sábado, outubro 26, 2024

REFLEXÃO PARA O 30º DOMINGO DO TEMPO COMUM – MARCOS 46-52 (ANO B)

 


O evangelho proposto para a liturgia do trigésimo domingo do tempo comum é Mc 10,46-52. Esse texto corresponde à última etapa do caminho de Jesus com seus discípulos em direção à cidade de Jerusalém, onde acontecerão os eventos da sua paixão, morte e ressurreição. Como sempre, é oportuno recordar que esse caminho não é apenas um percurso físico-espacial, mas, sobretudo, um programa catequético, teológico e espiritual, apresentado pelos três evangelhos sinóticos (Mateus, Marcos e Lucas). Nesse caminho, Jesus procura conscientizar os seus discípulos a respeito da sua verdadeira identidade: ele não é um messias glorioso e forte, mas servidor e sofredor que, ao invés de restaurar o reino de Davi, como esperavam os judeus do seu tempo, propõe a instauração do Reino de Deus. Esse processo de conscientização proposto consiste num verdadeiro “abrir os olhos” dos discípulos, uma vez que as expectativas messiânicas alimentadas por eles é comparável a uma cegueira. E Jesus fazia isso com bastante transparência, como demonstram os três anúncios explícitos da paixão e, mesmo assim, os discípulos continuavam sem compreender e sem aceitar esse destino, pois estavam movidos por pretensões de poder.

O episódio narrado no evangelho hoje é a cura de Bartimeu, um cego que mendigava às margens da estrada, na saída da cidade de Jericó. Esse relato se torna emblemático e decisivo para a catequese de Marcos e a vida de todos os discípulos e discípulas de Jesus, em todos os tempos. Trata-se do último milagre de Jesus, conforme a narrativa de Marcos, o que confere ainda mais relevância ao episódio. Mais do que uma crônica, é uma espécie de parábola, por meio da qual Jesus denuncia a situação dos seus discípulos, e Marcos atualiza essa denúncia para a sua comunidade: há uma cegueira generalizada entre os seguidores de Jesus quando buscam prestígio, poder, riquezas e privilégios, quando não aceitam que o Reino de Deus pertence aos pequenos, excluídos e marginalizados, como era o cego naquela época. Ora, durante o caminho, os discípulos tinham feito proselitismo, alimentado rivalidades discutindo sobre quem era o maior entre eles, e almejado lugares de honra, demonstrando, com isso, uma verdadeira cegueira ao que Jesus estava propondo e anunciando. Por isso, ao apresentar, na reta final desse caminho, um cego gritando por ajuda, o evangelista denuncia a situação dos discípulos e da sua comunidade, mostrando suas reais necessidades. 

Olhemos com atenção para o texto, partindo do início«Jesus saiu de Jericó, junto com seus discípulos e uma grande multidão. O filho de Timeu, Bartimeu, cego e mendigo, estava sentado à beira do caminho» (v. 46). Esse primeiro versículo já traz muitas informações importantes; a primeira, é a confirmação de que Jesus se encontra em caminho, cujo destino o leitor e leitora já conhecem: a cidade de Jerusalém; a segunda, é que, encontrando-se em caminho, ele está em movimento. Ora, o caminho é um lugar importante para uma comunidade itinerante como a de Jesus. Representa a exposição aos riscos e perigos, mas também é sinal de abertura ao encontro e ao diálogo com o diferente; acentua que, desde o início, a Igreja existe para estar sempre em saída. Um outro indicativo espacial importante presente no versículo é a cidade de Jericó. Situada a aproximadamente trinta quilômetros de Jerusalém, Jericó era a última parada do caminho para a cidade santa (Jerusalém), para quem partia da Galileia, como Jesus e seus discípulos. A cidade de Jericó tem grande significado para a tradição bíblica; foi a primeira cidade conquistada pelo povo de Israel, sob a liderança de Josué, após a entrada na terra prometida (Js 6,1-14). No tempo de Jesus, era uma cidade estratégica também do ponto de vista econômico. Sendo passagem obrigatória para quem ia do norte para Jerusalém, milhares de peregrinos passavam por ela durante o ano, principalmente na época das grandes festas religiosas de Israel, como a páscoa, pentecostes e a festa das tendas; isso fomentava a economia, ao mesmo tempo em que facilitava a aglomeração de mendigos pedindo esmolas à beira da estrada, fenômeno muito comum nas proximidades dos santuários e centros de peregrinação, até os dias de hoje.

Além dos discípulos, também uma grande multidão acompanha Jesus. Além de admiradores, pessoas que tinham se encantado com ele ao longo do caminho, essa multidão era também, com muita probabilidade, composta por peregrinos em geral que já se dirigiam à Jerusalém para a festa da Páscoa que se aproximava, pois era recomendável andar em caravanas, por questão de segurança. Certamente, havia na multidão também pessoas que ainda não conheciam Jesus, que tinham se unido ao seu grupo por coincidência. Dos muitos pedintes que, certamente, estavam à beira do caminho, o evangelista destaca um: o cego Bartimeu, filho de Timeu. Na verdade, Bartimeu é um título patronímico, forma hebraica da expressão “filho de Timeu”. E Timeu significa honra ou honorável. Por consequência, Bartimeu significa “filho da honra”. Esse é o único caso, no Evangelho de Marcos, em que um doente necessitado de cura é chamado pelo nome, um dado que não pode passar despercebido. E é somente Marcos quem atribui esse nome, pois nas versões paralelas do episódio em Mateus e Lucas o referido personagem é apresentado apenas como cego (Mt 20,29-34; Lc 18,35-43). A sua condição de cego lhe impedia de ser integrado à comunidade, restando-lhe somente as margens da sociedade e a mendicância para a sobrevivência. Esse personagem se torna representação da situação do discipulado, por isso o evangelista lhe dá tanta ênfase. É uma situação que exige transformação, e Bartimeu aceitou esse processo, ao contrário do que os discípulos de primeira chamada tinham demonstrado até aqui.

Bartimeu era consciente de sua condição de necessitado – de cego, precisamente – e alimentava a esperança de voltar a ver. Isso faz dele uma figura representativa do empobrecido, segundo a concepção bíblica: é aquele que reconhece a sua real necessidade e deposita sua confiança em Deus, na pessoa do seu enviado: Jesus.  Por isso, «quando ouviu dizer que Jesus, o Nazareno, estava passando, começou a gritar: “Jesus, filho de Davi, tem piedade de mim!”» (v. 47). A fama de Jesus já tinha chegado em Jericó e alimentava a esperança dos humildes e marginalizados, como os cegos. Porém, ele ainda não era compreendido nem reconhecido como o Filho de Deus, mas como o esperado messias nacionalista, o descendente de Davi. A cegueira dos discípulos consistia, sobretudo, nessa compreensão equivocada da identidade de Jesus. Ora, conceber Jesus como o filho de Davi é imaginá-lo guerreando, combatendo pela força para conquistar o trono e exercer o poder como os chefes deste mundo, algo totalmente incompatível com sua mensagem e proposta de Reino de Deus. Porém, apesar de expressar-se segundo a ideologia nacionalista, Bartimeu já demonstra uma compreensão mais refinada do que os discípulos de primeira ora, sobretudo os Doze. Ele não pede honra nem poder, como fizeram os filhos de Zebedeu, mas suplica por piedade (em grego: ἐλέησόν – eleyson), o que poderia ser traduzido também por compaixão ou misericórdia. Isso reforça ainda mais a sua exemplaridade: sabe do que necessita, e sabe o que Jesus pode lhe conceder.

Imaginando que seguiam ao messias davídico, as pessoas que acompanhavam Jesus, principalmente os discípulos, queriam monopolizá-lo, impedindo que outras pessoas se aproximassem dele, com medo de perder prestígio e privilégio quando fosse restaurado o reino de Israel. Os discípulos já tinham repreendido as crianças para que não se aproximassem, João tinha proibido a um homem desconhecido de agir em nome de Jesus. Agora, repreendem também o cego por querer aproximar-se de Jesus e pedir a sua compaixão: «Muitos o repreendiam para que se calasse. Mas ele gritava mais ainda: “Filho de Davi, tem piedade de mim!”» (v. 48). Apesar de não afirmar explicitamente que eram os discípulos os responsáveis pela repreensão ao cego, o histórico de reincidências os denuncia. A atitude dos que repreendiam o cego é, muitas vezes, a postura das religiões em geral e, sobretudo, de muitos grupos cristãos: querer controlar a pessoa de Jesus, impedindo que ele seja conhecido e experimentado por todas as pessoas, principalmente pelas mais necessitadas. Temos aqui uma denúncia do evangelista à sua comunidade e uma advertência às comunidades futuras. Jesus não é propriedade de ninguém; logo, ninguém pode ser impedido de aproximar-se dele e falar, dizer o que pensa e o que necessita. É preciso combater as tentativas de silenciamento nas comunidades. Todas as pessoas devem ser ouvidas, todos tem direito de expressar suas demandas, com seus sonhos. E quem ensina isso é o próprio Jesus, que não se deixa controlar pelos interesses de nenhuma religião ou grupo religioso.

