sábado, julho 05, 2025

REFLEXÃO PARA O 14º DOMINGO DO TEMPO COMUM – LUCAS 10,1-12.17-20 (ANO C)



Neste décimo quarto domingo do tempo comum, a liturgia retoma a leitura semi-contínua do Evangelho de Lucas, interrompida domingo passado, por ocasião da solenidade dos apóstolos Pedro e Paulo, que substitui o décimo terceiro domingo. O texto proposto para hoje é Lc 10,1-12.17-20, tradicionalmente conhecido como a “missão dos setenta e dois discípulos”, um episódio exclusivo de Lucas, que funciona como uma síntese antecipada da missão universal, o que o autor irá desenvolver com mais precisão no segundo volume da sua obra, o livro dos Atos dos Apóstolos. O contexto dessa passagem já é o da grande viagem – o caminho –de Jesus para Jerusalém, em companhia dos seus discípulos, que constitui a seção narrativa mais extensa de todo o Evangelho de Lucas, totalizando dez capítulos (9,51 – 19,28). Com esse caminho, o evangelista não trata apenas de um percurso físico, mas de um itinerário teológico e catequético, ressaltando a itinerância do movimento de Jesus e preparando a missionariedade futura da Igreja. Para Lucas, o caminho é metáfora da missão da Igreja, do discipulado de Jesus e da própria vida.

Como se sabe, literalmente, ser discípulo é ser seguidor de alguém – um mestre. Logo, é na dinâmica do caminho que o discipulado se constrói. Por isso, essa etapa corresponde ao ponto alto da formação dos discípulos de Jesus, na perspectiva do evangelista Lucas. Inclusive, é durante essa seção narrativa que ele mais apresenta mais elementos exclusivos seus, ou seja, acontecimentos e palavras de Jesus que não se encontram nos outros evangelhos. Com exceção do chamado “Evangelho da Infância” (Lc 1 – 2), podemos dizer que a etapa do caminho para Jerusalém corresponde ao que Lucas apresenta de mais original em seu Evangelho. E a passagem lido na liturgia de hoje ilustra essa originalidade, o que serve como indicativo de importância. Diante disso, é importante recordar que os três evangelhos sinóticos mostram o envio missionário dos Doze discípulos (Mt 10,1-11; Mc 6,7-13; Lc 9,1-6), cujas regras são praticamente as mesmas do episódio de hoje; mas a missão dos setenta e dois é exclusividade de Lucas. Ao longo da reflexão, ainda serão recordados outros elementos a nível de contexto, essenciais para a compreensão do texto.

Infelizmente, o primeiro elemento a ser destacado no evangelho de hoje foi omitido pela tradução do lecionário, sendo substituído pela genérica fórmula de introdução “naquele tempo”. Trata-se da expressão “depois disso” ou “depois dessas coisas” (em grego: Μετὰ δὲ ταῦτα – metá dé tauta). Ora, sempre que uma cena bíblica começa com uma expressão desse tipo, deve-se recordar os acontecimentos anteriores, pois é certo que há relação, seja como continuidade, ruptura ou consequência. No caso do evangelho de hoje, a relação parece ser de consequência. Os acontecimentos anteriores, ou seja, o “isso” ou “essas coisas” que precedem a missão dos setenta e dois discípulos são o conjunto dos fatos que se deram após o início do caminho: a passagem por um povoado da Samaria, onde houve rejeição dos samaritanos e intolerância dos filhos de Zebedeu (Lc 9,51-53); depois desse fato, enquanto caminhavam, Jesus foi interpelado por três pessoas que demonstraram interesse em segui-lo, mas impuseram certas condições prévias, e Jesus nãos as aceitou. O envio dos setenta e dois, portanto, é precedido por duas situações de aparente fracasso no caminho de Jesus, e deve ser visto como resposta a elas. Por isso, é também uma demonstração da sua perseverança e confiança na força da Palavra. Diante das adversidades, ele não desistia; pelo contrário, renovava as convicções e reforçava o empenho para que o anúncio acontecesse com mais eficácia.

