Neste vigésimo sétimo domingo
do tempo comum, a liturgia oferece Marcos 10,2-16 para o Evangelho. Como se
trata de um texto bastante longo, não comentaremos versículo por versículo, mas
procuraremos colher a sua mensagem central. O contexto continua sendo o caminho
de Jesus com seus discípulos para Jerusalém, onde acontecerão os eventos da sua
paixão e morte. É importante recordar que, durante esse caminho, Jesus sofre
uma contínua e sistemática oposição, o que serve de preparação para o confronto
final em Jerusalém com as autoridades religiosas e políticas que o levarão à
morte na cruz.
O texto de hoje marca uma nova
etapa no caminho: tendo atravessado o rio Jordão, Jesus já está no território
da Judéia (cf. Mc 10,1) e, portanto, cada vez mais perto de Jerusalém. Até
então, a oposição encontrada ao longo do caminho tinha sido somente dos
próprios discípulos: desde Pedro, que o repreendeu ao ouvi-lo da própria morte
(cf. Mc 8,27-35 – Evangelho do vigésimo quarto domingo), até João que proibiu
um homem de agir em nome de Jesus, simplesmente por não fazer parte do grupo
dos Doze (cf. Mc 9,38-48 – Evangelho do vigésimo sexto domingo). Essa
observação é importante para lembrar que a mensagem de Jesus nunca encontra
facilidade no seu anúncio; o Evangelho sempre encontra obstáculos, pois possui
uma proposta de transformação de vidas e de mudança nas estruturas da
sociedade. Propostas assim, tendem a incomodar, tanto as instituições, quando
as pessoas a elas conformadas.
Os opositores que confrontam Jesus
no Evangelho de hoje são os fariseus, por sinal, os mais tradicionais adversários,
desde o início do seu ministério (cf. Mc 2,16; 3,6; 7,1). Com esses
adversários, o confronto é sempre no campo doutrinal, sobretudo na maneira de
compreender e interpretar a lei. Dessa vez, o confronto diz respeito à
legitimidade do divórcio: “Alguns fariseus se aproximaram de Jesus. Para
pô-lo à prova, perguntaram se era permitido ao homem divorciar-se de sua mulher”
(v. 2). De início, o evangelista já denuncia a malícia dos fariseus: “pôr Jesus
à prova”, ou seja, tentá-lo, para posteriormente acusa-lo. Como fiéis observadores
da lei, os fariseus já tinham consciência formada e conhecimento a respeito
desse tema. Por isso, “Jesus perguntou: o que Moisés vos ordenou?” (v.
3), uma vez que os fariseus tinham Moisés como autoridade máxima, ou seja, a
lei.
Os fariseus respondem a Jesus,
de acordo com a lei: “Moisés permitiu escrever uma certidão de divórcio e
despedi-la” (v. 4). Está claro que a lei permitia o divórcio, mas Jesus
recorda o motivo pelo qual a lei foi dada: “Foi por causa da dureza do vosso
coração que Moisés vos escreveu este mandamento. No entanto, desde o começo da
criação, Deus os fez homem e mulher. Por isso, o homem deixará seu pai e sua
mãe e os dois serão uma só carne” (vv. 5-7). Ora, a lei não corresponde aos
propósitos originais da criação, mas foi dada como um paliativo, diante do mal
enraizado no mundo. Jesus não veio ao mundo para conformá-lo nem conformar-se à
lei, mas para recuperar o ideal da criação, instaurando definitivamente o Reino
de Deus sobre o mundo.
Como a lei permitia o divórcio,
na época de Jesus o debate girava em torno dos motivos para o mesmo. Havia duas
correntes rabínicas de interpretação na sua época de Jesus: uma delas, afirmava
que o divórcio só podia ser dado em caso de um erro muito grave por parte da
mulher; para a outra, podia ser dado por qualquer motivo, inclusive se o marido
desaprovasse uma comida preparada pela mulher, uma vez que a lei deuteronômica,
na qual os fariseus se baseavam, dava essa liberdade (cf. Dt 24,1-4). Para Jesus,
essa lei era absurda, pois legitimava a submissão e marginalização da mulher. Em
todas as questões relativas à lei, a preocupação de Jesus é com os abusos que
podem ser praticados e fundamentados a partir dela. Quem se prejudicava sempre
era a mulher, pois o homem poderia repudiá-la a qualquer momento, mandando-a
embora de casa. Essa lei legitimava a família patriarcal e mantinha a mulher
marginalizada. Por isso, Jesus se distancia dessa lei e convida a sua
comunidade a manter-se alinhada aos propósitos da criação: “Deus os fez homem e
mulher” para serem “uma só carne”, ou seja, uma unidade, formando uma comunhão
indissolúvel e sem hierarquia. Prender-se à lei, para Jesus, é negar o projeto
original de Deus e fechar-se ao seu Reino, por consequência.