Ele faz questão que as pessoas excluídas pela religião e pela sociedade se aproximem dele, como mostra o texto: «Então Jesus parou e disse: “Chamai-o. Eles o chamaram e disseram: “Coragem, levanta-te, Jesus te chama!”» (v. 49). Como se vê, Jesus interrompe seu caminho quando vê a necessidade do próximo. Ele para quando é interpelado por alguém, independentemente da condição social. Há dois domingos, o evangelho mostrava ele sendo interpelado por um homem muito rico, com quem desenvolveu um franco diálogo (Mc 10,17-30). Quando se trata de uma pessoa necessitada e excluída, ele mesmo chama para perto de si, como mostra o evangelho de hoje. Chama a atenção, neste versículo, três ocorrências do verbo chamar (em grego: φωνέω – fonêo). Isso indica o alto teor vocacional que o texto contém, um dado que confirma tratar-se de um episódio paradigmático para o discipulado de todos os tempos. Também é significativo o encorajamento para o cego levantar-se. É um convite a sair de si. Ele estava sentado, em situação de espera e dependência, embora não fosse por comodismo, mas devido aos condicionamentos impostos pela deficiência. A súplica por compaixão já tinha demonstrado que não era uma pessoa acomodada; se fosse, teria apenas pedido uma esmola, como era o costume. Ao suplicar por compaixão, ele expressou esperança e seu desejo de mudança de vida, como vai mostrar a sequência do texto.

Diante do convite de Jesus, o evangelista afirma que «o cego jogou o manto, deu um pulo e foi até Jesus» (v. 50). Aqui, a atitude do cego evidencia o entusiasmo e a alegria de quem tem reacesa a esperança. O primeiro gesto, jogar o manto, significa abrir mão de tudo, é o “renunciar a si mesmo”, uma das exigências de Jesus para o seu seguimento. Recorda a atitude dos primeiros discípulos que, diante do chamado de Jesus, deixaram redes, barca e família (Mc 1,16-20). Jogando o manto, portanto, o cego renunciou a tudo, inclusive às esmolas que já tinha recebido naquele dia. Ora, além de ser o único sinal de dignidade que ainda lhe restava, era no manto que se depositavam as esmolas. Os mendigos que pediam esmolas sentados, como os cegos e os paralíticos, estendiam o manto diante de si enquanto pediam, para que os transeuntes jogassem as esmolas no manto, evitando qualquer forma de toque, o que poderia deixar os outros impuros. O encontro autêntico com Jesus depende da capacidade de renunciar a tudo o que pode causar impedimento, como o apego aos bens. A renúncia ao manto, tornou o cego uma pessoa livre, por isso, ele “deu um pulo”; além da alegria, esse gesto significa também a liberdade reconquistada. Com isso, o evangelista recorda e denuncia, implicitamente, com o gesto do cego, os dois contra-exemplos anteriores na sua narrativa: o homem rico que não foi capaz de deixar o que possuía para herdar a vida eterna (Mc 10,17-30; evangelho do 28º domingo), e a ambição de João e Tiago por lugares de honra (cf. Mc 10,35-41; evangelho do 29º domingo). O pulo do cego é um salto qualitativo na sua vida, marco do encontro transformador com Jesus, salto esse que os discípulos da primeira chamada recuavam de vez em quando.

É muito significativo que, mesmo conhecendo as necessidades do cego, «Jesus lhe perguntou: “O que queres que eu te faça?” O cego respondeu: “Mestre, que eu veja!”» (v. 51). A pergunta de Jesus visa evidenciar o itinerário do discipulado: a passagem da cegueira à visão. Inclusive, é a mesma pergunta feita aos dois filhos de Zebedeu (Mc 10,36), sendo que eles pediram poder, algo absurdo para o projeto de Jesus. Essa pergunta mostra o interesse de Jesus pelo próximo com suas reais necessidades. Revela o quanto ele valorizava a escuta e, consequentemente, como deve ser a comunidade cristã: um espaço onde todos devem ter vez e voz, onde ninguém deve ser silenciado. Ver era a necessidade de todos os que acompanhavam Jesus, mas somente o cego Bartimeu foi capaz de assumir e pedir, com confiança. Enquanto estava longe, ele chamava Jesus de “Filho de Davi”, influenciado pela ideologia nacionalista. Agora, estando face a face com Jesus, ele deixa de lado a ideologia nacionalista e começa a reconhecer a verdadeira identidade de Jesus, chamando-o de Mestre. Isso faz de Bartimeu um potencial candidato ao discipulado; e, de fato, ele se tornará um autêntico discípulo, atestando sua transformação pessoal, semelhante à passagem das trevas à luz, vivendo um autêntico processo de humanização. Ainda a propósito do título de mestre aplicado a Jesus, por Bartimeu, o evangelista não emprega a tradicional forma grega “didáskalos”, e sim a forma aramaica “rabuni”, que, literalmente, significa “meu mestre”, o que confere mais solenidade e confiança, ao mesmo tempo.

Após ouvir a demanda de Bartimeu, que queria apenas ver, Jesus o declara curado e deixa clara a causa da cura, a fé: «Jesus disse: “Vai, a tua fé te curou”. No mesmo instante, ele recuperou a vista e seguia Jesus pelo caminho» (v. 52). De acordo com Jesus, o cego foi curado pela própria fé; não foram necessários sinais ou gestos extraordinários; bastou um encontro sincero, autêntico com Jesus, verdadeiro mestre de humanização, ao contrário das curas do do surdo-mudo (Mc 7,31-37) e do cego de Betsaida (Mc 8,22-26), nas quais ele empregou uma intensa atividade terapêutica, usando as mãos e a saliva. Nesse encontro com o cego de Jericó, houve apenas expressão de uma necessidade e uma abertura à escuta. Antes de tudo, Jesus permitiu que o cego falasse, que expressasse sua real necessidade. E a atitude de Bartimeu, logo após recuperar a vista, foi o seguimento. Assumiu o discipulado e começou a seguir Jesus pelo caminho. O encontro transformador gerou um novo discípulo para Jesus. A vista recuperada do cego, nesse relato, significa, portanto, uma verdadeira exigência e o último apelo de Jesus aos discípulos para abrirem-se à sua mensagem de libertação; por isso, esse foi o último milagre narrado no Evangelho de Marcos. Abrir os olhos é um imperativo para os discípulos, enquanto a escuta é um critério de identificação da comunidade com Jesus.

Mais do que demonstração de força e poder, os milagres narrados nos evangelhos têm a função de mostrar a necessidade de transformação e mudança de mentalidade pelas quais toda pessoa deve passar para aderir à mensagem de Jesus. Para isso, é necessário, acima de tudo, abrir os olhos, independentemente das condições físicas. Abrir os olhos é metáfora de abertura interior, de convencimento e aceitação da proposta de Jesus. É essa a necessidade principal das comunidades cristãs em todos os tempos: abrir os olhos para ver como Jesus e reconhecer sua presença nos mais necessitados e humildes, e discernir quais projetos, de fato, estão em sintonia com o seu Evangelho. À necessidade de abrir os olhos, acrescenta-se a exigência da escuta na comunidade, para que o seguimento de Jesus seja um verdadeiro “caminhar juntos”. A ênfase do evangelho de hoje, portanto, não é o poder terapêutico de Jesus, mas a adesão de Bartimeu, como modelo de discípulo, ao seu seguimento.

Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

sábado, outubro 19, 2024

REFLEXÃO PARA O 29º DOMINGO DO TEMPO COMUM – MARCOS 10,35-45 (ANO B)



Na liturgia do vigésimo nono domingo do tempo comum, o evangelho continua mostrando a incompreensão e incoerência dos discípulos de Jesus em relação ao seu programa de vida com as respectivas exigências que o discipulado comporta. O texto de hoje – Mc 10,35-45 – é talvez o que melhor descreve essa incoerência. Em outras ocasiões, antes que os discípulos entrem em cena como opositores de Jesus, o evangelista apresenta alguns outros adversários mais tradicionais, como os fariseus e escribas, que fazem perguntas maliciosas e críticas duras. No episódio de hoje, são apenas os discípulos que se opõem ao projeto libertador de Jesus. Eles se apresentam como verdadeiros antagonistas. Antes de tudo, é importante recordar o contexto: Jesus está caminhando para Jerusalém e, desde o início do caminho, alertou os discípulos sobre o destino desse caminho: o sofrimento, a paixão e a morte. Por isso, fez os três anúncios da sua paixão (Mc 8,31-33; 9,30-32; 10,32-34), a fim de prepará-los para os acontecimentos que o esperava em Jerusalém. A cada anúncio, no entanto, os discípulos apresentavam mais resistência e incompreensão. Contagiados pela ideologia nacionalista, que aspirava um messias glorioso que restaurasse o reino de Israel nos moldes de Davi e Salomão, os discípulos não aceitavam a ideia de um messias humilde, pobre e sofredor. Por isso, a cada vez que Jesus anunciava o seu destino doloroso, os discípulos distorciam o anúncio, alimentando a falsa ilusão de um reino glorioso, nos moldes dos reinos deste mundo.

