sábado, julho 08, 2023

REFLEXÃO PARA O 14º DOMINGO DO TEMPO COMUM – MATEUS 11,25-30 (ANO A)



Neste décimo quarto domingo do tempo comum, a liturgia retoma a leitura semi-contínua do Evangelho de Mateus, interrompida no domingo passado, por ocasião da solenidade dos santos apóstolos Pedro e Paulo. O trecho lido hoje – Mt 11,25-30 – faz parte da seção narrativa intermediária entre o discurso missionário (Mt 10) e o discurso em parábolas (Mt 13). Esse texto, embora curto, possui uma relevância ímpar no Evangelho de Mateus, tanto do ponto de vista literário quanto teológico. É a primeira vez que Jesus se dirige a Deus como Pai, no relato de Mateus. Em ocasiões anteriores, como no discurso da montanha (Mt 5–7), ele já tinha feito referências a Deus como Pai, mas não tinha se dirigido diretamente, ou seja, não tinha invocado Deus dessa forma. Isso confere grande importância a esse texto, considerado uma verdadeira “joia”, literária e teológica do Evangelho de Mateus, sendo considerado também uma espécie de síntese e aprofundamento do próprio discurso da montanha, que é o coração teológico da obra.  

Como já afirmamos em outras ocasiões, a alternância entre discurso e narrativa é uma característica literária marcante do Evangelho de Mateus. A recordação desse aspecto é sempre importante, tanto para a compreensão da obra em seu conjunto quanto de cada texto lido separadamente, como o de hoje, por exemplo. No discurso missionário (Mt 10), Jesus preparou seus discípulos e os enviou em missão para ajudar a sanar a situação de abandono e exploração em que se encontravam as multidões (Mt 9,36–11,1). Diz o evangelista que, após instruir os discípulos para a missão, também Jesus saiu para ensinar e pregar nas cidades da Galileia (Mt 11,1). De fato, sempre que Jesus conclui um discurso, Mateus o mostra tomando iniciativas, agindo concretamente em favor da libertação do povo sofrido. Isso serve de advertência para as comunidades cristãs de todos os tempos: os discursos só têm sentido se forem acompanhados de gestos concretos e ações humanizantes. A maneira como Jesus conciliava discurso e práxis, portanto, deve ser o parâmetro para o agir cristão em todos os tempos.

Ainda a propósito do discurso missionário e envio dos discípulos, é importante recordar que, embora o evangelista não fale nada sobre o retorno deles e o resultado da missão, tudo indica que não foram bem-sucedidos. O contexto e as entrelinhas do texto revelam que houve rejeição e hostilidades, segundo a perspectiva de Mateus. Os relatos de Marcos e Lucas, ao contrário, revelam um certo otimismo, dando a entender que aquela primeira missão foi exitosa (Mc 6,30; Lc 9,10). A versão de Mateus é bem menos otimista, certamente por causa da situação concreta das suas comunidades na época da redação do Evangelho (anos 80 do primeiro século), quando os conflitos entre a comunidade cristã e o judaísmo estavam muito acesos. Por isso, ele ressalta mais as adversidades encontradas na missão, não para desmotivar, mas para encorajar ainda mais a comunidade na perseverança e fidelidade ao Evangelho. Inclusive, para mostrar que as desconfianças, dúvidas e rejeições ao projeto de Jesus não são motivos para a comunidade desanimar, Mateus traz a dúvida de João Batista sobre a messianidade de Jesus para esse mesmo contexto do discurso missionário e envio dos discípulos.

Já preso, por ordem do rei Herodes, João Batista desconfiou da messianidade e autenticidade do ministério de Jesus, a ponto de enviar seus discípulos para tirar algumas dúvidas, afinal, o comportamento de Jesus não correspondia às suas expectativas (Mt 11,2-19). Ora, João tinha anunciado um messias juiz e vingador, alguém que vinha ao mundo para premiar os bons e condenar os pecadores (Mt 3,7-12), enquanto Jesus se misturava com os pecadores, bebendo e comendo com eles (Mt 11,18). Além das dúvidas de João, o evangelista registra o desgosto de Jesus com as cidades que Ele escolheu como primeiras destinatárias da sua missão: «Então começou a recriminar as cidades onde tinha realizado a maioria dos seus milagres, porque elas não tinham se convertido» (cf. Mt 11,20-24). Essas cidades eram Corazim, Betsaida e Cafarnaum, escolhidas a dedo para o anúncio da chegada do Reino dos céus. Com a sua reputação posta em dúvidas pelo seu próprio mentor, João Batista, e a rejeição de seus compatriotas galileus, Jesus tinha tudo para decretar a falência do seu projeto. Porém, fez exatamente o contrário: louvou ao Pai por tudo o que estava acontecendo. É esse o contexto do evangelho de hoje. Jesus passava por um momento delicado na sua missão, sofrendo rejeição e hostilidade, com sua messianidade sendo posta em dúvida. Mas sua resposta a essa situação não é de desânimo, pelo contrário, é de quem sente ainda mais necessidade de confiar em Deus e nos propósitos para os quais fora enviado. Renunciar a tais propósitos seria aceitar que as multidões continuassem abandonadas, como ovelhas que não tem pastor (Mt 9,36). E Jesus não fez isso, pois ao mundo para dar sua própria vida por quem tem a vida ameaçada e a dignidade negada.

