O
evangelho proposto para a liturgia do trigésimo domingo do tempo comum é Mc
10,46-52. Esse texto corresponde à última etapa do caminho de Jesus com seus
discípulos em direção à cidade de Jerusalém, onde acontecerão os eventos da sua
paixão, morte e ressurreição. Como sempre, é oportuno recordar que esse caminho
não é apenas um percurso físico-espacial, mas, sobretudo, um programa
catequético, teológico e espiritual, apresentado pelos três evangelhos
sinóticos (Mateus, Marcos e Lucas). Nesse caminho, Jesus procura conscientizar
os seus discípulos a respeito da sua verdadeira identidade: ele não é um
messias glorioso e forte, mas servidor e sofredor que, ao invés de restaurar o
reino de Davi, como esperavam os judeus do seu tempo, propõe a instauração do
Reino de Deus. Esse processo de conscientização proposto consiste num
verdadeiro “abrir os olhos” dos discípulos, uma vez que as expectativas messiânicas
alimentadas por eles é comparável a uma cegueira. E Jesus fazia isso com
bastante transparência, como demonstram os três anúncios explícitos da paixão
e, mesmo assim, os discípulos continuavam sem compreender e sem aceitar esse
destino, pois estavam movidos por pretensões de poder.
O episódio
narrado no evangelho hoje é a cura de Bartimeu, um cego que mendigava às
margens da estrada, na saída da cidade de Jericó. Esse relato se torna
emblemático e decisivo para a catequese de Marcos e a vida de todos os
discípulos e discípulas de Jesus, em todos os tempos. Trata-se do último
milagre de Jesus, conforme a narrativa de Marcos, o que confere ainda mais relevância
ao episódio. Mais do que uma crônica, é uma espécie de parábola, por meio da
qual Jesus denuncia a situação dos seus discípulos, e Marcos atualiza essa
denúncia para a sua comunidade: há uma cegueira generalizada entre os
seguidores de Jesus quando buscam prestígio, poder, riquezas e privilégios,
quando não aceitam que o Reino de Deus pertence aos pequenos, excluídos e
marginalizados, como era o cego naquela época. Ora, durante o caminho, os
discípulos tinham feito proselitismo, alimentado rivalidades discutindo sobre quem
era o maior entre eles, e almejado lugares de honra, demonstrando, com isso,
uma verdadeira cegueira ao que Jesus estava propondo e anunciando. Por isso, ao
apresentar, na reta final desse caminho, um cego gritando por ajuda, o
evangelista denuncia a situação dos discípulos e da sua comunidade, mostrando suas
reais necessidades.
Olhemos
com atenção para o texto, partindo do início: «Jesus saiu de
Jericó, junto com seus discípulos e uma grande multidão. O filho de Timeu,
Bartimeu, cego e mendigo, estava sentado à beira do caminho» (v. 46).
Esse primeiro versículo já traz muitas informações importantes; a primeira, é a
confirmação de que Jesus se encontra em caminho, cujo destino o leitor e leitora
já conhecem: a cidade de Jerusalém; a segunda, é que, encontrando-se em
caminho, ele está em movimento. Ora, o caminho é um lugar importante para uma
comunidade itinerante como a de Jesus. Representa a exposição aos riscos e
perigos, mas também é sinal de abertura ao encontro e ao diálogo com o
diferente; acentua que, desde o início, a Igreja existe para estar sempre em
saída. Um outro indicativo espacial importante presente no versículo é a cidade
de Jericó. Situada a aproximadamente trinta quilômetros de Jerusalém, Jericó
era a última parada do caminho para a cidade santa (Jerusalém), para quem
partia da Galileia, como Jesus e seus discípulos. A cidade de Jericó tem grande
significado para a tradição bíblica; foi a primeira cidade conquistada pelo
povo de Israel, sob a liderança de Josué, após a entrada na terra prometida (Js
6,1-14). No tempo de Jesus, era uma cidade estratégica também do ponto de vista
econômico. Sendo passagem obrigatória para quem ia do norte para Jerusalém,
milhares de peregrinos passavam por ela durante o ano, principalmente na época
das grandes festas religiosas de Israel, como a páscoa, pentecostes e a festa
das tendas; isso fomentava a economia, ao mesmo tempo em que facilitava a
aglomeração de mendigos pedindo esmolas à beira da estrada, fenômeno muito
comum nas proximidades dos santuários e centros de peregrinação, até os dias de
hoje.