O episódio narrado no evangelho de hoje segue de imediato ao terceiro anúncio da paixão, o mais claro e profundo dos três. Por incrível que pareça, a reação dos discípulos a esse terceiro anúncio foi a mais absurda de todas, demonstrando ambição e sede de poder, aspirações totalmente incompatíveis com a mensagem de Jesus. É importante recordar a reação deles a cada anúncio: após o primeiro, Pedro repreendeu Jesus, em nome do grupo dos Doze (Mc 8,32); após o segundo, os discípulos – todos eles – reagiram discutindo quem era o maior entre eles (Mc 9,33-34). Após o terceiro, a reação é a ambição, a busca por posições de honra e poder, trazendo ainda a rivalidade e a divisão como consequências, como vemos no evangelho de hoje. Parece até ironia: quanto mais claro Jesus falava de seu destino, menos os discípulos compreendiam. De acordo com o evangelista, ao projeto que Jesus apresenta, os discípulos não apenas respondem com uma coisa diferente, mas com algo totalmente oposto à proposta do Mestre, distorcendo completamente a sua mensagem. O evangelho de hoje é a prova mais evidente disso. Como último elemento a nível de introdução e contexto, convém recordar que, de acordo com o itinerário traçado pelo evangelista, no evangelho de hoje Jesus e os discípulos já se encontram muito próximos de Jerusalém, pois esse texto antecede o último episódio antes da entrada em Jerusalém, a cura do cego de Jericó, que será o texto do próximo domingo. Portanto, à essa altura do caminho, soa preocupante para Jesus que seus discípulos estejam cada vez mais distantes da sua proposta.

Feitas as considerações a nível de contexto, olhemos então para o texto, partindo do primeiro versículo: «Tiago e João, filhos de Zebedeu, foram a Jesus e lhe disseram: “Mestre, queremos que faças por nós o que vamos pedir”» (v. 35). É importante recordar que Tiago e João, juntamente com Pedro, são os discípulos mais evidenciados nos três evangelhos sinóticos, não por méritos, como às vezes se imagina, e sim pelas fragilidades e incoerências que demonstram. Recordemos que, no momento da constituição do grupo dos Doze, Tiago e João receberam o nome de Boanerges, que significa “filhos do trovão” (Mc 3,17), em alusão ao temperamento explosivo, arrogante, intolerante e ambicioso dos dois. Além do texto de hoje, os evangelhos mostram mais duas ocasiões em que as características negativas deles dois são evidenciadas: quando querem monopolizar o nome de Jesus, proibindo um homem de fazer o bem em seu nome pelo simples fato de não pertencer ao mesmo grupo (Mc 9,38-39) – evangelho do 26º domingo –, e quando queriam eliminar um povoado da Samaria com fogo, somente porque lá não foram bem acolhidos (Lc 9,51-55). Portanto, juntamente com Pedro, João e Tiago são os discípulos mais difíceis de lidar no grupo; por isso, quando Jesus fica somente com eles, como no episódio da transfiguração (Mc 9,2-8; Mt 17,1-8; Lc 9,28-36), não se trata de um privilégio, mas de necessidade. Pelo comportamento e temperamento, eles necessitavam de uma catequese mais intensa, pois tinham mais dificuldade de aceitar Jesus e sua mensagem de libertação.

Nos evangelhos sinóticos (Mt; Mc; Lc), João e Tiago são os únicos discípulos apresentados com o título patronímico – nome do pai –, o que indica o quanto ainda estavam presos à tradição. Ora, uma das exigências básicas para o discipulado de Jesus é exatamente a capacidade de deixar família e bens para dedicar-se somente ao seguimento do mestre. Portanto, ao citá-los ainda na relação com o pai, o evangelista quer dizer que eles ainda não tinham deixado tudo, na prática, por isso, demonstravam tanta incompreensão, pois ainda não tinham assimilado de modo satisfatório a mensagem de Jesus. É importante notar que, antes mesmo que eles façam diretamente o pedido, o evangelista já os denuncia: «Queremos que faças por nós o que vamos pedir»; aqui, há praticamente uma ordem, se trata de uma exigência. Além do conteúdo do pedido, a forma como esse é feito é uma afronta ao projeto de Jesus, o que torna o texto bastante polêmico. De fato, é um texto não só polêmico, mas comprometedor para a comunidade. Por isso, Lucas preferiu omiti-lo do seu Evangelho, e Mateus o modificou, colocando a mãe dos discípulos como a autora do pedido (Mt 20,20-23), preservando a imagem dos discípulos e revelando, assim, a sua visão mais negativa da mulher. Marcos, pelo contrário, faz questão de revelar também as debilidades dos discípulos, o que faz do seu Evangelho o mais autêntico e original. Por isso, é o Evangelho que mais revela os traços humanos de Jesus (Mc 3,5; 7,34; 9,36; 10,14.16), juntamente com as fragilidades dos seus discípulos.

Diante da quase “quase ordem” dos discípulos, Jesus lhes responde com uma pergunta, antes mesmo de conhecer o conteúdo do pedido: «Que quereis que eu vos faça?» (v. 36). É típico de Jesus responder com uma nova pergunta, o que revela até uma certa ironia da sua parte. Se os discípulos ainda não tinham aprendido nada com os três anúncios da paixão, pouco importava para eles uma pergunta irônica de Jesus. Por isso, sem nenhum escrúpulo, eles fazem o pedido absurdo: «Deixa-nos sentar um à tua direita e outro à tua esquerda, quando estiveres na tua glória!» (v. 37). Temos aqui uma verdadeira afronta a tudo o que Jesus já tinha ensinado a respeito de si e do seu projeto de Reino de Deus. Esse pedido revela uma busca ambiciosa por poder e privilégios, decorrente de uma visão completamente equivocada da messianidade de Jesus. Eles Imaginavam Jesus como um messias segundo as expectativas políticas de Israel, alimentada ao longo dos séculos: um messias guerreiro que combateria os dominadores – na época, os romanos – até expulsá-los do seu território e, finalmente, restabeleceria o antigo reino davídico em Jerusalém. Jesus já tinha descartado essa possibilidade por diversas vezes, mas os discípulos continuavam fechados e presos à antiga mentalidade. Sentar-se à esquerda e à direita, equivalia às posições de honra, como se fossem os primeiros-ministros de um rei. Eles queriam ser as pessoas mais importantes, depois do rei, demonstrando total desconhecimento da natureza do Reino que Jesus veio propor ao mundo.

Ao pedido absurdo dos discípulos, Jesus responde com uma repreensão irônica e, como de costume, com novas perguntas: «Vós não sabeis o que pedis. Por acaso, podeis beber o cálice que eu vou beber? Podeis ser batizados com o batismo com que vou ser batizado?» (v. 38). Com razão, Jesus os trata como ignorantes, ao dizer que eles não sabiam o que estavam pedindo. Apesar do teor irônico que contém, esse tratamento de Jesus aqui é demonstração da sua misericórdia e do seu amor incondicional. Pelo absurdo da proposta dos discípulos, ele poderia até dispensá-los do seu seguimento ou repreendê-los duramente. Mas prefere ver como incompreensão e ignorância. É o mesmo tratamento ele vai dar aos seus algozes, na cruz (Lc 23,34). Ora, depois de três anúncios explícitos da paixão, e de toda uma trajetória de oposição e combate aos poderes vigentes, é inadmissível que os discípulos ainda quisessem espelhar-se nessas formas de poder, alimentando pretensões de glória e privilégios, querendo impor um modelo hierárquico na comunidade. À correção, com a qual Jesus denuncia a ambição dos discípulos, ele acrescenta duas perguntas provocatórias que resumem todo o seu ministério, desde o início na Galileia até a consumação em Jerusalém, evocando duas imagens simbólicas dessa trajetória: o cálice e o batismo. O batismo remonta ao início de tudo (Mc 1,8-11); já o cálice pré-anuncia a paixão (Mc 14,23.36). Embora sejam imagens de múltiplos significados ao longo de toda a Bíblia, aqui em Marcos são síntese da vida de Jesus, do batismo à cruz. Em outras palavras, é como se Jesus perguntasse: «Vocês estão dispostos a viver do meu jeito, do começo ao fim de vossas vidas?».

