A liturgia deste décimo segundo domingo do tempo comum prossegue com a
leitura semi-contínua do Evangelho de Marcos, como é característico do ciclo
litúrgico em curso (ano B). O texto lido hoje – Mc 4,35-41 – é precisamente a
continuação daquele do domingo passado (Mc 4,26-34). Naquela ocasião, fora lida
a parte conclusiva do discurso em parábolas sobre o Reino de Deus em Marcos,
que corresponde ao primeiro ensinamento de Jesus após a constituição da sua
nova família, composta por todas as pessoas com disposição para fazer a vontade
de Deus, tornando-se, por consequência, mãe, irmãos e irmãs suas (Mc 3,35). Ora,
no discurso em parábolas, Jesus evidenciou o mistério paradoxal e complexo do
Reino; trata-se de uma realidade tímida, a princípio, mas com grande força
transformadora, tanto é que a imagem predominante nas parábolas foi a da
semente: o discurso começou com a parábola do semeador (Mc 4,3) e terminou com
a do grão de mostarda (Mc 4,30).
A adesão ao projeto de Reino apresentado por Jesus, portanto, exige mudança
de mentalidade, passando pela ruptura e emancipação das pessoas em relações às
estruturas, esquemas e instituições tradicionais, a começar pela família
patriarcal e a religião do templo (Mc 3,20-35). O evangelho de hoje mostra um
passo importante dessa ruptura: a travessia do lago de Genesaré, chamado pelos
evangelistas de mar da Galileia. Trata-se de um texto de grande importância
para o conjunto do Evangelho de Marcos, pois inaugura uma nova fase no
ministério libertador de Jesus. É o ponto de partida para a sua missão fora dos
limites de Israel, já que a “outra margem”, na linguagem evangélica, significa
o mundo pagão. Pode-se dizer, por isso, que é o lançamento das bases de uma
verdadeira “Igreja em saída”. Além disso, a “tempestade acalmada” inaugura uma
série de quatro milagres de Jesus, concluída com a ressurreição da filha de
Jairo (Mc 5,21-43), mostrando que o centro de todo o seu projeto é o triunfo da
vida, objetivo da instauração do Reino. Para isso, é necessário vencer todos os
obstáculos e impedimentos. Convém recordar, como sempre, que o objetivo do
evangelista com o seu relato é ajudar a manter viva a fé de comunidade(s) em
crise, seja por perseguição externa seja por divisões ou falta de entusiasmo
interno.
Feita a contextualização, olhemos para o texto: «“Naquele dia, ao cair
da tarde, Jesus disse a seus discípulos: “Vamos para a outra margem!”» (v.
35). É muito importante quando a versão litúrgica preserva o indicativo
temporal do próprio texto, como hoje, o que é raro, sem substituir pela vaga e
genérica expressão “naquele tempo”. Portanto, “aquele dia” foi o dia mesmo do
discurso em parábolas, proclamado à beira-mar (Mc 4,1). O cair da tarde
significa o início; para a mentalidade semita, é também o início de um novo
dia, mas não era o momento ideal para começar uma viagem. A noite evoca perigo,
conforme a maneira de pensar nos tempos bíblicos, por isso, era o momento de
recolher-se em casa, ainda mais para quem tinha passado o dia inteiro ensinando
e, por isso, estava cansado, como era o caso de Jesus. Portanto, o mais logico
seria esperar o dia amanhecer para recomeçar as atividades. Porém, Jesus faz o
contrário, e convida seus discípulos para uma empreitada desafiadora: «Vamos
para a outra margem!». Já temos, assim, dois sinais de perigo, logo no primeiro
versículo: a noite e o mar, imagens que simbolizam trevas e caos, ao mesmo
tempo. Certamente, os discípulos pescadores estavam acostumados a essa
realidade, mas nem todos eram pescadores. Além disso, a atividade pesqueira
exigia familiaridade com o mar, mas não necessariamente a chegada à outra
margem, embora não fosse difícil em termos de praticidade, uma vez que a
largura máxima do lago chamado de mar da Galileia era dezesseis quilômetros.
