sexta-feira, abril 25, 2025

REFLEXÃO PARA O SEGUNDO DOMINGO DE PÁSCOA – JOÃO 20,19-31



Como acontece no primeiro Domingo de Páscoa, também no segundo domingo o evangelho é o mesmo para todos os anos. No caso do segundo, o trecho lido é Jo 20,19-31. Este texto narra a continuação dos eventos envolvendo a comunidade de discípulos no dia mesmo da ressurreição, e a sua quase repetição uma semana depois. Para compreendê-lo melhor, é necessário recordar alguns elementos do texto da liturgia do domingo passado, que apresentava a comunidade completamente desnorteada, não apenas porque o Senhor e mestre fora morto, mas porque até mesmo o seu cadáver parecia ter sido roubado (Jo 20,1-3). Naquela ocasião, o evangelista dava sinais de uma nova criação, embora ainda estivesse na fase do caos, simbolizado pelo escuro da madrugada (Jo 20,1). Três personagens protagonizaram aquele relato: Maria Madalena, Pedro e o Discípulo Amado; ambos fizeram a constatação do sepulcro vazio, mas somente um deles interpretou, de imediato, a ausência do corpo como sinal da ressurreição: o Discípulo Amado (Jo 20,8). Maria Madalena foi a segunda a acreditar, mas já durante o dia, após confundir o Senhor com o jardineiro (Jo 20,16-18), porém esse episódio já não constava no texto que fora lido no domingo.

Da madrugada do primeiro dia, a liturgia de hoje passa para o anoitecer do mesmo dia, como diz o texto: «Ao anoitecer daquele dia, o primeiro da semana, estando fechadas, por medo dos judeus, as portas do lugar onde os discípulos se encontravam, Jesus entrou e pondo-se no meio deles, disse: ‘A paz esteja convosco’» (v. 19). Não obstante as frustrações e decepções com o final trágico de seu líder, condenado e morto na cruz, a reunião dos discípulos mostra que a comunidade está se recompondo, após uma normal dispersão. Certamente, o anúncio de Maria Madalena – «Eu vi o Senhor!» (Jo 20,18) – influenciou nesse processo de recomposição, junto à fé do Discípulo Amado, ao constatar o sepulcro vazio em companhia de Pedro, ainda na madrugada daquele dia. Embora se recompondo, a comunidade continuava em crise, o que se evidencia pela situação de medo informada pelo evangelista. Por “medo dos judeus” entende-se o medo das lideranças religiosas que condenaram Jesus em conluio com o império. É típico de João usar o termo “judeus” em referência aos líderes, e não a todo o povo. Do início ao fim do Quarto Evangelho, eles são apresentados como verdadeiros antagonistas de Jesus, buscando impedir sua a realização da sua missão libertadora a qualquer custo. Porém, não conseguiram, mesmo tendo contribuído para sua morte na cruz. Por isso, o medo deles da parte dos discípulos é até compreensível, apesar de inaceitável. De fato, o medo é preocupante, é um impedimento à missão; é fruto da angústia, da desilusão e do remorso de alguns. O principal motivo do medo era a possibilidade clara de perseguição; os discípulos temiam ter o mesmo final trágico do mestre, ou seja, a condenação à morte de cruz.

Manifestando-se no meio dos discípulos, o Ressuscitado inicia neles um processo de transformação, oferecendo o primeiro antídoto ao medo: o dom da paz, que, nesse texto, não significa apenas a típica saudação dos judeus (shalom), mas o cumprimento de uma promessa que, por sinal, responde às necessidades reais da comunidade acuada pelo medo. Ora, durante a ceia, vendo seus discípulos angustiados (Jo 14,1), Jesus encorajou-os e prometeu-lhes a paz: «Eu vos deixo a paz, eu vos dou a minha paz» (Jo 14,27a). Naquele contexto, no entanto, os discípulos não assimilaram esse dom, devido à angústia pela qual passavam. Na verdade, todo este relato do evangelho de hoje deve ser lido na perspectiva da dinâmica promessa–cumprimento: a própria manifestação (aparição) do Ressuscitado à comunidade é também cumprimento de uma promessa: «Vou e volto a vós» (Jo 14,28), como é a doação do Espírito Santo. O Ressuscitado não retorna ao mundo para fazer um julgamento ou prestação de contas, mas para continuar a sua obra de amor, cumprindo suas promessas e continuando a mostrar com gestos e palavras que o Pai lhe enviou ao mundo para, acima de tudo, amar sem medidas. O encontro com a paz de Jesus levanta o ânimo da comunidade que parecia fracassada. Ele comunica a sua paz e, ao mesmo tempo, reforça o modelo de comunidade ideal: uma comunidade igualitária e livre, tendo um único centro: o Cristo Ressuscitado. É esse o significado do seu colocar-se no meio deles. Para uma comunidade viver realmente os propósitos do Evangelho é necessário, antes de tudo, que no centro do seu existir esteja o Ressuscitado; é Ele o único ponto de referência e fator de unidade.

Na continuidade da experiência, diz o texto que Jesus «mostrou-lhes as mãos e o lado. Então os discípulos se alegraram por verem o Senhor» (v. 20). Ao mostrar as mãos e o lado, Jesus mostra a continuidade entre o Ressuscitado e o Crucificado: trata-se da mesma pessoa. Geralmente, esse gesto é interpretado apenas como uma demonstração material da ressurreição: as chagas do Crucificado continuam no Ressuscitado. No entanto, aqui, as mãos e o lado não são apenas as marcas da paixão; são os sinais da identidade de Jesus de Nazaré que continuam no Cristo Ressuscitado, porque é a mesma pessoa. E os principais traços da identidade de Jesus são o serviço e o amor; foi isso que ele demonstrou em toda a sua vida terrena. Portanto, Jesus diz, com esse gesto, que continua servindo e amando, e sua comunidade deve também viver dessa forma. As mãos são sinais do serviço, e o lado é sinal do amor, pois representa o coração. Estes sinais revelam elementos essenciais da identidade e missão da comunidade: amar e servir, servir e amar, não importa a ordem das palavras. O importante é que serviço e amor não podem faltar numa comunidade cristã. E a certeza da presença do Ressuscitado faz a comunidade superar definitivamente o medo, passando à alegria. De fato, os discípulos se alegram por verem o Senhor. Essa alegria é carregada de alívio e esperança, tornando-se também um sinal de encorajamento no processo de superação do medo.

Já estabelecido como centro da comunidade, «novamente Jesus disse: ‘A paz esteja convosco’» (v. 21a). A paz é novamente oferecida, porque a passagem do medo à alegria poderia tornar-se uma simples euforia nos discípulos; por isso a paz é doada novamente para enfatizar a serenidade e o equilíbrio que devem existir na comunidade. Só é possível acolher os dons pascais estando realmente em paz. Aqui, a paz não significa alívio ou tranquilidade, mas sinal de liberdade e vida plena; é a capacidade de assumir livremente as consequências das opções feitas. Tendo plenamente comunicado a paz como seu primeiro dom, o Ressuscitado os envia, como fora ele mesmo enviado pelo Pai: «Como o Pai me enviou, também eu vos envio» (v. 21b). Ao contrário de Mateus e Lucas que determinam as nações e até os confins da terra como destinos da missão (Mt 28,19; Lc 24,47; At 1,8), em João isso não é determinado: «Como o Pai me enviou, também eu vos envio». Jesus simplesmente os envia. Sem diminuir a importância da missão em sua dimensão universal, João pensa na comunidade, em primeiro lugar. É essa a primeira instância da missão, porque é nessa onde estão as situações de medo, de desconfiança, de falta de entusiasmo, por isso é a primeira a necessitar da paz do Ressuscitado.  

O texto mostra, como sempre, a coerência de Jesus: «E depois de ter dito isso, soprou sobre eles e disse: Recebei o Espírito Santo» (v. 22). Ora, ele tinha prometido o Espírito Santo aos discípulos durante a ceia (Jo 14,16.26; 15,26). Ao soprar sobre eles, o Espírito é comunicado e a promessa é cumprida. O evangelista usa o mesmo verbo/gesto do relato da primeira criação do ser humano (Gn 2,7). O Evangelho do domingo passado mostrava a nova criação em sua primeira fase; hoje, essa criação chega ao seu ponto alto com o sopro de vida comunicado pelo Ressuscitado. Nessa nova criação, o “Criador” já não age como um vigilante, olhando de cima, mas se faz presente no meio da comunidade, deixando-se tocar, vivendo como um igual entre as pessoas. O verbo soprar (em grego: έμφυσάω – emfysáo) significa doação de vida. Literalmente, quer dizer soprar para dentro do outro, como fez Deus na criação, soprando dentro das narinas da escultura de barro e, assim, transformando-a em ser vivo. Desse modo, podemos dizer que Jesus, ao soprar sobre os seus discípulos, transmitiu-lhes vida, recriando a comunidade e, nessa, a humanidade inteira. Ao receber o Espírito, a comunidade se torna também comunicadora dessa força de vida. E é o Espírito quem mantém a comunidade alinhada ao projeto de Jesus, porque é Ele quem faz a comunidade sentir, viver e prolongar a presença do Ressuscitado como seu único centro. E isso se faz através do amor e o serviço. Ao contrário da perspectiva de Lucas, que aguarda para o dia de Pentecostes (cinquenta dias após a páscoa), em João o Espírito Santo é doado no dia mesmo da ressurreição, o que parece mais lógico, tendo em vista a situação da comunidade paralisada pelo medo. A força do Espírito Santo era uma necessidade urgente para reanimar a comunidade.

O dom do Espírito Santo fortalece a comunidade e lhe confere uma grande responsabilidade: «A quem perdoardes os pecados eles lhes serão perdoados; a quem não perdoardes, eles lhes serão retidos» (v. 23). Por muito tempo, essa passagem foi usada apenas para fundamentar o sacramento da penitência. Mas Jesus não está dando um poder aos discípulos, e sim confiando-lhes uma responsabilidade: reconciliar o mundo, levar a paz e o amor do Ressuscitado a todas as pessoas, de todos os lugares e em todos os tempos. Não se trata, portanto, de um poder para determinar se um pecado pode ser perdoado ou não. É a responsabilidade da obrigatoriedade da presença cristã para que, de fato, o mundo seja reconciliado com Deus e, assim, humanizado.  Os discípulos têm a missão de ser comunicadores desse Espírito em todas as realidades. Ora, Jesus fora definido pelo Batista como o «Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo» (Jo 1,29); para isso fora enviado pelo Pai. E é à maneira do Pai que ele envia seus discípulos em todos os tempos: «Como o Pai me enviou, também eu vos envio» (v. 21). Portanto, os pecados são perdoados à medida em que o amor de Jesus vai se espalhando no mundo, e isso se dá pelo testemunho dos seus discípulos e pela força do Espírito Santo. Ficam pecados sem perdão, portanto, quando há omissão dos discípulos, quando eles deixam de amar e servir à maneira de Jesus.