À pergunta decisiva de Jesus, os discípulos irmãos respondem com muita prontidão, mas Jesus parece não levar muito a sério a resposta deles, provavelmente por perceber uma certa presunção nos dois: «Eles responderam: “Podemos!”. E ele lhes disse: “Vós bebereis o cálice que eu devo beber, e sereis batizados com o batismo com que eu devo ser batizado. Mas não depende de mim conceder o lugar à minha direita ou à minha esquerda. É para aqueles a quem foi reservado”» (vv. 39-40). A disposição para abraçar e assumir as consequências de um seguimento sério e radical não pode dar-se em função de recompensas futuras ou prêmios, como eles queriam. Por isso, Jesus confirma que, de fato, eles participarão de seu destino doloroso, mas os alerta que abraçar o seu projeto em vista de recompensa é sinal de incompreensão. A disposição de lugares na glória é um dom gratuito do Pai, e não uma conquista por méritos. Quando Marcos escreve seu Evangelho, pelo menos Tiago já tinha sido martirizado, o primeiro dos Doze a derramar o sangue pela causa de Jesus (At 12,1-2). Isso quer dizer que, apesar de obstinados, eles aceitaram e compreenderam o sentido do seguimento, com suas consequências. Compartilharam o batismo e o cálice de Jesus. Mas é importante a coragem do evangelista apresentar toda a resistência e incompreensão no caminho, ensinando que o seguimento de Jesus exige uma constante conversão. Ninguém nasce discípulo nem se torna num único momento. Ser discípulo é um processo, um tornar-se, que deve se aperfeiçoar cotidianamente, à medida em que aumenta o grau de intimidade com Jesus.

O resultado do ambicioso pedido dos dois irmãos foi a divisão da comunidade: «Quando os outros dez discípulos ouviram isso, indignaram-se com Tiago e João» (v. 41). Temos aqui o primeiro cisma da comunidade, a partir de quando ficaram dez contra dois. Esse episódio é também a recordação de um dos acontecimentos mais deploráveis da história de Israel: o cisma que gerou a divisão em dois reinos: as doze tribos se dividiram, numa disputa de dez contra duas, ficando o reino do norte composto de dez tribos, e o reino do sul formado por apenas duas (2Rs 12). Inclusive, esse texto constitui a única ocasião no Novo Testamento em que aparece a denominação “os dez” (em grego: hoi déka – οἱ δέκα) como referência a uma ala do grupo dos discípulos. Para o evangelista, é inaceitável que a comunidade cristã reproduza os erros históricos de Israel. À medida em que os projetos individuais são colocados em primeiro plano, a unidade da comunidade é quebrada. A reação dos doutros dez mostra isso. Por “indignaram-se” deve-se compreender que ficaram com raiva, ficaram irados. Logo, não significa que eles tivessem compreendendo melhor a dinâmica do projeto de Jesus; pelo contrário, demonstra que eles também pensavam como os dois irmãos; ficaram com raiva por rivalidade, ou seja, eles também queriam os dois lugares de destaque pretendidos pelos filhos de Zebedeu. Essa reação afirma que a sede de poder e o espírito de competição contagiava todo o grupo dos discípulos. inclusive, pouco tempo antes, após o segundo anúncio da paixão, eles tinham discutido sobre quem era o maior entre eles (9,30-37) – texto lido no 25º domingo. Portanto, todos eles estavam movidos por ambições, desejando o exercício do poder a partir do estabelecimento de uma hierarquia na comunidade, contrariando, assim, o projeto igualitário de Jesus.

A comunidade, afetada pela ambição, estava completamente ameaçada. Por isso, Jesus chama a atenção dos discípulos, como diz o evangelista: «E Jesus convocando-os, lhes diz: “sabeis que os que são considerados chefes das nações as dominam, e os grandes as tiranizam” (v. 42). O verbo grego traduzido pelo lecionário como convocar significa “chamar para perto de si” (em grego: προσκαλέω – proskálêo). Com isso, o evangelista denuncia que, embora estivessem no mesmo caminho, e até próximos fisicamente, os discípulos estavam distantes de Jesus em termos de mentalidade e consciência da natureza do Reino. Ao chamá-los para perto de si, Jesus revela sua capacidade de diálogo, suas qualidades de bom pedagogo que não desiste de ver seus discípulos humanizados. Mostra também a sua perseverança e amor; ele não abandona seus discípulos à ignorância, mas insiste em despertar neles a consciência da igualdade e da solidariedade, conforme seu projeto. Ao mesmo tempo, esse gesto mostra que ele vê a ambição com muita preocupação. Por isso, procura expor o seu projeto com mais clareza ainda, procurando mostrar o quanto é diferente de qualquer projeto humano de obtenção e exercício do poder.

Tendo negligenciado os três anúncios da paixão, mesmo tendo sido corrigidos por Jesus, os discípulos tinham como parâmetro os modelos vigentes de poder, marcados pelo domínio e a tirania. Por isso, agora Jesus apresenta sua reação e proposta: «Porém, entre vós não é assim, mas aquele que quiser tornar-se grande entre vós, será vosso servidor.  E aquele que quiser ser o primeiro entre vós, será escravo de todos!» (vv. 43-44). Na verdade, trata-se de uma contraproposta; é uma proposta anti hegemónica, como o Evangelho em sua inteireza. Os sistemas de poder conhecidos até então, não podem ser referência para a comunidade. Marcos recorda isso com muita clareza, pois na época da redação do seu Evangelho havia uma tendência hierarquizante muito forte na sua comunidade, e ele via isso como um distanciamento do projeto de Jesus, que quis uma comunidade igualitária, justa e solidária, sem dominadores nem dominados. Portanto, na comunidade cristã não pode haver espaço para carreirismo, ambição e posições de privilégio. Qualquer imitação dos sistemas vigentes de poder, seja da religião do templo ou do império romano, deve ser abolida da comunidade. A expressão «entre vós não é assim» é carregada de uma certa ironia da parte de Jesus, uma vez que, de fato, estava sendo daquele jeito entre os discípulos; ao mesmo tempo, é uma forte denúncia: não é mais possível adiar a tomada decisiva de posição a respeito dos valores do Reino. Daí ele apresenta qual é o modelo a ser seguido pela comunidade: o serviço, sendo ele mesmo o exemplo de servidor. É preciso substituir a lógica do poder pela lógica do serviço. E isso vale para todas as épocas.

Só é primeiro na comunidade quem se coloca em atitude de serviço em benefício de todos. Por isso, o referencial para a comunidade cristão não pode ser outro senão o próprio Jesus, como ele mesmo se apresenta: «Pois o Filho do Homem não veio para ser servido, mas para servir e dar a vida dele em resgate de muitos» (v. 45). Ao almejar os primeiros lugares, os filhos de Zebedeu buscavam meios de comando, queriam dominar, distanciando-se do projeto de Jesus, cuja proposta de vida consiste em colocar-se em estado de serviço, com disposição de dar a vida pelo próximo, por amor. O verbo servir (em grego: διακονέω – diaconêo) é empregado duas vezes no mesmo versículo, indicando a chave de leitura do texto e de toda a vida de Jesus. Os discípulos tinham dificuldade de assimilar esse ensinamento, à medida em que queriam estabelecer um sistema de poder na comunidade, como embrião de um projeto de dominação nos moldes da antiga monarquia davídica. Com isso, conscientes ou não, eles rejeitavam o programa de Jesus e adotavam o modelo de administração do império romano e da religião judaica, comandada pelos sacerdotes do templo e o sinédrio. Na compreensão deles, as estruturas da organização social e religiosa da época não seriam abaladas, mudaria apenas as pessoas de comando. Sairiam os romanos e entrariam galileus. Eles queriam reproduzir um sistema opressor e excludente. É claro que uma mentalidade assim não encontra respaldo na mensagem de Jesus.

O evangelho de hoje constitui-se, portanto, como um forte convite à Igreja, em todos os lugares, a abrir-se à sinodalidade como um caminho propício à recuperação da originalidade do projeto de Jesus, para a sua comunidade e para o mundo. Onde há ambição, há rivalidade; e esses dois males impedem o “caminhar juntos”. Por isso, precisam ser abolidos da comunidade cristã, para que nessa vigorem comunhão, participação e missão, retornando, assim, à originalidade evangélica. Para isso, é necessário recuperar a dimensão diaconal do seguimento de Jesus. Somente com disposição para servir há seguimento de Jesus Cristo.

Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

 

sábado, outubro 12, 2024

REFLEXÃO PARA O 28º DOMINGO DO TEMPO COMUM – MARCOS 10,17-30 (ANO B)



Na liturgia deste vigésimo oitavo domingo do tempo comum, continuamos a leitura sequenciada do Evangelho de Marcos. Inclusive, o texto de hoje – Mc 10,17-30 – é a continuação imediata daquele do domingo passado (Mc 10,2-16). Consequentemente, o contexto continua sendo o mesmo: o caminho de Jesus em direção à cidade de Jerusalém, com seus discípulos, que culminará com os eventos de sua paixão, morte e ressurreição. Durante esse percurso, que é mais um itinerário catequético e teológico do que geográfico, Jesus é interrompido diversas vezes, por várias categorias de interlocutores, que lhe fazem perguntas relevantes sobre a natureza e as condições para o discipulado, sobre as características do Reino de Deus e os critérios para desse fazer parte. Jesus é questionado, tanto por personagens externos, quanto pelos discípulos. Há interlocutores que interagem com interesse e seriedade, com vontade de aprender, enquanto há outros que o interrogam com malícia, esperando um deslize para acusá-lo de herege ou blasfemo e, assim, antecipar a sua condenação, como se viu no episódio do domingo passado, quando alguns fariseus lhe interromperam e interrogaram sobre a legitimidade do divórcio (Mc 10,2-16). Após respondê-los, sem cair na cilada, Jesus aprofundou o ensinamento do respectivo tema para os discípulos. No texto de hoje, embora o tema seja diferente, o esquema é o mesmo: Jesus é questionado por um personagem externo, com quem interage e, em seguida, pelos próprios discípulos. Trata-se de um episódio comum aos três evangélicos sinóticos (Mt 19,16-29; Mc 10,17-30; Lc 18,18-30), sendo que a versão de Marcos é a mais rica, por ser a mais original, embora a de Mateus tenha se tornado mais conhecida, como será recordado mais adiante, durante a explicação.

Uma vez que o contexto é o mesmo do domingo passado, não há necessidade nos prolongarmos na contextualização. Por isso, partimos para o estudo do texto, começando do primeiro versículo, no qual se diz que «Quando Jesus saiu a caminhar, veio alguém correndo, ajoelhou-se diante dele e perguntou: “Bom Mestre, que devo fazer para ganhar a vida eterna?”» (v. 17). Após uma pausa, o caminho foi retomado por Jesus e seus discípulos. Durante a pausa, eles estiveram em uma casa, como recordava a passagem lida no domingo passado (10,10), embora a localização geográfica não tenha sido fornecida. Certamente, já não era mais a casa de Cafarnaum que tinha servido de base de apoio para o ministério de Jesus na Galileia. À essa altura do caminho, eles já tinham saído da Galileia e estavam quase terminando de atravessar a Samaria, uma vez que já se aproximava da Judeia, onde ficava Jerusalém.  É importante recordar que a estrada – caminho – é o espaço privilegiado para o ensinamento, sobretudo em uma comunidade itinerante como a de Jesus e seus discípulos. Além de expressar a carência de estruturas fixas, o caminho expressa também o aspecto dinâmico, aberto e missionário da comunidade. O outro espaço privilegiado da catequese, sobretudo no Evangelho de Marcos, é a casa, como imagem da fraternidade. No caminho, Jesus e a comunidade estão expostos, qualquer pessoa pode interagir e questionar, como fez esse “alguém” que, veio correndo ao seu encontro e ajoelhou-se. Esse personagem é totalmente desconhecido, é anônimo. Pelo pouco que o texto diz dele, deve tratar-se de alguém muito necessitado de sentido para a vida, alguém inquieto, preocupado. Tanto é, que vai correndo ao encontro de Jesus; quer dizer que tem pressa de encontrar-se com ele.

Com a pressa para encontrar-se com Jesus, o homem anônimo demonstra reconhecer nele a fonte de sentido para a vida, ao mesmo tempo em que percebe a insuficiência da sua prática religiosa até então. Essa necessidade e reconhecimento se tornam ainda mais evidentes com a sua primeira atitude, após a carreira: ele «ajoelhou-se diante de Jesus». Até então, somente um personagem tinha se ajoelhado aos pés de Jesus, no Evangelho de Marcos: um leproso, ao suplicar-lhe a cura, logo no início do seu ministério (Mc 1,40). Isso quer dizer que também esse homem apressado possui uma enfermidade grave, até aqui desconhecida do leitor, mas em breve será revelada pelo narrador. Conhecedor profundo de Deus, o seu Pai, Jesus responde à interpelação daquele homem recordando que «Só Deus é bom, e mais ninguém» (v. 18). De fato, a bondade era um atributo de Deus e, consequentemente, da sua obra (Gn 1,4.10.12.18, etc.). Na verdade, Jesus sempre desconfia dos elogios, certamente, por experiência, pois quase todos episódios dos evangelhos que começam com elogios terminam em conflito ou incompreensão. Este por exemplo, não termina bem, embora fique comprovada, no final, a sinceridade daquele homem que perguntou sobre o que fazer para ganhar a vida eterna. Por vida eterna nos evangelhos, incluindo esta passagem, não se entende a realidade futura do pós-morte, mas a vida neste mundo com sentido pleno. E, para todo bom judeu, o sentido da vida dependia essencialmente da observação da Lei. Quem encontra sentido para a vida aqui, eterniza a sua existência: essa vida se torna indestrutível, mesmo com a morte.

É claro que Jesus propõe a superação da mentalidade judaica predominante sobre o sentido da vida. A observação dos mandamentos da Lei não é suficiente, aliás, já não garante sentido algum, pois tudo agora depende da disposição de cada pessoa acolher o amor de Deus que Jesus veio revelar, não por meio de doutrinas, mas através do seu próprio jeito de amar. Por isso, ele responde àquele homem desta maneira: «Tu conheces os mandamentos: não matarás; não cometerás adultério; não roubarás; não levantarás falso testemunho; não prejudicarás ninguém; honra teu pai e tua mãe» (v. 19). Jesus parte dos mandamentos como caminho para chegar no coração da sua mensagem. Além do mais, deve-se recordar que a observação dos mandamentos não faz mal, pelo contrário, faz bem. Mas é necessário algo a mais, e muito mais, não como mero acréscimo, mas como superação. Ele começa a interação com o homem a partir dos mandamentos porque era o que havia em comum entre eles, naquele momento. É importante observar quais os mandamentos que Jesus recorda: aqueles que dizem respeito ao modo de relacionar-se com o próximo. O primeiro mandamento – amar a Deus sobre todas as coisas – nem sequer é mencionado por Jesus aqui, porque ele compreende que se não há respeito à dignidade do próximo e o reconhecimento dos direitos humanos, o amor e o culto a Deus são falsos, não passam de demagogia. Não há culto agradável a Deus se o ser humano não é respeitado em sua condição e dignidade. Por isso, Jesus apresenta os mandamentos que dizem respeito à relação com o próximo como ponto de partida para o sentido da vida. É preciso recordar sempre: Jesus não absolutiza os mandamentos aqui e em nenhuma ocasião, mas apresenta aqueles que colocam o bem do próximo no centro como ponto de partida para uma vida autêntica.

O homem responde a Jesus afirmando já cumprir todos os mandamentos indicados por ele, como diz o evangelista: «Ele respondeu: “Mestre, tudo isso tenho observado desde a minha juventude”» (v. 20). Percebe-se aqui que não se tratava de uma pessoa má intencionada que queria rivalizar com Jesus, ao contrário dos fariseus, pois ele continua chamando Jesus de mestre, mesmo já tendo sido contrariado. Nessa resposta percebe-se também que se trata de uma pessoa já adulta, madura, e não mais de um jovem, como aparece na versão de Mateus. Portanto, para as versões de Marcos e de Lucas é incorreto chamar esse texto de episódio do “jovem rico”. Essa denominação é exclusiva de Mateus, o que terminou deixando a sua versão mais conhecida, pois os personagens adjetivados tendem a ganhar mais popularidade, ainda mais quando é um personagem sem nome. O que fica da sua identidade, para o leitor, é a adjetivação. Nesta fala do homem, em resposta a Jesus, percebe-se já um certo cansaço na observação da Lei. É como se ele cultivasse algo há bastante tempo, e não colhesse os frutos desejados. É o esgotamento da Lei que vai se tornando cada vez mais percebido. Tudo indica que aquele homem tinha depositado muita esperança na observação da Lei, esperando ter suas necessidades existenciais correspondidas a partir dela. A construção do texto faz perceber uma certa decepção no homem, o que parece torná-lo carente de humanização e sentido. E Jesus o acolhe muito bem em seu drama, sente-se solidário e propõe um caminho de superação, como mostra a continuação do texto.

