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sábado, outubro 12, 2024

REFLEXÃO PARA O 28º DOMINGO DO TEMPO COMUM – MARCOS 10,17-30 (ANO B)



Na liturgia deste vigésimo oitavo domingo do tempo comum, continuamos a leitura sequenciada do Evangelho de Marcos. Inclusive, o texto de hoje – Mc 10,17-30 – é a continuação imediata daquele do domingo passado (Mc 10,2-16). Consequentemente, o contexto continua sendo o mesmo: o caminho de Jesus em direção à cidade de Jerusalém, com seus discípulos, que culminará com os eventos de sua paixão, morte e ressurreição. Durante esse percurso, que é mais um itinerário catequético e teológico do que geográfico, Jesus é interrompido diversas vezes, por várias categorias de interlocutores, que lhe fazem perguntas relevantes sobre a natureza e as condições para o discipulado, sobre as características do Reino de Deus e os critérios para desse fazer parte. Jesus é questionado, tanto por personagens externos, quanto pelos discípulos. Há interlocutores que interagem com interesse e seriedade, com vontade de aprender, enquanto há outros que o interrogam com malícia, esperando um deslize para acusá-lo de herege ou blasfemo e, assim, antecipar a sua condenação, como se viu no episódio do domingo passado, quando alguns fariseus lhe interromperam e interrogaram sobre a legitimidade do divórcio (Mc 10,2-16). Após respondê-los, sem cair na cilada, Jesus aprofundou o ensinamento do respectivo tema para os discípulos. No texto de hoje, embora o tema seja diferente, o esquema é o mesmo: Jesus é questionado por um personagem externo, com quem interage e, em seguida, pelos próprios discípulos. Trata-se de um episódio comum aos três evangélicos sinóticos (Mt 19,16-29; Mc 10,17-30; Lc 18,18-30), sendo que a versão de Marcos é a mais rica, por ser a mais original, embora a de Mateus tenha se tornado mais conhecida, como será recordado mais adiante, durante a explicação.

Uma vez que o contexto é o mesmo do domingo passado, não há necessidade nos prolongarmos na contextualização. Por isso, partimos para o estudo do texto, começando do primeiro versículo, no qual se diz que «Quando Jesus saiu a caminhar, veio alguém correndo, ajoelhou-se diante dele e perguntou: “Bom Mestre, que devo fazer para ganhar a vida eterna?”» (v. 17). Após uma pausa, o caminho foi retomado por Jesus e seus discípulos. Durante a pausa, eles estiveram em uma casa, como recordava a passagem lida no domingo passado (10,10), embora a localização geográfica não tenha sido fornecida. Certamente, já não era mais a casa de Cafarnaum que tinha servido de base de apoio para o ministério de Jesus na Galileia. À essa altura do caminho, eles já tinham saído da Galileia e estavam quase terminando de atravessar a Samaria, uma vez que já se aproximava da Judeia, onde ficava Jerusalém.  É importante recordar que a estrada – caminho – é o espaço privilegiado para o ensinamento, sobretudo em uma comunidade itinerante como a de Jesus e seus discípulos. Além de expressar a carência de estruturas fixas, o caminho expressa também o aspecto dinâmico, aberto e missionário da comunidade. O outro espaço privilegiado da catequese, sobretudo no Evangelho de Marcos, é a casa, como imagem da fraternidade. No caminho, Jesus e a comunidade estão expostos, qualquer pessoa pode interagir e questionar, como fez esse “alguém” que, veio correndo ao seu encontro e ajoelhou-se. Esse personagem é totalmente desconhecido, é anônimo. Pelo pouco que o texto diz dele, deve tratar-se de alguém muito necessitado de sentido para a vida, alguém inquieto, preocupado. Tanto é, que vai correndo ao encontro de Jesus; quer dizer que tem pressa de encontrar-se com ele.

Com a pressa para encontrar-se com Jesus, o homem anônimo demonstra reconhecer nele a fonte de sentido para a vida, ao mesmo tempo em que percebe a insuficiência da sua prática religiosa até então. Essa necessidade e reconhecimento se tornam ainda mais evidentes com a sua primeira atitude, após a carreira: ele «ajoelhou-se diante de Jesus». Até então, somente um personagem tinha se ajoelhado aos pés de Jesus, no Evangelho de Marcos: um leproso, ao suplicar-lhe a cura, logo no início do seu ministério (Mc 1,40). Isso quer dizer que também esse homem apressado possui uma enfermidade grave, até aqui desconhecida do leitor, mas em breve será revelada pelo narrador. Conhecedor profundo de Deus, o seu Pai, Jesus responde à interpelação daquele homem recordando que «Só Deus é bom, e mais ninguém» (v. 18). De fato, a bondade era um atributo de Deus e, consequentemente, da sua obra (Gn 1,4.10.12.18, etc.). Na verdade, Jesus sempre desconfia dos elogios, certamente, por experiência, pois quase todos episódios dos evangelhos que começam com elogios terminam em conflito ou incompreensão. Este por exemplo, não termina bem, embora fique comprovada, no final, a sinceridade daquele homem que perguntou sobre o que fazer para ganhar a vida eterna. Por vida eterna nos evangelhos, incluindo esta passagem, não se entende a realidade futura do pós-morte, mas a vida neste mundo com sentido pleno. E, para todo bom judeu, o sentido da vida dependia essencialmente da observação da Lei. Quem encontra sentido para a vida aqui, eterniza a sua existência: essa vida se torna indestrutível, mesmo com a morte.

É claro que Jesus propõe a superação da mentalidade judaica predominante sobre o sentido da vida. A observação dos mandamentos da Lei não é suficiente, aliás, já não garante sentido algum, pois tudo agora depende da disposição de cada pessoa acolher o amor de Deus que Jesus veio revelar, não por meio de doutrinas, mas através do seu próprio jeito de amar. Por isso, ele responde àquele homem desta maneira: «Tu conheces os mandamentos: não matarás; não cometerás adultério; não roubarás; não levantarás falso testemunho; não prejudicarás ninguém; honra teu pai e tua mãe» (v. 19). Jesus parte dos mandamentos como caminho para chegar no coração da sua mensagem. Além do mais, deve-se recordar que a observação dos mandamentos não faz mal, pelo contrário, faz bem. Mas é necessário algo a mais, e muito mais, não como mero acréscimo, mas como superação. Ele começa a interação com o homem a partir dos mandamentos porque era o que havia em comum entre eles, naquele momento. É importante observar quais os mandamentos que Jesus recorda: aqueles que dizem respeito ao modo de relacionar-se com o próximo. O primeiro mandamento – amar a Deus sobre todas as coisas – nem sequer é mencionado por Jesus aqui, porque ele compreende que se não há respeito à dignidade do próximo e o reconhecimento dos direitos humanos, o amor e o culto a Deus são falsos, não passam de demagogia. Não há culto agradável a Deus se o ser humano não é respeitado em sua condição e dignidade. Por isso, Jesus apresenta os mandamentos que dizem respeito à relação com o próximo como ponto de partida para o sentido da vida. É preciso recordar sempre: Jesus não absolutiza os mandamentos aqui e em nenhuma ocasião, mas apresenta aqueles que colocam o bem do próximo no centro como ponto de partida para uma vida autêntica.