A comunidade não estava completa naquele primeiro dia: assim como Judas não fazia mais parte do grupo, também «Tomé, chamado Dídimo, que era um dos Doze, não estava com eles quando Jesus veio» (v. 24). É necessário destacar algumas características desse discípulo, considerando que ele foi bastante rotulado negativamente ao longo da história. Ora, o motivo pelo qual os discípulos estavam reunidos com portas fechadas era o medo. Provavelmente, Tomé não estava trancado com eles porque não tinha medo. A evidência maior da coragem de Tomé aparece no relato da reanimação de Lázaro. Jesus estava ameaçado de morte, e quando decidiu ir à Judeia, onde ficava Betânia, a cidade de Lázaro, Tomé foi o único que se dispôs a ir para morrer com ele: «Tomé, chamado Dídimo, disse então aos condiscípulos: ‘Vamos também nós, para morrermos com ele!’» (Jo 11,16). Por isso, ele não tinha nenhum motivo para esconder-se. Essa sua coragem foi ofuscada pelo rótulo de incrédulo. Quanto à fé no Ressuscitado, a diferença de Tomé para os demais deve-se ao intervalo de uma semana. Não estava reunido no primeiro dia e não acreditou no testemunho da comunidade: «Os outros discípulos contaram-lhe depois: ‘Vimos o Senhor!’. Mas Tomé disse-lhes: ‘Se eu não vir a marca dos pregos em suas mãos, se eu não puser o dedo nas marcas dos pregos e não puser a mão no seu lado, não acreditarei’» (v. 25). Não dar credibilidade ao testemunho da comunidade foi o grande erro de Tomé, mas ao exigir evidências da ressurreição, ele agiu como os demais. Ora, à exceção do Discípulo Amado, o qual viu e acreditou logo ao contemplar o sepulcro vazio (Jo 20,8), os demais também só acreditaram após a manifestação do Senhor entre eles.

E mesmo sem acreditar ainda na ressurreição pelo primeiro anúncio dos companheiros, Tomé se reintegrou à comunidade. Assim, «Oito dias depois, encontravam-se os discípulos novamente reunidos em casa, e Tomé estava com eles. Estando fechadas as portas, Jesus entrou, pôs-se no meio deles e disse: ‘A paz esteja convosco’» (v. 26). Embora a reunião ainda aconteça às portas fechadas, o medo não é mais mencionado; certamente, fora superado, graças à paz e ao Espírito Santo comunicados pelo Ressuscitado comunicados no primeiro dia. Também é importante indicativo temporal «oito dias depois»; essa expressão significa uma semana depois; é explícita a referência ao domingo – o qual pode ser contado como o primeiro ou o oitavo dia da semana – como dia de reunião dos discípulos, como sinal de que a comunidade cristã já não está mais presa aos esquemas do judaísmo, e não necessita mais do sábado para fazer a sua experiência com o Senhor. Temos aqui um dado claro de ruptura entre a comunidade cristã e a sinagoga, embora nas primeiras décadas, por falta de clareza, muitos cristãos frequentavam as duas reuniões: a da sinagoga, no sábado, e a da comunidade de discípulos no domingo, na casa de um dos membros da comunidade. Mas o texto deixa claro que, no final da última década do primeiro século, dada provável da redação deste evangelho, o domingo já estava consolidado como o dia de reunião e encontro da comunidade.

O Senhor se pôs de novo no meio dos discípulos, com a presença de Tomé, conferindo novamente o dom da paz, sem o qual a comunidade não se sustenta. Assim como fez com os demais, uma semana antes, também a Tomé Jesus dá os sinais da sua identidade de Ressuscitado-Crucificado, que só sabe servir e amar: «Depois disse a Tomé: ‘Põe o teu dedo aqui e olha as minhas mãos. Estende a tua mão e coloca-a no meu lado. E não sejas incrédulo, mas fiel!’» (v. 27). Quando, assim como os demais, Tomé teve certeza da ressurreição, superou aos demais na intensidade e na convicção da fé; provavelmente, não tocou as mãos e o lado, como aparece na maioria das pinturas. Certamente, não precisou disso. É mais provável que tenha se jogado aos pés de Jesus, com essa solene declaração de fé: «Tomé respondeu: ‘Meu Senhor e meu Deus!’» (v. 28). Essa é a mais profunda profissão de fé de todos os evangelhos. Jesus já tinha sido reconhecido como Mestre, como Messias, Filho de Davi, Filho do Homem e Filho de Deus, mas como Deus mesmo, essa foi a primeira vez. Com isso, o evangelista ensina que não importa o tempo em que alguém adere à fé; o que importa é a intensidade e a convicção dessa fé. Neste sentido, Tomé é o discípulo modelo.

Ainda sobre Tomé, diz o evangelista que ele era chamado Dídimo (em grego: Δίδυμος – dídimos), cujo significado é gêmeo. No entanto, o evangelista não apresenta o irmão gêmeo de Tomé, mas deixa no anonimato. E os personagens anônimos do Quarto Evangelho têm função paradigmática para a comunidade e os leitores de todos os tempos. Na verdade, o primeiro gêmeo de Tomé é o próprio Jesus, não biologicamente, mas teologicamente. Daí o convite aos leitores e discípulos de todos os tempos a também tomarem Tomé como irmão gêmeo: questionador, corajoso, atento, sincero, perspicaz e convicto. É claro que se ele estivesse com a comunidade logo no primeiro dia, teria antecipado a sua profissão de fé. Mas é importante ser prudente e esperar, principalmente nos tempos atuais, com tantas visões, aparições e falsas certezas imediatas. Se muitos(a) videntes dos tempos atuais, assumissem a sua consanguinidade com Tomé, ou seja, se o reconhecessem como gêmeo, teríamos um cristianismo mais evangélico e autêntico, com mais convicção e menos fantasia.

A bem-aventurança proclamada por Jesus: «Bem-aventurados os que creram sem terem visto» (v. 28), reflete a preocupação do evangelista com as novas gerações de discípulos, após a morte dos apóstolos e das demais testemunhas de primeira hora. Os novos membros da comunidade joanina eram muito questionadores e chegavam a duvidar do anúncio, exigindo provas concretas da ressurreição. Por isso, o evangelista quis responder a essa realidade, mostrando que não há necessidade de visões e aparições; basta integrar-se a uma comunidade de fé para experimentar a presença do Ressuscitado. Na verdade, o evangelista usou Tomé como personagem simbólico da transição entre duas fases distintas na vida da comunidade: a geração dos que viram pessoalmente o Senhor, e a dos que aderiram a ele pela fé e o anúncio-testemunho. E não há supremacia de uma sobre a outra. O que importa é crer, o que significa plena adesão ao Evangelho. A presença do Ressuscitado pode ser verificada quando uma comunidade tem o serviço e o amor como sinais distintivos; a ausência desses sinais significa que o Ressuscitado não é o centro da comunidade.

Os versículos finais mostram que esse texto é a conclusão original do Evangelho de João: «Jesus realizou muitos outros sinais diante dos discípulos, que não estão escritos neste livro. Mas estes foram escritos para que acrediteis que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus, e para que, crendo, tenhais a vida em seu nome» (vv. 30-31). Aqui está também a chave de leitura para todo o Evangelho: a promoção da vida; vida que para ser plena de sentido necessita do encontro com Jesus, o Cristo, o Ressuscitado que foi crucificado. O objetivo do Evangelho, portanto, é despertar a fé de pessoas e comunidades no Cristo que viveu para servir e amar. Animada pelo dom do Espírito Santo, a Igreja, em todos os tempos só pode se apresentar como pertencente a Jesus Cristo, o Filho de Deus Ressuscitado, com mãos abertas para servir e um coração capaz de sangrar por amor à humanidade. O capítulo seguinte (c. 21) é um acréscimo posterior da comunidade para responder a uma outra necessidade: o resgate da imagem de Simão Pedro, que tinha ficado bastante comprometida na comunidade devido à negação e outras incoerências; e para mostrar que sempre há a possibilidade de reabilitação e admissão à comunidade, não obstante os momentos de infidelidade e incoerência. 

A comunidade reunida é o lugar privilegiado de manifestação do Ressuscitado. Não importa o tempo e o lugar da adesão à fé; o que importa é acolher a paz que o Ressuscitado oferece e viver animado(a) pelo Espírito que ele transmite. E que o esse mesmo Espírito ajude a reconhecê-lo nos crucificados de sempre, ao longo da história: os pobres, feridos e marginalizados nas mais diversas situações. A fé no Ressuscitado é autêntica, de fato, quando há disponibilidade para de amar e servir, como ele fez. A exigência de Tomé foi, na verdade, uma advertência do evangelista: o seguimento de Jesus exige que se toque em feridas. Tocar as feridas das pessoas necessitadas, sanando suas dores, é fazer experiência com o Ressuscitado.