O mar simboliza o caos, como afirmado acima. Para a mentalidade bíblica,
era o lugar onde residiam as forças do mal. A outra margem significa o mundo
pagão, considerado impuro pela religião judaica. Para um judeu devoto, era um
mundo a ser evitado, mas é para esse mundo que Jesus convoca seus discípulos a
andarem com ele. O que era evitado pela religião da época, torna-se prioridade
na missão de Jesus, como os últimos se tornam primeiro, como indica sua clara
opção preferencial pelos pobres e marginalizados. O mar da Galileia
representava, então, uma barreira de separação entre o judaísmo e o mundo
pagão, mas quebrar barreiras faz parte da missão de Jesus e da comunidade de
seus seguidores e seguidoras. Por isso, discípulos obedeceram: «Eles despediram
a multidão e levaram Jesus consigo, assim como estava, na barca. Havia ainda
outras barcas com ele» (v. 36). Os discípulos despedem a multidão que tinha se
reunido para escutar Jesus, que já se encontrava na barca, uma vez que era da
barca mesma que ele tinha ensinado durante todo o dia. Portanto, de púlpito
improvisado, a barca (em grego: πλοῖον – ploion) se torna a outra
imagem privilegiada da comunidade cristã no Evangelho de Marcos, junto com a
casa. Enquanto a casa simboliza a vida fraterna, a irmandade, a barca simboliza
a missão, o sair de si, a disposição e a coragem de correr perigos pelo Reino.
Sem essas duas dimensões – irmandade e missão – não existe comunidade cristã. A
menção a outras barcas que estavam com ele pode indicar que estavam num ponto
de ancoragem às margens do lago e poderiam até terem sido usadas por pessoas
que tinham vindo ao seu encontro, para ouvir seus ensinamentos.
A passagem para a outra margem não acontece sem riscos e perigos, mas é
essencial para a comunidade manter-se fiel aos propósitos de Jesus. As
turbulências são inevitáveis, pois essa passagem pressupõe um
desestabilizar-se. É um sair de si, deixando de lado todo qualquer sinal de
comodismo. E é isso o que mostra o texto: «Começou a soprar uma ventania
muito forte e as ondas se lançavam dentro da barca, de modo que a barca já
começava a se encher» (v. 37). A “ventania muito forte” é a síntese das
principais dificuldades da comunidade do evangelista, na época da redação do
Evangelho: a perseguição do império romano, sob o reinado de Nero (início dos
anos 60 d.C.), a oposição das lideranças do judaísmo, e o
medo/comodismo/desânimo dos próprios membros da comunidade. Tudo isso ameaçava
a comunidade, tornando-a semelhante a uma barca em alto-mar durante uma
tempestade. Surpreende que, durante a tempestade, «Jesus estava na parte de
trás, dormindo sobre um travesseiro» (v. 38a). Isso quer dizer que as
turbulências da vida, as tempestades pelas quais passa a comunidade cristã não
significam ausência de Jesus, mas pode levar as pessoas a não sentirem e nem
reconhecerem a sua presença, e o texto visa chamar a atenção dos
ouvintes-leitores sobre isso. Ora, o caminhar da Igreja em saída jamais será
tranquilo. Pelo contrário, quanto mais a Igreja sair de si mais encontrará
oposição e obstáculos, ou seja, ventanias contrárias muito fortes, a começar
pelos seus próprios membros que não aceitam passar para as outras margens, onde
estão os pobres e as pessoas marginalizadas em todos sentidos. Portanto, a
imagem de Jesus dormindo aqui é uma advertência para a comunidade de todos os
tempos. Ela corre o risco de negligenciar a presença do Cristo Ressuscitado.
