A liturgia
do segundo domingo da páscoa oferece Jo 20,19-31 para o evangelho, texto que
narra a continuidade dos acontecimentos envolvendo a comunidade dos discípulos
no dia mesmo da ressurreição, e a quase repetição da mesma experiência uma
semana depois, ou seja, no domingo seguinte. Esse texto é também a conclusão do
Evangelho segundo João (v. 31). O capítulo seguinte (c. 21) é um acréscimo
posterior da comunidade para melhorar a imagem de Simão Pedro, tão desgastada
após sua oposição a Jesus no lava-pés e a negação durante o
processo.
No evangelho
do domingo passado, contemplamos as reações da comunidade de discípulos logo no
início daquele primeiro dia da semana, no qual fora constatado o sepulcro vazio
(cf. Jo 20,1-9), inicialmente por Maria Madalena, e logo em seguida por Pedro e
o Discípulo Amado. Dos três, somente o discípulo Amado acreditou na
ressurreição diante do primeiro sinal, o sepulcro vazio (cf. 20,8). Maria
Madalena foi a segunda a acreditar (cf. Jo,11-18), após confundir o
Ressuscitado com o jardineiro, mas esse episódio já não constou no texto da
liturgia do domingo passado.
Da madrugada
do primeiro dia, passamos para o anoitecer, como diz o texto: “Ao anoitecer
daquele dia, o primeiro da semana, estando fechadas, por medo dos judeus, as
portas do lugar onde os discípulos se encontravam, Jesus entrou e pondo-se no
meio deles, disse: A paz esteja convosco” (v. 19). Não obstante as
frustrações e decepções com o final trágico de seu líder, condenado e morto na
cruz, a reunião dos discípulos mostra que a comunidade está se recompondo, após
uma natural dispersão. Embora se recompondo, essa comunidade continua em crise,
o que se evidencia pela situação de medo informada pelo evangelista. Por “medo
dos judeus” entende-se o medo das autoridades religiosas que condenaram Jesus
em parceria com o império romano, e não todo o povo. É típico de João usar o
termo “judeus” em referência às autoridades.
O medo é
preocupante, é um impedimento à missão; é fruto da angústia, da desilusão e do
remorso de alguns; significa a ausência do Senhor. Sem a presença do
Ressuscitado toda a comunidade perece e sua mensagem é bloqueada; as portas
fechadas impedem a boa nova de ecoar.
Manifestando-se
no meio dos discípulos, o Ressuscitado inicia neles o processo de
transformação, oferecendo o primeiro antídoto ao medo: o dom da paz! É o
encontro com a paz de Jesus que levanta o ânimo da comunidade fracassada. Jesus
comunica a sua paz e, ao mesmo tempo, reforça o modelo de comunidade sonhado e
praticado durante toda a sua vida: uma comunidade igualitária e livre, tendo um
único centro: o Cristo Ressuscitado. É esse o significado do seu colocar-se no
meio deles. Para uma comunidade viver realmente os propósitos do Evangelho é
necessário, antes de tudo, que ao centro do seu existir esteja o
Ressuscitado.
Na continuidade
da experiência, Jesus “mostrou-lhes as mãos e o lado” (v. 20a), ou seja,
as marcas do sofrimento, do flagelo e da cruz, garantindo a continuidade entre
o Crucificado e o Ressuscitado. Com isso ele diz que a cruz não foi o fim e,
assim, leva os discípulos à restituição da fé, uma vez que o principal motivo
da desilusão e decepção deles foi o escândalo de um messias crucificado. É
importante recordar que é João o único evangelista que se preocupa com esse
detalhe: o Ressuscitado tem as marcas do Crucificado. Ora, a cruz não foi um
acidente na vida de Jesus, e não pode ser esquecida pela comunidade; pelo
contrário, foi consequência de suas opções e do seu jeito de viver, e as opções
da comunidade devem ser as mesmas. Portanto, é necessário que os discípulos estejam
sempre, em todos os momentos da história, familiarizados com a cruz, não como
símbolo ou adorno, mas como disposição de dar a vida por amor, como fez
Jesus.
A presença
do Ressuscitado transforma a comunidade: “Então os discípulos se alegraram
por verem o Senhor” (v. 20b). A alegria é o primeiro fruto da paz que faz
superar o medo, e uma das características fundamentais da comunidade que sabe
contemplar o Ressuscitado em seu meio.
Já
estabelecido como centro da comunidade, “novamente Jesus disse: A paz esteja
convosco” (v. 21a). A paz como bem-estar do ser humano em sua totalidade é
novamente oferecida. A passagem do medo à alegria poderia tornar-se uma simples
euforia, por isso a paz é doada novamente para equilibrar a comunidade. Só é possível
acolher os dons pascais estando realmente em paz. Aqui, a paz não significa
alívio ou tranquilidade, mas sinal de liberdade e vida plena; é a capacidade de
assumir livremente as consequências das opções feitas.