Feita a devida contextualização, voltamos nossa atenção para o texto de hoje, que apresenta a resposta de Jesus a tudo isso que acabamos de recordar: «Naquele tempo, Jesus pôs-se a dizer: ‘Eu te louvo, ó Pai, Senhor do céu e da terra, porque escondeste estas coisas aos sábios e entendidos, e as revelastes aos pequeninos’» (v. 25). A primeira observação importante que fazemos diz respeito à expressão «Naquele tempo» que, dessa vez, faz parte mesmo do texto bíblico, e tem uma importância relevante. Como a liturgia praticamente banalizou essa expressão, colocando-a sempre como fórmula de introdução ao evangelho, corremos o risco de não perceber seu real significado no texto de hoje. Ora, ao precisar temporalmente o episódio, “Naquele tempo” (em grego: έν έκείνω τω καιρω – en ekeíno tô kairô), o evangelista relaciona diretamente as palavras de Jesus aos acontecimentos anteriormente narrados. Isso quer que dizer que as palavras e atitudes de Jesus são resposta concreta e reação direta aos últimos acontecimentos. E a reação de Jesus não foi o desespero e nem o desânimo, mas uma oração de louvor e ação de graças ao Pai, por ver seus propósitos sendo realizados, por mais paradoxal que parecesse.

Ao invés de sentir-se falido em suas pretensões, diante das rejeições sofridas e a desconfiança do seu mestre João Batista, Jesus sente-se realizado porque, de fato, os propósitos de Deus, o Pai, começam a concretizar-se: o mundo novo só pode ser construído com a adesão dos pequeninos (em grego: νηπίοις – nêpióis), termo que compreende todas as categorias de pessoas por quem Jesus fez opção preferencial e abraçaram o seu projeto: pobres, inocentes, indefesos, humildes, pecadores, etc. Nesse termo está a síntese dos verdadeiros necessitados de vida nova e libertação. O Reino dos céus, que implica no desmoronamento dos sistemas de poder vigentes, por isso é ameaça para os ricos e poderosos, os detentores de poder político e religioso, só tem sentido e só é possível se o programa de vida de Jesus for abraçado. Esse programa consiste na vivência das bem-aventuranças (Mt 5,1-12). Os pequeninos que estão conhecendo “estas coisas” são: os pobres, os mansos, os aflitos, os famintos e sedentos de justiça, os misericordiosos, os puros de coração, os promotores da paz e os perseguidos, ou seja, os bem-aventurados. Essas pessoas, sim, percebem em Jesus o advento de um novo mundo e um novo tempo, por isso, o acolhem como a resposta humanizante de Deus ao mundo. Por “estas coisas” compreende-se o Evangelho em sua totalidade, cuja expressão mais concreta é o jeito de viver do próprio Jesus, que deve ser assimilado por todos os seus seguidores e seguidoras.

Quanto aos “sábios e entendidos”, para eles os valores do Reino permanecem ocultos devido à soberba, orgulho, avareza, legalismo e uso da força e da violência, tanto física quanto simbólica, incluindo os sistemas religiosos que se impõem pelo medo. Esses são os dirigentes, a elite política e religiosa, principalmente. São aqueles que não tem coragem de tornar-se pequenos e, por isso, não entrarão no Reino dos céus (Mt 18,3). Quem assume o poder como meio de dominação, seja econômica, política ou ideológica, tende a rejeitar um projeto de sociedade justa, igualitária e fraterna, como é o Reino dos céus. Não resta dúvida de que a crítica de Jesus aqui se aplica mais ao campo religioso: os “sábios e entendidos” que não conhecem “as coisas do Pai” são os representantes oficiais da doutrina e da Lei – escribas, mestres da Lei, sacerdotes e fariseus – aqueles que passam a vida impondo normas e vigiando quem está cumprindo ou não, embora sejam eles os primeiros a não cumprir. Esses, como representantes de um Deus juiz, severo e vingativo, não estão aptos a aceitar os propósitos de um Deus-Pai, o Deus de Jesus, que nada impõe, mas apenas oferece amor.

