sábado, setembro 30, 2023

REFLEXÃO PARA O 26º DOMINGO DO TEMPO COMUM – MATEUS 21,28-32 (ANO A)



O evangelho deste vigésimo sexto domingo é Mt 21,28-32, texto que compreende a chamada parábola dos dois filhos, cujo pai os ordena a trabalhar na sua vinha. É uma parábola exclusiva do Evangelho de Mateus, sendo a segunda de uma trilogia que emprega a imagem da vinha como representação do Reino de Deus, na respectiva obra. A primeira foi lida no domingo passado (dos trabalhadores da vinha – Mt 20,1-16) e a terceira será lida no próximo domingo (dos vinhateiros homicidas – Mt 21,33-43). Enquanto aquela do domingo passado foi contada ainda no contexto narrativo do caminho de Jesus com seus discípulos em direção à cidade de Jerusalém, a de hoje já é contada na “cidade santa”. Isso quer dizer que o texto se localiza na seção narrativa do ministério de Jesus em Jerusalém, e é dessa seção que será tirado o evangelho de cada domingo, de hoje até o final do corrente ano litúrgico. Como se sabe, foi em Jerusalém que Jesus viveu a fase mais tensa de seu ministério, confrontando-se diretamente com as autoridades religiosas e políticas da época. Tanto é que o desfecho desse confronto foi a condenação à morte de cruz. O evangelho de hoje já reflete esse confronto.

O texto retrata Jesus no templo de Jerusalém, um espaço que se tornou sinônimo de conflito e hostilidade para ele. Inclusive, o seu primeiro gesto em Jerusalém, logo após uma entrada triunfante (Mt 21,11), foi denunciar a situação deplorável em que o templo se encontrava, tendo se transformado em “antro de ladrões”, quando deveria ser uma casa de oração (Mt 21,12-17). Jesus não se conformou em ver o templo transformado em casa de comércio e o nome de Deus, o seu Pai, transformado em mercadoria e instrumento de exploração. Por isso, denunciou corajosamente aquela situação, desmascarando a classe dirigente, especialmente os sacerdotes, que exploravam o povo em nome de Deus. A denúncia do templo foi o estopim para o conflito de Jesus com as classes dirigentes, que passaram a vigiar cuidadosamente os seus passos e os seus ensinamentos. E o ensinamento de Jesus divergia completamente do magistério oficial da época. Sua mensagem libertadora visava a construção do Reino de Deus como sociedade alternativa à ordem vigente. Isso exigia uma transformação total, com a supressão de todas as estruturas de poder e exploração, começando pela religião que explorava e até matava em nome de Deus.

Apesar das divergências e hostilidades, em Jerusalém, Jesus ensinava no templo, pois era lá que havia grande concentração de pessoas e onde ele poderia questionar mais diretamente a classe dirigente. É claro que não era do púlpito que ele ensinava, mas nos diversos átrios, pois sua mensagem libertadora era insuportável para os dirigentes. Por isso, ele foi duramente questionado, como recorda o evangelista: «Jesus voltou ao Templo. Enquanto ensinava, os chefes dos sacerdotes e os anciãos do povo se aproximaram e perguntaram: ‘Com que autoridade fazes tais coisas? Quem foi que te deu essa autoridade?’» (Mt 21,23). O trecho lido hoje faz parte deste confronto específico, quando Jesus teve a sua autoridade questionada pelos sacerdotes e anciãos, por causa da expulsão dos vendedores do templo, sobretudo, pois foi o seu primeiro gesto profético na cidade. E Jesus respondeu a esse primeiro questionamento denunciando a hipocrisia e a falsa autoridade que os dirigentes exerciam, o que serve de advertência aos seus discípulos e discípulas de todos os tempos para o risco de reproduzir o modelo de religião que ele denunciou. Como de costume, Jesus não dá uma resposta pronta, mas provoca em seus interlocutores a reflexão, buscando tirar deles mesmos a resposta. Ele parte do exemplo de João Batista, deixando os sacerdotes e anciãos embaraçados (Mt 21,24-24), até chegar na parábola lida na liturgia de hoje.

Como o início do próprio texto indica, através da pergunta introdutória «Que vos parece?», o que é dito em seguida visa reforçar algo já introduzido na discussão anterior. Na verdade, é a continuação de uma discussão em andamento, na qual Jesus afirma sua autoridade, após ser questionado pelos sacerdotes e anciãos, ou seja, os chefes religiosos e, ao mesmo tempo, denuncia a ilegitimidade deles. Essa fórmula de introdução em forma de pergunta já tinha sido utilizada na parábola da ovelha perdida (Mt 18,12), e funciona como uma chamada de atenção para o que vem a seguir; significa que se trata de um ensinamento de fundamental importância. Indica também que será exigida uma resposta e tomada de posição dos interlocutores, no final. Eis, então, o início do texto: «Que vos parece? Um homem tinha dois filhos. Dirigindo-se ao primeiro, ele disse: ‘Filho, vai trabalhar hoje na vinha’» (v. 28). A vinha é uma imagem clássica na tradição bíblica para designar o povo de Deus (Is Is 5,1-7), e adaptada por Jesus como imagem do Reino de Deus (Mt 20,1-16) por ele inaugurado. Os personagens da parábola – um pai e dois filhos – também são imagens bem significativas, muito valorizadas pelas tradições das primeiras comunidades, como sempre foram ao longo da história de Israel. Inclusive, essa parábola se aproxima daquela que em Lucas é chamada de “parábola do filho pródigo” ou do “pai misericordioso” (Lc 15,11-32).