O homem responde a Jesus afirmando já cumprir todos os mandamentos indicados por ele, como diz o evangelista: «Ele respondeu: “Mestre, tudo isso tenho observado desde a minha juventude”» (v. 20). Percebe-se aqui que não se tratava de uma pessoa má intencionada que queria rivalizar com Jesus, ao contrário dos fariseus, pois ele continua chamando Jesus de mestre, mesmo já tendo sido contrariado. Nessa resposta percebe-se também que se trata de uma pessoa já adulta, madura, e não mais de um jovem, como aparece na versão de Mateus. Portanto, para as versões de Marcos e de Lucas é incorreto chamar esse texto de episódio do “jovem rico”. Essa denominação é exclusiva de Mateus, o que terminou deixando a sua versão mais conhecida, pois os personagens adjetivados tendem a ganhar mais popularidade, ainda mais quando é um personagem sem nome. O que fica da sua identidade, para o leitor, é a adjetivação. Nesta fala do homem, em resposta a Jesus, percebe-se já um certo cansaço na observação da Lei. É como se ele cultivasse algo há bastante tempo, e não colhesse os frutos desejados. É o esgotamento da Lei que vai se tornando cada vez mais percebido. Tudo indica que aquele homem tinha depositado muita esperança na observação da Lei, esperando ter suas necessidades existenciais correspondidas a partir dela. A construção do texto faz perceber uma certa decepção no homem, o que parece torná-lo carente de humanização e sentido. E Jesus o acolhe muito bem em seu drama, sente-se solidário e propõe um caminho de superação, como mostra a continuação do texto.

Com sua atitude e nova resposta ao homem, Jesus se revela, como sempre, um verdadeiro mestre de humanização: «Jesus olhou para ele com amor, e disse: “Só uma coisa te falta: vai, vende tudo o que tens e dá aos pobres, e terás um tesouro no céu. Depois vem e segue-me”» (v. 21). Essa é a única vez que o Evangelho de Marcos afirma que Jesus amou uma pessoa em particular. E o diz empregando o verbo do amor máximo, pleno, completo – em grego: ἀγαπάω - agapáo. É claro que Jesus ama sempre e ama a todas as pessoas, indistintamente, mas somente aqui o evangelista enfatizou. E amou olhando o homem profundamente, olho no olho. É uma situação parecida com o que fez com a multidão faminta: viu e teve compaixão (Mc 6,34). Porém, aqui, tudo é mais intenso. Ele olhou o homem fixamente e o amou com o mesmo amor com o qual entregou-se. O amor gera relações fraternas e sinceras, e a falta de correspondência no amor não faz Jesus amar menos. É amando que Jesus revela a incompletude do ser humano, ao dizer que faltava algo naquele homem, uma coisa que, na verdade, era tudo: livrar-se do seu mal – equivalente à lepra que atormentava um homem ainda no início do Evangelho de Marcos (1,40), e o fez ajoelhar-se diante de Jesus e pedir-lhe a cura. Ao leproso suplicante ajoelhado, Jesus purificou-o, deu uma ordem e ele a cumpriu. A este homem, Jesus dá uma ordem e ainda faz um convite: vender tudo o que tem, dar aos pobres e segui-lo. Era a única coisa que faltava, mas era tudo, ao mesmo tempo. De fato, ao dizer «uma só coisa te falta», não significa que faltava uma coisa a mais na vida daquele homem, tendo em vista que ele já fazia muito, mas quer dizer que faltava o que é essencial, o indispensável, o tudo.

E a lógica do Reino contraria a lógica humana: o homem foi a Jesus para pedir, para ter algo – a vida eterna –, Jesus diz que ele deve dar, abrir mão do que tinha; foi pedir sentido para a vida, Jesus pede para livrar-se do que estava lhe tirando esse sentido: a riqueza, a posse dos bens e o apego a esses. Isso mostra a insuficiência da ética dos mandamentos, por isso, é necessário superá-la. É importante notar a sequência das atitudes necessárias para dar sentido à existência, conforme a resposta de Jesus ao homem rico: «vender, dar aos pobres e segui-lo». Como se vê, a opção pelos pobres é condição para um seguimento autêntico de Jesus. Não bastaria ao homem vender os bens; se bastasse vender, ele poderia fazê-lo para depositar ou reter o dinheiro para si, poderia doar para familiares ou até compartilhar com o grupo que já estava no seguimento de Jesus. Mas Jesus diz que era necessário vender e dar aos pobres. Aqui, os pobres (em grego: πτωχός – ptokós) se tornam a categoria privilegiada de mediação entre Jesus e seus seguidores. Dar aos pobres é a única forma autêntica de partilha, de doação. É o gesto de gratuidade e desapego, por excelência, porque é a certeza de que não se receberá nada em troca. Como era muito rico, a reação do homem foi de tristeza: saiu abatido (v. 22), por causa da riqueza, não estava preparado para assimilar a lógica do Reino. Mas é importante recordar a formulação da frase: o homem «ficou abatido e foi embora cheio de tristeza, porque era muito rico» (v. 22). Com muita clareza, o evangelista diz que a causa do abatimento e tristeza do homem foi a riqueza. Como afirmado no início da reflexão, este episódio do encontro de Jesus com o homem rico não termina em conflito, mas termina em tristeza. O homem procurou Jesus com interesse e sinceridade, embora tenha lhe faltado coragem e disposição para abraçar a proposta lançada.

Do confronto com um personagem externo, Jesus se volta para o interior da comunidade (v. 23), ou seja, para os seus discípulos, os mais necessitados de assimilar seus ensinamentos para assumir a lógica do Reino na vida. Assim, diz o evangelista que «Os discípulos se admiravam com estas palavras, mas ele disse de novo: “Meus filhos, como é difícil entrar no Reino de Deus!”» (v. 24). Da admiração dos discípulos, Jesus aproveita para aprofundar a catequese. Essa admiração quer dizer que eles ainda não conheciam Jesus em profundidade, continuavam se surpreendendo. Por isso, precisavam ficar cada vez mais atentos. As incompreensões deles que o evangelista recorda com frequência são prova disso. Mas Jesus não desiste deles. Nesta passagem, chama a atenção o fato de Jesus chamá-los de filhos (em grego: τέκνα – tekna). Por sinal, em Marcos é a única vez os discípulos são chamados assim. Nos evangelhos, a insistência sobre um mesmo argumento revela a sua importância. Entrar no Reino de Deus é difícil, realmente, porque não há como critérios os méritos pessoais, mas uma adesão incondicional à pessoa de Jesus e sua mensagem. Esse Reino não é a vida futura, mas este mundo concreto, organizado segundo a vontade de Deus, marcado por justiça, amor, solidariedade, fraternidade e igualdade. Aceitar e aderir a essa dinâmica é mais difícil para os ricos (v. 23), mas não é fácil para ninguém (v. 24), pois exige uma conversão profunda, ou seja, uma mudança de mentalidade. Também os discípulos, ao longo do caminho, mostravam dificuldades em aderir plenamente, à medida em que alimentavam expectativas de poder e praticavam atos que distorciam o que Jesus lhes ensinava: praticavam proselitismo (Mc 9,38-40), alimentavam rivalidades entre si (Mc 9,33-37), impediam as crianças de se aproximarem de Jesus (Mc 10,13-16), desejavam sucesso (Mc 10,35-40), etc.