Além dos
discípulos, também uma grande multidão acompanha Jesus. Além de admiradores,
pessoas que tinham se encantado com ele ao longo do caminho, essa multidão era
também, com muita probabilidade, composta por peregrinos em geral que já se
dirigiam à Jerusalém para a festa da Páscoa que se aproximava, pois era recomendável
andar em caravanas, por questão de segurança. Certamente, havia na multidão também
pessoas que ainda não conheciam Jesus, que tinham se unido ao seu grupo por
coincidência. Dos muitos pedintes que, certamente, estavam à beira do caminho,
o evangelista destaca um: o cego Bartimeu, filho de Timeu. Na verdade, Bartimeu
é um título patronímico, forma hebraica da expressão “filho de Timeu”. E Timeu
significa honra ou honorável. Por consequência, Bartimeu significa “filho da
honra”. Esse é o único caso, no Evangelho de Marcos, em que um doente
necessitado de cura é chamado pelo nome, um dado que não pode passar
despercebido. E é somente Marcos quem atribui esse nome, pois nas versões
paralelas do episódio em Mateus e Lucas o referido personagem é apresentado apenas
como cego (Mt 20,29-34; Lc 18,35-43). A sua condição de cego lhe impedia de ser
integrado à comunidade, restando-lhe somente as margens da sociedade e a
mendicância para a sobrevivência. Esse personagem se torna representação da
situação do discipulado, por isso o evangelista lhe dá tanta ênfase. É uma
situação que exige transformação, e Bartimeu aceitou esse processo, ao contrário
do que os discípulos de primeira chamada tinham demonstrado até aqui.
Bartimeu
era consciente de sua condição de necessitado – de cego, precisamente – e
alimentava a esperança de voltar a ver. Isso faz dele uma figura representativa
do empobrecido, segundo a concepção bíblica: é aquele que reconhece a sua real
necessidade e deposita sua confiança em Deus, na pessoa do seu enviado:
Jesus. Por isso, «quando ouviu dizer que Jesus, o Nazareno,
estava passando, começou a gritar: “Jesus, filho de Davi, tem piedade de mim!”» (v.
47). A fama de Jesus já tinha chegado em Jericó e alimentava a esperança dos
humildes e marginalizados, como os cegos. Porém, ele ainda não era compreendido
nem reconhecido como o Filho de Deus, mas como o esperado messias nacionalista,
o descendente de Davi. A cegueira dos discípulos consistia, sobretudo, nessa
compreensão equivocada da identidade de Jesus. Ora, conceber Jesus como o filho
de Davi é imaginá-lo guerreando, combatendo pela força para conquistar o trono
e exercer o poder como os chefes deste mundo, algo totalmente incompatível com
sua mensagem e proposta de Reino de Deus. Porém, apesar de expressar-se segundo
a ideologia nacionalista, Bartimeu já demonstra uma compreensão mais refinada
do que os discípulos de primeira ora, sobretudo os Doze. Ele não pede honra nem
poder, como fizeram os filhos de Zebedeu, mas suplica por piedade (em
grego: ἐλέησόν – eleyson), o que poderia
ser traduzido também por compaixão ou misericórdia. Isso reforça ainda mais a
sua exemplaridade: sabe do que necessita, e sabe o que Jesus pode lhe conceder.
Imaginando
que seguiam ao messias davídico, as pessoas que acompanhavam Jesus,
principalmente os discípulos, queriam monopolizá-lo, impedindo que outras
pessoas se aproximassem dele, com medo de perder prestígio e privilégio quando
fosse restaurado o reino de Israel. Os discípulos já tinham repreendido as
crianças para que não se aproximassem, João tinha proibido a um homem
desconhecido de agir em nome de Jesus. Agora, repreendem também o cego por
querer aproximar-se de Jesus e pedir a sua compaixão: «Muitos o
repreendiam para que se calasse. Mas ele gritava mais ainda: “Filho de Davi,
tem piedade de mim!”» (v. 48). Apesar de não afirmar
explicitamente que eram os discípulos os responsáveis pela repreensão ao cego,
o histórico de reincidências os denuncia. A atitude dos que repreendiam o cego
é, muitas vezes, a postura das religiões em geral e, sobretudo, de muitos
grupos cristãos: querer controlar a pessoa de Jesus, impedindo que ele seja
conhecido e experimentado por todas as pessoas, principalmente pelas mais
necessitadas. Temos aqui uma denúncia do evangelista à sua comunidade e uma
advertência às comunidades futuras. Jesus não é propriedade de ninguém; logo,
ninguém pode ser impedido de aproximar-se dele e falar, dizer o que pensa e o
que necessita. É preciso combater as tentativas de silenciamento nas
comunidades. Todas as pessoas devem ser ouvidas, todos tem direito de expressar
suas demandas, com seus sonhos. E quem ensina isso é o próprio Jesus, que não
se deixa controlar pelos interesses de nenhuma religião ou grupo religioso.