Diante disso, Jesus não se desespera, mas expressa mais uma vez a sua convicção de que os desígnios de Deus, o Pai, estão acontecendo: «Sim, Pai, porque assim foi do teu agrado» (v. 26)A palavra grega que o lecionário traduz por agrado (εὐδοκία – eudokía) significa muito mais: quer dizer propósito, projeto, decisão. E tudo o que Jesus fazia estava em conformidade com o projeto de Deus, o seu Pai. E ele veio ao mundo exatamente para realizar esse projeto. O rechaço à vontade de Deus por quem deveria abraçá-la primeiro – os conhecedores da Lei – já era previsto. Por isso, Jesus não se admira diante dos fatos, mas vê neles a confirmação da sua fidelidade à missão que lhe foi confiada pelo Pai e que ele mesmo compartilha com seus discípulos e discípulas de todos os tempos. E o projeto do Pai é que os pequeninos conheçam cada vez os seus propósitos e a sua vontade. E, uma vez conhecendo, os pequeninos devem lutar, ajudados pela mensagem libertadora do Evangelho, para que o projeto de Deus se realize plenamente, o que resultará num mundo humanizado, com justiça, igualdade, fraternidade, solidariedade e, acima de tudo, amor. Os grandes – sábios e entendidos – vêem isso como ameaça aos seus privilégios, por isso rechaçam o Evangelho de Jesus, que é a revelação máxima do projeto de Deus, o Pai.

Jesus conhecia em profundidade o projeto do Pai por causa da comunhão íntima vivida entre os dois. Com isso, ele ensina que ninguém pode conhecer o Pai e seus propósitos a partir de códigos e doutrinas, como acreditavam os fariseus, escribas e sacerdotes, mas somente amando e sentindo-se amado, fazendo-se pequeno para sentir a grandeza do amor de Deus. E Jesus fala do seu Deus-Pai com propriedade porque é o Filho e o conhece em profundidade. Por isso, pode dizer convictamente: «Tudo me foi entregue por meu Pai, e ninguém conhece o Filho, senão o Pai, e ninguém conhece o Pai, senão o Filho e aquele a quem o Filho o quiser revelar» (v. 27)Essa declaração reforça a intimidade de Jesus com o Pai e ao mesmo tempo denuncia a ilegitimidade da religião vivida pelos considerados grandes da sua época – os fariseus, mestres da lei e sacerdotes. Aquela religião não tinha legitimidade porque anunciava sem conhecer, pois, se baseava em códigos legais e doutrinas e, assim, ao invés de revelar, escondia o rosto verdadeiro de Deus. Na linguagem bíblica, o conhecimento não significa uma aquisição intelectual, mas uma relação de intimidade. Conhecer alguém, portanto, significa ser íntimo, relacionar-se com total transparência e cumplicidade. E assim é a relação de Jesus com o Pai e, consequentemente, com aqueles a quem ele quis revelar a si mesmo e ao Pai. Quem quiser conhecer o Deus que é Pai, portanto, deve antes tornar-se íntimo de Jesus. E cultiva-se intimidade com Jesus fazendo-se seu discípulo, deixando-se humanizar pelo seu amor e abraçando seu programa de vida expresso nas bem-aventuranças.

Os pequeninos podem conhecer o que Jesus revela – o amor do Pai – porque não é fruto de especulações, mas de uma relação íntima entre um Pai e um Filho que se amam reciprocamente. Jesus não propõe uma teoria, mas o resultado de uma experiência de amor; por isso, é compreensível pelos pequeninos, os seus prediletos. Ainda a respeito dessa declaração que fala claramente da relação Pai-Filho, convém recordar a novidade que ela representa aqui, pois se trata de uma linguagem muito característica das tradições ligadas ao Evangelho de João, sobretudo no longo discurso de despedida (Jo 14–17). Por isso, é muito significativa a sua presença nesse texto de Mateus, exatamente quando Jesus expressa a sua satisfação em ver os pequeninos compreendendo a dinâmica do Reino. Esses pequeninos são aquelas mesmas multidões cansadas e abatidas, que provocaram a compaixão em Jesus, porque estavam como ovelhas que não têm pastor, ou seja, estavam abandonadas e exploradas, sobretudo pelas lideranças religiosas da época (Mt 9,36).