Pe. Francisco Cornélio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

sábado, abril 19, 2025

REFLEXÃO PARA O DOMINGO DE PÁSCOA – JOÃO 20,1-9



Ao contrário da Vigília Pascal, cujo evangelho muda a cada ano, conforme o ciclo litúrgico vigente, no Domingo da Páscoa a liturgia mantém o mesmo evangelho para todos os anos. Trata-se de 20,1-9, embora também se possa ler Lc 24,13-35 como alternativa, na missa vespertina. Tratemos aqui da passagem de João, o texto oficial. Ao invés de ser um relato da ressurreição, como normalmente vem chamado, esse é, na verdade, um relato do «sepulcro encontrado vazio», pois a ressurreição em si não é relatada, uma vez que é um acontecimento indescritível, ao contrário da paixão e da morte de Jesus, as quais são descritas minuciosamente pelos evangelhos. Esse fato pode parecer estranho, considerando que é a ressurreição o evento fundante do cristianismo e, por isso, o centro da fé cristã, e foi exatamente em função dessa que os evangelhos foram escritos. Mesmo assim, os evangelistas não conseguiram descrevê-la. O texto proposto hoje – Jo 20,1-9 – é apenas a introdução daquilo que o Quarto Evangelho dedica à ressurreição, sem, no entanto, descrevê-la: a descoberta do sepulcro vazio, o que pode significar muita coisa ou quase nada, a depender de quem faz a constatação. Três personagens entram em cena nesse texto: Maria Madalena, Simão Pedro e o Discípulo amado. O número três já é, por si, um grande e rico sinal; se trata de um indicativo teológico: significa uma comunidade que, embora se encontre profundamente abalada, devido ao final trágico de seu líder, aos poucos vai sendo recomposta, à medida em que a esperança será recuperada.

O primeiro versículo apresenta o retrato da comunidade antes de vivenciar a experiência da ressurreição: «No primeiro dia da semana, Maria Madalena foi ao túmulo de Jesus, bem de madrugada, quando ainda estava escuro, e viu que a pedra tinha sido retirada do túmulo» (v. 1). O “primeiro dia da semana” é o dia seguinte ao sábado, último dia da antiga criação. Com essa expressão, o evangelista indica que há uma nova criação em curso; um novo tempo e um novo mundo estão sendo gestados, mas ainda está na etapa primordial, o caos, simbolizado pela expressão «quando ainda estava escuro»; o escuro, como sinônimo de caos, fora constatado também na primeira criação (Gn 1,1-2). Na verdade, o indicativo temporal «bem de madrugada» e seu complemento enfático «quando ainda estava escuro» não é apenas uma indicação temporal; significa o estado da comunidade naquelas circunstâncias. A ausência de Jesus e a procura pelo seu corpo na morada dos mortos – o túmulo – reflete uma realidade de trevas na comunidade. Essa situação de trevas não se deve à ausência da luz física, mas significa que a vida não está triunfando na comunidade, ou seja, a morte está prevalecendo. Trevas é ausência de vida e de esperança, sobretudo na teologia de João. E a primeira atitude de inconformismo diante das trevas é de Maria Madalena. Sua atitude vai despertar toda a comunidade a buscar uma saída para a superação das trevas.

Sem a experiência do Ressuscitado, a situação da comunidade é caótica, pois essa fica sem rumo, sem saber o que fazer, como vemos na postura de Maria Madalena: «Então, ela saiu correndo e foi encontrar Simão Pedro e o outro discípulo, aquele que Jesus amava, e lhes disse: ‘Tiraram o Senhor do túmulo e não sabemos onde o colocaram’» (v. 2). A pressa e as palavras de Maria Madalena indicam uma situação de quase desespero. Embora o texto de João registre apenas a ida de Maria Madalena ao sepulcro, é mais provável que tenha sido um grupo de mulheres, como consta nos evangelhos sinóticos (Mt 28,1; Mc 16,1; Lc 24,1); João cita somente a Madalena para recordar o protagonismo dela na comunidade primitiva e para delimitar o número três com os dois discípulos mencionados (Pedro e o Discípulo Amado), dando uma ênfase teológica maior ao fato, indicando uma comunidade, pois o número três significa completude.

Ir ao túmulo é a atitude de quem acredita que a morte triunfou, pois o túmulo é a morada dos mortos, é um depósito de cadáver, mas é também uma manifestação de amor por aquele que julgava estar morto. A surpresa e o espanto de Maria Madalena são causados exatamente pela ausência do cadáver no túmulo. A cultura da morte e o desânimo estavam tão presentes na mente dos discípulos que nem mesmo a pedra removida do túmulo fora suficiente para animá-los. De fato, a remoção da pedra e a ausência do corpo de Jesus causaram, inicialmente, preocupação e espanto, ao invés de alegria e esperança. Na fala de Maria Madalena vem expressa a falência da comunidade: mesmo reconhecendo Jesus como “Senhor”, ela sente a falta de um cadáver; quer saber onde está o corpo morto para reverenciá-lo, provavelmente com os perfumes, e chorar junto dele. É a situação de quem ainda estava agindo na escuridão, sem reconhecer o novo dia que estava para nascer.

Com o aviso de Maria Madalena, também Pedro e o Discípulo Amado tomam a iniciativa de ir ao túmulo para conferir a veracidade da informação, uma vez que a palavra da mulher não era digna de credibilidade naquela sociedade: «Saíram, então, Pedro e o outro discípulo e foram ao túmulo» (v. 3). Continuando, diz o texto que «Os dois corriam juntos, mas o outro discípulo correu mais depressa que Pedro e chegou primeiro ao túmulo» (v. 4). A pressa do Discípulo Amado revela sua fidelidade, testada e comprovada aos pés da cruz (19,25-27), característica da pessoa amada. Somente quem fez uma autêntica e profunda experiência de amor com o Senhor é capaz de opor-se ao clima de morte reinante na comunidade, por isso, esse discípulo é anônimo; o evangelista não lhe dá um nome, mas apenas um adjetivo: amado.

Os personagens anônimos no Evangelho segundo João têm a função de paradigmas para a sua comunidade e os seus leitores de todos os tempos; assim, todo aquele que ler esse evangelho deve tornar-se um “discípulo amado” também. Ele, o Discípulo Amado chegou primeiro e comprovou que a informação da Madalena era verídica: «viu as faixas de linho no chão, mas não entrou» (v. 5). À pressa do Discípulo Amado opõe-se a lentidão e o desânimo de Pedro, após ter sido tão incoerente com o Mestre na fase final de sua vida: opôs-se a ele na ceia, no momento do lava-pés (Jo 13,6-8), e o negara durante o processo (Jo 18,15-27). A falta de motivação de Pedro foi, certamente, marcada pelo remorso da negação e outras incoerências, o que será transformado quando experimentar o Ressuscitado em sua vida.

O Discípulo Amado, embora tenha chegado primeiro, espera que Pedro também chegue e faça ele mesmo a sua experiência: «Chegou também Simão Pedro, que vinha correndo atrás, e entrou no túmulo. Viu as faixas de linho no chão» (v. 6). Tendo entrado no túmulo, Pedro comprova a ausência do corpo de Jesus e, certamente, faz uma longa reflexão a respeito de tudo o que tinha acontecido nos últimos dias. Embora a tradução litúrgica diga que ele “viu” as faixas de linho, o evangelista emprega um verbo de significado muito mais profundo: “contemplar” (em grego: θεωρέω theorêo), o que significa mais que simplesmente ver; inclusive, desse verbo grego deriva a palavra teoria, como consequência de uma observação profunda: um olhar contemplativo, processado na mente e no coração.

Depois de Pedro, entra também o Discípulo Amado no túmulo. Tendo chegado primeiro, poderia ter entrado logo, mas preferiu esperar que Pedro chegasse e entrasse logo. Não se trata de uma preeminência de Pedro, como sugerem algumas interpretações, uma vez que na comunidade joanina não ainda havia espaço para hierarquia, como Jesus mesmo deixou claro no lava-pés; era na verdade uma questão de necessidade: quem, de fato, necessitava de uma experiência mais forte era Pedro, pois, depois de Judas, foi o discípulo que mais tinha fracassado até então, impondo sempre resistências aos propósitos de Jesus, além da negação durante o processo. Já o Discípulo Amado tinha feito uma experiência autêntica com o Senhor durante toda a sua vida, por isso, «viu e acreditou» (v. 8); não se deixou vencer pelos sinais de morte vistos dentro do túmulo, mas reforçou ali a sua fé.

Para Pedro, foi necessário um pouco mais de tempo, pelo menos algumas horas, para convencer-se de que o Senhor ressuscitou e vive (Jo 20,19ss). Mas, os sinais estão apontando para isso: interiormente, ele já estava “teorizando” sua fé, reconstruindo-a lentamente, uma vez que os acontecimentos do lava-pés ao julgamento de Jesus foram muito fortes e deixaram suas expectativas bastante comprometidas. Será o próprio Senhor Ressuscitado a ajudá-lo no processo de reconstrução da fé, posteriormente, com a tríplice pergunta: «Pedro, tu me amas?» (Jo 21,15-19). Sem amor, não há discipulado e, muito menos, experiência pascal. As percepções diferentes do sepulcro vazio por Maria, Pedro e o Discípulo Amado são sinais da diversidade que marca comunidade cristã desde os seus primórdios. Os três viram o mesmo fenômeno, mas cada um reagiu à sua maneira: Maria com espanto e choro (Jo 20,11), Pedro com silêncio, e o Discípulo Amado com fé. Embora a dimensão comunitária da fé seja indispensável, as experiências de percepção e reação diante do mistério são sempre pessoais e devem ser respeitadas.

É o conhecimento da Escritura que, gradativamente, vai habilitando a comunidade a crer na ressurreição (v. 9), pois é na Escritura que os planos de Deus são indicados e conhecidos. A fé de Pedro, de Maria Madalena e dos demais será reformulada aos poucos, a cada “primeiro dia” quando se reunirem para a comunhão fraterna, compreendendo a partilha do pão e a leitura da Escritura. A comunidade que não coloca a Escritura no centro da sua existência, tende a repetir a situação inicial desanimadora de Maria Madalena, pois sem a Escritura «não sabemos onde está o Senhor» (v. 2). A propósito de Maria Madalena, é necessário considerar o fato de todos os evangelistas mencionarem as mulheres como as primeiras personagens dos acontecimentos do “primeiro dia”; mesmo não acreditando em primeira hora, é a partir da visão e das palavras delas que a ressurreição vai se tornando realidade na vida da comunidade. Ora, se os evangelistas, e João em particular, pretendem apresentar uma nova criação, a gestação de um novo mundo e um novo tempo, é imprescindível que o papel da mulher seja evidenciado. Mulher é sinônimo de vida nova, pois ela é, por excelência, geradora de vida. Mesmo quando a vida nova não é gerada no ventre de uma mulher, como no caso extraordinário da ressurreição, mas é da intuição e da perspicácia de uma mulher (ou de várias, como nos evangelhos sinóticos) que brotam as razões para a constatação dessa nova vida. Se na antiga criação a mulher não passava de uma companheira para o homem, na nova criação ela assume um protagonismo ímpar: é a primeira a ver e a falar.