Geralmente, quando aparece uma narrativa protagonizado por dois irmãos, na Bíblia, evidencia-se a contraposição de comportamento e conduta entre os dois. Vemos isso desde o início, com os exemplos de Caim e Abel (Gn 4,1-16), Esaú e Jacó (Gn 25,19–27,45). Tanto Jesus quanto o evangelista, portanto, se ancoram nessa tradição, sobretudo quando visam provocar uma tomada de posição dos interlocutores e dos discípulos, sobretudo. E o foco do ensinamento da parábola consiste exatamente na contraposição de comportamento dos dois filhos que receberam a mesma ordem, mas responderam e agiram de modo oposto. Ao pedir que os filhos trabalhassem na sua vinha, o pai queria que eles se sentissem colaboradores diretos da sua obra. Assim, fica claro, desde o início, que Jesus quer apresentar um pai que compartilha o que é seu com os filhos e pede que esses sejam seus colaboradores. Considerando que esse pai representa Deus, na parábola, Jesus está também denunciando a ilegitimidade da autoridade dos sacerdotes e anciãos, considerados na época como os únicos responsáveis pelas “coisas de Deus” na terra. O pai interage diretamente com os dois filhos, apresenta sua proposta, seu programa, sem necessidade de intermediários, como fez o proprietário da vinha na parábola do domingo passado, ao ir diretamente à praça em busca de trabalhadores. Tudo isso indica o jeito novo de Deus se comunicar com a humanidade, a partir de Jesus, o verdadeiro Deus conosco.

O pai fez a mesma proposta aos dois filhos, ou seja, convidou-os para trabalhar na vinha, e recebeu respostas diferentes. Eis a reação do primeiro destinatário da ordem/convite do pai: «Não quero». Apesar de brusca, é uma resposta sincera e direta, sem nenhum formalismo. Porém, depois, aquele filho «mudou de opinião e foi» (v. 29b). O que a tradução do lecionário traz como “mudou de opinião” seria mais bem traduzido por “arrependeu-se”, pois corresponde melhor ao verbo empregado na língua original do texto (verbo grego metamelómai – μεταμέλομαι). Esse verbo faz parte do vocabulário da conversão, na linguagem bíblica. Dai, podemos dizer, portanto, que aquele filho se converteu e foi trabalhar na vinha do seu pai. Ele mudou não apenas de opinião, mas de mentalidade e, por consequência, mudou o jeito de agir. E é nisso que consiste a conversão. Eis, agora, a resposta-reação do segundo filho: «‘Sim, Senhor, eu vou’. Mas não foi» (v. 30b). Dessa vez, a resposta é respeitosa, carregada de formalismo. Inclusive, o pai é tratado como “senhor”. Porém, a postura do filho não foi coerente com a resposta. Como se vê, tanto foram diferentes as respostas quanto as atitudes de cada um dos dois filhos. O centro do ensinamento de Jesus com essa parábola está exatamente aqui, no contraste entre as respostas e os comportamentos dos dois filhos, como já afirmamos anteriormente.

Historicamente, Israel, como povo da aliança, disse sim a Deus com palavras, embora seu comportamento tenha se distanciado tanto da verdadeira vontade de Deus. Com esse contraste entre os dois filhos, Jesus provoca seus interlocutores e os convida a uma reflexão. Por isso, lhes pede um juízo, uma opinião sobre os dois filhos: «Qual dos dois fez a vontade do pai?». E, como não poderia ser diferente, «Os sumos sacerdotes e os anciãos do povo responderam: ‘O primeiro’» (v. 31). De fato, a resposta não poderia ser outra, pois a parábola é muito clara. Quem fez a vontade do pai foi mesmo o primeiro filho, aquele que disse “não” inicialmente, mas se arrependeu e foi trabalhar na vinha. Ao ir trabalhar, esse primeiro filho fez verdadeiramente a vontade do pai, mesmo tendo respondido negativamente, uma vez que o importante para Deus não são as palavras, mas sim as atitudes. O segundo filho, pelo contrário, não fez a vontade do pai porque ficou apenas no discurso, não levou a solene resposta – «Sim, Senhor» – para a prática. Com isso, Mateus chama a atenção da sua comunidade e dos cristãos de todos os tempos para também não caírem nos mesmos erros e contradições das lideranças religiosas de Israel. Por sinal, Mateus já havia introduzido esse tema no discurso da montanha, ao recordar as palavras de Jesus que priorizam o fazer sobre o dizer: «Não é aquele que diz: ‘Senhor! Senhor!’ que entrará no Reino dos céus, mas aquele que realiza a vontade do meu Pai que está nos céus» (Mt 7,21). Em outra ocasião, numa discussão com os escribas e fariseus, ele também denunciou a contradição e incoerência entre o discurso e a prática das lideranças religiosas de Israel, com uma citação do profeta Isaías: «Este povo me honra com os lábios, mas seu coração está longe de mim» (Mt 15,8 = Is 29,13).

