Assim como
acontece com a liturgia da missa da noite, o evangelho indicado para a missa do
dia na solenidade do Natal do Senhor também é o mesmo para todos os anos.
Trata-se do prólogo do Evangelho de João – Jo 1,1-18. Esse texto é considerado
uma das páginas mais belas e profundas de toda a Bíblia. É um poema de elogio à
Palavra de Deus, cuja encarnação constitui o centro do mistério do Natal e, consequentemente,
da vida cristã. Enquanto Mateus e Lucas procuraram explicar o nascimento e a
origem divina de Jesus a partir de relatos e reconstrução de prováveis
genealogias (Mt 1,1-17; Lc 3,23-38), o autor do Quarto Evangelho recorda a sua
preexistência enquanto Palavra ou Verbo de Deus que precede a criação do mundo,
inclusive, apresentando a participação da própria Palavra na criação do mundo. Pela
diferença de estilo literário, sobretudo, muitos estudiosos acreditam que esse
texto é um acréscimo posterior da comunidade joanina, enquanto outros o vêem
como uma introdução pensada pelo autor, desde o início, como chave de leitura
de toda a obra, uma vez que no prólogo já se percebem indicações de
praticamente todas as linhas teológicas tratadas no Quarto Evangelho e nas
cartas atribuídas à tradição joanina. O debate em torno dessa questão continua
aceso na exegese, sem perspectiva de conciliação. A extensão do texto não
permite um comentário pormenorizado versículo por versículo. Por isso,
procuramos colher a mensagem central do texto.
E
começamos recordando que o prólogo do Evangelho de João foi visto com
desconfiança em muitas comunidades cristãs dos primeiros séculos, devido a uma
suposta influência da filosofia grega. Isso foi mais pela linguagem do que
mesmo pelo conteúdo em si. De fato, nesse texto o autor procura conciliar a
maneira de pensar dos gregos com o jeito de acreditar dos hebreus. Contudo,
embora expressa em linguagem mais próxima da filosofia e poética gregas do que
da literatura hebraica, a mensagem deste prólogo possui plena relação e continuidade
com a teologia predominante da Bíblica Hebraica, apesar dos pontos de ruptura,
como acontece com todos os escritos do Novo Testamento. Até mesmo em relação à
linguagem fica evidente que o autor fez uso de modelos já conhecidos no mundo
judaico, embora não tão aceitos, como os elogios à Sabedoria em Sb 6–9, Pr 8 e
Eclo 24. De fato, a maneira como o autor do Quarto Evangelho apresenta a
Palavra-Verbo (em grego: logos – λόγος) possui
muita afinidade com o que se dizia da Sabedoria (em grego: sofia – σοφίᾳ) no
Antigo Testamento que, personificada, desceu do céu e se tornou acessível
à humanidade. Porém, dos textos citados do Antigo Testamento, que fazem elogio
à Sabedoria e certamente influenciaram o autor do Quarto Evangelho, somente o
de Provérbios faz parte da Bíblia Hebraica, pois os livros da Sabedoria e do
Eclesiástico não são considerados inspirados pelos judeus.
Feitas
algumas considerações a nível de contexto, olhemos para o texto e, logo de
início, já percebemos a primeira grande afinidade com o Antigo
Testamento: «No princípio era a Palavra, e a Palavra estava com Deus e
a Palavra era Deus» (v. 1). A primeira expressão do prólogo é a mesma
que abre o livro da Gênesis, na tradução grega dos Setenta (LXX): “no
princípio” (Ἐν ἀρχῇ - en
arkê). Em Gn 1,1 se diz que no “princípio Deus criou…”, mas aqui se diz que num
princípio anterior à própria criação já havia a Palavra que estava com Deus e
era ele próprio. Isso quer dizer que, enquanto Palavra, Jesus Cristo já existia
antes da criação do mundo e ele mesmo foi agente da criação, junto com Deus, o
Pai, como diz o texto: «Tudo foi feito por ela e sem ela nada se fez de tudo
que foi feito» (v. 3). Talvez essa seja uma das descobertas mais
surpreendentes e preciosas que o autor do Quarto Evangelho nos fornece. Ora, no
Novo Testamento, existem hinos até mais antigos do que este que afirmam a
pré-existência do Cristo, como Filho de Deus e agente da criação (Ef 1,3-14; Cl
1,15-20), mas não afirmando que ele é a Palavra com a clareza que João faz
aqui. E a profundidade deste primeiro versículo de João se torna ainda mais
evidente se o compararmos aos evangelhos sinóticos de Mateus e Lucas que,
empregando o gênero literário da genealogia, chegam ao máximo em Abraão e Adão,
quando procuram identificar as origens messiânicas de Jesus. Afirmando a
preexistência da Palavra na eternidade de Deus, o autor ensina que Deus fala,
ele se comunica com a humanidade. Aliás, diz que todo o agir de Deus se dá por
meio da Palavra. Isso evoca a ideia de um Deus acessível à humanidade, como, de
fato, a vida de Jesus demonstra tão bem.