Além da compreensão da Escritura, é necessária a experiência do amor autêntico para a fé e o encontro com o Ressuscitado. O Discípulo Amado já tinha completado essas duas etapas, por isso, somente Ele acreditou em primeira mão, pois foi capaz de ler os sinais do sepulcro aberto e o corpo ausente à luz do amor e das Escrituras. Só crê num primeiro momento quem ama e sente-se amado, como aquele Discípulo sem nome, ao qual o evangelista quer que todos os seus leitores se assemelhem! Assim, concluímos voltando para o nosso início: a ressurreição não pode ser descrita, pode apenas ser experimentada. Para isso, é necessário fazer a experiência do amor profundo e do conhecimento da Escritura. 

Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

REFLEXÃO PARA A VIGÍLIA PASCAL – LUCAS 24,1-12 (ANO C)



Enquanto o evangelho do Domingo de Páscoa é sempre o mesmo – Jo 20,1-9 –, embora na missa vespertina se possa empregar também a passagem dos discípulos de Emaús (Lc 24,13-35), o da Vigília Pascal muda a cada ano, conforme o ciclo litúrgico. Neste ano, por ocasião do ciclo litúrgico C, o texto lido é Lc 24,1-12. Mais do que um relato de ressurreição propriamente, trata-se de um relato do túmulo vazio. De fato, este texto recorda a experiência das mulheres que foram até o túmulo de Jesus, na madrugada do domingo, e o encontram vazio, sem o corpo dele. Por sinal, é importante recordar que a ressurreição mesma não é narrada e nem descrita por nenhum dos relatos evangélicos, ou seja, nenhum evangelista diz como Jesus deixou o sepulcro, nem o momento em que isso aconteceu, apesar de a ressurreição ser o evento fundante da fé cristã. O que todos os evangelhos contam são indícios, como o sepulcro vazio, por exemplo, além de anúncios da ressurreição e experiências de encontro com a pessoa do Ressuscitado. E isso é suficiente para a fé. 

O relato lido na liturgia de hoje possui versão paralela nos outros dois sinóticos (Mt 28,1-8; Mc 16,1-8), com aproximação também ao relato de João (Jo 20,1-9), embora com menos elementos em comum. É um texto rico, com muitos detalhes próprios de Lucas, embora tenha ficado um pouco esquecido ao longo da história, já que o destaque do capítulo vinte e quatro do seu evangelho sempre foi considerado o episódio dos discípulos de Emaús (Lc 24,13-35), que é o segundo texto mais conhecido do Terceiro Evangelho, ficando atrás apenas da parábola do filho pródigo (Lc 15,11-32). Pode-se dizer, então, que houve uma certa injustiça em relação ao relato do sepulcro vazio, como se lê na liturgia de hoje, inclusive porque, sem ele, o relato dos discípulos de Emaús se tornaria incompleto. De fato, todo o capítulo vinte e quatro de Lucas é dedicado à ressurreição, embora não chegue a descrevê-la, como acenamos anteriormente. E o ponto de partida é o texto de hoje. 

Feitas as considerações iniciais, a nível de contexto, olhemos para o texto, que começa assim: «No primeiro dia da semana, bem de madrugada, as mulheres foram ao túmulo de Jesus, levando os perfumes que haviam preparado» (v. 1). Como se vê, o texto começa com duas indicações temporais bem relevantes. A primeira é o “primeiro dia da semana”, ou seja, o domingo, o dia seguinte ao sábado. Ora, o sábado foi o último dia da antiga criação. Com essa expressão, o evangelista quer dizer que uma nova criação está em curso, um novo tempo e um novo mundo estão sendo gestados. Trata-se de um novo começo da história. A segunda indicação – “bem de madrugada” – sinaliza a situação da comunidade logo após a morte de Jesus: em trevas, no escuro. Apesar de um novo tempo estar surgindo, ainda se vive no caos, simbolizado pela madrugada. A luz ainda não despontou. E quem tem coragem de enfrentar as trevas, até rompê-las, são as mulheres, as primeiras a tomarem iniciativa na ausência de Jesus. Ora, em todos os evangelhos, as mulheres são as primeiras personagens a tomar iniciativa no primeiro dia da semana e, consequentemente, as primeiras que fazem experiência a ressurreição. Contudo, em Lucas esse fato tem um significado ainda mais forte, tendo em vista que, ao longo de todo o seu Evangelho, as mulheres foram mais evidenciadas e valorizadas como autênticas discípulas de Jesus.

Se tem uma nova criação em curso, o protagonismo humano fica por conta das mulheres, uma categoria que representa todos os grupos de pessoas marginalizadas, de acordo com a teologia de Lucas. É importante recordar que as mulheres vão ao túmulo para embalsamar o corpo morto de Jesus, ou seja, envolvê-lo em perfumes, bálsamos, como era um costume típico da cultura semita. No entanto, chegando lá, se surpreendem, pois «elas encontraram a pedra do túmulo removida» (v. 2). Certamente, ficaram ainda mais surpresas ao entrar no túmulo, pois lá «não encontraram o corpo do Senhor Jesus» (v. 3). Embora se trate de dois fatos impactantes – túmulo aberto e ausência do corpo – ainda não há evidência de ressurreição. Mas já há sérias motivações para uma reflexão com muitas interrogações, obviamente, além da preocupação e inquietação, como afirma o afirma o evangelista, ao dizer que as mulheres «ficaram sem saber o que estava acontecendo» (v. 4a). Aqui, a expressão verbal empregada pelo evangelista para expressar a reação das mulheres indica perplexidade, inquietação, dúvida. Poderia ser uma reação de medo, mas as mulheres discípulas de Jesus não podem ter medo, e Lucas faz questão de recordar isso. Elas ficam perplexas, mas não tem medo, mesmo diante de uma situação tão complexa.

Diante da perplexidade das mulheres, diz o evangelista que «dois homens com roupas brilhantes pararam perto delas» (v. 4b). As vestes brilhantes indicam que estes homens são mensageiros divinos, pertencem ao mundo de Deus; são o contrário das trevas da madrugada. Isso quer dizer que o dia novo está surgindo, marcado pela luz. Essa imagem também recorda a transfiguração de Jesus, quando ele permitiu ser visto por alguns discípulos em sua real condição de Filho Escolhido de Deus (Lc 9,28-36), por isso, sua veste apareceu resplandecente. O número dois credencia o testemunho dos homens como credível, conforme a mentalidade judaica que exigia pelos menos duas testemunhas homens para um fato ser acreditado (Dt 19,15). Apesar de estarem ainda perplexas, as mulheres reconhecem os homens como mensageiros divinos, o que se evidencia pela postura delas diante deles: «Tomadas de medo, elas olhavam para o chão» (v. 5a). Aqui, mais do que medo, o termo mais justo para expressar a reação das mulheres seria “temor”, enquanto reverência, que é a postura adequada do ser humano diante de Deus, o que se comprova pela atitude de olhar para o chão. É o reconhecimento da grandeza de Deus e dos limites da condição humana diante dele. Por isso, o que as mulheres sentiram não foi exatamente medo, mas temor de Deus. 

Os mensageiros divinos interagem com as mulheres, e começam interrogando-as acerca do estavam fazendo ali: «Por que estais procurando entre os mortos aquele que está vivo?» (5). Talvez estas sejam as palavras mais importantes de todo o relato. Antes de comentá-las, é importante recordar a relevância deste diálogo, comparando-o, inclusive, com o anúncio do nascimento de Jesus pelo anjo aos pastores (Lc 2,8-12). Tanto os pastores quanto as mulheres pertenciam a categorias de pessoas consideradas inferiores, sem nenhuma reputação nem relevância para a sociedade; eram pessoas altamente marginalizadas. Contudo, estas pessoas são as primeiras a receber as notícias boas de Deus, o que se constata pelo anúncio do nascimento e da ressurreição de Jesus. Isso mostra que Deus sempre teve um lado na história, que é o lado dos pequenos, humildes e humilhados, e isso ficou ainda mais claro com a vinda de Jesus de Nazaré ao mundo, cujo missão foi sintetizada por ele mesmo como uma busca pelo que estava perdido, o que tinha sido descartado pela sociedade e a religião do seu tempo. 

O questionamento que os dois homens fazem às mulheres é decisivo: por que procurar entre os mortos o “Vivente”?. Ao invés da expressão “aquele que está vivo”, o termo “vivente” corresponde melhor à palavra grega empregada pelo evangelista (ζῶντα – zonta). Esse termo grego significa aquele vive e faz viver, e é essa a condição de Jesus Ressuscitado. Daí, o cuidado que a comunidade deve ter para não o procurar no lugar errado. E são muitos os lugares errados onde, não poucas vezes, se tem buscado Jesus. Às vezes, podem ser até assembleias litúrgicas onde há muita emotividade, muitos adornos, muita ortodoxia e pouco compromisso com o próximo. Certamente, uma das principais necessidades das comunidades de hoje é saber procurar e encontrar o Vivente e, consequentemente, tornar-se lugar de encontro com ele. Isso já era uma preocupação das comunidades de Lucas, e deve continuar sendo também hoje.

Após questionar as mulheres por estarem procurando entre os mortos o Vivente, os dois homens explicam a sua real condição, recordando o que ele mesmo tinha ensinado: «Ele não está aqui. Ressuscitou! Lembrai-vos do que ele vos falou, quando ainda estava na Galileia: “O Filho do Homem deve ser entregue nas mãos dos pecadores, ser crucificado e ressuscitar ao terceiro dia”» (vv. 6-7). Temos aqui uma recordação explícita dos três anúncios da paixão (Lc 9,22; 9,43-45; 18,31-34), que marcaram todo o seu ministério, desde a Galileia até a consumação dos fatos, em Jerusalém, com a paixão e morte de cruz.  Com este convite dos mensageiros divinos para as mulheres recordarem o que Jesus falou sobre o seu destino, o evangelista reforça a condição de discípulas destas mulheres. De fato, desde a Galileia elas acompanharam Jesus (Lc 8,1-3) como autênticas discípulas, e Lucas é o evangelista que mostra isto com mais clareza. Portanto, elas estão habilitadas a perceber que a ressurreição é a conclusão lógica de uma vida como a de Jesus. O que levou Jesus à morte na cruz foi a predestinação nem os anúncios proféticos, mas o seu estilo de vida, com suas opções, como as mulheres testemunharam ao longo do seu ministério. 