Na continuidade, com um provérbio hiperbólico, Jesus enfatiza a dificuldade para os ricos assimilarem a lógica do Reino: «É mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha do que um rico entrar no Reino de Deus!» (v. 25). Muitas tentativas de explicação já surgiram para suavizar a dureza dessa afirmação: algumas afirmavam que o “camelo”, aqui, seria um tipo de corda grossa, outras que o “buraco da agulha” era uma porta estreita num muro de Jerusalém, pela qual um camelo não conseguiria passar. Aceitar e alimentar tais interpretações é ignorar a radicalidade do Evangelho. Se trata de uma hipérbole, algo bem característico da linguagem de Jesus e do evangelista Marcos. O camelo era o maior aninam conhecido na Palestina, enquanto o buraco da agulha a menor abertura que se podia imaginar. Constituem, portanto, dois exemplos ideais para quem tanto aprecia ensinar por meio de paradoxos e comparações exageradas. Até que foram encontrados alguns manuscritos mais recentes nos quais a palavra camelo (em grego: κάμηλος – kamelos) foi trocada por outra muito parecida que, realmente, significa corda: kamilos (κάμιλος). Porém, levando em conta os principais critérios da crítica textual, sobretudo a antiguidade, a exegese concluiu que a troca dos termos se deu por opção dos copistas, quando a ideia original da hipérbole já assustava muitas pessoas, principalmente os ricos, tamanha a radicalidade expressa. Na exegese moderna já não há mais duvida de que o camelo do provérbio é mesmo o animal, e o buraco da agulha refere-se mesmo ao pequeno objeto do mundo do mundo da costura e tecelagem. Contudo, ainda hoje existem perspectivas suavizadoras de interpretação, tanto para esta quanto para outras afirmações impactantes de Jesus.

É claro que, com uma afirmação dessas, os discípulos ficaram ainda mais perplexos, como mostra o texto: «Eles ficaram muito espantados ao ouvirem isso, e perguntavam uns aos outros: “Então, quem pode ser salvo?”» (v. 26). Essa admiração é compreensível, porque, conforme a mentalidade da época, as riquezas eram sinônimo de bênção de Deus. Vivia-se a religião dos méritos e uma “teologia da prosperidade”. Quanto mais uma pessoa fosse rica, mais era considerada abençoada por Deus. Por isso, a admiração dos discípulos com o que Jesus dizia, pois ele desconstruía ideias basilares da teologia tradicional de Israel. Em outras palavras, é como se os discípulos dissessem: “se um rico não se salva, ninguém mais pode se salvar”. Ora, eles compartilhavam a mentalidade corrente, tinham sido educados segundo a lógica do acúmulo e da busca por poder, alimentados pela religião. Jesus tenta desconstruir essa mentalidade, mostrando o contrário. Mas Jesus procura tranquilizá-los, dizendo: «Para os homens isso é impossível, mas não para Deus. Para Deus tudo é possível» (v. 27). De fato, a história da salvação é marcada por diversos acontecimentos impossíveis para a lógica humana, que se tornaram possíveis com a graça de Deus: a gravidez de Sara, já estéril (Gn 18,14), a gravidez de Isabel, também estéril (Lc 1,37) e de Maria, virgem (Lc 1,37). A dificuldade da salvação para os ricos consiste na dificuldade que eles têm de assimilar a lógica do Reino, abrindo mão do que possuem e distribuindo aos mais necessitados, os pobres; isso é difícil sim, mas não impossível.

Diante de tudo já isso, mais uma vez, Pedro fala em nome do grupo, inquieto com as exigências do Reino e com as renúncias que já tinham feito até ali: «Pedro então começou a dizer-lhe: “Eis que nós deixamos tudo e te seguimos”» (v. 28). Parece até oportunismo dos discípulos, como expresso nas palavras de Pedro. Jesus sabia e conhecia o que eles já tinham deixado, desde o primeiro encontro, às margens do mar da Galileia, quando os chamou e eles, realmente, deixaram tudo para segui-lo (Mc 1,16-20). Ele não nega isso e responde de modo solene, a fim de encorajá-los a continuar no seguimento: «Em verdade vos digo, quem tiver deixado casa, irmãos, irmãs, mãe, pai, filhos, campos, por causa de mim e do Evangelho, receberá cem vezes mais agora, durante esta vida – casa, irmãos, irmãs, mães, filhos e campos, com perseguições – e, no futuro, a vida eterna» (vv. 29-30). À medida em que as exigências aumentavam, havia na comunidade uma tendência ao desânimo e, até mesmo, à desistência. Contudo, Jesus não promete prêmios, nem recompensa, mas garante sentido para a existência. Não obstante as perseguições, para os seus seguidores e seguidoras é assegurada uma vida fraterna, uma vida comunitária real, desde que aceitem a lógica do Reino, com as renúncias devidas. Aqui, Jesus faz um convite à confiança na providência: quem deixa tudo por causa do Evangelho, não sente falta de nada. Por isso, Ele repete as mesmas coisas que devem ser deixadas como as mesmas que serão recebidas em abundância. O que é deixado como renúncia é multiplicado como abundância. Abundância de sentido, obviamente. O homem rico anônimo não estava pronto para assimilar essa lógica nova, de perder para poder ganhar, mas os discípulos que já conviviam com Jesus há bastante tempo também pareciam ainda não ter assimilado.

Para quem decide entrar na dinâmica do Reino, tudo é ressignificado. “Casa, irmãos, irmãs, mães, filhos e campos”, como recompensa, não são posses, mas sinais de uma comunidade unida e perseverante, e frutos da partilha. É um ideal de vida que renasce. A comunidade que vive, de fato, o espírito da partilha, tem tudo o que é necessário, sem supérfluos, e se sustenta em relações fraternas. Porém, só recebe quem, antes, dá; quem deixa para trás o que tem e se aventura na dinâmica do Reino para herdar, com perseguição, o que dá sentido à vida. Quem aceita essa dinâmica, tem a sua vida eternizada.

Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

sábado, outubro 05, 2024

REFLEXÃO PARA O 27º DOMINGO DO TEMPO COMUM – MARCOS 10,2-16 (ANO B)

 


A liturgia deste vigésimo sétimo domingo do tempo comum continua apresentando o caminho de Jesus com seus discípulos em direção à Jerusalém, conforme a dinâmica narrativa do Evangelho de Marcos. O trecho proposto hoje – Marcos 10,2-16 – compreende uma importante etapa deste caminho. Como já foi afirmado em outras ocasiões, esse caminho não é apenas um percurso geográfico; é, acima de tudo, um itinerário catequético, teológico e espiritual, que visa a formação do discipulado de Jesus e sua revelação como Messias e Filho de Deus. É importante recordar que, durante esse caminho, Jesus sofre uma contínua e sistemática oposição, o que serve de preparação para o confronto final em Jerusalém com as autoridades religiosas e políticas que o levarão à morte na cruz. É durante o caminho que os discípulos demonstram muita incompreensão, fechamento e até oposição a Jesus, demonstrando que o acompanhavam fisicamente, mas ainda não tinham compreendido o sentido real do seguimento, por isso, não aceitavam as consequências.