Trata-se, portanto, de uma catequese pascal do evangelista para sua comunidade
com dificuldade de encontrar o Ressuscitado e reconhecê-lo num momento
histórico tão crítico como estavam vivendo.
O sono de Jesus lhe ocasiona uma repreensão pelos discípulos: «Os
discípulos o acordaram e disseram: “Mestre, estamos perecendo e tu não te
importas?”» (v. 38b). É interessante que, aqui em Marcos, os discípulos não
pedem uma intervenção propriamente, mas apenas questionam a aparente
indiferença de Jesus. Em Mateus e Lucas, por outro lado, eles fazem um pedido
explícito de socorro: “Senhor, salva-nos!” (Mt 8,25; Lc 8,24). Ora, o sono de
Jesus não significa indiferença diante dos obstáculos vividos pela comunidade,
mas sim que esses são inevitáveis. Faz parte da missão mesma a exposição aos
perigos, por isso, não quer dizer que ele esteja ausente quando surgem as
adversidades. Não há travessia tranquila. As dificuldades só podem ser vencidas
se forem enfrentadas, como Jesus estava ensinando aos discípulos, com a
proposta de passar à outra margem. Aos discípulos, estava faltando coragem para
enfrentar a travessia. Essa é a primeira vez que os discípulos chamam Jesus de
mestre, no Evangelho de Marcos, um dado bastante significativo. Aos poucos os
discípulos iam compreendendo a posição de Jesus na comunidade e na vida de cada
um, mas de maneira muito tímida, ainda. Reconhecê-lo como mestre já é um passo,
mesmo que a motivação tenha sido uma situação desesperadora. Nos momentos mais
difíceis da vida, saber com quem se pode contar e a quem se dirigir, já é um
meio caminho para a solução.
Diante da pressão dos discípulos, eis que «Ele se levantou e ordenou ao
vento e ao mar: “Silêncio! Cala-te!” o vento cessou e houve uma grande
calmaria» (v. 39). A intervenção de Jesus se dá unicamente por meio da
palavra. O evangelista não relata nenhum gesto, além do levantar-se. A ordem
dada é praticamente a mesma quando realiza exorcismos (Mc 1,25). Ao ordenar ao
vento, ao mar ou a um espírito impuro que se calem, na verdade Jesus está é
advertindo os seus discípulos para que não escutem outras palavras que não
sejam as suas. A agitação do vento e do mar, neste episódio, simboliza todas as
vozes e barulhos que se opõem ao Evangelho, impedindo-o de ser anunciado ou
distorcendo-o. E o que fez o vento e o mar silenciarem foi a Palavra de Jesus,
enquanto força humanizante. A comunidade precisa fazer essa Palavra ressoar no
mundo, fazendo calar o mal. É claro que o evangelista está reforçando sua
catequese de apresentação de Jesus como o Messias, o agente de Deus no mundo
para destruir as forças do mal, pelo bem, pelo caminho do amor. De fato, no
Antigo Testamento a capacidade de acalmar o mar e as tempestades era um sinal
do poder de Deus (Sl 89,10; 106,9; Is 51,9-10). Jesus é, portanto, o agente
autorizado de Deus para erradicar o mal do mundo e fazer a vida triunfar em
plenitude, missão essa compartilhada com seus seguidores e seguidoras de todos
os tempos.