E, conforme foram encorajados pelos dois mensageiros de Deus, «as mulheres se lembraram das palavras de Jesus» (v. 8). Mais uma vez, o evangelista ressalta que elas eram discípulas autênticas. Recordaram as palavras de Jesus porque estiveram com ele, acompanharam todo o seu itinerário, desde a Galileia até a cruz (Lc 23,27.49.55). Por “palavras”, aqui, compreende-se todo o ensinamento de Jesus, incluindo o seu agir libertador, sua práxis humanizante. Ao dizer que as mulheres “lembraram”, implicitamente o evangelista diz que elas acreditaram na ressurreição anunciada pelos dois homens de vestes brilhantes. E como as mulheres acompanharam Jesus desde o início na Galileia, logo não necessitaram de aparições ou manifestações extraordinárias para acreditar e aceitar sua condição de Vivente. As palavras de Jesus são suficientes. Já os discípulos homens, pelo contrário, só acreditarão quando o verem. As mulheres acreditaram sem vê-lo porque deram adesão verdadeira às suas palavras, assimilaram de modo mais completo os seus ensinamentos. Assim, o evangelista adverte também a sua comunidade e as comunidades de todos os tempos: quem tem acesso às palavras de Jesus, por meio do seu evangelho escrito, está em condição de fazer experiência com o Vivente e ser sinal da sua presença no mundo.

A memória das palavras de Jesus gera consciência missionária, desinstala, afasta o comodismo, como aconteceu com as mulheres que, logo após as recordarem, «voltaram do túmulo e anunciaram tudo isso aos Onze e a todos os outros» (v. 9). Elas se tornaram as primeiras anunciadoras da ressurreição, as primeiras mensageiras do Vivente e, por consequência, as primeiras a contribuir com Deus na construção do mundo novo, logo nas primeiras horas do primeiro dia da nova criação. E anunciaram tudo, quer dizer que não omitiram nada. Também aqui, certamente, o evangelista quer chamar a atenção dos seus leitores de todos os tempos a anunciar tudo o que compõem a mensagem e a vida de Jesus, o Vivente, independentemente se o anúncio será aceito ou não. Algumas das mulheres são citadas por nome, mas havia outras além delas (v. 10), um dado que reforça ainda mais a certeza de que o discipulado de Jesus sempre foi fortemente marcado pela presença feminina, apesar das diversas tentativas de ofuscamento e silenciamento delas, desde o início até hoje.

O testemunho das mulheres não era considerado credível na sociedade vigente, e os discípulos homens estavam totalmente condicionados àquela sociedade; isso reforça o fato de que eles ainda não tinham assimilado a novidade de Jesus que propôs ruptura com o sistema. Por isso, eles não deram credibilidade ao anúncio das mulheres, como denuncia o evangelista: «Mas eles acharam que tudo isso era desvario, e não acreditaram» (v. 11). Além de não acreditar, os discípulos homens acharam que o anúncio das mulheres não passava de um “delírio”, um termo mais fiel à palavra grega empregada pelo evangelista (λῆρος – lêros), que o lecionário traduziu por desvario. Por sinal, essa particularidade é mais um detalhe exclusivo do relato de Lucas. Somente ele emprega essa palavra, em todo o Novo Testamento. Com ela, ele denuncia a incredulidade dos discípulos homens de modo mais contundente. E a história mostra que o anúncio fiel da totalidade da mensagem de Jesus, o “tudo isso” – as palavras – anunciado pelas mulheres aos Onze e demais discípulos, quase sempre é considerado delírio, loucura ou subversão. A história também mostra que a rejeição ao “tudo isso” de Jesus, muitas vezes, começa naqueles que deveriam ser os primeiros a acreditar e acolher, como deveriam ter feito os Onze, desde o primeiro momento. A incredulidade deles diante do anúncio das mulheres será recordada ainda mais tarde, no diálogo entre os discípulos de Emaús e o forasteiro desconhecido, que é o próprio Senhor Ressuscitado (Lc 24,22), o que reforça a denúncia do evangelista a essa realidade. 

Apesar da descrença generalizada entre os discípulos homens, o evangelista destaca uma postura diferenciada entre eles: «Pedro, no entanto, levantou-se e correu ao túmulo. Olhou para dentro e viu apenas os lençóis. Então voltou para casa, admirado com o que havia acontecido» (v. 12). Como se vê, o texto não diz que ele deu crédito ao anúncio das mulheres, mas mostra uma atitude diferente em relação aos demais. Pelo menos, ele ficou curioso, a ponto de correr ao túmulo. E, lá chegando, olhando para dentro, constatou que, de fato, o corpo não mais estava lá. De curioso que estava, a ponto de sair correr em direção ao sepulcro, Pedro ficou admirado, embaraçado, e esse é um primeiro estágio para a fé. A admiração também foi a primeira reação de Maria, a mãe de Jesus, diante do anúncio do anjo (Lc 1,29). Com este dado, Lucas está preparando o futuro protagonismo de Pedro na primeira comunidade, o que será bastante evidenciado no segundo volume de sua obra, o livro dos Atos dos Apóstolos. Ainda mais porque a imagem de Pedro ficou bastante comprometida após as negações, durante a paixão de Jesus. É necessário, portanto, reabilitá-lo para tornar credível a sua liderança na comunidade, e parece que o processo de reabilitação começa aqui, na perspetiva de Lucas.

É importante perceber e assimilar a mensagem da ressurreição transmitida pelo evangelho de hoje como a conclusão lógica da vida de Jesus, considerando seus primeiros passos, desde a concepção e o nascimento. Toda a sua vida foi uma doação constante de amor e por amor, com suas escolhas incompreensíveis até pelos familiares, sua predileção pelos pequeninos e humilhados. Tudo isso, sempre foi sinal claro de ressurreição. Devemos então, recordar tudo o que ele disse e fez, e anunciar sem medo, mesmo que pareça delírio. Para isso, é claro, não podemos continuar procurando-o onde só há morte.

Pe. Francisco Cornélio Freire Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

quinta-feira, abril 17, 2025

REFLEXÃO PARA A QUINTA-FEIRA SANTA – LAVA-PÉS (JOÃO 13,1-15)

Todos os anos, para a missa vespertina da Quinta-feira Santa, a liturgia propõe a leitura de Jo 13,1-15. Esse texto corresponde ao relato do lava-pés, um episódio exclusivo do Evangelho segundo João, que é, certamente, uma das passagens mais conhecidas de todo o Novo Testamento. De fato, desde os primeiros séculos, esse texto tem marcado o cristianismo, recebendo diversas possibilidades de interpretação. Antes de tudo, podemos dizer que é um texto comprometedor, pois mostra que, no momento mais decisivo da sua existência terrena, Jesus propôs o serviço, motivado pelo amor, como o principal sinal distintivo de pertença a si; o cristianismo, portanto, não pode ignorar esse fato. E tanto a localização quanto o contexto da cena reforçam ainda mais a sua importância: conforme a divisão clássica do Quarto Evangelho em duas grandes partes – “Livro dos Sinais” (Jo 1 – 12) e “Livro da Glória” (Jo 13 – 21) –, o relato do lava-pés inaugura o “Livro da Glória”, introduzindo a narrativa da paixão de Jesus.

Apresentamos uma pequena contextualização para, em seguida, nos voltarmos diretamente para o texto. A princípio, podemos dizer que chega a causar espanto a diferença entre João e os demais evangelhos quando se trata da última ceia de Jesus com seus discípulos. Ora, ao contrário dos sinóticos (Mt, Mc e Lc), que dedicam poucos versículos à ceia, João dedica cinco capítulos: de 13 a 17. Ao longo destes capítulos, ele apresenta uma longa e profunda catequese de Jesus, ministrada com gestos e palavras, em forma de testamento, cujo tema central é o amor e o serviço, apresentados como únicos sinais distintivos da comunidade cristã. No Evangelho de João, não há nenhum aceno à “consagração” do pão e do cálice, como nos demais evangelhos; por sinal, durante a ceia, o pão só é mencionado na descrição da traição de Judas (13,18.17.26.27.30). Essa ausência de referências ao pão e sua “consagração” pode ser explicada pelo fato de que João já havia feito em outra ocasião: após o sinal da “multiplicação dos pães” (6,1-15), o evangelista apresentou um longo discurso de Jesus se auto apresentando como o “pão da vida” (6,26-66). Por isso, já não havia mais necessidade de fazer uma nova catequese sobre o pão e sobre a entrega de Jesus como alimento, uma vez que essa já tinha sido feita.

O texto começa com um indicativo teológico-temporal importante: «Antes da festa da Páscoa» (v. 1a). O evangelista não nega o contexto pascal no qual Jesus fez a ceia com seus discípulos pela última vez, mas pretende diferenciar, ou seja, quer dizer que a Páscoa celebrada por Jesus já não é mais a mesma do templo. Inclusive, o evangelista costumava referir-se à festa da Páscoa com a qualificação “páscoa dos judeus” (2,13; 11,55), distanciando Jesus das instituições de Israel que tinham desfigurado o rosto de Deus. Agora, ele apresenta Jesus próximo da Páscoa, mas da sua própria Páscoa, tornando-a uma festa da vida, como sempre deveria ter sido. Por isso, Jesus celebra a Páscoa doando a sua própria vida. A Páscoa de Jesus, portanto, não exige ofertas nem sacrifícios, não é instrumento de exploração como se praticava no templo. Celebrando antes, Jesus substitui: aquela que será celebrada um ou dois dias depois da sua pelos praticantes da religião oficial perdeu a sua validade, já não tem mais sentido. Na Páscoa do templo, o centro das atenções é a morte, o sangue derramado com a imolação dos cordeiros, enquanto na Páscoa de Jesus com sua comunidade se celebra o triunfo da vida em forma de serviço, a mais eficaz manifestação visível do amor. Nessa, não há morte, há vida, e vida doada por amor. Morte é coisa da antiga aliança; na nova aliança, há doação de vida. Com essa introdução, o evangelista alerta para uma novidade: Jesus inaugura uma nova Páscoa, subversiva, por sinal. E é essa Páscoa que a comunidade cristã deve viver e celebrar.