Com certeza os chefes religiosos de Jerusalém já tinham percebido a complexidade da situação em que tinham se envolvido ao questionar a autoridade de Jesus. Sem dúvidas, o clima piorou ainda mais com a continuação da resposta de Jesus a eles: «Então Jesus lhes disse: ‘Em verdade vos digo que os cobradores de impostos e as prostitutas vos precedem no Reino de Deus’» (v. 31b). Dessa vez, Jesus passou dos limites, pensaram eles, certamente. Enquanto Jesus os acusava com uma linguagem simbólica, eles poderiam ignorar, mudar o foco ou até propor uma interpretação distorcida. Mas assim, de modo tão claro e objetivo, não seria possível. Os cobradores de impostos e as prostitutas eram, de acordo com a mentalidade da época, as piores categorias de pessoas, a verdadeira escória da sociedade, e Jesus ousou dizer que elas herdariam primeiro o Reino de Deus do que as pessoas religiosas de Israel. O verbo preceder no presente indica a realização imediata ou, pelo menos, o começo do Reino de Deus na história. Jesus inaugura o Reino em sua vida e tem clareza de quem estava aderindo primeiro. Também chama a atenção nessa passagem o emprego da expressão “Reino de Deus”, rara no Evangelho de Mateus, já que ele prefere “Reino dos Céus”, provavelmente para não afetar a sensibilidade judaica, tendo em vista a impronunciabilidade do nome de Deus, tão recomendada nos textos legislativos do Antigo Testamento. Enquanto Reino dos Céus aparece trinta e duas vezes, Reino de Deus aparece apenas cinco vezes no respectivo Evangelho.

A rejeição dos chefes à mensagem de Jesus é comparável à rejeição sofrida por João (v. 31). De fato, também o precursor veio «num caminho de justiça», mas foi rejeitado pelos conhecedores da lei e dos profetas, ou seja, pelas pessoas religiosas como os sacerdotes e anciãos, fechados ao arrependimento devido à autossuficiência de suas convicções religiosas e pelos privilégios que haviam. De fato, para as classes privilegiadas, a mensagem emancipatória de Jesus soa sempre como uma ameaça. Por outro lado, «os cobradores de impostos e as prostitutas» (v. 31b), rejeitados pela religião, mas abertos à conversão, sedentos de compreensão e acolhimento, necessitados de humanização, acreditaram no Batista e em Jesus, tornando-se, assim, herdeiros do Reino de Deus, a nova vinha do Pai, que é o próprio Deus. É claro que nem todos os publicanos e prostitutas se converteram, mas é certo que houve adesão de gente dessas categorias e todos os grupos marginalizados da época à mensagem inclusiva de Jesus. Na verdade, a menção a essas duas categorias funciona como síntese de todos as classes de pessoas marginalizadas, destinatárias privilegiadas do projeto humanizador de Jesus. Desse modo, a máxima proverbial que emoldurava a parábola do domingo passado, é atualizada também na parábola de hoje: «Os últimos serão os primeiros, e os primeiros serão os últimos» (Mt 20,16). É importante que, assim como a comunidade de Mateus soube atualizar essa mensagem, também as nossas comunidades de hoje saibam. Os primeiros de sempre, transformados em últimos na dinâmica do Reino serão sempre as pessoas autossuficientes, arrogantes, conhecedoras dos mínimos detalhes das leis religiosas, como eram os sacerdotes, anciãos e escribas da época de Jesus. Hoje, embora em outras modalidades, essas pessoas continuam presentes em nossas comunidades, com a mesma autossuficiência, julgando, excluindo e determinando como o outro deve agir.

É preciso, portanto, identificar quem são os últimos de hoje para os reconhecermos como primeiros no Reino. Na época, Jesus identificou os cobradores de impostos e as prostitutas, exemplos máximos de pessoas pecadoras e, por isso, distantes de Deus. Hoje, certamente há uma relação muito maior de categorias de pessoas excluídas pelas religiões e comunidades eclesiais que Jesus as colocaria como primeiras no Reino de Deus. Todos os que sofrem discriminações, vítimas de preconceitos, e excluídos por quem controla e impõem as normas de comportamento, estariam na lista de Jesus, precedendo aqueles que louvam com os lábios, mas pouco fazem para o Reino acontecer, ou seja, não fazem a vontade do pai. Fazer a vontade do Pai é o requisito básico para entrar no Reino. E faz a vontade do Pai quem assimila o estilo de vida de Jesus.

Pe. Francisco Cornélio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

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