Com sua atitude e nova resposta ao homem, Jesus se revela, como sempre, um verdadeiro mestre de humanização: «Jesus olhou para ele com amor, e disse: “Só uma coisa te falta: vai, vende tudo o que tens e dá aos pobres, e terás um tesouro no céu. Depois vem e segue-me”» (v. 21). Essa é a única vez que o Evangelho de Marcos afirma que Jesus amou uma pessoa em particular. E o diz empregando o verbo do amor máximo, pleno, completo – em grego: ἀγαπάω - agapáo. É claro que Jesus ama sempre e ama a todas as pessoas, indistintamente, mas somente aqui o evangelista enfatizou. E amou olhando o homem profundamente, olho no olho. É uma situação parecida com o que fez com a multidão faminta: viu e teve compaixão (Mc 6,34). Porém, aqui, tudo é mais intenso. Ele olhou o homem fixamente e o amou com o mesmo amor com o qual entregou-se. O amor gera relações fraternas e sinceras, e a falta de correspondência no amor não faz Jesus amar menos. É amando que Jesus revela a incompletude do ser humano, ao dizer que faltava algo naquele homem, uma coisa que, na verdade, era tudo: livrar-se do seu mal – equivalente à lepra que atormentava um homem ainda no início do Evangelho de Marcos (1,40), e o fez ajoelhar-se diante de Jesus e pedir-lhe a cura. Ao leproso suplicante ajoelhado, Jesus purificou-o, deu uma ordem e ele a cumpriu. A este homem, Jesus dá uma ordem e ainda faz um convite: vender tudo o que tem, dar aos pobres e segui-lo. Era a única coisa que faltava, mas era tudo, ao mesmo tempo. De fato, ao dizer «uma só coisa te falta», não significa que faltava uma coisa a mais na vida daquele homem, tendo em vista que ele já fazia muito, mas quer dizer que faltava o que é essencial, o indispensável, o tudo.

E a lógica do Reino contraria a lógica humana: o homem foi a Jesus para pedir, para ter algo – a vida eterna –, Jesus diz que ele deve dar, abrir mão do que tinha; foi pedir sentido para a vida, Jesus pede para livrar-se do que estava lhe tirando esse sentido: a riqueza, a posse dos bens e o apego a esses. Isso mostra a insuficiência da ética dos mandamentos, por isso, é necessário superá-la. É importante notar a sequência das atitudes necessárias para dar sentido à existência, conforme a resposta de Jesus ao homem rico: «vender, dar aos pobres e segui-lo». Como se vê, a opção pelos pobres é condição para um seguimento autêntico de Jesus. Não bastaria ao homem vender os bens; se bastasse vender, ele poderia fazê-lo para depositar ou reter o dinheiro para si, poderia doar para familiares ou até compartilhar com o grupo que já estava no seguimento de Jesus. Mas Jesus diz que era necessário vender e dar aos pobres. Aqui, os pobres (em grego: πτωχός – ptokós) se tornam a categoria privilegiada de mediação entre Jesus e seus seguidores. Dar aos pobres é a única forma autêntica de partilha, de doação. É o gesto de gratuidade e desapego, por excelência, porque é a certeza de que não se receberá nada em troca. Como era muito rico, a reação do homem foi de tristeza: saiu abatido (v. 22), por causa da riqueza, não estava preparado para assimilar a lógica do Reino. Mas é importante recordar a formulação da frase: o homem «ficou abatido e foi embora cheio de tristeza, porque era muito rico» (v. 22). Com muita clareza, o evangelista diz que a causa do abatimento e tristeza do homem foi a riqueza. Como afirmado no início da reflexão, este episódio do encontro de Jesus com o homem rico não termina em conflito, mas termina em tristeza. O homem procurou Jesus com interesse e sinceridade, embora tenha lhe faltado coragem e disposição para abraçar a proposta lançada.

Do confronto com um personagem externo, Jesus se volta para o interior da comunidade (v. 23), ou seja, para os seus discípulos, os mais necessitados de assimilar seus ensinamentos para assumir a lógica do Reino na vida. Assim, diz o evangelista que «Os discípulos se admiravam com estas palavras, mas ele disse de novo: “Meus filhos, como é difícil entrar no Reino de Deus!”» (v. 24). Da admiração dos discípulos, Jesus aproveita para aprofundar a catequese. Essa admiração quer dizer que eles ainda não conheciam Jesus em profundidade, continuavam se surpreendendo. Por isso, precisavam ficar cada vez mais atentos. As incompreensões deles que o evangelista recorda com frequência são prova disso. Mas Jesus não desiste deles. Nesta passagem, chama a atenção o fato de Jesus chamá-los de filhos (em grego: τέκνα – tekna). Por sinal, em Marcos é a única vez os discípulos são chamados assim. Nos evangelhos, a insistência sobre um mesmo argumento revela a sua importância. Entrar no Reino de Deus é difícil, realmente, porque não há como critérios os méritos pessoais, mas uma adesão incondicional à pessoa de Jesus e sua mensagem. Esse Reino não é a vida futura, mas este mundo concreto, organizado segundo a vontade de Deus, marcado por justiça, amor, solidariedade, fraternidade e igualdade. Aceitar e aderir a essa dinâmica é mais difícil para os ricos (v. 23), mas não é fácil para ninguém (v. 24), pois exige uma conversão profunda, ou seja, uma mudança de mentalidade. Também os discípulos, ao longo do caminho, mostravam dificuldades em aderir plenamente, à medida em que alimentavam expectativas de poder e praticavam atos que distorciam o que Jesus lhes ensinava: praticavam proselitismo (Mc 9,38-40), alimentavam rivalidades entre si (Mc 9,33-37), impediam as crianças de se aproximarem de Jesus (Mc 10,13-16), desejavam sucesso (Mc 10,35-40), etc.

Na continuidade, com um provérbio hiperbólico, Jesus enfatiza a dificuldade para os ricos assimilarem a lógica do Reino: «É mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha do que um rico entrar no Reino de Deus!» (v. 25). Muitas tentativas de explicação já surgiram para suavizar a dureza dessa afirmação: algumas afirmavam que o “camelo”, aqui, seria um tipo de corda grossa, outras que o “buraco da agulha” era uma porta estreita num muro de Jerusalém, pela qual um camelo não conseguiria passar. Aceitar e alimentar tais interpretações é ignorar a radicalidade do Evangelho. Se trata de uma hipérbole, algo bem característico da linguagem de Jesus e do evangelista Marcos. O camelo era o maior aninam conhecido na Palestina, enquanto o buraco da agulha a menor abertura que se podia imaginar. Constituem, portanto, dois exemplos ideais para quem tanto aprecia ensinar por meio de paradoxos e comparações exageradas. Até que foram encontrados alguns manuscritos mais recentes nos quais a palavra camelo (em grego: κάμηλος – kamelos) foi trocada por outra muito parecida que, realmente, significa corda: kamilos (κάμιλος). Porém, levando em conta os principais critérios da crítica textual, sobretudo a antiguidade, a exegese concluiu que a troca dos termos se deu por opção dos copistas, quando a ideia original da hipérbole já assustava muitas pessoas, principalmente os ricos, tamanha a radicalidade expressa. Na exegese moderna já não há mais duvida de que o camelo do provérbio é mesmo o animal, e o buraco da agulha refere-se mesmo ao pequeno objeto do mundo do mundo da costura e tecelagem. Contudo, ainda hoje existem perspectivas suavizadoras de interpretação, tanto para esta quanto para outras afirmações impactantes de Jesus.

É claro que, com uma afirmação dessas, os discípulos ficaram ainda mais perplexos, como mostra o texto: «Eles ficaram muito espantados ao ouvirem isso, e perguntavam uns aos outros: “Então, quem pode ser salvo?”» (v. 26). Essa admiração é compreensível, porque, conforme a mentalidade da época, as riquezas eram sinônimo de bênção de Deus. Vivia-se a religião dos méritos e uma “teologia da prosperidade”. Quanto mais uma pessoa fosse rica, mais era considerada abençoada por Deus. Por isso, a admiração dos discípulos com o que Jesus dizia, pois ele desconstruía ideias basilares da teologia tradicional de Israel. Em outras palavras, é como se os discípulos dissessem: “se um rico não se salva, ninguém mais pode se salvar”. Ora, eles compartilhavam a mentalidade corrente, tinham sido educados segundo a lógica do acúmulo e da busca por poder, alimentados pela religião. Jesus tenta desconstruir essa mentalidade, mostrando o contrário. Mas Jesus procura tranquilizá-los, dizendo: «Para os homens isso é impossível, mas não para Deus. Para Deus tudo é possível» (v. 27). De fato, a história da salvação é marcada por diversos acontecimentos impossíveis para a lógica humana, que se tornaram possíveis com a graça de Deus: a gravidez de Sara, já estéril (Gn 18,14), a gravidez de Isabel, também estéril (Lc 1,37) e de Maria, virgem (Lc 1,37). A dificuldade da salvação para os ricos consiste na dificuldade que eles têm de assimilar a lógica do Reino, abrindo mão do que possuem e distribuindo aos mais necessitados, os pobres; isso é difícil sim, mas não impossível.