Na
sequência, o autor exalta as qualidades do Cristo enquanto Palavra e seus
efeitos para o mundo: «Nela estava a vida, e a vida era a luz dos
homens, e a luz brilha nas trevas, e as trevas não conseguiram dominá-la» (vv.
4-5). Vida e luz são duas das categorias teológicas mais relevantes na
perspectiva do Quarto Evangelho, e aqui são diretamente associadas a Jesus: ele
é fonte de vida e de luz. No auge de sua vida pública, Jesus mesmo vai dizer
que veio ao mundo para trazer luz ao mundo e comunicar vida em abundância à
humanidade (Jo 8,12; 10,10). Ele vai dizer claramente ser a luz e a vida verdadeiras.
Sua luz é eterna, brilha fortemente, mas é perseguida pelas trevas, que são
todas as forças de morte manifestadas ao longo da história, incluindo o poder
religioso instituído em Israel e os diversos sistemas de poder político que já
dominaram aquele povo. Na verdade, as trevas são todas as oposições ao projeto
de Deus, desde a criação até os tempos atuais, de modo que as trevas aqui
mencionadas não dizem respeito apenas à história de Israel, mas ao mundo
inteiro. Todo impedimento ao projeto de Deus e da Palavra encarnada, Jesus,
representa o mundo das trevas, em todos os tempos e lugares. A primeira vitória
da luz aconteceu na criação: o primeiro ato criador de Deus foi invocar a luz
sobre o caos primordial (Gn 1,3). E o Natal, enquanto “fazer-se carne” da
Palavra é o começo da máxima manifestação dessa luz, cujo ápice será a
ressurreição. Durante sua vida terrena, Jesus experimentou na carne o quanto a
sua luz foi perseguida pelas trevas. Mas a ressurreição mostrou que as trevas
não conseguiram dominá-la.
Por ser
também uma síntese poetizada do percurso dinâmico da Palavra, desde a criação
até a encarnação, o prólogo do evangelho joanino compreende também, embora
implicitamente, uma síntese da história da salvação. Por isso, não poderiam
faltar referências aos personagens mais relevantes da história e da religião de
Israel. Mas o autor é muito cuidadoso nesse sentido, e cita somente dois nomes:
Moisés e João, o Batista; um legislador e um profeta. João, o Batista, é
identificado como enviado por Deus para dar testemunho da luz (vv. 6-9.15). O
papel da testemunha é apontar para a luz, ajudando os outros a serem iluminados
e, por consequência, a chegarem à fé, como consequência da luz contemplada e
recebida. Nesse sentido, João é síntese de todo o profetismo bíblico que, ao
longo da história, constituiu-se como a expressão religiosa mais autêntica de
Israel. Com a instituição religiosa corrompida desde o início, por muitos
séculos somente o profetismo fez a luz de Deus resplandecer sobre o seu povo. O
aparato ritualista do templo, em conluio com a monarquia e, posteriormente, com
os impérios dominantes, ofuscavam a luz verdadeira. Por isso, por tanto tempo a
luz verdadeira não foi conhecida e nem reconhecida, apesar de nunca ter faltado
o testemunho de profetas como João Batista (vv. 10-11). Também Moisés não
poderia ser esquecido na apresentação da trajetória da Palavra-Luz. Seu papel é
reconhecido, mas colocado em seu devido lugar: por meio dele foi dada a Lei (v.
17), que tem a sua importância na história, mas até certo ponto, pois ela não
comunica graça e nem verdade, e pode ser distorcida por aqueles que se
credenciam como seus legítimos interpretes, como realmente aconteceu. Basta
olhar a história de Israel para perceber o quanto a Lei foi distorcida, sendo
mais usada para escravizar do que mesmo para libertar. Por não comunicar graça
e verdade, a Lei não gerava filhos para Deus, mas apenas servos. Só o
Cristo-Palavra gera filhos para Deus, porque somente ele reflete a luz
verdadeira do Pai e, por isso, ele é a própria luz (v. 18). Na verdade, tudo o
que é propriedade do Pai só pode ser comunicado claramente por aquele que o
conhece verdadeiramente, e é Jesus quem o conhece.