O texto de hoje marca uma nova etapa no caminho: tendo atravessado o rio Jordão, Jesus já se encontra no território da Judéia (Mc 10,1) e, portanto, cada vez mais perto de Jerusalém e, consequentemente, da morte de cruz. Até então, a oposição encontrada por Jesus ao longo do caminho tinha sido somente dos próprios discípulos: desde Pedro, que o repreendeu após o primeiro anúncio da paixão (Mc 8,27-35 – evangelho do 24º domingo), até João que proibiu a um homem de agir em nome de Jesus, apenas por não fazer parte do grupo dos Doze (Mc 9,38-48 – evangelho do 26º domingo). Essa observação é importante para lembrar que a mensagem de Jesus nunca encontra facilidade no seu anúncio; pelo contrário, o Evangelho sempre encontra obstáculos, pois possui uma proposta de transformação de vidas e de mudança nas estruturas do mundo. Propostas assim, tendem a incomodar, tanto às instituições, quanto às pessoas a elas conformadas. Enfim, a mensagem humanizante de Jesus causava incômodo em muitos ambientes e pessoas.

Os opositores que confrontam Jesus no evangelho de hoje são os fariseus, seus mais tradicionais adversários, desde o início do seu ministério (Mc 2,16; 3,6; 7,1). Com eles, o confronto é sempre no campo doutrinal, sobretudo na maneira de compreender e interpretar a Lei de Moisés. Dessa vez, a discussão diz respeito à legitimidade do divórcio, como afirma o texto logo no início: «Alguns fariseus se aproximaram de Jesus. Para pô-lo à prova, perguntaram se era permitido ao homem divorciar-se de sua mulher» (v. 2). Como se vê, o evangelista já começa denunciando a intenção dos fariseus: eles querem “pô-lo à prova”; o verbo grego traduzido por essa expressão é o mesmo empregado no episódio das tentações, para referir-se à atitude de satanás (verbo πειράζω – peirazo). Assim, o evangelista denuncia os fiéis guardiões da doutrina, neste caso, os fariseus, como agentes satânicos. Porém, o espírito satânico estava presente também nos discípulos, inclusive, Pedro é a única pessoa a quem Jesus denomina explicitamente de satanás (Mc 8,33). Como recorda o evangelista, os fariseus não perguntam para aprender mais, nem para tirar dúvidas; perguntam para tentar. O que eles esperavam de Jesus era uma resposta que confirmasse sua fama de relativizador da Lei, para posteriormente acusá-lo de blasfemo, herege. Como fiéis observadores da lei, eles já tinham consciência formada e conhecimento a respeito desse tema.

Conhecendo bem as intenções dos fariseus, Jesus lhes responde com uma nova pergunta, evocando Moisés, exemplo de legislador e sinônimo da lei em Israel, sobretudo para eles, os fariseus: «Jesus perguntou: o que Moisés vos ordenou?» (v. 3). E os fariseus respondem de acordo com a Lei, ou seja, de acordo com Moisés: «Moisés permitiu escrever uma certidão de divórcio e despedi-la» (v. 4). Está claro, portanto, que o divorcio estava regulamentado em Israel, ou seja, era legítimo. A lei, na qual os fariseus se apoiavam, realmente permitia isso (Dt 24,1-4). Porém, Jesus recorda o motivo pelo qual a Lei foi dada: «Foi por causa da dureza do vosso coração que Moisés vos escreveu este mandamento. No entanto, desde o começo da criação, Deus os fez homem e mulher. Por isso, o homem deixará seu pai e sua mãe e os dois serão uma só carne» (vv. 5-7). Ora, o mundo regido pela lei não é o mundo ideal. A lei não corresponde aos propósitos originais da criação, mas foi dada como um paliativo, diante do mal enraizado no mundo, referido por Jesus como dureza de coração. Mas Jesus não veio ao mundo para conformá-lo à Lei, e sim para recuperar o ideal fraterno da criação, instaurando definitivamente o Reino de Deus. A Lei de Moisés é resposta ao pecado, bom seria que ela não fosse necessária.

Como a lei permitia o divórcio, na época de Jesus o debate girava em torno dos motivos aceitáveis para que alguém se divorciasse. Havia duas principais correntes rabínicas de interpretação: uma delas, afirmava que o divórcio só podia ser dado em caso de um erro muito grave por parte da mulher, como o adultério propriamente dito, ou um “defeito” também grave, como esterilidade. Para outra corrente, o divorcio poderia ser dado por qualquer motivo, até mesmo se a mulher deixasse queimar uma comida, ou se o homem encontrasse outra mulher mais “bonita”. Ambas as correntes se baseavam numa lei deuteronomista (Dt 24,1-4). Para Jesus, essa lei era absurda, pois legitimava a submissão e marginalização da mulher. Em todas as questões relativas à lei, a preocupação de Jesus é sempre com os abusos que podem ser praticados e fundamentados a partir dela. No caso do divórcio, quem se prejudicava sempre era a mulher, pois o homem poderia repudiá-la a qualquer momento, expulsando-a de casa. Essa lei legitimava a família patriarcal e mantinha a mulher marginalizada. Por isso, Jesus se distancia dessa lei e convida a sua comunidade a manter-se alinhada aos propósitos da criação: “Deus os fez homem e mulher” para serem “uma só carne”, ou seja, uma unidade, formando uma profunda comunhão, sem submissão da mulher (Gn 1,27; 2,24). Portanto, prender-se à lei, para Jesus, é negar o projeto original de Deus e fechar-se ao seu Reino, por consequência.

A discussão com os fariseus tinha sido no caminho, enquanto o ensinamento aos discípulos acontece já na casa. É típico da pedagogia de Jesus aprofundar em casa, com os discípulos, o tema discutido no caminho, sobretudo no Evangelho de Marcos. Assim, mais uma vez, o evangelista evidencia caminho e casa como lugares privilegiados da catequese de Jesus. Por isso, diz o texto que, «em casa, os discípulos fizeram, novamente, perguntas sobre o mesmo assunto» (v. 10). Talvez os discípulos tenham ficado embaraçados com as respostas de Jesus aos fariseus, e quiseram também tirar suas dúvidas, afinal, também eles tinham crescido aprendendo e observando a lei de Moisés. Era normal, portanto, que também eles se espantassem com a “subversão” de Jesus na interpretação da Lei. Ainda mais sobre o tema do casamento/divorcio, um assunto importante e muito relacionado ao cotidiano das pessoas. Além do provável espanto com a resposta de Jesus aos fariseus, os discípulos devem ter imaginado que também eles poderiam ser abordados sobre esse tema; por isso, o interesse em aprender mais e melhor com Jesus, mesmo que nem sempre conseguissem, devido ao fechamento de mentalidade e obstinação, como tinham demonstrado com a atitude de João, no evangelho do domingo passado.