Diante de tudo já isso, mais uma vez, Pedro fala em nome do grupo, inquieto com as exigências do Reino e com as renúncias que já tinham feito até ali: «Pedro então começou a dizer-lhe: “Eis que nós deixamos tudo e te seguimos”» (v. 28). Parece até oportunismo dos discípulos, como expresso nas palavras de Pedro. Jesus sabia e conhecia o que eles já tinham deixado, desde o primeiro encontro, às margens do mar da Galileia, quando os chamou e eles, realmente, deixaram tudo para segui-lo (Mc 1,16-20). Ele não nega isso e responde de modo solene, a fim de encorajá-los a continuar no seguimento: «Em verdade vos digo, quem tiver deixado casa, irmãos, irmãs, mãe, pai, filhos, campos, por causa de mim e do Evangelho, receberá cem vezes mais agora, durante esta vida – casa, irmãos, irmãs, mães, filhos e campos, com perseguições – e, no futuro, a vida eterna» (vv. 29-30). À medida em que as exigências aumentavam, havia na comunidade uma tendência ao desânimo e, até mesmo, à desistência. Contudo, Jesus não promete prêmios, nem recompensa, mas garante sentido para a existência. Não obstante as perseguições, para os seus seguidores e seguidoras é assegurada uma vida fraterna, uma vida comunitária real, desde que aceitem a lógica do Reino, com as renúncias devidas. Aqui, Jesus faz um convite à confiança na providência: quem deixa tudo por causa do Evangelho, não sente falta de nada. Por isso, Ele repete as mesmas coisas que devem ser deixadas como as mesmas que serão recebidas em abundância. O que é deixado como renúncia é multiplicado como abundância. Abundância de sentido, obviamente. O homem rico anônimo não estava pronto para assimilar essa lógica nova, de perder para poder ganhar, mas os discípulos que já conviviam com Jesus há bastante tempo também pareciam ainda não ter assimilado.

Para quem decide entrar na dinâmica do Reino, tudo é ressignificado. “Casa, irmãos, irmãs, mães, filhos e campos”, como recompensa, não são posses, mas sinais de uma comunidade unida e perseverante, e frutos da partilha. É um ideal de vida que renasce. A comunidade que vive, de fato, o espírito da partilha, tem tudo o que é necessário, sem supérfluos, e se sustenta em relações fraternas. Porém, só recebe quem, antes, dá; quem deixa para trás o que tem e se aventura na dinâmica do Reino para herdar, com perseguição, o que dá sentido à vida. Quem aceita essa dinâmica, tem a sua vida eternizada.

Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

sábado, outubro 05, 2024

REFLEXÃO PARA O 27º DOMINGO DO TEMPO COMUM – MARCOS 10,2-16 (ANO B)

 


A liturgia deste vigésimo sétimo domingo do tempo comum continua apresentando o caminho de Jesus com seus discípulos em direção à Jerusalém, conforme a dinâmica narrativa do Evangelho de Marcos. O trecho proposto hoje – Marcos 10,2-16 – compreende uma importante etapa deste caminho. Como já foi afirmado em outras ocasiões, esse caminho não é apenas um percurso geográfico; é, acima de tudo, um itinerário catequético, teológico e espiritual, que visa a formação do discipulado de Jesus e sua revelação como Messias e Filho de Deus. É importante recordar que, durante esse caminho, Jesus sofre uma contínua e sistemática oposição, o que serve de preparação para o confronto final em Jerusalém com as autoridades religiosas e políticas que o levarão à morte na cruz. É durante o caminho que os discípulos demonstram muita incompreensão, fechamento e até oposição a Jesus, demonstrando que o acompanhavam fisicamente, mas ainda não tinham compreendido o sentido real do seguimento, por isso, não aceitavam as consequências.

O texto de hoje marca uma nova etapa no caminho: tendo atravessado o rio Jordão, Jesus já se encontra no território da Judéia (Mc 10,1) e, portanto, cada vez mais perto de Jerusalém e, consequentemente, da morte de cruz. Até então, a oposição encontrada por Jesus ao longo do caminho tinha sido somente dos próprios discípulos: desde Pedro, que o repreendeu após o primeiro anúncio da paixão (Mc 8,27-35 – evangelho do 24º domingo), até João que proibiu a um homem de agir em nome de Jesus, apenas por não fazer parte do grupo dos Doze (Mc 9,38-48 – evangelho do 26º domingo). Essa observação é importante para lembrar que a mensagem de Jesus nunca encontra facilidade no seu anúncio; pelo contrário, o Evangelho sempre encontra obstáculos, pois possui uma proposta de transformação de vidas e de mudança nas estruturas do mundo. Propostas assim, tendem a incomodar, tanto às instituições, quanto às pessoas a elas conformadas. Enfim, a mensagem humanizante de Jesus causava incômodo em muitos ambientes e pessoas.

Os opositores que confrontam Jesus no evangelho de hoje são os fariseus, seus mais tradicionais adversários, desde o início do seu ministério (Mc 2,16; 3,6; 7,1). Com eles, o confronto é sempre no campo doutrinal, sobretudo na maneira de compreender e interpretar a Lei de Moisés. Dessa vez, a discussão diz respeito à legitimidade do divórcio, como afirma o texto logo no início: «Alguns fariseus se aproximaram de Jesus. Para pô-lo à prova, perguntaram se era permitido ao homem divorciar-se de sua mulher» (v. 2). Como se vê, o evangelista já começa denunciando a intenção dos fariseus: eles querem “pô-lo à prova”; o verbo grego traduzido por essa expressão é o mesmo empregado no episódio das tentações, para referir-se à atitude de satanás (verbo πειράζω – peirazo). Assim, o evangelista denuncia os fiéis guardiões da doutrina, neste caso, os fariseus, como agentes satânicos. Porém, o espírito satânico estava presente também nos discípulos, inclusive, Pedro é a única pessoa a quem Jesus denomina explicitamente de satanás (Mc 8,33). Como recorda o evangelista, os fariseus não perguntam para aprender mais, nem para tirar dúvidas; perguntam para tentar. O que eles esperavam de Jesus era uma resposta que confirmasse sua fama de relativizador da Lei, para posteriormente acusá-lo de blasfemo, herege. Como fiéis observadores da lei, eles já tinham consciência formada e conhecimento a respeito desse tema.

Conhecendo bem as intenções dos fariseus, Jesus lhes responde com uma nova pergunta, evocando Moisés, exemplo de legislador e sinônimo da lei em Israel, sobretudo para eles, os fariseus: «Jesus perguntou: o que Moisés vos ordenou?» (v. 3). E os fariseus respondem de acordo com a Lei, ou seja, de acordo com Moisés: «Moisés permitiu escrever uma certidão de divórcio e despedi-la» (v. 4). Está claro, portanto, que o divorcio estava regulamentado em Israel, ou seja, era legítimo. A lei, na qual os fariseus se apoiavam, realmente permitia isso (Dt 24,1-4). Porém, Jesus recorda o motivo pelo qual a Lei foi dada: «Foi por causa da dureza do vosso coração que Moisés vos escreveu este mandamento. No entanto, desde o começo da criação, Deus os fez homem e mulher. Por isso, o homem deixará seu pai e sua mãe e os dois serão uma só carne» (vv. 5-7). Ora, o mundo regido pela lei não é o mundo ideal. A lei não corresponde aos propósitos originais da criação, mas foi dada como um paliativo, diante do mal enraizado no mundo, referido por Jesus como dureza de coração. Mas Jesus não veio ao mundo para conformá-lo à Lei, e sim para recuperar o ideal fraterno da criação, instaurando definitivamente o Reino de Deus. A Lei de Moisés é resposta ao pecado, bom seria que ela não fosse necessária.

Como a lei permitia o divórcio, na época de Jesus o debate girava em torno dos motivos aceitáveis para que alguém se divorciasse. Havia duas principais correntes rabínicas de interpretação: uma delas, afirmava que o divórcio só podia ser dado em caso de um erro muito grave por parte da mulher, como o adultério propriamente dito, ou um “defeito” também grave, como esterilidade. Para outra corrente, o divorcio poderia ser dado por qualquer motivo, até mesmo se a mulher deixasse queimar uma comida, ou se o homem encontrasse outra mulher mais “bonita”. Ambas as correntes se baseavam numa lei deuteronomista (Dt 24,1-4). Para Jesus, essa lei era absurda, pois legitimava a submissão e marginalização da mulher. Em todas as questões relativas à lei, a preocupação de Jesus é sempre com os abusos que podem ser praticados e fundamentados a partir dela. No caso do divórcio, quem se prejudicava sempre era a mulher, pois o homem poderia repudiá-la a qualquer momento, expulsando-a de casa. Essa lei legitimava a família patriarcal e mantinha a mulher marginalizada. Por isso, Jesus se distancia dessa lei e convida a sua comunidade a manter-se alinhada aos propósitos da criação: “Deus os fez homem e mulher” para serem “uma só carne”, ou seja, uma unidade, formando uma profunda comunhão, sem submissão da mulher (Gn 1,27; 2,24). Portanto, prender-se à lei, para Jesus, é negar o projeto original de Deus e fechar-se ao seu Reino, por consequência.