Até então,
todas as formas de comunicação experimentadas por Deus para revelar-se
claramente à humanidade tinham sido parciais e, por isso, insuficientes (Hb
1,1-2). Por isso, chegou o momento em que «a Palavra se fez carne e
habitou entre nós. E nós contemplamos a sua glória, glória que recebe do Pai
como Filho Unigênito, cheio de graça e de verdade» (v. 14). Esse
versículo é o ponto alto do texto e de toda a fé cristã. Sobrepõe-se,
inclusive, à fé na ressurreição, porque a ressurreição é consequência da
encarnação. Ele ressuscitou porque morreu, e só morreu porque se fez carne. Não
há contraposição entre os dois mistérios, o que há é uma relação de causa e
efeito. E Para compreender bem esse versículo, e perceber a verdadeira
revolução que ele indica, é necessário voltar para o início e lê-lo em paralelo
com o primeiro versículo: «No princípio era Palavra, e a Palavra estava
com Deus e a Palavra era Deus» (v. 1). A Palavra que se fez carne é o
próprio Deus. Temos aqui uma reviravolta maravilhosa na história! Ora, ao longo
da história, não faltam personagens que agiram como se fossem deuses, que é a
lógica do mundo. A ambição, o orgulho, a sede de poder e a prepotência levam os
homens a quererem ser como Deus. E o Natal revela um movimento totalmente
oposto a essa lógica: não é um homem que se fez Deus, mas um Deus que se fez
homem, motivado pelo amor. E é somente por causa desse acontecimento que
podemos contemplar a glória de Deus. Antes, imaginava-se que a glória de Deus poderia
ser contemplada na Lei, no templo e, ocasionalmente, em algumas raras
manifestações a personagens privilegiados. Aqui, o evangelista ensina que a
carne humana, sinônimo de fragilidade na teologia tradicional de Israel, é o
lugar privilegiado de manifestação da glória de Deus. Por isso, esse versículo
(v. 14) pode ser considerado um dos mais revolucionários de toda a Bíblia.
A Palavra
se fez carne, e nessa carne podemos contemplar a glória de Deus em plenitude,
com transparência. E conhecemos como se deu esse “fazer-se carne” da Palavra:
foi numa criança pobre, nascida em condições sub-humanas. Essa é a maior
revolução da história. É o ponto de chegada de uma longa trajetória, anterior
até mesmo à criação do mundo, e o ponto de partida de uma nova história, que
começa pelos últimos, pelos pequenos, pelo que é frágil e marginalizado. O
autor poderia dizer apenas que a Palavra se tornou humano ou homem, mas isso
poderia ser distorcido; poderiam dizer que ele, em sua divindade, teria apenas
se revestido de humanidade, sem, no entanto, ter-se tornado verdadeiramente
humano e frágil. Inclusive, na própria comunidade do evangelista surgiu esse
problema, o que se tornou um dos motivos principais para a redação da Primeira
Carta de João: reafirmar que Jesus Cristo veio na carne (1Jo 4,1). Ora, o termo
carne (em grego: σὰρξ – sarx) empregado pelo
evangelista representa a dimensão mais frágil da condição humana. Inclusive, em
algumas tendências teológicas, às vezes, é usado como sinônimo de pecado, em
contraposição a “espírito”, como convite para o ser humano superar o “estado da
carne”. Isso evidencia ainda mais o quanto a declaração de Jo 1,14 é
revolucionária. A Palavra não apenas se fez carne. Mas escolheu o fazer-se
carne para morar no meio da humanidade e como meio privilegiado de revelação da
gloria de Deus. Ora, os judeus imaginavam a gloria de Deus como poder e forca,
os gregos viam a gloria como a sabedoria fornecida pela filosofia, enquanto o
cristianismo, na perspectiva do Quarto Evangelho, afirma que é na carne humana
que a gloria de Deus se manifesta.
O Natal é,
portanto, um convite atualizado para se conhecer a Deus e aprender como se pode
conhecê-lo, porque ensina, acima de tudo, onde ele está, como ele se manifesta
e qual é a expressão máxima da sua glória: é a carne humana, inicialmente a do
seu Filho Unigênito, o menino pobre de Belém; depois, a carne de todas as
pessoas que, no Filho, se tornam filhos e filhas de Deus também. Como dizia um
anônimo teólogo, o cristianismo é “a religião do céu vazio”, porque Deus
escolheu a carne humana para morar, armando definitivamente a sua tenda.
Pe.
Francisco Cornélio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN
Bela explicação. Profunda teologia. Obrigado Pe.
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