Tendo
plenamente comunicado a paz como seu primeiro dom, o Ressuscitado os envia,
como fora ele mesmo enviado pelo Pai: “Como o Pai me enviou, também eu vos
envio” (v. 21b). Ao contrário de Mateus e Lucas que determinam as nações e até
os confins da terra como destinos da missão (cf. Mt 28,19; Lc 24,47; At 1,8),
em João isso não é determinado: “Como o Pai me enviou, também eu vos envio”.
Jesus simplesmente envia. Sem diminuir a importância da missão em sua dimensão
universal, o mais importante para o Quarto Evangelho é a comunidade. É essa a
primeira instância da missão, porque é nessa onde estão as situações de medo,
de desconfiança, de falta de entusiasmo, por isso é a primeira a necessitar da
paz do Ressuscitado.
O texto
mostra, como sempre, a coerência entre a prática e as palavras de Jesus: “E
depois de ter dito isso, soprou sobre eles e disse: Recebei o Espírito Santo”
(v. 22). Jesus tinha prometido o Espírito Santo aos discípulos na última ceia
(cf. Jo 14,16.26; 15,26). Ao soprar sobre eles, a promessa é cumprida, o
Espírito é comunicado. O evangelista usa o mesmo verbo empregado no relato da
criação do ser humano: “O Senhor modelou o ser humano com a argila do solo,
soprou-lhe nas narinas um sopro de vida, e o ser humano tornou-se vivente” (Gn
2,7). O verbo soprar (em grego: evnmfusaw – emfsáo) significa doação de vida.
Assim, podemos dizer que Jesus recria a comunidade e, nessa, a humanidade
inteira.
Ao receber o
Espírito Santo (em grego: pneu/ma a[gioj – pneuma háguios), a comunidade se torna também comunicadora
dessa força de vida. É o Espírito quem mantém a comunidade alinhada ao projeto
de Jesus, porque é Ele quem faz a comunidade sentir, viver e prolongar a
presença do Ressuscitado como seu único centro.
O Espírito
Santo garante responsabilidade à comunidade, jamais poder. Por isso, devemos
prestar muita atenção à afirmação de Jesus: “A quem perdoardes os pecados
eles lhes serão perdoados; a quem não perdoardes, eles lhes serão retidos”
(v. 23). Por muito tempo, esse trecho foi usado simplesmente para fundamentar o
sacramento da penitência ou confissão. Jesus não está dando um poder aos
discípulos, mas uma responsabilidade: reconciliar o mundo, levar a paz e o amor
do Ressuscitado a todas as pessoas, de todos os lugares em todos os tempos. A
comunidade cristã tem essa grande missão: fazer-se presente em todas as
situações para, assim, tornar presente também o Ressuscitado com a sua paz. Não
se trata, portanto, de poder para determinar se um pecado pode ou não pode ser
perdoado. É a responsabilidade da obrigatoriedade da presença cristã para que,
de fato, o mundo seja reconciliado com Deus.
O Espírito
Santo, doado pelo Ressuscitado, recria e renova a humanidade. A comunidade tem
a responsabilidade de fazer esse Espírito soprar em todas as realidades, para
que toda a humanidade seja recriada e, assim, o pecado seja definitivamente
tirado do mundo (cf. Jo 1,29). João, o batista, apontou para Jesus como o
responsável por fazer o pecado desaparecer do mundo. Agora, é Jesus quem confia
à comunidade essa responsabilidade. Os pecados são perdoados à
medida em que o amor de Jesus vai se espalhando pelo mundo, quando seus
discípulos se deixam conduzir pelo Espírito Santo. O que perdoa mesmo é o amor
de Jesus; logo, ficam pecados sem perdão quando os discípulos e discípulas de
Jesus deixam de amar como Ele amou. Em outras palavras, os pecados ficarão
retidos quando houver omissão da comunidade.