E o evangelista diz que, aos discípulos, «Jesus respondeu: “Quem se divorciar de sua mulher e casar com outra, cometerá adultério contra a primeira. E se a mulher se divorciar de seu marido e se casar com outro, cometerá adultério”» (vv. 11-12). Nessa resposta, Jesus reafirma seu compromisso com os propósitos da criação: o divórcio não deveria existir. Ao mesmo tempo, ele traz uma grande novidade: coloca a mulher em condição de igualdade com o homem, ao afirmar que também o homem comete adultério ao divorciar-se e casar-se com outra. Ora, de acordo com a Lei, fundamento da família patriarcal, quando a interpretação era conveniente, a culpa e as consequências, em caso de divórcio, recaiam somente sobre a mulher, afinal, era o próprio marido quem escrevia a certidão do divorcio, na qual dizia os motivos pelos quais estava mandando a esposa embora. A depender dos motivos escritos na certidão, as consequências seriam as piores possíveis para a mulher, a começar pelo rótulo de adúltera, causando discriminação, segregação e até apedrejamento. Também podia acontecer que o homem escrevesse motivos simples para o divórcio, coisas que não comprometessem tanto a imagem da mulher; com isso, ela poderia ser aceita novamente na casa do pai e até casar-se de novo. Mas isso era muito raro.

Era praxe o homem destratar a mulher ao máximo possível, na certidão de divórcio, até para justificar sua atitude perante familiares, amigos e lideranças religiosas. Quando isso acontecia, e era frequente, a mulher não seria mais acolhida pelos pais e dificilmente encontraria um novo marido. Geralmente, terminava na prostituição, quando não morria apedrejada. Enfim, a mulher era fortemente prejudicada. Portanto, a grande lição de Jesus aqui, além de remeter a humanidade ao plano da criação, é a proteção da mulher, com sua dignidade e igualdade nas relações, combatendo uma lei que discriminava e excluía, por isso, reprovável em todos os sentidos. Se praticada, pelo menos que as consequências não recaíssem apenas sobre a mulher. Em outras palavras, Jesus reivindica direitos iguais: se a lei concede ao homem o direito de repudiar a mulher, que conceda também à mulher o direito de repudiar o homem. Com isso, ele afirma a igualdade entre homem e mulher, e isso é extremamente revolucionário para a época. Mas o ideal para Jesus é que não seja necessária a aplicação da lei por nenhuma das partes. O ideal é viver plenamente o princípio de unidade e comunhão da criação, ou seja, que sejam uma só carne.

Na parte final, o evangelista coloca, novamente, em cena personagens tão caros para esta seção do caminho: as crianças. Assim diz o texto: «Depois disso, traziam crianças para que Jesus as tocasse. Mas os discípulos as repreendiam» (v. 13). A ênfase de Jesus e do evangelista às crianças tem uma função didática muito específica, sobretudo para a formação dos discípulos. Ora, quanto mais se aproximavam de Jerusalém, mais os discípulos alimentavam projetos de poder e sonhos de grandeza, imaginando a restauração do reino davídico-salomônico e, consequentemente, a ocupação de cargos de honra na administração. Diante disso, o evangelista insiste em apresentar as crianças como modelo, considerando a insignificância que lhes era atribuída na época. E o fato de os discípulos repreenderem as crianças, mostra o quanto eles ainda estavam distantes do projeto de Jesus. Na verdade, estavam em completa oposição a Jesus, pois faziam o contrário do que ele proponha. No debate sobre o divórcio, Jesus elevou a mulher à condição de igualdade; agora, com as crianças, eleva todas as categorias de pessoas excluídas à condição de preferidas do Reino.

Com a atitude escandalosa dos discípulos – no evangelho, causa escândalo quem atrapalha alguém de se aproximar de Jesus – o evangelista diz que «Jesus se aborreceu e disse: “Deixai vir a mim as crianças. Não as proibais, porque o Reino de Deus é dos que são como elas”» (v. 14). Esse esse episodio é narrado pelos três evangelhos sinóticos, mas somente Marcos diz que Jesus “se aborreceu”. Aliás, considerando os quatro evangelhos, essa é a única passagem em que se afirma que Jesus teve esse sentimento. O verbo grego empregado pelo evangelista (ἀγανακτέω – aganakteo) poderia ser traduzido também por “ficou irado” ou “teve raiva”. Esse detalhe é importante por três motivos: primeiro, porque demonstra a importância que Jesus dava às crianças – como imagem de todas as categorias de pessoas vulneráveis e marginalizadas da sociedade; segundo, porque denuncia o quanto era absurda a atitude dos discípulos; e, terceiro, porque mostra a preocupação do evangelista Marcos em revelar plenamente a humanidade de Jesus, apresentando-o como um homem de sentimentos. De fato, Revelar os traços humanos de Jesus era muito importante para Marcos. Isso torna o seu Evangelho o mais realista dos quatro.

Ao dizer que Jesus, um homem que adotou o amor como regra de vida, ficou irado, e disse o motivo da ira, o evangelista comprometeu a sua comunidade e as comunidades de todos os tempos: acolher as crianças, ou seja, os pequeninos, é um imperativo cristão. As crianças, sobretudo nesta passagem do evangelho, são a síntese e imagem de todas as categorias de pessoas necessitadas, marginalizadas, discriminadas pela sociedade e a religião. Quando a comunidade cristã se distancia destas pessoas, quando não faz opção preferencial por elas, está provocando a ira de Jesus. Além de preferidas, as crianças são apresentadas também como modelo de pertença ao Reino de Deus (v. 15). Os discípulos estavam alimentando sonhos triunfalistas, imaginando a conquista de um reino pela força. Pensavam estar a caminho de Jerusalém para a restauração da monarquia davídica. Por isso, Jesus insiste tanto em propor as crianças como modelo para eles, como forma de combate a essa mentalidade. A criança é exemplo de quem necessita aprender, de quem está aberto ao outro, de quem não trama maldade nem alimenta ambições, de quem não se sente autossuficiente. Para pertencer ao Reino de Deus, como uma sociedade igualitária e justa, é imprescindível ter essas características.

Além de reprovar a atitude absurda dos discípulos com palavras, Jesus o faz também com gestos, como mostra o último versículo: «Ele abraçava as crianças e as abençoava, impondo-lhes as mãos» (v. 16). Isso mostra que seu ensinamento é coerente em todos os sentidos. São três atitudes bastante significativas: abraçar, abençoar e impor as mãos. Tudo isso representa a plenitude do cuidado e da proteção de Deus. Parece até uma forma de provocar os discípulos que não queriam sequer que as crianças se aproximassem dele. E Jesus não só quer que os pequeninos estejam perto de si, mas quer que se sintam abraçados, que sintam sua ternura. O gesto tradicional de acolhida e saudação da cultura judaica era o beijo no rosto, conhecido como “ósculo da paz”; o abraço era raro, sobretudo em espaço público, porque era um gesto considerado íntimo demais e tipicamente feminino; era reservado às mães para com os filhos. Com isso, o evangelista mostra que em Jesus se manifestam também os traços maternos de Deus, já anunciados no Antigo Testamento, mas como metáfora. Em Jesus, deixa de ser metáfora e se torna realidade. É também um sinal do evangelista para as comunidades de todos os tempos: é preciso acolher os pequenos com amor materno. Os pequeninos de sempre devem sentir-se abraçados pela comunidade dos seguidores de Jesus de Nazaré.

Igualdade nas relações e amor aos pequeninos são a síntese do evangelho de hoje. Por isso, é preciso que nossas comunidades acolham a mensagem humanizadora de Jesus conforme o relato de Marcos e reconfigurem suas estruturas, tornando-as cada vez mais alinhadas ao seu projeto. Mulher e criança, duas categorias de pessoas marginalizadas na época, evidenciadas no evangelho de hoje, são imagem e síntese de todas as pessoas por quem Jesus fez opção preferencial. Logo, são indicações claras do que devem fazer também as comunidades de hoje.

Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

sábado, junho 08, 2024

REFLEXÃO PARA O 10º DOMINGO DO TEMPO COMUM – MARCOS 3,20-35 (ANO B)



A liturgia deste décimo domingo do tempo comum prossegue com a leitura semi-contínua do Evangelho de Marcos, retomada no domingo passado, após a longa interrupção de mais de três meses, para a vivência de todo o ciclo pascal e as solenidades sucessivas. O evangelho proposto para a liturgia de hoje é Mc 3,20-35. Trata-se de um texto relativamente logo e bastante significativo para a compreensão de todo o ministério e mistério da vida de Jesus, enquanto Messias e Filho de Deus, enviado ao mundo para instaurar o Reino de Deus e combater as forças do mal, mediante sua mensagem humanizadora e agir libertador. Com o trecho lido na liturgia de hoje, o evangelista retrata mais um momento importante da missão de Jesus na Galileia, com as tradicionais reações de adesão e oposição à sua missão libertadora, mostrando que nenhum esquema religioso, social e cultural é capaz de contê-lo ou controlá-lo. O fato de ser o primeiro episódio narrado por Marcos após a constituição do grupo dos Doze (Mc 3,13-19) reforça ainda mais a importância desse texto, como veremos na contextualização, a seguir.

O episódio narrado faz parte ainda do início do ministério de Jesus na Galileia, embora sua fama já tivesse bem espalhada. Na verdade, não há consenso entre os estudiosos se o texto contém apenas um episódio ou mais de um. Após a última controvérsia com os fariseus, quando curou um homem da mão seca, na sinagoga em dia de sábado (Mc 3,1-6), a multidão que o acompanhava em busca de milagres e prodígios, só crescia (Mc 3,7-12). Isso o levou a constituir o grupo dos Doze (Mc 3,13-19), para que sua ação libertadora se expandisse cada vez mais (Mc 3,14-15). Inclusive, esse conjunto de acontecimentos aqui recordados é tudo o que foi saltado pela liturgia, entre o nono e o décimo domingo. À medida em que as multidões sedentas de dignidade, de justiça e de amor, cansadas de tanta opressão, aumentavam ao redor de Jesus, também aumentava a oposição daqueles que não aceitavam o seu comportamento fora dos padrões estabelecidos pela sociedade e a religião. É isso que o Evangelho de hoje mostra: Jesus rodeado por uma multidão na casa e, ao mesmo tempo, sendo contestado e mal compreendido pelos familiares e pelas autoridades religiosas do seu tempo.

A constituição do grupo dos Doze aconteceu na montanha (Mc 3,13), lugar especial para a oração e o encontro com Deus, conforme a mentalidade judaica. Logo após esse acontecimento, diz o evangelista que «Jesus voltou para casa com os seus discípulos. E de novo se reuniu tanta gente que eles nem sequer podiam comer» (v. 20). Como se vê, logo no primeiro versículo, o texto de hoje aparece muito rico de significado. Da montanha, o lugar privilegiado da oração e contemplação, Jesus passa direto para a casa, o lugar do encontro e do contato próximo com as pessoas. A casa (em grego: οἶκος – oikos) possui um valor muito significativo em toda a Bíblia e, mais ainda, para o Evangelho de Marcos, pois representa a alternativa proposta por Jesus para a realização do seu projeto em sua primeira dimensão espacial. Funciona como oposição à sinagoga e a qualquer instituição religiosa ou política. A casa é o espaço eclesial por excelência, pois é o lugar da fraternidade, da partilha e da solidariedade. É na casa onde Jesus fala abertamente com seus discípulos e vice-versa. Na casa, tudo é familiar, tudo é conhecido e de uso comum. A Igreja primitiva adotou a casa como o lugar da liturgia, da catequese e do encontro. Se é na casa onde acontece a vida, deve ser na casa o culto ao Deus da vida; um culto não ritual, mas serviçal e fraterno, acima de tudo. 

Essa casa para onde Jesus volta com seus discípulos, após a experiência na montanha, onde tinha acabado de constituir o grupo dos doze (Mc 3,13-19), obviamente, não é a casa de seus pais, em Nazaré, mas a casa adotada por ele em Cafarnaum. Provavelmente, era a casa dos irmãos André e Simão Pedro (Mc 1,29; 2,1). Ele tinha se estabelecido em Cafarnaum, apesar de manter seu grupo como um movimento itinerante, pelas oportunidades que essa cidade oferecia para a difusão da sua mensagem, principalmente pela localização às margens do lago da Galileia. A multidão reunida ao seu redor demonstra a aceitação de sua proposta pelas camadas mais populares da sociedade, sobretudo. Com tanta gente ao redor, Jesus e seus discípulos «nem sequer podiam comer»porque a prioridade era o serviço; com essa expressão o evangelista ressalta o aparente sucesso e, ao mesmo tempo, a dimensão do serviço na vida da comunidade. O discípulo deve pensar mais no outro do que em si próprio; nada de egoísmo na comunidade de Jesus. Com esse dado, o evangelista quer mostrar que a atenção primeira na comunidade deve ser dada às necessidades do próximo. Ora, Jesus e os discípulos “nem sequer podiam comer” porque estavam dando atenção às pessoas que lhes tinham procurado. E, certamente, as pessoas que o procuravam eram necessitadas, os pobres, doentes e pecadores, com quem ele tanto se identificava e, por isso, tinha feito opção clara por elas, desde os primeiros momentos de seu ministério.

