quarta-feira, março 07, 2012

50 ANOS DO CONCÍLIO VATICANO II

As datas aniversárias acordam-nos a memória para fatos passados, cujo significado merece ser conservado e transmitido. Assim estamos a meio século do início do Concílio Vaticano II. No idos de 60, ele explodiu em novidades dentro da Igreja católica, que se cristalizara para defender-se contra a modernidade avassaladora. Os gritos de liberdade ameaçavam-lhe a ordem e disciplina interna. Os desejos de igualdade questionavam-lhe a hierarquia, entendida como graus e desigualdade. A fraternidade soava próxima das pretensões socialistas. Então, que fazer? Ela se protege, cerceando o livre pensar, submetendo-o a instâncias disciplinares de censura e punições. Fortalece ainda mais a força da autoridade para impedir surtos democráticos no seu interior. E elabora doutrina social bem disciplinada para diminuir os ímpetos revolucionários.
Além da trilogia da Revolução Francesa, a modernidade trouxe o impacto das descobertas científicas que ameaçavam as verdades da Escritura e do dogma. Como entender a criação, o pecado original e muitos outros ensinamentos doutrinais no horizonte do evolucionismo? A hermenêutica, com a valorização da subjetividade, quebrava a rigidez do ortodoxismo, fundamentalismo ou doutrinalismo, introduzindo o elemento da relativização das afirmações por força da pré-compreensão do sujeito. A história vasculhava o passado e mostrava mudanças tão importantes no correr do tempo que se duvidava da constância nos ensinamentos. A práxis irrompeu no campo social como exigência do ser humano livre e consciente em face dos jogos ideológicos das classes dominantes.
Nesse contexto tenso e plural, a ousadia de João XXIII lançou a Igreja mum diálogo aberto com a modernidade. Sentiu-se, como confidenciou a seu secretário particular, incapaz de, sozinho, fazê-lo, mesmo confiando na assistência do Espírito Santo. Pensou e efetivou o desejo de pôr a Igreja a discutir essa problemática em tribuna livre. Convocou o Concílio. Este nasceu, portanto, para dialogar com os desafios da modernidade, principalmente centro-europeia e não para condenar adversários e heresias.
Parto longo e doloroso.  Viveram-se mais de três anos de estudos, debates, textos, emendas, votações em busca da redação final dos documentos. Houve momentos de extrema tensão. Os documentos preparatórios, redigidos ainda na mentalidade antiga e tradicional, receberam rotunda rejeição até mesmo para ser discutidos. Com o correr do tempo, a presença significativa e ativa de teólogos avançados, imbuídos da Nouvelle Théologie, iniciada na década de 40 na França, e ainda no ostracismo, juntamente com teólogos do mundo saxônico em plena ebulição, marcava o ritmo do Concílio. Bispos e bispos assimilavam-na e ousavam reformular doutrinas e pedir textos novos, diferentes.
Sem dúvida, o discurso inaugural de João XXIII permitiu tal revolução teológica. Pedia três coisas do Concílio: que fosse pastoral, ecumênico e não de condenações, evitando repetir verdades já declaradas em outros momentos. Logo, a sua teologia deveria orientar-se para o aggiornamento da Igreja. Palavra mágica que se repetiu às pampas para incentivar a coragem dos padres conciliares.
O pós-Concílio irrompeu tumultuoso para dentro dos variados setores da vida da Igreja. Para os fieis, a liturgia serviu de vitrine das novidades. O clero diocesano e religioso assumiu com denodo as transformações que iam desde as celebrações até o modo de vestir. A Igreja apresentava outra face. João XXIII quis que fosse rosto alegre e atrativo.
As transformações se fizeram rápidas, em todos os âmbitos. Para os tradicionais, exagerou-se e em nome do Vaticano II se introduziram reformas e mudanças que quebravam sagradas tradições. Entre euforia e medo, entusiasmo e reserva, caminhou-se nas primeiras décadas. Ainda no pontificado de Paulo VI, armaram-se as primeiras fortes reações contra o Concílio. Há frases pesadas do próprio Papa.  Pouco a pouco, com o correr dos anos, a força criativa cedia espaço aos temores e estes aos freios e às tentativas de retrocesso até agora em movimento.
Na América Latina, a recepção do Concílio se deu, sob um dos aspectos, na Conferência de Medellín. Lá  se optou pelos pobres, pelas comunidades eclesiais de base, pela vida consagrada inserida, por um exterior simples e pobre da Igreja, pela educação libertadora, pelo laicato engajado na vida eclesial interna e sociopolítica. Enfim, avançara-se ainda mais para dentro da modernidade, já não a centro-europeia, mas a da periferia, dilacerada pela tensão entre crescente dominação e movimentos de libertação em diástoles.
