A liturgia
deste domingo – vigésimo sétimo do tempo comum – continua apresentando Jesus em
Jerusalém, vivendo a última fase do seu ministério, marcada pelo confronto
direto com as lideranças religiosas e políticas de Israel. O texto lido hoje –
Mt 21,33-43 – contém mais uma parábola que emprega a imagem da vinha como comparação
do Reino de Deus proposto por Jesus. Ao todo, o Evangelho de Mateus contém três
parábolas com a imagem da vinha, sendo duas delas exclusividade sua, as quais
foram lidas nos dois últimos domingos: a “parábola dos trabalhadores da vinha”
ou do “patrão generoso” (20,1-16) e a “parábola dos dois filhos” (21,28-32).
Essa primeira foi narrada ainda na etapa do caminho para Jerusalém, portanto,
faz parte de outro contexto. A terceira, lida hoje, chamada de “parábola dos
vinhateiros homicidas” está presente também nos outros dois evangelhos
sinóticos (Mc 12,1-12; Lc 10,20,9-19).
Tendo já
feito uma contextualização mais ampla no domingo passado, e o texto de hoje faz
parte do mesmo contexto, ressaltaremos somente alguns aspectos mais
importantes. Jesus se encontrava nas dependências do templo de Jerusalém,
ensinando. Como é sabido, os ensinamentos de Jesus contrariavam a ortodoxia da
época. À medida em que apresentava o Reino de Deus como proposta de vida e de
sociedade alternativa ao sistema vigente, Jesus denunciava a hipocrisia e os
privilégios das lideranças religiosas de Israel, que tinham distorcido
completamente a imagem de Deus, o seu Pai, transformando-o em patrão vingativo
e em mercadoria, uma vez que o templo, que deveria ser casa de oração, se
tornou casa de comércio e covil de ladrões (Mt 21,12-13).
A mensagem
de Jesus era insuportável para quem explorava o povo em nome de Deus, como
faziam as lideranças religiosas e políticas da sua época. Por isso, enquanto
ele ensinava nas dependências do templo, foi questionado pelos sacerdotes e
anciãos, as lideranças de Israel: “Com que autoridade fazes isso? Quem te
deu essa autoridade?” (Mt 21,23). A esse questionamento, Jesus respondeu
com três parábolas, das quais a de hoje é a segunda. A primeira, a “parábola
dos dois filhos” (Mt 21,28-32), fora lida no domingo passado, e a terceira, a
do “banquete de casamento” (Mt 22,1-14), será lida no próximo domingo. É importante
recordar que, embora os interlocutores diretos de Jesus nestas parábolas,
conforme o contexto narrativo do evangelho, sejam os sacerdotes e anciãos, ou
seja, as lideranças religiosas da época, o seu ensinamento é destinado primordialmente
aos discípulos e discípulas de todos os tempos, começando por aqueles de
primeira chamada, passando pelos membros da comunidade de Mateus, até os
cristãos de hoje e sempre.
Passada a
contextualização, voltamos a atenção para o próprio texto, começando pela
introdução: “Escutai esta outra parábola” (v. 33a). Com essa fórmula
introdutória fica claro que essa parábola é a continuidade de um discurso já
iniciado. Se essa é “outra parábola” (em grego: Ἄλλην παραβολὴν – alen
parabólen), significa que já fora contada alguma antes, como já acenamos na
contextualização. Logo, essa é “outra” em relação àquela dos “dois filhos” (Mt
21,28-32), lida no último domingo. A sucessão de parábolas em um mesmo discurso
e com um mesmo tema é sinal de importância do que está sendo ensinado, pois
revela uma insistência. Recordemos, por exemplo, a série de parábolas sobre o
Reino (Mt 13), a série de parábolas da misericórdia (Lc 15) e, ainda, a série
de parábolas escatológicas (Mt 24 – 25). Portanto, as denúncias de Jesus às
lideranças religiosas do seu tempo foi um elemento de fundamental importância
no seu ministério.
Ainda sobre
a introdução da parábola, é importante recordar o imperativo “escutai” (em
grego: ἀκούσατε – akússate). Esse é mais um indicativo de importância do que
está sendo ensinado. Mais do que um exercício da audição, o verbo escutar na
linguagem bíblica, sobretudo quando vem empregado no modo imperativo, significa
uma fórmula de denúncia e um convite à conversão. Não por acaso, esse é um dos
verbos prediletos dos profetas (Is 1,10; Os 4,1; Am 3,1; 4,1; 5,1; 8,4; Mq 1,2;
3,1.9; 6,1.9). E, Considerando as peculiaridades de seus interlocutores, Jesus
os convida a olhar para a história de Israel e para Escritura. Isso se
evidencia pela apresentação da parábola: “Certo proprietário plantou uma
vinha, pôs uma cerca em volta, fez nela um lagar para esmagar as uvas, e
construiu uma torre de guarda. Depois arrendou-a a vinhateiros, e viajou para o
estrangeiro” (v. 33). Não temos dúvidas de que Jesus tinha em mente o “Cântico
da vinha” do profeta Isaías (Is 5,1-7) ao propor esta parábola, e sabia que
seus interlocutores conheciam muito bem esse texto profético.
Como já
sabemos, a vinha é a uma imagem privilegiada do povo de Deus, usada
principalmente nas tradições proféticas (Is 5,1-7; 27,2-3; Jr 2,21; Ez 15,2-8;
Os 9,10; etc). Ao ouvir falar de uma vinha, quem tinha familiaridade com as
Escrituras, como os interlocutores de Jesus, logo percebia que ele falava da
relação de Deus com Israel. Todos sabiam que Deus possuía uma vinha e que a
amava tanto. E a parábola ressalta isso. Os cuidados do proprietário acenam
para uma grande expectativa em relação à produtividade daquela vinha: ele mesmo
a plantou e a cercou. O lagar para esmagar as uvas significa a expectativa de
boas colheitas: uvas boas e em abundância para produzir vinho; a torre de
guarda construída significa o cuidado e o quanto a vinha é preciosa para o seu
dono. A ausência do dono durante o cultivo e a colheita é sinal de muita
responsabilidade confiada aos trabalhadores. Esse detalhe ressalta a confiança
que Deus deposita na humanidade; foi ele quem tudo plantou, ao criar o mundo,
confiando à humanidade o cuidado de toda a criação.
Quem planta
espera colher frutos. Assim, aconteceu com o dono da vinha, conforme a
parábola: “Quando chegou o tempo da colheita, mandou seus empregados para
receber seus frutos” (v. 34). Embora ele mesmo tenha plantado, ele não vai
receber os frutos pessoalmente, mas envia seus “servos” (em grego: δούλοι –
duloi), termo que o lecionário traduziu inadequadamente por empregados. O envio
dos servos para receber os frutos da colheita significa a confiança que o dono
lhes deposita, tendo-os como seus colaboradores muito próximos. À confiança do
dono, contrapõe-se a brutalidade dos vinhateiros: “agarraram os empregados,
espancaram a um, mataram a outro, e ao terceiro apedrejaram” (v. 35). Uma
série de ações violentas é anunciada. Isso tudo é consequência do abuso de
poder da parte dos vinhateiros, com quem Jesus compara os líderes religiosos e
políticos de Jerusalém, os quais se apossaram da vinha indevidamente.
A sequência
do texto mostra a paciência e tolerância do proprietário da vinha: “mandou
de novo outros empregados, em número maior que os primeiros” (v. 36). O
dono que ama a sua vinha não desiste dos frutos. Porém, aconteceu o mesmo com a
segunda comitiva de servos, ou seja, foram tratados com violência, como os
primeiros. É quase consenso entre os estudiosos que os servos enviados duas
vezes à vinha para receber os frutos significam os profetas anteriores e
posteriores, conforme a divisão tradicional da Bíblia Hebraica. Essa
interpretação ajuda a identificar os vinhateiros, aqueles que se apossaram da
vinha, fazendo do que é de Deus uma propriedade particular: as autoridades e
instituições políticas e religiosas de Israel, da antiga monarquia à
aristocracia sacerdotal do tempo de Jesus. Ao invés de facilitar os devidos
frutos ao único dono da vinha, a religião de Israel tinha se tornado o maior
obstáculo para a colheita. Um simples olhar na história já seria suficiente
para essa conclusão: a rejeição aos profetas, quase todos hostilizados pelos
detentores de poder.
A paciência
do dono da vinha é mais uma vez evidenciada, como mostra o texto com muita
clareza: “Finalmente, o proprietário enviou-lhes o seu filho, pensando: ‘Ao
meu filho eles vão respeitar’!” (v. 37). Porém, a reação dos vinhateiros se
torna ainda mais violenta com o filho. Tendo já tomado posse da vinha, não
permitindo mais que o dono recebesse seus frutos, os falsos proprietários viam
o filho do dono como uma ameaça ainda maior, por isso procuram eliminá-lo de
uma vez: “Este é o herdeiro. Vinde, vamos matá-lo e tomar posse da sua
herança” (v. 38). Ao relatar a violência sofrida pelo filho do dono da
vinha, Jesus chega ao ápice do ensinamento da parábola: os chefes que
interrogaram sua autoridade são os vinhateiros que se apossaram da vinha. Eles
que hostilizaram os profetas do Antigo Testamento, rejeitaram a pregação de
João Batista, e agora estão quase matando o filho. Aqui, Jesus faz um novo
anúncio da paixão, dessa vez implícito, uma vez que já havia feito os três
anúncios explícitos (Mt 16,21-18; 17,22-23; 20,17-19). Os três anúncios
anteriores foram feitos aos discípulos, agora é aos futuros algozes que Ele
anuncia. Com isso, a parábola ganha um sentido ainda mais amplo, funcionando
como síntese da história de Israel e autobiografia de Jesus.
Ao concluir
a parábola descrevendo o tratamento dado ao filho do dono da vinha pelos
vinhateiros, “agarraram-no, jogaram-no para fora da vinha e o mataram”
(v. 39), Jesus deixa novamente os sumos sacerdotes e anciãos do povo em maus
lençóis: “Quando o dono da vinha voltar, o que fará com esses vinhateiros?”
(v. 40). A resposta deles é praticamente uma sentença de autocondenação: “Com
certeza mandará matar de modo violento esses perversos e arrendará a vinha a
outros vinhateiros, que lhe entregarão os frutos no tempo certo” (v. 41).
Os sumos sacerdotes e anciãos parecem não perceber que Jesus está falando
deles. Continuam ignorando e insistindo em não acatar o ensinamento de Jesus,
exatamente porque tomaram posse indevidamente do que não lhes pertencia,
estavam movidos pelo orgulho, pela mentira e violência e, por isso, fechados ao
que Jesus ensinava. Ao contrário da resposta deles, Jesus não fala em momento
algum de vingança ou violência da parte do dono da vinha. Por outro lado,
mostra uma reviravolta na história, com base na Escritura que seus
interlocutores deveriam conhecer, mas a ignoravam: “Então Jesus lhes disse: ‘Vós
nunca lestes nas Escrituras: ‘A pedra que os construtores rejeitaram tornou-se
a pedra angular; isto foi feito pelo Senhor e é maravilhoso aos nossos olhos?”
(v. 42). Essa citação da Escritura (Sl 118,22-23) é uma palavra de reprovação a
quem se impõe pela força, e de esperança às vítimas de todo sistema opressor,
enfatizando qual é o lado de Deus na história.
Ao propor a
vingança do dono da vinha, os sacerdotes e anciãos revelam a religião que eles
praticavam e o Deus em quem acreditavam: uma religião mercantilista, baseada na
lei do “olho por olho e dente por dente” (Mt 5,38), condenada por Jesus, e um
Deus severo e castigador, diferente do Deus Pai revelado por Jesus. A atitude
do dono, ao contrário do que pensam os interlocutores de Jesus, será apenas
destituir os vinhateiros de um poder que eles tinham usurpado. Foram
encarregados de cuidar, isto é, cultivar, produzir, colher os frutos e
restituir ao dono; ao invés disso, tomaram posse como se a vinha fosse
propriedade particular. Ora, o que pertence a Deus é direito de todos; ninguém
pode considerar propriedade sua o que é dom, o que é fruto do amor e da graça
de Deus. Porém, Jesus não anuncia castigo, mas apenas a destituição do poder: “o
Reino de Deus vos será tirado e será entregue a um povo que produzirá frutos”
(v. 43). A ironia de Jesus, aqui, chega ao ápice: os que questionaram sua
autoridade são exatamente aqueles que não têm autoridade para falar em nome de
Deus, uma vez que Deus só autoriza a falar em seu nome quem produz frutos em
favor de todos, e não quem pensa somente em si e age com violência e mentira.
Ao ler essa
parábola e, quase de imediato, perceber que Jesus aplica o dono da vinha ao seu
Pai, os vinhateiros às classes dirigentes de Jerusalém, e o filho rejeitado a
si mesmo, corremos o risco de imaginar também uma simples passagem do Reino,
saindo das mãos do judaísmo para a Igreja nascente. É importante perceber que o
Reino de Deus não é transferido de uma religião para outra; é apenas confiado a
quem produzir frutos. A entrega do Reino “a um povo” não determinado significa
a universalidade da salvação e a dimensão inclusiva do Reino. Não é a pertença
a uma raça, cultura ou religião específica que dá acesso ao Reino, mas a
“produção de frutos”, quer dizer, a prática da justiça e a vivência do amor (Mt
5-7), como já fora antecipado no discurso da montanha, especialmente com as
bem-aventuranças (Mt 5,1-12).
Produz
frutos e participa do Reino, portanto, quem faz a vontade do Pai que está nos
céus, e não quem apenas diz “Senhor, Senhor!” (Mt 7,21). O Reino é entregue a
toda pessoa que aceita o desafio de viver segundo as bem-aventuranças. Toda vez
que alguém quer controlar o agir de Deus, determinando quem está salvo e quem
está condenado, está agindo como os vinhateiros homicidas. O fato de alguém
pertencer a uma comunidade/igreja cristã não garante participação no Reino de
Deus. Por isso, mais do que uma ameaça ao judaísmo da época, essa parábola é
uma séria advertência ao cristianismo de todos os tempos.
Pe.
Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN
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