É importante
considerar ainda, como diz o próprio texto, que comunidade não estava completa
naquele primeiro dia: assim como Judas não fazia mais parte do grupo, também
“Tomé, chamado Dídimo, que era um dos doze, não estava com eles quando Jesus
veio” (v. 24). É necessário destacar algumas características desse
discípulo, considerando que o mesmo foi, injustamente, rotulado negativamente
pela tradição. O motivo pelo qual os discípulos estavam reunidos à portas
fechadas foi o medo; ora, se Tomé não estava com eles é porque não tinha medo
e, portanto, circulava livremente e sem temor algum; era, portanto, um
discípulo corajoso, ao contrário dos demais. A evidência maior da coragem de
Tomé aparece no episódio da reanimação de Lázaro. Jesus já tinha sido alvo de
diversas ameaças e tentativas de assassinato pelas autoridades dos judeus;
quando decidiu ir à Judeia, onde ficava Betânia, Tomé foi o único a dispor-se
a ir para morrer com ele: “Tomé, chamado Dídimo, disse então aos
condiscípulos: Vamos também nós, para morrermos com ele!” (Jo 11,16). Por
isso, ele não tinha nenhum motivo para esconder-se dos judeus. Essa sua coragem
foi ofuscada pelo rótulo inadequado de incrédulo.
Quanto à fé
no Ressuscitado, a diferença de Tomé para os outros dez deve-se apenas ao
intervalo de uma semana. Não estava reunido no primeiro dia e não acreditou no
testemunho da comunidade. Não dar credibilidade à comunidade foi, sem dúvidas,
o seu grande erro, mas ao exigir evidências da ressurreição, ele agiu como os
demais. Ora, à exceção do Discípulo amado, o qual viu e acreditou logo ao
contemplar o sepulcro vazio (cf. Jo 20,8), os demais também só acreditaram após
a manifestação do Senhor em seu meio. Nenhum deles acreditou no testemunho de
Maria Madalena; esperaram o Senhor aparecer. Quando, assim como os demais, Tomé
teve certeza da ressurreição, superou a todos na intensidade e convicção da fé:
“Meu Senhor e meu Deus!” (v. 28); essa é a mais profunda profissão de fé de
todos os evangelhos. Jesus já tinha sido reconhecido como Mestre, como Senhor,
como Messias, Filho de Davi, Filho do Homem e Filho de Deus, mas como Deus
mesmo, essa foi a primeira vez. Com isso, o evangelista ensina que não importa
o tempo em que alguém adere à fé; o que importa é a intensidade e a convicção
dessa fé.
A propósito,
chamamos a atenção para mais um detalhe que não pode passar despercebido: diz o
evangelista que Tomé era chamado Dídimo (em grego: Di,dumoj – dídimos),
cujo significado é gêmeo. No entanto, o evangelista não apresenta o irmão gêmeo
de Tomé, mas deixa no anonimato, e os personagens anônimos do Quarto Evangelho
têm a função de paradigmas para a comunidade e os leitores. Isso significa um
convite aos leitores e discípulos de todos os tempos a tomarem Tomé como irmão
gêmeo: questionador, corajoso, atento, perspicaz e convicto.
É claro que
se Tomé estivesse com a comunidade logo no primeiro dia, ele teria antecipado a
sua profissão de fé. Mas é importante ser prudente e esperar, principalmente
nos tempos atuais, com tantas visões, aparições e falsas certezas imediatas. Se
muitos e muitas videntes dos tempos atuais, assumissem a sua consanguinidade
com Tomé, ou seja, se o reconhecessem como gêmeo, teríamos um cristianismo mais
evangélico e autêntico.
A
bem-aventurança proclamada por Jesus: “Bem-aventurados os que creram sem
terem visto” (v. 28), reflete a preocupação do evangelista com as novas
gerações de discípulos, após a morte da maioria dos apóstolos. Os novos
cristãos da comunidade joanina eram muito questionadores e chegavam a duvidar do
anúncio, exigindo provas concretas da ressurreição. Por isso, o evangelista
quis responder a essa realidade, mostrando que não há necessidade de visões e
aparições; basta integrar-se a uma comunidade de fé para experimentar a
presença do Ressuscitado. A comunidade reunida é o lugar por excelência de
manifestação do Ressuscitado. Não importa o tempo e o lugar da adesão à fé; o
que importa é acolher a paz que o Ressuscitado oferece e viver animado pelo
Espírito que ele transmite.
Como
afirmamos no início, esse texto marca a conclusão original do Evangelho segundo
João: “Jesus realizou muitos outros sinais diante dos discípulos, que não
estão escritos neste livro. Mas estes foram escritos para que acrediteis que
Jesus é o Cristo, o Filho de Deus, e para que, crendo, tenhais a vida em seu
nome” (vv. 30-31). O capítulo seguinte (c. 21) é um acréscimo
posterior da comunidade para responder a uma outra necessidade: o resgate da
imagem de Simão Pedro, questionada pela comunidade devido à negação e outras
incoerências; e também para mostrar que sempre há a possibilidade de
reabilitação e admissão à comunidade, não obstante os momentos de infidelidade
e incoerência. O Senhor Ressuscitado insiste incansavelmente para recuperar um
amor perdido.
Pe.
Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN
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