Diante disso, «O Senhor escolheu outros setenta e dois discípulos e os enviou dois a dois, na sua frente, a toda cidade e lugar aonde ele próprio devia ir» (v. 1). O termo “outros” (em grego: ἕτερος – heteros) indica tratar-se de um grupo além dos Doze, enviados em missão antes do início do caminho (9,1-6). São outros, mas não inferiores, são outros porque o seguimento de Jesus é aberto a todos, aos outros, ao que é diferente. Todos têm espaço na comunidade cristã. De fato, o número dos “outros” – setenta e dois – evoca o universalismo, pois os judeus imaginavam que fosse esse o número das nações da terra (Gn 10) – setenta ou setenta e duas. Com isso, o evangelista recorda que o mundo todo será contemplado com o anúncio do Reino de Deus e, por consequência, humanizado por seu amor. É também uma recordação atualizada dos setenta e dois anciãos escolhidos como colaboradores de Moisés na condução do povo de Deus na travessia do deserto, no contexto do êxodo, a quem foi dado o espírito da profecia (Nm 11,24-30). O envio “dois a dois” recorda a importância da vida comunitária; o ser humano não foi criado para estar sozinho, mas acompanhado (Gn 1,18). O número dois é o princípio da pluralidade, o rompimento do fechamento e do egoísmo. Aqui há também uma maneira de chamar a atenção para o compromisso dos discípulos: a chegada de Jesus e sua mensagem a um lugar depende essencialmente da presença dos seus seguidores. Jesus vai aonde eles vão, pois são eles que levam Jesus, através da missão.

Com a imagem da messe, Jesus alerta para a urgência do anúncio, ao mesmo tempo em que ensina os discípulos a cultivarem intimidade com o Pai, o verdadeiro dono da messe: «E dizia-lhes: “A messe é grande, mas os trabalhadores são poucos. Por isso, pedi ao dono da messe que mande trabalhadores para a colheita”» (v. 2). A messe é grande porque representa o mundo inteiro, o que torna os trabalhadores sempre poucos, insuficientes, para deixar o mundo como Deus quer: plenamente humanizado, cheio de amor, com todas as pessoas vivendo como irmãs umas das outras, cuidando também da criação. Por isso, devemos todos nos sentir enviados e destinatários, ao mesmo tempo, pedindo sempre ao dono da messe que mande operários para a colheita. O dono da messe é Deus – o Pai –, princípio e fonte da missão, sendo Jesus – o Filho – o primeiro enviado seu. Com efeito, Jesus é o enviado do Pai, e tem autoridade para ampliar sua missão, compartilhando as suas prerrogativas com seus discípulos de todos os tempos, tamanho o seu amor compassivo. A grandeza da messe corresponde também à imensidão dos braços de Deus, capazes de abraçar o mundo inteiro. Jesus veio ao mundo estender esses braços sobre toda a humanidade e, para isso, quis contar com a colaboração dos seus seguidores e seguidoras. A missão da Igreja, portanto, pode ser definida como extensão do abraço de Deus ao mundo. Por isso, deve ser marcada pelo amor, fonte de salvação e humanização. Pedir operários ao Pai indica a necessidade de intimidade com Deus, além de confiança na sua providência.

Ao mesmo tempo em que convoca e envia, Jesus prevê hostilidades aos discípulos durante a missão, por isso os adverte: «Eis que vos envio como cordeiros para o meio de lobos» (v. 3). Ora, os últimos acontecimentos já demonstravam que a mensagem de Jesus encontraria empecilhos. Aliás, desde o anúncio do seu ministério ele sofria rejeição, como aconteceu em Nazaré, sua terra natal (Lc 4,14-30). O anúncio do Reino vai de encontro a projetos de poder que incentivam a violência e fazem uso dessa. Os representantes desses projetos são verdadeiros lobos. E, para Jesus, é inadmissível o uso da força pelos seus discípulos, nem mesmo para autodefesa, por isso, emprega a imagem do cordeiro, como símbolo de quem não reage à violência com violência em hipótese alguma. Faz parte da missão confiar na bondade das pessoas, inclusive para a própria sobrevivência, por isso, ele recomenda a sobriedade na missão: «Não leveis bolsa, nem sacola, nem sandálias, e não cumprimenteis ninguém pelo caminho!» (v. 4). Bolsa e sacola significam desejo de acúmulo e apego ao supérfluo, e sandálias aqui, especificamente, significa comodidade; portanto, são coisas incompatíveis com o seguimento de Jesus. É claro que a sandália constitui um item indispensável para o caminho. Nesse versículo possui valor simbólico. Também a recomendação para não cumprimentar ninguém no caminho é simbólica, indica do urgência do anúncio, pois as saudações pessoais nas antigas culturas orientais compreendiam rituais bastante longos.