Ele faz
questão que as pessoas excluídas pela religião e pela sociedade se aproximem
dele, como mostra o texto: «Então Jesus parou e disse: “Chamai-o. Eles
o chamaram e disseram: “Coragem, levanta-te, Jesus te chama!”» (v.
49). Como se vê, Jesus interrompe seu caminho quando vê a necessidade do
próximo. Ele para quando é interpelado por alguém, independentemente da
condição social. Há dois domingos, o evangelho mostrava ele sendo interpelado
por um homem muito rico, com quem desenvolveu um franco diálogo (Mc 10,17-30). Quando
se trata de uma pessoa necessitada e excluída, ele mesmo chama para perto de
si, como mostra o evangelho de hoje. Chama a atenção, neste versículo, três
ocorrências do verbo chamar (em grego: φωνέω – fonêo). Isso indica o alto teor vocacional que
o texto contém, um dado que confirma tratar-se de um episódio paradigmático
para o discipulado de todos os tempos. Também é significativo o encorajamento
para o cego levantar-se. É um convite a sair de si. Ele estava sentado, em
situação de espera e dependência, embora não fosse por comodismo, mas devido
aos condicionamentos impostos pela deficiência. A súplica por compaixão já
tinha demonstrado que não era uma pessoa acomodada; se fosse, teria apenas pedido
uma esmola, como era o costume. Ao suplicar por compaixão, ele expressou
esperança e seu desejo de mudança de vida, como vai mostrar a sequência do
texto.
Diante do convite
de Jesus, o evangelista afirma que «o cego jogou o manto, deu um pulo e
foi até Jesus» (v. 50). Aqui, a atitude do cego evidencia o
entusiasmo e a alegria de quem tem reacesa a esperança. O primeiro gesto, jogar
o manto, significa abrir mão de tudo, é o “renunciar a si mesmo”, uma das
exigências de Jesus para o seu seguimento. Recorda a atitude dos primeiros
discípulos que, diante do chamado de Jesus, deixaram redes, barca e família (Mc
1,16-20). Jogando o manto, portanto, o cego renunciou a tudo, inclusive às
esmolas que já tinha recebido naquele dia. Ora, além de ser o único sinal de
dignidade que ainda lhe restava, era no manto que se depositavam as esmolas. Os
mendigos que pediam esmolas sentados, como os cegos e os paralíticos, estendiam
o manto diante de si enquanto pediam, para que os transeuntes jogassem as esmolas
no manto, evitando qualquer forma de toque, o que poderia deixar os outros
impuros. O encontro autêntico com Jesus depende da capacidade de renunciar a
tudo o que pode causar impedimento, como o apego aos bens. A renúncia ao manto,
tornou o cego uma pessoa livre, por isso, ele “deu um pulo”; além da alegria,
esse gesto significa também a liberdade reconquistada. Com isso, o evangelista
recorda e denuncia, implicitamente, com o gesto do cego, os dois
contra-exemplos anteriores na sua narrativa: o homem rico que não foi capaz de
deixar o que possuía para herdar a vida eterna (Mc 10,17-30; evangelho do 28º
domingo), e a ambição de João e Tiago por lugares de honra (cf. Mc 10,35-41;
evangelho do 29º domingo). O pulo do cego é um salto qualitativo na sua vida,
marco do encontro transformador com Jesus, salto esse que os discípulos da
primeira chamada recuavam de vez em quando.