Como já acenamos, a acolhida à mensagem de Jesus não era igual entre todos os grupos ou classes sociais. Ao contrário da multidão que o buscava constantemente, havia quem o contestasse e procurasse desqualificar a sua atuação libertadora, seja por incompreensão ou mesmo por maldade e medo de perder privilégios. Entres os que não o compreendiam, estavam os seus familiares. Talvez a incompreensão dos seus familiares fosse causada mais pelo que ouviam a seu respeito, uma vez que eles já não moravam mais juntos. Diante disso, o evangelista afirma que, «Quando souberam disso, os parentes de Jesus saíram para agarrá-lo, porque diziam que estava fora de si» (v. 21). Ora, Jesus já tinha deixado a família em Nazaré há algum tempo, e adotado a cidade de Cafarnaum como ponto de apoio para seu ministério itinerante. Porém, como sua fama se espalhava com facilidade, também chegaram notícias suas em Nazaré e, por sinal, não muito boas. Provavelmente, envergonhados pelo seu comportamento subversivo e fora dos padrões, seus familiares chegaram à conclusão de que ele só podia estar “fora de si”. Na verdade, a expressão mais adequada, conforme a língua original do texto é “tinha enlouquecido” (em grego ἐξέστη – exéste), expressão empregada para dizer que alguém tinha perdido o uso da razão e, por isso, deveria ser retirado do convívio social.

A maneira como Jesus se relacionava com todos, sobretudo o amor e a acolhida para com as pessoas desprezadas da sociedade, dava a impressão de que ele, realmente, estava louco, para quem estava apegado à mentalidade conservadora da época, imposta pela sociedade e a religião. Na verdade, louco e subversivo, era isso que Jesus parecia, conforme os padrões de comportamento da época. Diante disso, seus familiares tomaram a decisão de procurá-lo para prendê-lo, levá-lo para casa e, assim, evitar que ele continuasse a envergonhar o nome da família com um comportamento fora dos padrões estabelecidos. O verbo que o texto litúrgico traduz por agarrar significa mais precisamente “prender à força” ou “capturar” (em grego: κρατέω – kratêo), de acordo com a língua original do texto. Jesus estava se comportando tão fora do normal, que seus familiares saíram de Nazaré para Cafarnaum dispostos a levá-lo à força. De fato, a proximidade de Jesus com a escória da sociedade – prostitutas, enfermos, pecadores, etc – rendia-lhe o rótulo de louco, e isso causava vergonha nos seus familiares, incluindo a mãe. Alem de juntar-se com as pessoas mais sem reputação da época, ele ainda enfrentava publicamente as autoridades, tanto no campo religioso quanto político. Por isso, a incompreensão dos seus familiares eram motivadas também por um certo cuidado com sua própria integridade física, pois ele corria perigos constantemente, alem da vergonha que lhes causava.

Com rapidez, a fama de Jesus chegou também em Jerusalém, centro do poder religioso e político, onde estavam as autoridades constituídas para manter a ordem e o controle social e ideológico. Se na pequena Nazaré Jesus era considerado louco, na capital era visto como “endemoniado”, provocando a ida de uma comitiva oficial para Cafarnaum, a fim de tentar impedir que ele continuasse o seu ministério. Assim atesta o evangelista: «Os mestres da Lei, que tinham vindo de Jerusalém, diziam que ele estava possuído por Beelzebu, e que pelo príncipe dos demônios ele expulsava os demônios» (v. 22). Os mestres da Lei ou escribas constituíam a elite intelectual da época; eram refinados teólogos, intérpretes oficiais da Lei e de toda a Escritura. Para a religião oficial da época, eram eles quem decidiam se uma doutrina era válida ou não, ou seja, se vinha de Deus ou de satanás. E a acusação que fazem a Jesus é bastante grave, considerando o teor e o contexto. Enquanto Jesus anuncia a chegada do Reino de Deus, compreendido como um projeto de sociedade marcado pela igualdade, justiça e amor, seus adversários tentam desqualificá-lo, acusando-o de agir em nome do demônio. Beelzebu, cujo nome significa “senhor das moscas” ou “senhor do esterco”, era uma divindade filisteia, considerada a portadora de doenças em Israel. Era a expressão máxima do mal para os judeus mais devotos. Associar Jesus a essa entidade era desqualificar sua atividade ao extremo.

Além de perversa e hipócrita, a acusação dos mestres da Lei era também contraditória, por isso foram desmascarados instantaneamente, como diz o texto: «Então Jesus os chamou e falou-lhes em parábolas: “Como é que Satanás pode expulsar Satanás?”» (v. 23). Ora, se toda a atividade de Jesus, desde o início do seu ministério, consistia no anúncio do Reino de Deus e, consequentemente, na eliminação do mal, a acusação dos mestres da Lei não tinha o mínimo fundamento. “Satanás” é a expressão do antagonista de Deus, conforme a mentalidade bíblica e, por isso, era o opositor de Jesus, aquele que precisava ser derrotado. Logo, se Jesus, com seu agir libertador e humanizante estava tirando as pessoas do domínio de satanás, não poderia ser seu aliado. Para deixar ainda mais claro o quanto os mestres da Lei estavam mal-intencionados, Jesus aprofunda a contradição deles com duas mini parábolas: tanto um reino quanto uma casa não podem sobreviver com divisões internas; as divisões são sempre causas de ruína e destruição (v. 24-27). A argumentação de Jesus é lógica e sensata. Com isso, ele afirma de maneira incontestável que sua missão é combater o mal, como já tinha demonstrado nas ações ou milagres até então realizados, incluindo o perdão dos pecados. Portanto, não tinha fundamento a afirmação dos mestres da Lei. Jesus combate Satanás e todo o mal presente no mundo, não com rituais e fórmulas doutrinárias, como os mestres da Lei e sacerdotes da época, mas fazendo o bem: curando, amando e perdoando, enfim, com seu agir humanizante.

Jesus encerra a discussão com os mestres da Lei, com uma declaração solene bastante impactante: «Em verdade vos digo: tudo será perdoado aos homens, tanto os pecados, como qualquer blasfêmia que tiverem dito. Mas quem blasfemar contra o Espírito Santo, nunca será perdoado, mas culpado de um pecado eterno» (v. 28-29). A introdução solene “em verdade vos digo” (em grego: Ἀμὴν λέγω ὑμῖν – Amén lêgo hymin) significa que aquilo que está para ser anunciado é de fundamental importância para o auditório, como é o que ele declara aqui: o pecado contra o Espírito Santo é imperdoável. Mas, qual é mesmo o pecado contra o Espírito Santo? Ora, é exatamente aquilo que os mestres da lei estavam fazendo: de maneira lúcida e voluntária, eles negavam a ação de Deus e do seu Espírito em Jesus. É inadmissível que não se reconheça que tudo o que Jesus fazia e faz é trazer Deus para a vida das pessoas, tornando-o acessível e presente. Na verdade, era essa acessibilidade a Deus, livre e gratuita, oferecida por Jesus, o que irritava os mestres da Lei e as demais autoridades religiosas do seu tempo, pois isso significava para elas perda de poder e privilégios.