Tendo acalmado a tempestade e o mar por meio de sua palavra que é força de
vida, Jesus se dirige também aos discípulos em tom de reprovação: «Então
Jesus perguntou aos discípulos: “Por que sois tao medrosos? Ainda não tendes
fé?”» (v. 40). Trata-se de uma reprovação muito forte. Inclusive, a
tradução mais adequada para o termo grego traduzido aqui como “medrosos” seria
covardes (em grego: δειλοί – deiloi). Ora, os discípulos
imaginavam que o seguimento e a fé em Jesus os isentassem dos perigos e
dificuldades que a vida e a missão comportam. Jesus ensina o contrário; a fé e
a confiança na sua Palavra dão forças para superar os obstáculos, ou seja, as
tempestades, mas não isentam a comunidade e os discípulos de enfrentá-las. Por
isso, o questionamento tao duro: «ainda não tendes fé?». Certamente,
esse questionamento impactou a comunidade de Marcos. Tanto é que, para amenizar
o tom, Mateus trocou “não tendes fé” por “pouca fé” (Mt 8,26). Para Marcos, no
entanto, a fé não permite meios termos: ou se tem, ou não se tem. Aqui, é
preciso considerar de novo o contexto literário do texto: segue de imediato ao
discurso das parábolas do Reino. Os discípulos tinham acabado de ouvir, não
apenas as parábolas, mas também as explicações exclusivas que Jesus dava a eles
(Mc 4,10). A covardia, portanto, consistia em não levar a sério as palavras de
Jesus, e sem a Palavra não há fé. A semente da Palavra não estava germinando no
coração dos discípulos, e sem isso o Reino não se instaura. Daí a dureza de
Jesus na correção aos discípulos. É importante recordar que a fé reivindicada
por Jesus nesta passagem não significa a confiança em seu poder de operar milagres.
Significa a confiança da sua presença na missão, fazendo vencer a covardia e,
assim, manter a comunidade sempre alinhada ao seu projeto. Por isso, esta é uma
das passagens que melhor demonstra que o contrário da fé, para Jesus, não é a
incredulidade, mas a covardia e o medo de assumir as consequências que o
Evangelho do Reino implica.
A conclusão, porém, mostra um avanço importante na fé dos discípulos, o que
significa uma adesão progressiva ao projeto de Jesus: «Eles sentiram um
grande medo e diziam uns aos outros: “Quem é este, a quem até o vento e o mar
obedecem?”» (v. 41). Aqui, já não se trata de medo, propriamente, de modo
que o termo mais justo para a tradução seria temor. Trata-se do temor
reverencial, a postura adequada do ser humano quando reconhece o agir de Deus.
Diferentemente do medo, o temor não é o oposto da fé; ele não paralisa a
comunidade. Pelo contrário, o temor instiga o ser humano a fortalecer a fé,
tornando-a mais convicta, estimula a pessoa a conhecer melhor a vontade de
Deus, à medida em que gera espanto, admiração e curiosidade. Nesta passagem específica,
o temor se torna um estímulo para os discípulos buscarem compreender melhor a
identidade de Jesus, à medida em que se questionam. Ora, como sabemos, todo o
Evangelho de Marcos gira em torno da clássica pergunta «Quem é Jesus?».
E o questionamento final dos discípulos, «Quem é este…?» é uma das
variantes dessa mesma pergunta que é constantemente repetida ao longo do
Evangelho, tanto por adeptos quanto por opositores ao projeto de Jesus (Mc
1,27; 2,7; 4,41; 6,2.14; 8,27; 11,27; 14,61-62; 15,31-32). A resposta
definitiva só será dada no final do livro, por incrível que pareça, por um
centurião romano, o qual reconhecerá que Jesus “era mesmo o Filho de Deus” (Mc
15,39). Até lá, os ouvintes-leitores devem um rico caminho de descobertas. À
medida em que se avança nesse percurso, pessoa se humaniza constantemente,
liberta-se, emancipa-se, passando a fazer parte da família nova de Jesus, cuja
exigência é escutar sua Palavra.
O evangelho de hoje, portanto, é um convite à Igreja para que assuma cada
vez mais a sua identidade missionária, reconhecendo que sua razão de existir
consiste em estar sempre em estado de saída, mesmo enfrentando obstáculos. É
preciso romper barreiras e alcançar as outras margens, compreendendo todas as
periferias, existenciais e geográficas. E isso só é possível superando os
medos, saindo do comodismo e, acima de tudo, confiando na força da Palavra de
Deus, cuja revelação plena é Jesus de Nazaré com sua vida e missão.
Pe. Francisco Cornélio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

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