É muito
significativo que, mesmo conhecendo as necessidades do cego, «Jesus lhe
perguntou: “O que queres que eu te faça?” O cego respondeu: “Mestre, que eu
veja!”» (v. 51). A pergunta de Jesus visa evidenciar o
itinerário do discipulado: a passagem da cegueira à visão. Inclusive, é a mesma
pergunta feita aos dois filhos de Zebedeu (Mc 10,36), sendo que eles pediram
poder, algo absurdo para o projeto de Jesus. Essa pergunta mostra o interesse
de Jesus pelo próximo com suas reais necessidades. Revela o quanto ele
valorizava a escuta e, consequentemente, como deve ser a comunidade cristã: um
espaço onde todos devem ter vez e voz, onde ninguém deve ser silenciado. Ver
era a necessidade de todos os que acompanhavam Jesus, mas somente o cego
Bartimeu foi capaz de assumir e pedir, com confiança. Enquanto estava longe,
ele chamava Jesus de “Filho de Davi”, influenciado pela ideologia nacionalista.
Agora, estando face a face com Jesus, ele deixa de lado a ideologia
nacionalista e começa a reconhecer a verdadeira identidade de Jesus, chamando-o
de Mestre. Isso faz de Bartimeu um potencial candidato ao discipulado; e, de
fato, ele se tornará um autêntico discípulo, atestando sua transformação
pessoal, semelhante à passagem das trevas à luz, vivendo um autêntico processo
de humanização. Ainda a propósito do título de mestre aplicado a Jesus, por Bartimeu,
o evangelista não emprega a tradicional forma grega “didáskalos”, e sim a forma
aramaica “rabuni”, que, literalmente, significa “meu mestre”, o que confere mais
solenidade e confiança, ao mesmo tempo.
Após ouvir
a demanda de Bartimeu, que queria apenas ver, Jesus o declara curado e deixa
clara a causa da cura, a fé: «Jesus disse: “Vai, a tua fé te curou”. No
mesmo instante, ele recuperou a vista e seguia Jesus pelo caminho» (v.
52). De acordo com Jesus, o cego foi curado pela própria fé; não foram
necessários sinais ou gestos extraordinários; bastou um encontro sincero, autêntico
com Jesus, verdadeiro mestre de humanização, ao contrário das curas do do
surdo-mudo (Mc 7,31-37) e do cego de Betsaida (Mc 8,22-26), nas quais ele
empregou uma intensa atividade terapêutica, usando as mãos e a saliva. Nesse
encontro com o cego de Jericó, houve apenas expressão de uma necessidade e uma abertura
à escuta. Antes de tudo, Jesus permitiu que o cego falasse, que expressasse sua
real necessidade. E a atitude de Bartimeu, logo após recuperar a vista, foi o
seguimento. Assumiu o discipulado e começou a seguir Jesus pelo caminho. O
encontro transformador gerou um novo discípulo para Jesus. A vista recuperada
do cego, nesse relato, significa, portanto, uma verdadeira exigência e o último
apelo de Jesus aos discípulos para abrirem-se à sua mensagem de libertação; por
isso, esse foi o último milagre narrado no Evangelho de Marcos. Abrir os olhos
é um imperativo para os discípulos, enquanto a escuta é um critério de
identificação da comunidade com Jesus.
Mais do
que demonstração de força e poder, os milagres narrados nos evangelhos têm a função de mostrar a
necessidade de transformação e mudança de mentalidade pelas quais toda pessoa
deve passar para aderir à mensagem de Jesus. Para isso, é necessário, acima de
tudo, abrir os olhos, independentemente das condições físicas. Abrir os olhos é
metáfora de abertura interior, de convencimento e aceitação da proposta de
Jesus. É essa a necessidade principal das comunidades cristãs em todos os
tempos: abrir os olhos para ver como Jesus e reconhecer sua presença nos mais
necessitados e humildes, e discernir quais projetos, de fato, estão em sintonia
com o seu Evangelho. À necessidade de abrir os olhos, acrescenta-se a exigência
da escuta na comunidade, para que o seguimento de Jesus seja um verdadeiro
“caminhar juntos”. A ênfase do evangelho de hoje, portanto, não é o poder
terapêutico de Jesus, mas a adesão de Bartimeu, como modelo de discípulo, ao
seu seguimento.
Pe.
Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN