sábado, maio 06, 2023

REFLEXÃO PARA O 5º DOMINGO DE PÁSCOA – JOÃO 14,1-12 (ANO A)


Todos os anos, a liturgia do quinto e do sexto domingo do tempo pascal utiliza textos do chamado «testamento de Jesus» do Quarto Evangelho (Jo 13–17). Esses capítulos, que correspondem à última ceia, contém o ensinamento mais precioso de Jesus no contexto narrativo do Evangelho de João. Trata-se de um conjunto de diversos discursos que o evangelista reuniu como se fosse apenas um discurso, apresentado como síntese de tudo o que Jesus fez e ensinou durante a sua vida. Por isso, o conjunto começa com o gesto do lava-pés (Jo 13,1-12), expressão máxima do agir serviçal de Jesus, e é concluído com a oração sacerdotal (Jo 17,1-26), na qual Jesus expressa sua intimidade com o Pai, marcada pela confiança e entrega, e seu cuidado com a humanidade, suplicando unidade e fraternidade. Do lava-pés à oração de Jesus, portanto, está a síntese de toda a sua vida. O evangelista fez isso como resposta às necessidades da sua comunidade, que passava por crises, e das comunidades de todos os tempos.

À medida em que o tempo pascal avança, após lermos os diversos relatos das manifestações (aparições) do Ressuscitado junto aos seus discípulos(a), é interessante retornar à essência do que Ele ensinou, tendo em vista a proximidade da ascensão, para que essa não seja sinal de ausência, mas de presença e vivência dos seus ensinamentos. De fato, é através da vivência do que Jesus ensinou que se pode experimentar a sua presença de Ressuscitado ao longo da história. Neste quinto domingo do “Ano A”, o texto proposto é Jo 14,1-12. Para compreendê-lo melhor, é necessário recordar o que lhe antecede, no contexto narrativo da última ceia. E encontramos quatro acontecimentos precedentes que, de certo modo, condicionam o texto de hoje:  o lava pés ou o mandamento do serviço (Jo 13,1-15), o anúncio da traição de Judas e seu desligamento do grupo (Jo 13,21-30; ), a entrega do mandamento do amor por Jesus (Jo 13,31-35) e o anúncio da negação de Pedro (Jo 13,36-38). A isso, soma-se o fato de Jesus ter declarado que tinha chegado a sua hora de partir para o Pai (Jo 13,31-33), e os discípulos, lamentavelmente, compreendiam a sua partida como perda definitiva, como ausência e fim. Tudo isso deixou os discípulos desanimados e inquietos; a ceia tinha perdido o seu clima festivo. Jesus tenta recuperar a alegria e o entusiasmo dos discípulos com a continuidade do seu discurso, apesar de se encontrar às vésperas da paixão.

Olhando para o texto, percebemos que as palavras iniciais de Jesus denunciam a inquietação e o mal-estar que havia entre os discípulos naquele momento: «Não se perturbe o vosso coração» (v. 1a). A agitação no coração é sinal de tristeza e confiança abalada. Significa que há uma situação difícil de ser aceita e compreendida. É interessante que, embora fale para todo o grupo dos discípulos, Jesus se refere ao coração (em grego: καρδία – kardía) no singular. Com isso, o evangelista evidencia a importância da unidade da fé na comunidade. Apesar dos conflitos internos, a comunidade não pode desistir de ter um só coração, ou seja, um mesmo amor e um único mandamento. Na verdade, os discípulos até tinham certa razão de se encontrarem perturbados, humanamente falando, tendo a vista a certeza da morte próxima de Jesus. Mas Jesus os convida a superar o medo e deixar de ver a morte como o fim. Na verdade, ele quer ensinar que a morte não tem a palavra final, por isso, insiste que os discípulos não se perturbem com ela. Além disso, ele quer recordar tudo o que já tinha ensinado acerca do seu destino. E desde os primeiros momentos da sua pregação, ele tinha deixado claro qual seria o seu destino, tendo em vista sua extrema fidelidade ao Pai.

Mais do que um conforto intimista e individual, Jesus quer assegurar a unidade. Ora, a comunidade estava abalada e suscetível de rivalidades e exclusões, além da tristeza pela sua aparente perda. Havia um clima de desconfiança entre eles, sobretudo após a saída de Judas e o anúncio da negação de Pedro (13,21-30; 36-38). O princípio da unidade na comunidade é a fé em Deus e no próprio Jesus. Por isso, ele pede que os discípulos lhe renovem a adesão plena, com uma fé renovada: «Tendes fé em Deus, tende fé em mim também» (v. 1b). O tema da fé é muito caro ao evangelho de João. Somente nesse texto de hoje, o verbo que expressa fé e confiança (em grego: πιστεύω – pistêuo), aparece cinco vezes (vv. 1.11.12). O evangelista está ensinando também que a fé em Deus e a fé em Jesus são uma única fé. E somente a fé é capaz de fazer a comunidade superar o medo, a perturbação e criar coragem para enfrentar as adversidades que vêm como consequência da fidelidade ao projeto de Jesus. E a primeira adversidade é a cruz.

Na continuação, Jesus reforça cada vez mais a importância da comunidade cristã, apresentando-a como a nova casa do Pai, uma vez que a antiga casa, o templo, fora transformada em casa de negócio (Jo 2,16). Por isso, ele faz uma afirmação categórica e bastante firme: «Na casa de meu Pai há muitas moradas. Se assim não fosse, eu vos teria dito. Vou preparar um lugar para vós» (v. 2). Essa é uma das afirmações mais revolucionárias de todo o Quarto Evangelho, embora tenha sido muito mal compreendida ao longo dos séculos. Ao contrário do que parece, Jesus não está se referindo ao céu enquanto morada do Pai, e nem prometendo reservar lugares para os seus discípulos lá. Ele está, na verdade, fazendo uma mudança radical de paradigma: a nova casa do Pai é a comunidade cristã, na qual há espaço para todos e todas, compreendendo a diversidade de dons e carismas. No templo de pedras, a antiga casa de Deus, havia uma única morada. As pessoas iam até lá para encontrar-se com Deus, mas somente Ele habitava lá, como ensinava a religião. No diálogo com a Samaritana, Jesus já tinha antecipado que aquele modelo de religião estava com os dias contados, uma vez que chegaria o tempo de adorar a Deus somente em espírito e em verdade (Jo 4,21-24); esse tempo novo instaura-se com a ressurreição, compreendida como a construção definitiva da morada de Deus na humanidade (Jo 2,19-22), através da extensão do corpo do Ressuscitado que é a comunidade cristã. Ao invés de ir ao templo para encontrar-se com Deus, devemos acolhê-lo em nossa vida, uma vez que é Ele que vem ao nosso encontro, numa relação oposta ao que ensinava a antiga religião.

Jesus diz que “vai preparar” porque é a sua ressurreição que inaugura essa nova relação; por isso, garante: «E quando eu tiver ido preparar-vos um lugar, voltarei e vos levarei comigo, a fim de que onde eu estiver estejais também vós» (v. 3). Mais uma vez, recordamos que Ele não está prometendo transportar os discípulos de um lugar para outro, mas conduzi-los a uma nova condição de vida, dando a certeza de que, acolhendo o ressuscitado com fé, a comunidade estará em relação contínua com o Pai. Mais do que levar a comunidade para Deus, na verdade Jesus traz Deus para a comunidade; essa será a casa do Pai quando nela vigorar a lei do amor e sua aplicação prática, que é o serviço, cuja demonstração ele fez há pouco tempo, com o gesto do lava-pés. Com isso, ele dá um significado novo para a vida presente: essa vida que vivemos agora não é apenas uma espera pela vida definitiva, mas ela já é eterna, pois já se pode experimentar nela a presença do eterno, que é ele mesmo, pois onde se vive como discípulo o Ressuscitado está presente. Portanto, o voltar de Jesus, após sua morte de cruz, ao encontro dos discípulos, significa muito mais do que o seu retorno glorioso no final dos tempos; no contexto do evangelho de hoje, significa sua inseparabilidade da comunidade após a ressurreição. A morte na cruz não tem força de separar Jesus dos seus porque, Ressuscitado, ele estará sempre presente. Por isso, essa sua afirmação expressa um retorno imediato: mediante o Espírito Santo, ele estará sempre presente entre os seus, e a ocasião privilegiada de experimentar essa presença é a comunidade reunida para a partilha do pão.

Considerando tudo o que já havia ensinado, imaginava Jesus que os discípulos já conhecessem o caminho, como ele mesmo afirma: «E para onde eu vou, vós conheceis o caminho» (v. 4); esse caminho é a sua própria vida, marcada pelo amor ilimitado e incondicional. No entanto, a incompreensão persiste nos discípulos, dominados pelos ideais messiânicos triunfalistas e incapazes de reconhecer o amor e a doação da vida como os únicos meios para uma relação autêntica com Deus. Com muita sinceridade, Tomé confessa a sua ignorância diante do que está sendo anunciado e vivido por Jesus: «Tomé disse a Jesus: ‘Senhor, nós não sabemos para onde vais. Como podemos conhecer o caminho?’» (v. 5). De fato, ele não compreendia a morte de Jesus como passagem para uma presença permanente no meio da comunidade. Mas seu questionamento demonstra interesse em aprofundar e conhecer mais Jesus e sua relação com o Pai. Ele via a morte como o fim, embora seja louvável a sua coragem para enfrentá-la, como havia demonstrado já no episódio da reanimação de Lázaro, quando os outros discípulos queriam persuadir Jesus a não se aproximar de Jerusalém, pois já tinha sido ameaçado de morte. Naquela ocasião, Tomé desafiou aos demais discípulos e disse: «Nós iremos para morrer com ele» (Jo 11,16).

O questionamento de Tomé se torna uma oportunidade para Jesus fornecer uma das mais profundas revelações de si: «Jesus respondeu: ‘Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida. Ninguém vai ao Pai senão por mim’» (v. 6). Com a declaração “Eu sou” (em grego: Εγώ είμι – egô eimí) Jesus reafirma a sua condição divina, pois essa é a fórmula de revelação do Deus do Êxodo, o Deus libertador (Ex 3,13ss); por sinal, o uso dessa fórmula é muito frequente no Evangelho de João, mas essa é a única vez em que vem seguida de três predicativos: Caminho, Verdade e Vida. Essa é a afirmação em que Jesus mais revela traços da sua identidade. Embora pareça enigmática, essa tríplice predicação é bastante simples. Ora, Jesus está propondo um modelo de vida para uma comunidade, o que pode levantar muitas dúvidas e questões, uma vez que Ele não escreve nenhuma regra, não estabelece nenhuma lei e não deixa nenhuma doutrina. Isso gera dúvidas e medo nos discípulos: como se comportar após a partida de Jesus? Quais os parâmetros a seguir? Para simplificar, Jesus diz que ele mesmo é tudo o que a comunidade necessita, é Ele o parâmetro, a sua pessoa. Ao apresentar-se como Caminho, Verdade e Vida, Jesus quer dizer que é tudo para a comunidade e essa não pode buscar nem viver algo que não esteja em consonância com a sua pessoa. O caminho a ser percorrido pela comunidade cristã é a sua trajetória de vida, a verdade a ser transmitida é a sua própria pessoa e a vida a ser vivida é aquela que Ele viveu e doou em abundância, marcada pela liberdade, dignidade e amor. É claro que na tradição bíblica encontramos significados aprofundados para cada um destes termos: caminho, verdade e vida. Porém, o evangelista aplica aqui o sentido prático e conhecido dos termos. Quer dizer que, sem Jesus, a comunidade não tem rumo, não tem o que anunciar e, consequentemente, não tem também razão para viver e existir, uma vez que sem Ele não há relação nem conhecimento de Deus, o Pai. Portanto, se auto declarando como Caminho, Verdade e Vida, Jesus diz que é tudo para a comunidade cristã e essa não pode alimentar-se de nada além da sua pessoa.

Na sequência, Jesus reafirma sua unidade com o Pai em tom de advertência e lamento pela falta de perspicácia dos discípulos: «Se vós me conhecêsseis, conheceríeis também o meu Pai. E desde agora o conheceis e o vistes» (v. 7). Num único versículo, o mesmo verbo conhecer aparece três vezes. Não se trata de um conhecimento intelectual, mas de uma experiência de intimidade e amor. O conhecimento de Deus não é fruto do intelecto, mas de uma disposição para amar e ser amado. Jesus está denunciando a falta de amor nos discípulos, até aquele momento. Se ainda não conheciam a Jesus e ao Pai, é porque ainda não estavam amando verdadeiramente, o que se evidencia pela intervenção de Filipe: «Senhor, mostra-nos o Pai, isso nos basta!» (v. 8). Como se vê, persistia nos discípulos a incompreensão e não aceitação da unidade entre Jesus e o Pai. Isso mostra, mais uma vez, que eles tinham dificuldade de aceitar e assimilar um Deus presente na história e relacionando-se diretamente com o seu povo, e é exatamente esse Deus que Jesus nos revela. Por isso, a resposta a Filipe é uma espécie de desabafo de Jesus, em tom de lamentação e repreensão: «Há tanto tempo estou convosco, e não me conheces, Filipe? Quem me viu, viu o Pai. Como é que tu dizes: ‘Mostra-nos o Pai?’» (v. 9). Ora, Filipe foi um dos primeiros discípulos chamados por Jesus (Jo 1,43); certamente, presenciou todos os sinais realizados, mesmo assim não tinha ainda assimilado Jesus como revelador do Pai e, consequentemente, não ainda deixado se humanizar por ele.

Toda a vida de Jesus é revelação de Deus; em tudo o que faz, ele revela o Pai porque os dois vivem uma unidade perfeita: «Não acreditas que estou no Pai e o Pai está em mim? As palavras que eu vos digo, não as digo por mim mesmo, mas é o Pai, que, permanecendo em mim, realiza as suas obras» (v. 10). Os discípulos devem perceber essa unidade pelo amor incondicional de Jesus, expresso em suas palavras e ações. Como último critério, ou seja, quando a vida de Jesus marcada pelo amor incondicional não for capaz de convencer, que pelo menos considerem as suas obras, os sinais realizados, para reconhecê-lo como Um com o Pai: «Acreditai-me: eu estou no Pai e o Pai está em mim. Acreditai, ao menos, por causa destas mesmas obras» (v. 11). É importante essa recomendação: as obras são o último critério para a fé. O primeiro critério é o amor envolvido e a certeza da vida abundante. A propósito das intervenções de Tomé e Filipe, vale a pena ressaltar a importância que isso significa para a comunidade joanina e, obviamente, para as comunidades cristãs de todos os tempos. É perceptível que o Evangelho de João concede a palavra a discípulos que não fazem parte do trio predominante na tradição sinótica: Pedro, Tiago e João. No Quarto Evangelho, discípulos “secundários” para os sinóticos, como André, Filipe e Tomé, tem um certo protagonismo (Jo 2,35-51; 11,26; 20,19-27), sendo que o principal de todos os discípulos é um anônimo: o discípulo amado. Esse detalhe revela um cuidado do evangelista em relação à organização da comunidade e uma precaução com as tendências hierarquizantes. Na comunidade onde reina o amor, todos têm espaço, inclusive para questionar. O que importa é que o amor fraterno seja vivido.

Certamente, é vivenciando o mandamento do amor, estabelecendo relações fraternas e sinceras, cultivando a igualdade e a fraternidade que a comunidade poderá, não apenas repetir, mas realizar obras maiores que aquelas que o próprio Jesus fez; é Ele mesmo quem dá essa garantia (v. 12). A confiança e fé em suas palavras credencia a comunidade a manifestar a sua presença e, consequentemente, a presença do Pai, tornando sua obra ilimitada temporal e espacialmente; isso implica em compromisso para nós, cristãos de hoje: não devemos apresentar o Evangelho como uma história a ser contada, mas como um caminho a ser percorrido, uma verdade a ser anunciada e, principalmente, uma vida a ser vivida, marcada pelo amor, acolhimento e perdão para, de fato, ser uma vida em abundância (Jo 10,10).

Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

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