Ao longo de todo o seu Evangelho, João criou um clima de suspense em relação à «hora de Jesus», anunciando que tudo o que Jesus fazia era preparação para esse momento, e sempre advertia o leitor que ainda não tinha chegado (2,4; 7,30; 8,20; 12,23). Tanto o narrador quanto o próprio Jesus anunciaram a chegada dessa hora. Mais do que uma indicação cronológica, a hora de Jesus é um indicativo teológico, por sinal, um dos mais significativos da obra de João. Essa hora é o cumprimento de todo o projeto de salvação oferecido por Deus, por meio de seu Filho, consumado na cruz e ressurreição. Agora ele mostra que essa hora chegou: «sabendo Jesus que tinha chegado a sua hora de passar deste mundo para o Pai» (v. 1b). É a hora de Jesus retornar ao Pai, após cumprir plenamente sua missão de humanizar e salvar o mundo, por isso é também a consumação da constante glorificação do Pai que ele realizou, não com ritos, mas com a doação livre da sua própria vida. O Pai que não se sentia glorificado com o falso culto praticado no templo de Jerusalém, uma vez que esse fora transformado em casa de comércio (Jo 2,16ss), recebe de Jesus o verdadeiro culto: «tendo amado os seus que estavam no mundo, amou-os até o fim» (v. 1c). O amor de Jesus é ilimitado e, por isso, é “até o fim”.  “Amar até o fim” significa a intensidade do amor, e não o seu término. Quer dizer que Jesus amou de modo extremo, intenso, e continua amando, uma vez que, ressuscitado, vive entre os seus na comunidade. Das falsas aclamações e ritos vazios celebrados no templo, o Pai estava cansado. Jesus recupera a essência do culto e a transmite à comunidade: o amor-serviço.

Continuando, diz o evangelista que «Estavam tomando a ceia» (v. 2a). A ceia para a mentalidade bíblica não representa apenas o consumo de alimentos e bebidas para matar a fome e a sede, mas significa comunhão e intimidade, sobretudo no contexto pascal; é o momento primordial da vivência do amor-comunhão. Porém, Jesus realiza uma ceia alternativa ao ritual judaico. Nessa ceia de Jesus e da comunidade não há encenação, tudo é feito na maior sinceridade e transparência; o rito é a própria vida, são tratadas as questões existenciais mais profundas da comunidade, por isso, o evangelista menciona o episódio lamentável da traição de Judas (v. 2b): nada é imposto. A comunidade é livre para acolher ou não o amor incondicional e extremo de Jesus e, portanto, no seio dessa comunidade é possível que alguns o rejeitem, como Judas outrora, e tantos nas gerações sucessivas. No entanto, a oferta de amor não diminui diante do risco de rejeição. Mesmo traindo, Judas continuou entre aqueles «amados até o fim»; ele perdeu a comunhão com Jesus quando abandonou o seu projeto e se aliou ao sistema dominante. O evangelista é enfático nesse sentido: «o diabo já tinha posto no coração de Judas, filho de Simão Iscariotes, o propósito de entregar Jesus» (v. 2bc). Ora, Jesus seria capturado, independentemente da traição de Judas, pois há muito tempo as autoridades religiosas e políticas o almejavam; daquela Páscoa ele não passaria. O mal de Judas foi ter sido aliado, se tornado cúmplice do poder que gera morte e, ainda mais, movido por dinheiro. Sempre que o cristianismo permite alianças com grupos e sistemas de poder, sempre que silencia diante das injustiças, está permitindo que o «diabo seja posto em seu coração». O conluio com o poder é sempre um pacto diabólico.

A oferta do amor gratuito e intenso de Jesus pelos seus é concretamente demonstrada quando ele «levantou-se da mesa, tirou o manto, pegou uma toalha e amarrou-a na cintura» (v. 4). Certamente, foram grandes o espanto e a curiosidade gerada nos discípulos com essa iniciativa de Jesus. Tirar o próprio manto em público significava renunciar ao prestígio e à dignidade pessoal, conforme a mentalidade da época; amarrar uma toalha na cintura significava improvisar um avental e colocar-se em atitude de serviço, assumindo a condição de servo. O que se fazia somente por imposição, Jesus o faz voluntariamente. Com essa descrição, o evangelista deixa cada vez mais clara a oposição de Jesus à liturgia oficial do templo: a indumentária dos sacerdotes do templo eram um impedimento ao serviço, com tantos adornos; ao invés disso, Jesus usa um avental improvisado e uma toalha, mostrando que não pode haver impedimento para o serviço. Esse gesto ensina que na comunidade cristã o serviço deve sempre prevalecer sobre o rito. Em toda a sua vida Jesus demonstrou que veio ao mundo para servir e, ao servir, ele glorificava o Pai, pois a motivação do seu serviço foi sempre o amor, e o Pai o enviou para espalhar amor sobre o mundo. Mas é nessa cena que o serviço amoroso se torna mais forte e até escandaloso, como será demonstrado pela reação de Pedro, mais adiante.

Tendo já deposto o manto e improvisado um avental, na sequência, o texto diz o que Jesus fez: «Derramou água numa bacia e começou a lavar os pés dos discípulos, enxugando-os com a toalha com que estava cingido» (v. 5). Assim como os leitores de hoje ainda ficam perplexos com a descrição dessa cena, muito mais devem ter ficado os discípulos que estavam com Jesus à mesa. Aqui devemos considerar o ambiente e a situação histórica da época. Ora, lavar os pés antes das refeições – embora o evangelista descreva o gesto acontecendo já durante a refeição – era uma regra básica de higiene no antigo Oriente, sobretudo porque as estradas eram bastante precárias, as sandálias muito simples, o que deixava os pés sempre sujos, empoeirados. Além do estado permanente de sujeira dos pés, devido à simplicidade das sandálias e condições das estradas, as refeições não eram feitas em mesas altas como as de hoje, nem os comensais se sentavam em cadeiras, principalmente nos ambientes mais simples. A mesa, geralmente, era apenas um tapete ou uma esteira estendida ao chão e, ao seu redor, as pessoas se sentavam em almofadas ou diretamente no chão, o que deixava os pés muito próximos da comida. Por isso, lavar os pés antes das refeições era, acima de tudo, uma exigência básica de higiene.

Sendo uma necessidade básica, o lava-pés tornou-se um sinal de hospitalidade e acolhida, no antigo oriente. Ao receber uma visita, o dono da casa oferecia, imediatamente, a água para lavar os pés, junto ao copo d’água para beber. A grande novidade do gesto de Jesus está na sua autoria: é o sujeito da ação o que causa perplexidade. No cotidiano, eram os escravos quem lavavam os pés dos membros da família e dos possíveis hóspedes. Em certas ocasiões, a mulher lavava os pés do marido, e o dono da casa chegava a lavar os pés de convidados ilustres, em sinal de respeito e reverência, mas isso era raro. Às vezes, também alguns mestres (rabis) exigiam que seus discípulos lhe lavassem os pés. Mas, no dia a dia, eram os escravos quem cumpriam esse serviço considerado humilhante. Ao fazer voluntariamente, Jesus inverte completamente os valores e as relações: sendo ele Mestre e Senhor (vv. 13-14), fez o que era típico do escravo (ou do discípulo). Com esse gesto, Jesus diz que fica abolida a hierarquia na comunidade cristã, e a liturgia, enquanto rito, é substituída pelo serviço. Assim, ele ensinou aos seus discípulos, de outrora e de todos os tempos, que eles devem estar sempre dispostos a servir ao próximo em suas necessidades mais simples e básicas do dia a dia, inclusive nas consideradas mais humilhantes, como lavar os pés uns dos outros.

É claro que houve reação dos discípulos à atitude revolucionária de Jesus. E o primeiro a protestar, como de costume, foi Simão Pedro: «Tu nunca me lavarás os pés» (v. 8). Ora, para quem tinha deixado tudo, imaginando seguir um futuro “Rei de Israel” e um Messias glorioso, deve mesmo ser chocante deparar-se com um “servo”. Por isso, o espanto e a negação; o que Jesus estava fazendo era inaceitável para quem tinha ambiciosas pretensões de poder. A reação de Pedro revela também as possibilidades de resistência dos oprimidos nos processos de libertação: as relações de igualdade parecem algo impossível para quem conheceu apenas um mundo dividido entre grandes e pequenos, súditos e chefes; essa mentalidade acaba naturalizando um mundo desigual, contrário aos desígnios de Deus. Jesus com suas palavras e gestos quis exatamente mudar essa realidade e visão de mundo. O mundo desigual, imposto pelo sistema e respaldado pela religião, estava naturalizado na visão de Pedro; a isso, Jesus combate, pois essa mentalidade não cabe na sua comunidade, enquanto embrião de um mundo novo, justo, fraterno, igualitário e solidário.

O outro motivo para a resistência de Pedro foi o medo das consequências do gesto de Jesus: se o mestre lavar os pés dos outros, os seus discípulos deverão fazer o mesmo. Por isso, Pedro só aceitou a atitude de Jesus em última instância: se não aceitasse não poderia mais fazer parte da comunidade: «Jesus respondeu: Se eu não te lavar não terás parte comigo» (v. 8b). Aceitar um mestre servo e se tornar servo com ele e como ele é condição para fazer parte da comunidade cristã. Após a insistência de Jesus, Pedro aceitou, mas não compreendeu: «Senhor, então lava não somente os meus pés, mas também as mãos e a cabeça» (v. 9). O exagero da resposta de Pedro revela a sua total incompreensão. Na verdade, com essa resposta, Pedro quis desviar o foco da proposta revolucionária de Jesus: quis transformar a atitude serviçal de Jesus em um novo rito de purificação, um a mais entre os muitos que os judeus já praticavam e que Jesus tanto combatia. Pedro não aceita a igualdade e não admite ter de servir ao próximo com a mesma intensidade com que Jesus servia. Ora, transformando a atitude do lava-pés em um novo rito de purificação, Pedro estaria se isentando do compromisso com o próximo e ganhando mais um mecanismo de dominação ideológica, contrariando o ensinamento de Jesus. Para fazer parte da comunidade de Jesus, ou seja, para ter parte com ele, é necessário aceitar a sua proposta de vida com a revolução de valores e as consequências que essa implica.