Não demorou muito também que na América Latina as reações se fizessem soar contra essa recepção libertadora. Já mesmo em Puebla, que se considerou uma continuidade de Medellín, ouviram-se vozes poderosas na linha de deter a caminhada renovadora do Concílio e sobretudo a da Igreja da libertação. E tal movimento conservador com toques reacionários vem crescendo sob várias formas, desde um espiritualismo carismático sem compromisso social até a uma volta a formas arcaicas do tradicionalismo e de juridicismo exterior  com discursos admoestadores. Então brota a pergunta: que sobrou das novidades do Concílio Vaticano II, como incrementá-las na atual conjuntura?
Brilhou no Concílio o primado da Palavra de Deus, desde a simbólica entrada da Bíblia  nas sessões conciliares, ocupando lugar visível de destaque, a presidir as discussões, até a presença abundante nos textos. Excele como um dos documentos mais belos do Concílio aquele dedicado à Revelação com o título não menos significativo: Dei Verbum. Cabe-nos caminhar nessa estrada. Hoje duas formas merecem destaque: os círculos bíblicos presentes nas CEBs e a leitura orante da Escritura a alimentar a espiritualidade bíblica. Assumindo a tradição cristológica da teologia latinoamericana, está diante de nós o desafio de mergulhar por essa dupla via no Jesus histórico. O Cristo da fé não é outro que o Jesus, filho de Maria, andarilho pobre da Palestina a viver entre os pobres. A sua pessoa, mensagem e práxis colada à terra traduzem para nós a revelação de Deus, como Pai e puro amor.
O Concílio Vaticano II afirmou corajosamente a base laical da Igreja. Momento alto do Concílio se deu quando os padres realizaram a virada copernicana de uma Igreja prioritariamente clerical e hierárquica para a da igualdade radical de todos pelo batismo na condição de Povo de Deus. E a viram também na perspectiva colegial, em vez do poder solitário monárquico, pontifício ou episcopal.
Perseguindo a intuição inicial de João XXII, os padres conciliares propugnaram nova relação da Igreja com o mundo na magistral Constituição Pastoral Gaudium et spes. Completando esse quadro de abertura,  a temática do ecumenismo, do diálogo com os judeus, com as outras religiões não cristãs e com os não crentes abriu a Igreja para horizontes amplíssimos.
Esse projeto permaneceu muito em desejos. Ainda falta bastante, nos dias de hoje, para implantar o Concílio. Não convém pensar em outro no momento de retrocesso, mas antes, pelo menos, firmar as principais conquistas do Vaticano II.
Cabe, porém, ir mais longe, deslocando o surto carismático, que atravessa o atual momento eclesial, do simples nível pessoal de consolo e emoção, para verdadeira “animação carismástica”. Assim esta adquire potencial transformador das instituições, realizando o princípio jesuano de que “o sábado é feito para o homem e não o homem para o sábado” (Mc 2,27). Toca-lhe maravilhosa tarefa de humanizar, de espiritualizar, no sentido pleno do termo, a rigidez de muitas formas institucionais e jurídicas da Igreja. Tal inclui revigorar a dimensão de diaconia, de pobreza, de simplicidade no ser, vestir, viver dos representantes da Instituição eclesiástica.
Do lado de fora da Igreja, surgem os maiores desafios para reafirmar e avançar além do Vaticano II. O tema do próximo sínodo propõe-nos “nova evangelização para a transmissão da fé cristã”. Independentemente de por onde ele caminhe, diante de nós estão a gestar-se a sociedade globalizada do conhecimento, a cultura pós-moderna em tensão com a moderna, uma ciência em simbiose com a tecnologia sem horizonte ético,  novo paradigma cultural ecológico, feminista e étnico, o fantástico fenômeno de efervescência religiosa, a aspiração do diálogo ecumênico, interreligioso e com os não crentes. Que palavra e prática o Cristianismo encontrará para evangelizar essa gigantesca realidade, se não hostil, ao menos bem alheia à tradição cristã, nascida do sangue judaico, do pensamento grego, do espírito jurídico romano com o toque original e decisivo da pessoa de Jesus Cristo?
Em face de tal gigantesca tarefa de futuro aparece claro o equívoco monumental de tendências conservadoras que se voltam saudosistamente para o passado, recuperam ritos e celebrações perdidas na noite do esquecimento cultural, aferram-se a legalismo e dogmatismo caducos em face à agilidade do pensamento moderno, bombardeado pela inundação do saber informatizado e midiaticamente difundido.
A 50 anos do Concílio, habitam-nos dois sonhos maiores. Ver as intuições conciliares animarem a vida da Igreja em vez do ranço do passado e aspirar a que avancemos ainda mais em direção a uma Igreja leve quanto às instituições, profética na palavra e na ação, acolhedora de coração e sobretudo anunciadora da maior novidade de todos os tempos: Deus é amor (1Jo 4,8).
J.B.Libânio, padre jesuíta, professor, escritor e teólogo.

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