma condição: amar à sua maneira. Ao dirigir-se aos discípulos como amigos, ele eleva ainda mais o nível da relação com eles: se trata de uma relação de igualdade. Como se sabe, o discipulado em si, em todas as culturas, comporta uma relação de submissão e subordinação em relação ao mestre; não há igualdade mestre e discípulo. No mundo grego, por exemplo, poderia até nascer uma grande amizade entre um mestre e um ou outro discípulo, mas era algo bastante raro. O caso de Jesus é único, pois ele não elege um ou outro como amigo, mas é amigo de todos os seus discípulos. Toda pessoa que escuta sua palavra e vive o mandamento do amor é amiga dele.

A amizade na comunidade condiciona o nível das relações, como acenado acima. E as relações entre amigos devem ser de igualdade e transparência, o que também devem ser características da comunidade cristã, uma vez que seus membros já não são súditos, mas amigos e amigas de Jesus e entre si, como ensinado por ele mesmo: «Já não vos chamo servos, pois o servo não sabe o que faz o seu senhor. Eu vos chamo amigos, porque vos dei a conhecer tudo o que ouvi de meu Pai» (v. 15). Essa é uma das declarações mais revolucionárias de Jesus em todo o Evangelho. Sua comunidade não é um sistema com dominador e dominados, patrão e servos, mas um grupo de amigos, pessoas que estão juntas em pé de igualdade. A amizade coloca as pessoas no mesmo nível. Entre amigos não tem um que manda e outro que obedece. Todos agem em comum acordo pelo bem de todos, amando-se mutuamente. A amizade é atestada pela gratuidade e transparência nas relações, pela liberdade. O gesto do lava-pés (Jo 13,1-15) já tinha antecipado essa declaração na prática; aqui ele explica o gesto com clareza. Mais uma vez, Jesus reproduz entre os discípulos a sua experiência com o Pai, mostrando que, realmente, é o Pai a fonte originária de tudo o que a comunidade deve viver. No mundo grego, tão conhecido pelo evangelista João, amigo é sinônimo de confidente. E aqui declara seus discípulos como confidentes, pois sabem tudo o que ele faz, o que não seria possível numa relação entre patrão e servo.

Ao insistir na sua relação com o Pai como parâmetro para sua relação com os discípulos e dos discípulos entre si, Jesus reforça sua contestação à religião oficial, cujo Deus pregado no templo de Jerusalém era um soberano distante, juiz, vigilante e vingativo. Seus representantes, os sacerdotes, exigiam ofertas e sacrifícios, impunham pesados fardos ao povo, sem nada oferecer ao povo, a não ser discursos de resignação. Enfim, mantinham um verdadeiro sistema de dominação em nome de Deus, em conivência com a exploração romana. Jesus propõe um caminho de liberdade, com vida em abundância e sentido para a vida. Por isso, interage diretamente com a sua comunidade como um dos membros, por vontade própria, como um amigo que se interessa pelo outro e nada esconde, tudo o que tem partilha, principalmente os planos de Deus, o seu Pai, para o mundo. O evangelista resgata essa dimensão porque percebia que, aos poucos, o modelo de comunidade proposto por Jesus estava perdendo espaço para uma estrutura parecida com aquilo que Jesus mais tinha combatido: com divisões, rivalidades, autoritarismo, ritualismos e centralização. Na comunidade cristã, marcada por amor e igualdade, devem imperar a confiança, a transparência e a solidariedade. E isso só é possível todos são amigos e amigas uns dos outros, com abundância de amor livre e desinteressado.

Em se tratando de um discurso de despedida de Jesus, não poderiam faltar palavras de envio; porém, a missão no Quarto Evangelho tem como destinatária primeira a própria comunidade. Antes de atravessar qualquer fronteira, o amor deve estar bem enraizado na comunidade. Por isso, Jesus envia, reforçando que é sua a iniciativa do chamado: «Não fostes vós que me escolheste, mas fui eu que vos escolhi e vos designei para irdes e para produzirdes frutos e o vosso fruto permaneça. O que então pedirdes ao meu Pai em meu nome, ele vo-lo concederá» (v. 16). Como amigos, os discípulos são escolhidos por ele e designados para produzir frutos perenes de amor e justiça. Assim como já tinha deixado claro na imagem da videira, a comunidade de discípulos e discípulas só produz frutos se permanecer unida a ele, amando como ele amou. Ele envia, mas não confere nenhuma fórmula ou doutrina para ser ensinada. O objetivo da missão é apenas produzir frutos permanentes de amor, semelhantes aos que ele produziu. E, a permanência do discípulo em Jesus, semelhante à do ramo à videira, garante a sintonia entre ambos, a ponto de a vontade de um ser confirmada pelo outro; essa sintonia só pode ser atestada pelos frutos produzidos. De fato, a produção dos frutos é a confirmação da unidade e, portanto, de que o amor está sendo vivenciado. Tudo isso gera confiança no Pai. Porém, não se trata de uma confiança mágica e ingênua, mas de uma afinidade de sentimentos e projetos. Logo, Pedir ao Pai “em nome de Jesus” não significa invocar uma fórmula, mas estar identificado com Jesus para relacionar-se com o Pai do seu próprio jeito. Ora, o discípulo e discípula que ama, vive com Jesus uma relação de tamanha transparência, semelhante àquela entre Jesus e o Pai: “Eu e o Pai somos um” (Jo 10,30). Assim, o discípulo que vive o amor e o faz frutificar passa a gozar perante o Pai da mesma afinidade de Jesus. Portanto, tudo o que o Pai faz por Jesus, fará também por aqueles que Jesus escolheu: seus discípulos e discípulas de todos os tempos.

Concluindo, Jesus recorda que, para que tudo isso aconteça, há uma condição indispensável: «Isto é o que vos ordeno: amai-vos uns aos outros» (v. 17). A insistência com o imperativo “amai-vos uns aos outros”, espécie de refrão no evangelho de hoje, visa alertar a comunidade para nunca relativizar aquilo que é essencial para a vida cristã e determinante para a fé. Jesus fala da maneira mais clara possível para não ser confundido nem distorcido. A verdadeira identidade cristã é o amor. Nada pode sobrepor-se e nem substituir o amor na vida cristã. Pode faltar tudo numa comunidade cristã, menos o amor entre as pessoas que a constituem. É esse amor que atesta se a comunidade é realmente cristã, ou seja, se está unida a Jesus.

Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues

REFLEXÃO PARA O DOMINGO DE PENTECOSTES (II) – JOÃO 15,26-27;16,12-15

A liturgia da solenidade de Pentecostes oferece uma segunda opção de evangelho para a missa do dia. Trata-se de Jo 15,26-27;16,12-15, cujo c...