Mesmo com resistência nos discípulos, Jesus concluiu o seu gesto: «Depois de ter lavado os pés dos discípulos, Jesus sentou-se de novo» (v. 12). Sentar-se à mesa era um direito exclusivo das pessoas livres. Logo, para a mentalidade da época, sentar-se à mesa e, ao mesmo tempo, servir eram papéis incompatíveis: quem servia não tinha direito de sentar-se, e quem sentava não se humilhava servindo. Jesus aboliu essas diferenças. Sentar-se de novo após o serviço é a consolidação de uma verdadeira revolução de valores, uma inversão de ordem: no banquete da vida, vivido e celebrado pela comunidade cristã, há espaço para todos, principalmente para os que servem. Não pode haver divisão de classes na comunidade, porque todos são iguais: o que se senta à mesa serve, e o que serve senta-se à mesa. O que era papel do escravo, lavar os pés, é agora papel também da pessoa livre que pode levantar-se e sentar-se conforme a necessidade. As divisões hierárquicas não têm espaço na comunidade cristã, porque nessa prevalece o movimento de sentar-levantar-sentar para que as necessidades do ser humano sejam atendidas, desde as mais simples, como tirar a poeira dos pés, até as mais complexas, como dar a própria vida por amor. E Jesus realizou as duas coisas como prova que ele não media esforços para cumprir a sua missão e atender às necessidades das pessoas. Com o lava-pés, portanto, Jesus fez uma recapitulação de toda a sua existência neste mundo. Ele veio para servir e, por isso, viveu intensamente servindo.

Para os discípulos, não era fácil abraçar uma nova mentalidade, ainda mais tão revolucionária quanto a de Jesus. Com essa inversão de papéis, Jesus fazia desmoronar nos discípulos os planos de grandeza e projetos de poder que eles tinham cultivado até então. Ora, eles não sonhavam com uma mudança de sistema, um novo modo de organização para a sociedade e a religião. Queriam que as estruturas de poder continuassem as mesmas, mudando apenas as lideranças: ao invés dos romanos e dos sacerdotes do templo, que fossem eles, os discípulos do Messias, a controlar a vida do povo, mas com os mesmos mecanismos de dominação: exército, cobrança de impostos, divisões de classe e uso da violência quando a “ordem” estivesse ameaçada. Até os últimos momentos de convivência essa mentalidade prevaleceu entre os discípulos. Por isso, Jesus dedicou tanto tempo na última ceia para catequizá-los e promover neles a consciência de uma nova ordem, partindo do seu exemplo: «portanto, se eu, o Senhor e Mestre, vos lavei os pés, também vós deveis lavar os pés uns dos outros. Dei-vos o exemplo, para que façais a mesma coisa que eu fiz» (vv. 14-15). Temos aqui a instituição do serviço como mandamento para a comunidade de Jesus.

A ordem para que os discípulos «façam a mesma coisa» em relação ao serviço, aqui no Quarto Evangelho, equivale ao «fazei isto em memória de mim» da tradição paulina/sinótica sobre a Eucaristia (Lc 22,19; 1Cor 11,24-25). «Fazer a mesma coisa» que fez Jesus, obviamente, não significa repetir o gesto de lavar os pés uns dos outros, o que já não é uma exigência sanitária dos dias atuais; significa a disponibilidade total para o serviço incondicional, motivado pelo amor, na comunidade cristã. A simples repetição do gesto seria transformá-lo em rito. O lava-pés que a comunidade deve fazer permanentemente é a vivência do amor fraterno que traz, como consequência, a disponibilidade para o serviço gratuito e sem distinção. Para isso, é necessário assimilar o estilo de vida de Jesus, com disposição para «amar até o fim», como ele fez. Sem isso, qualquer coisa que se faça em sua memória não passa de encenação.

Jesus em sua liberdade fez o papel do escravo para mostrar que na sua comunidade não pode haver distinção de classe: não há mais espaço para a escravidão, pois todos e todas são livres. O medo de Pedro consistia em não aceitar essa mudança de paradigma, como hoje muitos ainda resistem, preferindo fechar-se a uma mentalidade mais alinhada à religião do templo, duramente combatido por Jesus, e distante dos valores do Evangelho. Jesus celebrou, assim, a Páscoa da subversão: substituiu o rito pelo serviço, criou uma comunidade alternativa igualitária, na qual tudo deve ser orientado a partir do amor-serviço. Dessa comunidade não pode fazer parte quem prefere alinhar-se aos poderes que impedem um mundo e uma sociedade compatíveis ao modelo igualitário e fraterno proposto por Jesus.

Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

sábado, abril 12, 2025

REFLEXÃO PARA O DOMINGO DE RAMOS DA PAIXÃO DO SENHOR – LUCAS 22,14 – 23,56 (ANO C)



Na liturgia do Domingo de Ramos, todos os anos, faz-se a leitura de uma das narrativas da paixão de Jesus. Neste ano, por ocasião do ciclo litúrgico C, o texto lido é o relato de Lucas. Dada a sua extensão, a liturgia salta alguns versículos, propondo a leitura a partir do relato da última ceia, e terminando com o sepultamento: Lc 22,14–23,56. Mesmo assim, a leitura proposta continua longa, totalizando cento e treze versículos. Essa longa extensão, obviamente, nos impede de fazer um comentário pormenorizado de cada versículo. Por isso, procuraremos colher a mensagem global do texto e, na medida do possível, enfatizar alguns aspectos específicos de Lucas, a partir de versículos específicos, já que é o evangelista que mais apresenta particularidades, em relação aos demais sinóticos (Marcos Mateus).

Os relatos da paixão e morte de Jesus constituem o núcleo de base da redação dos evangelhos. Embora o nosso foco nesse ano seja especificamente o relato de Lucas, os aspectos introdutórios que abordaremos valem também para os demais evangelhos. Ora, as primeiras páginas escritas dos livros que hoje conhecemos como evangelhos foram exatamente as narrativas da paixão e morte de Jesus. Como a catequese e a vida litúrgica das primeiras comunidades giravam em torno do anúncio do Cristo Ressuscitado, aos poucos, surgiram muitas dúvidas a seu respeito. Essas dúvidas se traduziam em perguntas deste tipo: «Como Jesus viveu e morreu? Como foi a morte daquele que ressuscitou?». Diante de tais questionamentos, a primeira necessidade foi contar como se deu a morte de Jesus, pois só ressuscita quem passa pela morte. Logo, era necessário contar como Jesus morreu. Por isso, os relatos da paixão ganharam tanta importância nos primórdios do cristianismo.

Com as primeiras perseguições, tanto das autoridades romanas quanto dos líderes religiosos judeus, a morte se tornava cada vez mais presente nas comunidades, e o anúncio e a adesão ao nome de Jesus passava a ser sinal de perigo. Para quem não tinha convivido com Jesus, tornava-se cada vez mais difícil perseverar na fé, acreditar no seu nome e na sua ressurreição. Para animar e fortalecer uma comunidade ameaçada pela perseguição, nada mais adequado do que reconstruir a história da perseguição e morte de Jesus, enaltecendo sua fidelidade aos propósitos do Pai e sua resistência. E os evangelhos, enquanto livros, surgiram como resposta às dúvidas e crises vividas pelas primeiras comunidades. É claro que toda a vida de Jesus, desde o início, com a pregação do Batista, é edificante para as comunidades cristãs. Mas, a memória da sua paixão foi a primeira necessidade para dar credibilidade ao anúncio da ressurreição. Ao ler o relato da paixão, portanto, estamos lendo o ponto de partida do evangelho escrito.

Tendo acesso hoje aos textos inteiros dos evangelhos, no caso de Lucas desde o anúncio do nascimento de Jesus, percebemos que o relato da paixão que estamos lendo mostra a conclusão de uma vida que não poderia ter um fim diferente. Ora, desde o início, a mensagem de Jesus foi uma alternativa aos sistemas vigentes, político e religioso. Logo, o seu desfecho final foi o rechaço da parte desses sistemas. Durante toda a sua trajetória terrena, Jesus praticou e pregou o que a religião e o sistema político da época não aceitavam: o amor ao próximo, a justiça, o cuidado com os mais necessitados, a solidariedade, a acolhida às mulheres e excluídos em geral, e o bem acima de tudo. Uma vida marcada por estas características não poderia ter outro fim, senão a condenação e morte precoces pelos sistemas que não toleravam essa mensagem. É importante recordar que a cruz, a pior das penas aplicadas na época, não foi predestinação, nem acidente, mas consequência de uma trajetória marcada pelo inconformismo diante das atrocidades do sistema. Jesus não se adequou aos padrões de comportamento da época: não foi um cidadão exemplar, como exigia o poder romano, nem um devoto fiel, como exigia a religião judaica, pois sua obediência e fidelidade estava toda voltada para o Pai do céu, tendo em vista a construção do seu Reino na terra.

O texto que estamos lendo situa Jesus com seus discípulos em Jerusalém, para onde tinham ido celebrar a Páscoa, a festa dos judeus por excelência. Jesus é condenado à morte nessa cidade; ao dirigir-se para lá, ele já tinha consciência do que iria acontecer, pois ele mesmo tinha advertido durante a viagem que, historicamente, «Jerusalém mata os profetas e apedreja os que foram enviados» (Lc 13,34); como ele pertencia a essas duas categorias, sua condenação e morte era inevitável. Na verdade, podemos dizer que, em Jerusalém, Jesus recebe a sentença, mas a sua condenação começou ainda em Nazaré, na sinagoga, quando se apresentou como «ungido, portador do Espírito do Senhor para anunciar a Boa-Nova aos pobres» (Lc 4,18-30). Sua morte trágica, portanto, foi consequência de uma inteira existência marcada por uma opção radical pelas causas do seu Pai, a quem foi fiel e obediente até às últimas consequências.

A Páscoa, festa em que os judeus faziam memória da libertação da escravidão do Egito, tinha como ponto alto a ceia pascal, na qual comia-se o cordeiro imolado, símbolo da festa. Ciente de que era a sua última, estando à mesa com os discípulos (Lc 22,14-20), Jesus mesmo se apresenta como cordeiro, doando a sua existência. Ele diz que «desejou ardentemente comer aquela ceia» (Lc 22,15); essa expressão significa a sua paixão e o zelo para consumar a obra do Pai; é claro que nem ele e nem o Pai desejaram a sua morte, mas essa era uma realidade inevitável, àquela altura, pois em seu ministério tinha colocado em confronto dois projetos: o projeto de vida, idealizado pelo Pai, marcado pela prática constante do amor, e o projeto de morte, sustentado pelas instituições religiosa e política, marcado pelas disputas de poder, pela corrupção, opressão e violência. Por isso, aquela ceia, sendo a última, fora desejada por ele com grande paixão.