Na continuidade das recomendações, Jesus ensina o que é realmente essencial anunciar: «Em qualquer casa em que entrardes, dizei primeiro: “A paz esteja nesta casa!”. Se ali morar um amigo da paz, a vossa paz repousará sobre ele; se não, ela voltará para vós» (vv. 5-6). A paz era o bem mais almejado para o ser humano, de acordo com a mentalidade bíblica, pois compreendia a felicidade e o bem-estar integral do ser humano, contemplando todas as dimensões da vida, e isso coincide exatamente com a proposta do Reino de Deus: promover o bem do ser humano, acima de tudo. Além do desapego aos bens materiais, o discipulado exige também o abandono de mentalidades fechadas e de preceitos separatistas, como as leis de pureza alimentar: «Permanecei naquela mesma casa, comei e bebei do que tiverem, porque o trabalhador merece o seu salário. Não passeis de casa em casa. Quando entrardes numa cidade e fordes bem recebidos, comei do que vos servirem, curai os doentes que nela houver e dizei ao povo: “O Reino de Deus está próximo de vós”» (vv. 7-9). Um dos maiores entraves para a convivência dos judeus com não-judeus era a observância rígida das regras de pureza alimentar; eles não entravam de casa em casa com medo de se contaminarem; tinham uma lista de alimentos “puros” e só comiam daquilo, o que faz com que essa recomendação de Jesus se torne altamente revolucionária. A missão dos enviados de Jesus, independente da época histórica, consiste na promoção da vida e da dignidade das pessoas. Curar e expulsar demônios, na linguagem bíblica, é combater tudo o que impede o bem-estar do ser humano, incluindo a cura das doenças e a libertação das estruturas injustas e toda forma de escravidão; e esses são os sinais de que o Reino de Deus está se concretizando.

Jesus previne os discípulos também para a possibilidade de não aceitação da sua mensagem, não pregando vingança, mas alertando para que não insistam diante da recusa e partam logo para outros lugares: «Mas, quando entrardes numa cidade e não fordes bem recebidos, saindo pelas ruas, dizei: “Até a poeira de vossa cidade, que se apegou aos nossos pés, sacudimos contra vós. No entanto, sabei que o Reino de Deus está próximo!”. Eu vos digo que, naquele dia, Sodoma será tratada com menos rigor do que essa cidade» (vv. 10-12). O anúncio cristão é uma proposta de vida que não pode ser imposta, mas apenas oferecida. Aqui, Jesus não propõe a vingança para quem não aceita o anúncio do Reino, mas alerta os discípulos a não perderem tempo e deixa claro que há consequências para quem recusa o anúncio do Reino; essas consequências não são castigo, mas a privação da vida plena e abundante que somente com a vivência do Evangelho é possível experimentar.

A liturgia salta alguns versículos (vv. 13-16) e já passa para o retorno dos discípulos, bastante entusiasta, por sinal: «Os setenta e dois voltaram muito contentes, dizendo: “Senhor, até os demônios nos obedeceram por causa do teu nome”» (v. 17). A alegria dos discípulos pelo êxito da missão corresponde à força da Palavra por eles anunciada. A “obediência dos demônios” significa o mal combatido em todos os sentidos, incluindo a superação das doenças, da violência, das injustiças e preconceitos. Isso só é possível quando tudo é feito no nome de Jesus, o Reino de Deus em pessoa. Diante do entusiasmo dos discípulos, Jesus toma novamente a palavra: «Jesus respondeu: “Eu vi Satanás cair do céu, como um relâmpago. Eu vos dei o poder de pisar em cima de cobras e escorpiões e sobre toda a força do inimigo. E nada vos poderá fazer mal”» (vv. 18-19). Jesus interpreta o sucesso da missão dos setenta e dois como o fim do domínio das forças do mal sobre o mundo. A imagem de “satanás caindo do céu” não significa a queda de um monstro das alturas, mas a superação do mal pelo bem. Quer dizer que a missão transforma realidades, não obstante as hostilidades, representadas nas palavras de Jesus pelas imagens das “cobras e escorpiões”. O Evangelho liberta das mais perversas estruturas de poder que geram morte, dor, injustiça e preconceito. Onde o Reino se instaura, o mal desaparece.

Por último, Jesus recomenda aos discípulos que não se entusiasmem demais com os resultados, inclusive por precaução de um possível envaidecimento da parte deles: «Contudo, não vos alegreis porque os espíritos vos obedecem. Antes ficai alegres porque vossos nomes estão escritos no céu» (v. 20). O que importa para o discipulado é a certeza de estar em sintonia com os propósitos de Deus, ajudando a construir o seu Reino. Ter o nome inscrito no céu significa a certeza de ser amado por Deus, e é isso que conta na vida do ser humano, e não os méritos pessoais de cada um. É a certeza desse amor que deve motivar o ser humano a lutar para que esse mesmo amor chegue a todos os lugares e corações e, para isso, é necessária a missão.

A missão dos setenta e dois é um aceno do evangelista Lucas à inclusão e à superação de círculos fechados que muitas vezes aprisionam o Evangelho nas comunidades. Jesus não deixou a sua mensagem a encargo somente dos Doze, mas de qualquer pessoa que esteja disposta a colaborar com a missão de fazer o Reino de Deus acontecer. Para colaborar com o Reino é necessário colocar-se em caminho com Jesus, com disposição para amar indistintamente, conviver com as diferenças, criar laços e superar barreiras. A luta contra o mal exige essa disposição.

Pe. Francisco Cornelio Freire Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

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