Inconformado com o abandono do povo e a exploração da qual era vítima, sobretudo pelo peso da Lei, Jesus faz um solene e ousado convite: «Vinde a mim todos vós que estais cansados e fatigados sob o peso dos vossos fardos, e eu vos darei descanso» (v. 28). A ousadia de Jesus aqui consiste em convidar à ruptura com todos os sistemas de opressão, que negam liberdade e vida plena. E era exatamente a religião quem mais deixava o povo cansado e fatigado, impondo fardos que nem mesmo os chefes religiosos conseguiam carregar (Mt 23,4). Além da opressão do império romano, com a cobrança excessiva de impostos, o povo ainda era submetido à coerção de uma religião rígida, com muitas normas, mas vazia de conhecimento de Deus, por isso, imperava a hipocrisia. Daí o convite de Jesus para a verdadeira libertação: «Vinde a mim... e eu vos darei descanso»É claro que o descanso que Jesus promete não é uma vida cômoda e fácil, mas sim uma vida livre das imposições Lei e do peso da doutrina. Em outras palavras, esse descanso é a humanização plena, a liberdade e a capacidade de amar e sentir-se amado; é sinal de realização do Reino dos céus e da vocação originária do ser humano, pois evoca a perfeição e a completude de uma obra boa, como a criação (Gn 2,2): também Deus descansou após completar a criação, sentindo-se realizado. A realização do ser humano, portanto, leva-o ao descanso, não por comodismo ou um mero repouso, mas pela certeza da realização da missão e vocação originárias.

E, na sequência, Jesus amplia o convite, tornando-o ainda mais explícito: «Tomai sobre vós o meu jugo e aprendei de mim, porque sou manso e humilde de coração, e vós encontrareis descanso» (v. 29)Tomar o jugo de Jesus é trocar a observância rígida da Lei pela prática das bem-aventuranças. É preciso aprender de Jesus porque somente Ele, como Filho, pode revelar plenamente o rosto amoroso do Pai, e somente fazendo uma experiência profunda de amor-comunhão, é possível libertar-se do jugo imposto pelos guardiões da lei e da doutrina. Se as bem-aventuranças em si constituem o verdadeiro retrato de Jesus, as duas características que Ele cita aqui formam a mais perfeita síntese da sua pessoa: manso e humilde de coração. É importante ressaltar que a mansidão vivida por Jesus não pode ser confundida com resignação nem comodismo. Pelo contrário, essa consiste na coragem de lutar pelo Reino, mesmo na adversidade sem, no entanto, recorrer aos mecanismos do opressor, como a violência e o ódio, sobretudo. Portanto, não significa um alívio passageiro diante provações cotidianas da vida. Assimilar a mansidão e humildade de Jesus significa abraçar o desafio da construção de um mundo novo, humanizado, com justiça, fraternidade, igualdade e muito amor. É nisso que consiste o verdadeiro descanso. Significa fazer a criação inteira recuperar o seu estado primordial, pois foi assim que o próprio descansou.

Ao contrário do peso das prescrições legais impostas pela religião do seu tempo, Jesus dá uma garantia aos seus seguidores: «O meu jugo é suave e o meu fardo é leve» (v. 30). É claro que ele não está prometendo facilidades na vida para aqueles que abraçarem o seu projeto, como já foi ressaltado anteriormente. O seu fardo, que é leve, consiste exatamente na vivência das bem-aventuranças, o que implica muitas exigências e desafios, sobretudo no campo ético. Inclusive, o principal critério para reconhecer se alguém está vivendo as bem-aventuranças é exatamente a perseguição (Mt 5,11-12). Isso reforça que a leveza prometida não significa comodismo. A proposta de Jesus é suave e leve porque não consiste em preceitos a cumprir, mas num amor a ser experimentado e, consequentemente, compartilhado. E nisso consiste a missão cristã no mundo: compartilhar o amor, fazer o mundo conhecer um amor que humaniza e faz viver.

Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

Nenhum comentário:

Postar um comentário

REFLEXÃO PARA O 6º DOMINGO DA PÁSCOA – JOÃO 15,9-17 (ANO B)

A liturgia deste sexto Domingo da Páscoa continua a leitura do décimo quinto capítulo do Evangelho de João, iniciada no domingo passado. O...