Conhecendo o Deus amoroso revelado por Jesus, as pessoas deixavam de aceitar e de submeter-se ao Deus juiz, vingativo e mercantilista do templo. A pregação de Jesus era uma ameaça à sobrevivência daquela religião e de qualquer instituição que negasse a liberdade das pessoas, incluindo a própria família. Por isso, as autoridades faziam de tudo para impedir Jesus de continuar o seu ministério. E para Jesus, a tentativa de bloquear a ação de Deus na história, revelada por ele com sua mensagem e práxis, é a verdadeira blasfêmia, é o grande pecado. O pecado contra o Espírito Santo é, portanto, a pretensão de todo sistema religioso de determinar ou negar o agir de Deus na história. O que as lideranças religiosas da época, representadas no texto pelos mestres da Lei, consideravam blasfêmia de Jesus era a sua maneira de curar, amar, perdoar e acolher as pessoas marginalizadas. Ora, a acolhida de Jesus a essas pessoas desmentia o que era ensinado pela religião, por isso, ele era detestado pelos mestres da Lei, sacerdotes e fariseus. A religião dizia que as pessoas sofriam por vontade de Deus ou porque estavam pagando pelos pecados delas ou dos antepassados; ensinava que o mundo injusto e desigual era querido por Deus. Jesus desmente tudo isso. Os mestres da Lei, com todo o conhecimento que tinham da Escritura, tinham meios suficientes para não cultivar uma mentalidade tão hipócrita e maléfica para a vida das pessoas. Por isso, o pecado deles era imperdoável, pois estavam negando a ação do Espírito Santo no agir libertador e humanizador de Jesus.

A sequência do texto dá a impressão de que Jesus ainda estava em discussão com os mestres da Lei quando chegam seus familiares. Com isso, o evangelista enfatiza o quanto ele era perseguido. Ainda estava tentando desmascarar a comitiva de Jerusalém e, ao mesmo tempo, tem de se justificar perante seus familiares de Nazaré. Eis o que diz o evangelista: «Nisto chegaram sua mãe e seus irmãos. Eles ficaram do lado de fora e mandaram chamá-lo. Havia uma multidão sentada ao redor dele. Então lhe disseram: “Tua mãe e teus irmãos estão lá fora à tua procura”» (vv. 31-32). Ora, Jesus estava na casa e circundado por uma multidão que, certamente, o escutava atentamente. De propósito, o evangelista enfatiza duas posturas opostas diante dele: ficar do lado de fora e apenas ouvir o que se diz a seu respeito, ou entrar na casa e sentar-se ao seu redor, experimentando pessoalmente o amor e a plenitude de vida que ele transmite por meio de palavras de gestos de libertação. Quem fica do lado de fora, sabe pouco sobre ele; e o pouco que sabe, o sabe superficialmente e distorcido. Quem senta ao seu redor, pelo contrário, não apenas o escuta, mas olha nos seus olhos, sente a sua presença, como deve ser a postura da comunidade dos seus discípulos e discípulas. À medida em que ficam do lado de fora, seus familiares de sangue não estão sendo sua família, não tem sequer coragem de dirigir-se diretamente a ele, mandam apenas um recado. Esse é o retrato da relação superficial.

É claro que o evangelista não pretende mostrar nem criar oposição ou rivalidade entre os familiares de Jesus e a comunidade dos discípulos; ele quer apenas ajudar a sua comunidade a compreender que, aceitar a proposta de vida de Jesus implica assumir uma maneira diferente de viver, com novos critérios de pertença e relação. É isso o que fica claro com a pergunta e a sequência da declaração de Jesus: «“Quem é minha mãe, e quem são meus irmãos?”. E olhando para os que estavam sentados ao seu redor, disse: “Aqui estão minha mãe e meus irmãos. Quem faz a vontade de Deus, esse é meu irmão, minha irmã e minha mãe”» (v. 33-35). A pergunta como introdução a um ensinamento constituía um importante recurso retórico, tanto para a pedagogia judaica quanto para a grega. Tem a função de chamar a atenção dos ouvintes, gerando curiosidade e, assim, prender a atenção. A sequência do ensinamento é muito importante. Com ela, ao invés de menosprezar os seus familiares de sangue, Jesus está dando a oportunidade de também eles entrarem na dinâmica do Reino de Deus e, ao mesmo tempo, mostrando que qualquer pessoa, independentemente da origem, pode fazer parte da sua família. É muito provável que essa afirmação seja uma advertência do evangelista à comunidade pós-pascal de Jerusalém, dirigida por Tiago, parente muito próximo de Jesus. Conforme dados de Atos dos Apóstolos e da Carta aos Gálatas, esse personagem pretendia monopolizar as decisões da comunidade. A reivindicação do parentesco com Jesus poderia favorecer a imposição de ideias e costumes sobre a comunidade.

Independentemente do provável pano de fundo histórico, o importante é que a afirmação atribuída a Jesus propõe uma ressignificação de conceitos e de valores. Ora, juntando o que ele diz sobre a família ao desmascaramento do poder religioso, no embate anterior com os mestres da Lei, ele desestabiliza as principais instituições da sociedade israelita: a família e a religião. É claro que Jesus não faz oposição à família em si, até porque o seu projeto de sociedade baseia-se na fraternidade, na irmandade, o que pressupõe o cultivo de relações familiares. A própria casa, como instância espacial primeira da comunidade, evoca a necessidade de relações familiares. O que ele propõe são novos critérios de pertença. A vivência do amor fraterno não pode ser limitada à consanguinidade, e o que importa na sua comunidade é a vivência do amor fraterno e materno; por isso, Jesus não cita a figura do pai no modelo de família que deve ser a comunidade cristã. Ora, na sociedade patriarcal o pai é sinônimo de concentração de poder e domínio absoluto; tudo na família depende das suas decisões. Por isso, o pai não figura no modelo de família que Jesus propõe enquanto comunidade. É claro que tem espaço para os pais de família na comunidade de Jesus, mas não com as funções que a sociedade patriarcal lhes atribuía. O que não tem espaço na comunidade é a concentração de poderes absolutos por uma única pessoa, como o pai na família patriarcal. Irmãos e irmãs significam a disposição de viver intensamente a fraternidade, mãe significa a capacidade de amar e gerar Cristo para o outro. 

Todo mundo que vive o amor fraterno e, com o jeito de viver, gera Cristo para o próximo, esse é irmão, irmã e mãe de Jesus. É isso o que ele ensina com a conclusão do evangelho de hoje, e é essa a missão de todo cristã e cristã. Para isso, é necessário sentar-se ao seu redor e ouvi-lo. A adesão ao Reino exige uma conversão completa, ou seja, mudança de mentalidade, inclusive na concepção de família. O seguimento a Jesus não comporta meios termos. Seu projeto de vida exige tomada de decisão. As notícias a seu respeito se espalhavam de Jerusalém a Nazaré, o que gerava muitas incompreensões. Diante de isso, era e continua sendo indispensável “entrar na casa” e sentar-se ao seu redor para escutá-lo; sem essa experiência, qualquer juízo sobre a sua pessoa será distorcido ou parcial. E o que ele realmente quer é que a humanidade inteira se torne sua família.

Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

REFLEXÃO PARA A FESTA DA EXALTAÇÃO DA SANTA CRUZ – JOÃO 3,13-17

  Neste ano, a liturgia do vigésimo quarto domingo do tempo comum é substituída pela Festa da exaltação da Santa Cruz, cujo evangelho é Jo...