A discussão com os fariseus tinha sido no caminho, enquanto o ensinamento aos discípulos acontece já na casa. É típico da pedagogia de Jesus aprofundar em casa, com os discípulos, o tema discutido no caminho, sobretudo no Evangelho de Marcos. Assim, mais uma vez, o evangelista evidencia caminho e casa como lugares privilegiados da catequese de Jesus. Por isso, diz o texto que, «em casa, os discípulos fizeram, novamente, perguntas sobre o mesmo assunto» (v. 10). Talvez os discípulos tenham ficado embaraçados com as respostas de Jesus aos fariseus, e quiseram também tirar suas dúvidas, afinal, também eles tinham crescido aprendendo e observando a lei de Moisés. Era normal, portanto, que também eles se espantassem com a “subversão” de Jesus na interpretação da Lei. Ainda mais sobre o tema do casamento/divorcio, um assunto importante e muito relacionado ao cotidiano das pessoas. Além do provável espanto com a resposta de Jesus aos fariseus, os discípulos devem ter imaginado que também eles poderiam ser abordados sobre esse tema; por isso, o interesse em aprender mais e melhor com Jesus, mesmo que nem sempre conseguissem, devido ao fechamento de mentalidade e obstinação, como tinham demonstrado com a atitude de João, no evangelho do domingo passado.

E o evangelista diz que, aos discípulos, «Jesus respondeu: “Quem se divorciar de sua mulher e casar com outra, cometerá adultério contra a primeira. E se a mulher se divorciar de seu marido e se casar com outro, cometerá adultério”» (vv. 11-12). Nessa resposta, Jesus reafirma seu compromisso com os propósitos da criação: o divórcio não deveria existir. Ao mesmo tempo, ele traz uma grande novidade: coloca a mulher em condição de igualdade com o homem, ao afirmar que também o homem comete adultério ao divorciar-se e casar-se com outra. Ora, de acordo com a Lei, fundamento da família patriarcal, quando a interpretação era conveniente, a culpa e as consequências, em caso de divórcio, recaiam somente sobre a mulher, afinal, era o próprio marido quem escrevia a certidão do divorcio, na qual dizia os motivos pelos quais estava mandando a esposa embora. A depender dos motivos escritos na certidão, as consequências seriam as piores possíveis para a mulher, a começar pelo rótulo de adúltera, causando discriminação, segregação e até apedrejamento. Também podia acontecer que o homem escrevesse motivos simples para o divórcio, coisas que não comprometessem tanto a imagem da mulher; com isso, ela poderia ser aceita novamente na casa do pai e até casar-se de novo. Mas isso era muito raro.

Era praxe o homem destratar a mulher ao máximo possível, na certidão de divórcio, até para justificar sua atitude perante familiares, amigos e lideranças religiosas. Quando isso acontecia, e era frequente, a mulher não seria mais acolhida pelos pais e dificilmente encontraria um novo marido. Geralmente, terminava na prostituição, quando não morria apedrejada. Enfim, a mulher era fortemente prejudicada. Portanto, a grande lição de Jesus aqui, além de remeter a humanidade ao plano da criação, é a proteção da mulher, com sua dignidade e igualdade nas relações, combatendo uma lei que discriminava e excluía, por isso, reprovável em todos os sentidos. Se praticada, pelo menos que as consequências não recaíssem apenas sobre a mulher. Em outras palavras, Jesus reivindica direitos iguais: se a lei concede ao homem o direito de repudiar a mulher, que conceda também à mulher o direito de repudiar o homem. Com isso, ele afirma a igualdade entre homem e mulher, e isso é extremamente revolucionário para a época. Mas o ideal para Jesus é que não seja necessária a aplicação da lei por nenhuma das partes. O ideal é viver plenamente o princípio de unidade e comunhão da criação, ou seja, que sejam uma só carne.

Na parte final, o evangelista coloca, novamente, em cena personagens tão caros para esta seção do caminho: as crianças. Assim diz o texto: «Depois disso, traziam crianças para que Jesus as tocasse. Mas os discípulos as repreendiam» (v. 13). A ênfase de Jesus e do evangelista às crianças tem uma função didática muito específica, sobretudo para a formação dos discípulos. Ora, quanto mais se aproximavam de Jerusalém, mais os discípulos alimentavam projetos de poder e sonhos de grandeza, imaginando a restauração do reino davídico-salomônico e, consequentemente, a ocupação de cargos de honra na administração. Diante disso, o evangelista insiste em apresentar as crianças como modelo, considerando a insignificância que lhes era atribuída na época. E o fato de os discípulos repreenderem as crianças, mostra o quanto eles ainda estavam distantes do projeto de Jesus. Na verdade, estavam em completa oposição a Jesus, pois faziam o contrário do que ele proponha. No debate sobre o divórcio, Jesus elevou a mulher à condição de igualdade; agora, com as crianças, eleva todas as categorias de pessoas excluídas à condição de preferidas do Reino.

Com a atitude escandalosa dos discípulos – no evangelho, causa escândalo quem atrapalha alguém de se aproximar de Jesus – o evangelista diz que «Jesus se aborreceu e disse: “Deixai vir a mim as crianças. Não as proibais, porque o Reino de Deus é dos que são como elas”» (v. 14). Esse esse episodio é narrado pelos três evangelhos sinóticos, mas somente Marcos diz que Jesus “se aborreceu”. Aliás, considerando os quatro evangelhos, essa é a única passagem em que se afirma que Jesus teve esse sentimento. O verbo grego empregado pelo evangelista (ἀγανακτέω – aganakteo) poderia ser traduzido também por “ficou irado” ou “teve raiva”. Esse detalhe é importante por três motivos: primeiro, porque demonstra a importância que Jesus dava às crianças – como imagem de todas as categorias de pessoas vulneráveis e marginalizadas da sociedade; segundo, porque denuncia o quanto era absurda a atitude dos discípulos; e, terceiro, porque mostra a preocupação do evangelista Marcos em revelar plenamente a humanidade de Jesus, apresentando-o como um homem de sentimentos. De fato, Revelar os traços humanos de Jesus era muito importante para Marcos. Isso torna o seu Evangelho o mais realista dos quatro.

Ao dizer que Jesus, um homem que adotou o amor como regra de vida, ficou irado, e disse o motivo da ira, o evangelista comprometeu a sua comunidade e as comunidades de todos os tempos: acolher as crianças, ou seja, os pequeninos, é um imperativo cristão. As crianças, sobretudo nesta passagem do evangelho, são a síntese e imagem de todas as categorias de pessoas necessitadas, marginalizadas, discriminadas pela sociedade e a religião. Quando a comunidade cristã se distancia destas pessoas, quando não faz opção preferencial por elas, está provocando a ira de Jesus. Além de preferidas, as crianças são apresentadas também como modelo de pertença ao Reino de Deus (v. 15). Os discípulos estavam alimentando sonhos triunfalistas, imaginando a conquista de um reino pela força. Pensavam estar a caminho de Jerusalém para a restauração da monarquia davídica. Por isso, Jesus insiste tanto em propor as crianças como modelo para eles, como forma de combate a essa mentalidade. A criança é exemplo de quem necessita aprender, de quem está aberto ao outro, de quem não trama maldade nem alimenta ambições, de quem não se sente autossuficiente. Para pertencer ao Reino de Deus, como uma sociedade igualitária e justa, é imprescindível ter essas características.

Além de reprovar a atitude absurda dos discípulos com palavras, Jesus o faz também com gestos, como mostra o último versículo: «Ele abraçava as crianças e as abençoava, impondo-lhes as mãos» (v. 16). Isso mostra que seu ensinamento é coerente em todos os sentidos. São três atitudes bastante significativas: abraçar, abençoar e impor as mãos. Tudo isso representa a plenitude do cuidado e da proteção de Deus. Parece até uma forma de provocar os discípulos que não queriam sequer que as crianças se aproximassem dele. E Jesus não só quer que os pequeninos estejam perto de si, mas quer que se sintam abraçados, que sintam sua ternura. O gesto tradicional de acolhida e saudação da cultura judaica era o beijo no rosto, conhecido como “ósculo da paz”; o abraço era raro, sobretudo em espaço público, porque era um gesto considerado íntimo demais e tipicamente feminino; era reservado às mães para com os filhos. Com isso, o evangelista mostra que em Jesus se manifestam também os traços maternos de Deus, já anunciados no Antigo Testamento, mas como metáfora. Em Jesus, deixa de ser metáfora e se torna realidade. É também um sinal do evangelista para as comunidades de todos os tempos: é preciso acolher os pequenos com amor materno. Os pequeninos de sempre devem sentir-se abraçados pela comunidade dos seguidores de Jesus de Nazaré.

Igualdade nas relações e amor aos pequeninos são a síntese do evangelho de hoje. Por isso, é preciso que nossas comunidades acolham a mensagem humanizadora de Jesus conforme o relato de Marcos e reconfigurem suas estruturas, tornando-as cada vez mais alinhadas ao seu projeto. Mulher e criança, duas categorias de pessoas marginalizadas na época, evidenciadas no evangelho de hoje, são imagem e síntese de todas as pessoas por quem Jesus fez opção preferencial. Logo, são indicações claras do que devem fazer também as comunidades de hoje.

Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

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