Dois fatos marcantes e dramáticos, certamente até mais dolorosos do que a cruz, foram vividos por Jesus logo após a ceia: o anúncio da traição de Judas (22,21-23), e a disputa por poder pelos discípulos, o que revelava pouca compreensão do que ele tinha ensinado até então (22,24-30). Lucas é o único evangelista que mostra Jesus chamando a atenção dos discípulos sobre o perigo da ambição e da sede de poder no contexto da última ceia, propondo o serviço como resposta. Os outros evangelistas sinóticos fazem isso ainda durante o ministério, ainda na Galileia (Mc 9,33-34; 10,35-45; Mt 20,20-28). Este fato revela que o apego ao poder nas estruturas eclesiais é um problema que tem suas raízes ainda nas origens do cristianismo. Isso, obviamente, prejudica a credibilidade e a eficácia do anúncio. Por isso, a recomendação de Jesus para que os discípulos tenham somente ele como exemplo, e não imitem jamais as estruturas de poder e as formas como esse é exercido pelos «reis das nações, chamados de benfeitores» (22,25). Quando o serviço é substituído pelo poder em uma comunidade, é sinal de que essa se afastou do projeto de Jesus.

Outro acontecimento doloroso para Jesus foi, sem dúvidas, a negação de Pedro (22,31-34.54-60). Também esse fato mostra o quanto os discípulos tiveram dificuldade em assimilar a proposta de vida de Jesus. Mesmo após tantos ensinamentos, durante cerca de três anos, desde o início na Galileia, eles chegaram em Jerusalém ainda sem compreender nem aceitar o destino de Jesus. À debilidade de Pedro, bastou um olhar sincero de Jesus para a sua conversão: «então o Senhor se voltou e olhou para Pedro. (...). Então Pedro saiu para fora e chorou amargamente» (22,60a.62). Quando o olhar de Jesus é correspondido, a conversão acontece. Esse olhar não foi de condenação, mas de compreensão da fragilidade humana; o choro de Pedro, marcado pelo remorso, é a prova da necessidade constante de conversão no seio da comunidade. Às vezes, a conversão só é exigida de quem vem de fora, esquece-se que é nos membros da comunidade que mais há necessidade, pois são esses os que mais negam a Jesus, quando deixam de reproduzir o seu amor nas relações, na maneira de viver e na confiança ao Pai.

Um dos traços mais característicos de Jesus em seu “retrato” pintado por Lucas é a prática constante da oração. Para esse evangelista, a oração é essencial, por isso, ele diz que todos os momentos importantes da vida de Jesus foram marcados pela oração, começando pelo batismo (Lc 3,21) até a paixão, tanto no monte das Oliveiras (Lc 22,39-46), quanto no processo (23,34), e até na própria cruz (Lc 23,46). E a oração de Jesus durante a Paixão é um reforço e confirmação dos elementos essenciais do Pai Nosso, a sua oração por excelência: «Que seja feita a tua vontade” (22,42); “para não cair em tentação» (22,46); «perdoa-lhes» (23,34). Para ser autêntica e eficaz, a oração depende necessariamente de levar em conta a vontade do Pai. Nesse sentido, pode-se dizer que a vida de Jesus foi uma oração contínua, pois foi toda voltada para a vontade do Pai, Deus. E fazer a vontade de Deus consiste, sobretudo, em lutar pela construção do seu Reino aqui na terra.

O duplo julgamento de Jesus, um político e outro religioso, ou seja, diante do sinédrio ( 22,66) e de Pilatos-Herodes-Pilatos (23,1-25), mostra a covardia e a hipocrisia da união de forças hostis quando tem um inimigo em comum, pois os poderes romano e judaico não se suportavam. O sinédrio, órgão jurídico máximo do judaísmo, acusa Jesus de blasfêmia, e ao poder romano ele será denunciado como subversivo e agitador, alguém que pretende ser rei. Esses dois poderes estavam viciados na corrupção, no suborno e na mentira; mantinham um relacionamento de conveniência, tendo o povo pobre como alvo de suas cobiças. O movimento de Jesus surgiu como alternativa a tudo isso; logo, a repressão seria inevitável.

O outro traço marcante de Jesus que Lucas evidencia ao longo de toda a sua obra, a misericórdia, também é destacada no drama da paixão. Se ele veio ao mundo para trazer anunciar a Boa-Nova, veio para manifestar o amor do Pai, isso o fez até as últimas consequências, amando e perdoando. Pede perdão ao Pai pelos seus algozes (23,34), e faz da cruz um sinal de conversão e salvação. Foi crucificado entre dois malfeitores; não se sabe se eram ladrões como transmitiu a tradição, poderiam também ser assassinos ou praticantes de outros tipos de crime, uma vez que o termo empregado pelo evangelista designa o bandido em geral (em grego: κακούργος - kakúrgos). Para Lucas, da cruz Jesus continua salvando, principalmente aos marginalizados, como eram aqueles considerados bandidos. Aqui, merece destaque mais uma particularidade de Lucas: é típico dele apresentar dois personagens juntos com comportamentos opostos: Marta e Maria (10,38-42), o pobre Lázaro e o rico avarento (16,19-31), o fariseu e o publicano (18,9-14). Ele repete essa técnica literária também com os dois malfeitores crucificados ao lado de Jesus: um deles, repete o discurso das autoridades e da maioria, e escarnece de Jesus; o outro, percebe que Jesus está sendo injustiçado e vê n’Ele a possibilidade de salvação, por isso, suplica-lhe: «Jesus, lembra-te de mim quando entrares no teu Reino» (23,42). A esse, Jesus dá a mais preciosa das garantias: «Ainda hoje estarás comigo no paraíso» (23,43).

Para quem acredita em Jesus e aceita compartilhar com ele a sua vida, a salvação é sempre um acontecimento do presente, do “hoje”, uma palavra cara para a teologia de Lucas, desde o anúncio do nascimento de Jesus aos pastores (2,11); na sinagoga de Nazaré, a Escritura se cumpriu “hoje” (4,21), a salvação entrou “hoje” na casa de Zaqueu (19,9). Portanto, a salvação não é uma realidade futura, mas é sempre atual; se salva quem faz comunhão da situação existencial com Jesus hoje. Para o malfeitor crucificado, a salvação aconteceu em um momento até inesperado. O importante para o evangelista e para nós é que, da manjedoura até a cruz, a vida de Jesus foi salvar, libertar, fazer o bem, como dirá Pedro em Atos dos Apóstolos (At 10,38). Salvar, acolher e amar é fazer a vontade do Pai, resgatando o que estava perdido na sua obra; por isso, na cruz, sofrendo dores, o último grito de Jesus é de confiança no Pai, sabendo que lhe foi fiel até as últimas consequências: «Pai, em tuas mãos entrego o meu espírito» (23,46). Certamente, o diálogo salvífico com o malfeitor ajudou Jesus dar o seu último grito com mais convicção ainda, sabendo que até ali, a vontade do Pai estava sendo feita, não porque o seu Filho único estava morrendo, mas porque até morrendo, esse Filho liberta, salva.

Para o sepultamento, entra em cena um novo personagem, surpreendente até, José de Arimatéia, membro do sinédrio. É interessante esse detalhe, pois fora o sinédrio, o principal responsável pela condenação de Jesus; porém, mesmo ali, naquela instituição, tinha pessoas boas. Segundo Mateus, esse homem se tornou até discípulo de Jesus (Mt 27,57); isso mostra que as generalizações são sempre perigosas; ninguém pode ser julgado apenas pelo grupo ou movimento ao qual pertence. José de Arimatéia alivia o drama, dando sepultura digna para Jesus (23,50-53), quando era costume deixar os condenados pregados na cruz, sofrendo até morrer e, depois de mortos, ainda continuavam crucificados até serem devorados pelas aves de rapina. A cruz era uma pena tão cruel, que quem passava por ela não tinha direito sequer à sepultura; por isso, o local da crucifixão se chamava “lugar da caveira”, pois era um ossuário a céu aberto.

Por último, recordamos a presença das mulheres, também uma categoria por quem Jesus tinha grande simpatia no evangelho de Lucas. As mulheres são as pessoas mais perseverantes em todo o drama da paixão (23,55) e, por isso, serão as primeiras testemunhas da ressurreição. Enquanto os discípulos saem de cena com medo, muito cedo, o último a aparecer foi Pedro, e mesmo assim chorando, as mulheres perseveram até o fim, são as mais solidárias. Na verdade, elas reconheciam o que Jesus tinha feito por elas; até então, nenhum líder popular religioso tinha acolhido tanto às mulheres, promovido a emancipação e as aceitado como discípulas. Jesus deu vez e voz às mulheres, por isso elas não desistiram dele em nenhum momento: resistiram ao drama da paixão, participaram do sepultamento e testemunharão a ressurreição em primeira mão.

Compreendendo a fidelidade com que Jesus abraçou o projeto de tornar o Reino de Deus acessível a todos, é possível perceber que a morte não é capaz de destruir a vida de quem se dedica dessa maneira ao bem de todos. Em meio ao suplício e ao abandono dos seus, Jesus faz prevalecer as convicções de seguir até o fim. Aquele projeto de vida nova, com justiça, igualdade e amor sem distinção não poderia ser jogado fora de repente. O rosto amoroso do Pai que ele veio revelar não poderia ser escondido. A cruz veio, portanto, como consequência de uma vida toda marcada pelo amor. E, nele, ao invés de ser simplesmente sinal de condenação, a cruz se tornou sinal de salvação e de reconhecimento do seu amor e de sua pertença a Deus.

Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

REFLEXÃO PARA A SOLENIDADE DE PENTECOSTES (I) – JOÃO 20,19-23

  O evangelho da Solenidade de Pentecostes é sempre o mesmo, independentemente do ciclo litúrgico vigente:  Jo 20,19-23. Na verdade, a lit...