O embate com os fariseus tinha
sido no caminho. É típico da pedagogia de Jesus aprofundar em casa, com os discípulos,
o tema discutido no caminho. Mais uma vez, o evangelista evidencia caminho e
casa como lugares prediletos da catequese de Jesus. Por isso, diz que, “em
casa, os discípulos fizeram, novamente, perguntas sobre o mesmo assunto” (v.
10). De fato, se tratava de um assunto importante, muito relacionado ao
cotidiano das pessoas. Também os discípulos seriam abordados sobre o mesmo; por
isso, o interesse em aprender ainda mais com o Mestre. Aos discípulos, “Jesus
respondeu: ‘Quem se divorciar de sua mulher e casar com outra, cometerá
adultério contra a primeira. E se a mulher se divorciar de seu marido e se
casar com outro, cometerá adultério” (vv. 11-12). Nessa resposta, Jesus
reafirma seu compromisso com os propósitos da criação: o divórcio não deveria
existir e, ao mesmo tempo, traz uma grande novidade: coloca a mulher em condição
de igualdade com o homem, ao afirmar que também o homem comete adultério ao
divorciar-se e casar-se com outra. De acordo com a lei, fundamento da família
patriarcal, a culpa e as consequências, em caso de divórcio, iam somente para a
mulher; das consequências, a maior delas era a discriminação, o que gerava
segregação e apedrejamento. A grande lição de Jesus aqui, além de remeter à
humanidade ao plano da criação, é a proteção da mulher e a sua igualdade nas
relações, combatendo uma lei que discriminava e excluía.
Na parte final, o evangelista
coloca, novamente, em cena personagens tão caros para seção do caminho: as
crianças. “Depois disso, traziam crianças para que Jesus as tocasse. Mas os
discípulos as repreendiam” (v. 13). A ênfase de Jesus e do evangelista às
crianças tem uma função didática muito específica, sobretudo para a formação
dos discípulos. Ora, quanto mais se aproximavam de Jerusalém, mais os
discípulos alimentavam projetos de poder e sonhos de grandeza, imaginando a
restauração do império davídico-salomônico e, com isso, a ocupação de cargos de
honra na administração. Diante disso, o evangelista insiste em apresentar as
crianças como modelo, considerando a insignificância que lhes era atribuída na
época. O fato de os discípulos repreenderem as crianças, mostra o quanto eles
ainda estavam distantes da mentalidade de Jesus.
Essa atitude de impedir que as
crianças se aproximassem revela a incoerência e incompreensão dos discípulos
com o projeto de Jesus de construir um mundo novo, o Reino de Deus, no qual os
últimos e mais frágeis são a opção preferencial. Na controvérsia sobre o
divórcio, Jesus elevou a mulher à condição de igualdade; agora, com as
crianças, elevará todas as categorias de pessoas excluídas à condição de
preferidos e preferidas do Reino.
Com a atitude escandalosa dos
discípulos – no Evangelho, causa escândalo quem atrapalha alguém de se
aproximar de Jesus – o evangelista diz que “Jesus se aborreceu e disse: ‘Deixai
vir a mim as crianças. Não as proibais, porque o Reino de Deus é dos que são
como elas” (v. 14). Embora outros evangelistas também narrem esse episódio,
somente Marcos diz que “Jesus se aborreceu”; esse detalhe é importante por dois
motivos: primeiro, porque demonstra a importância que Jesus dava às crianças
(como imagem de todas as categorias de pessoas vulneráveis e marginalizadas da
sociedade); segundo, porque denuncia o quanto era absurda a atitude dos discípulos;
e, terceiro, porque mostra a preocupação do evangelista em revelar a humanidade
de Jesus (um homem de sentimentos). Revelar os traços humanos de Jesus era
muito importante para Marcos, o que os outros evangelistas pareciam esconder. A
ordem de Jesus para que os discípulos não proíbam que as crianças se aproximem
dele comporta um grande compromisso para a Igreja de todos os tempos: facilitar
o máximo possível o encontro com os mais vulneráveis e excluídos da sociedade.
A comunidade cristã não pode criar obstáculo algum para que as pessoas, sobretudo
as mais necessitadas e excluídas, se aproximem do amor de Jesus.
As crianças são apresentadas
como modelo, e para pertencer ao Reino de Deus é necessário tornar-se como elas
(cf. v. 15). Para os discípulos, principalmente, essa comparação é muito
importante. A criança é exemplo de quem necessita aprender, de quem não trama
maldade nem alimenta ambições, de quem não se sente autossuficiente. Para o
Reino de Deus, como uma sociedade alternativa, igualitária e justa, é
imprescindível ter tais características para nele inserir-se. O gesto de
abraçar, abençoar e impor as mãos sobre as crianças, no último versículo (cf.
v. 16), enfatiza o amor acolhedor de Jesus pelas pessoas mais necessitadas e
que a sociedade considera insignificantes.
Pe. Francisco Cornelio F.
Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN
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