sábado, setembro 28, 2024

REFLEXÃO PARA O 26º DOMINGO DO TEMPO COMUM – MARCOS 9,38-43.45.47-48 (ANO B)



O evangelho proposto para a liturgia deste vigésimo sexto domingo do tempo comum – Mc 9,38-43.45.47-48 – é a continuidade daquele do domingo passado (Mc 9,30-37). Como se vê, alguns versículos foram saltados (vv. 44 e 46), deixando o texto fragmentado, o que dessa vez não chega a comprometer o seu sentido. Esse texto apresenta mais uma atitude de incompreensão e incoerência dos discípulos, seguida de correção e catequese de Jesus. O contexto geral é o do caminho decisivo de Jesus com os discípulos para Jerusalém, que culminará com os eventos da paixão, morte e ressurreição. Mais do que um percurso geográfico, esse caminho representa um itinerário formativo para os discípulos. É nele que Jesus propõe a parte mais exigente da sua catequese, sobretudo no Evangelho de Marcos. O episódio retratado no evangelho de hoje pertence à primeira etapa do caminho, que foi a fase mais difícil, marcada pelos maiores conflitos entre Jesus e os discípulos, gerando uma grande crise. Com muita clareza, o evangelista Marcos diz que, mesmo estando próximos a Jesus, os discípulos se tornam, nesse itinerário, seus verdadeiros opositores, com um comportamento oposto ao que o Mestre ensinava. Embora Jesus já tenha, nesse contexto, feito dois anúncios explícitos da sua paixão (Mc 8,31-33; 9,30-32), os discípulos continuam ignorando, preferindo alimentar seus próprios anseios de grandeza, poder e exclusivismo, colocando-se, assim, em oposição a Jesus. Nisso consiste a grande crise instaurada.

As principais incoerências dos discípulos denunciadas no evangelho de hoje são o exclusivismo, a intolerância, a tendência ao fechamento e fanatismo. Tudo isso vem expresso logo no primeiro versículo: «João disse a Jesus: “Mestre, vimos um homem expulsar demônios em teu nome. Mas nós o proibimos, porque ele não nos segue”» (v. 38). Como se vê, a atitude e a fala do apóstolo João revelam uma mentalidade contrária a tudo o que Jesus já tinha vivido e ensinado até então. Para compreender melhor tal atitude, é importante recordar que, no momento da formação do grupo dos Doze, João e seu irmão Tiago receberam o nome de Boanerges, que significa “filhos do trovão” (Mc 3,17), em alusão ao temperamento difícil dos dois. Ambos se destacavam pela arrogância, intolerância e ambição. Além do episódio de hoje, os evangelhos mostram mais duas ocasiões em que se evidenciam as características negativas dos filhos de Zebedeu: quando pedem a Jesus para ocuparem os primeiros lugares no Reino, sentando-se um à direita e outro à esquerda (Mc 10,35-40), e quando queriam eliminar os samaritanos de um povoado com fogo, somente porque não os acolheram (Lc 9,51-55). Juntamente com Pedro, João e Tiago eram os discípulos mais difíceis de lidar no grupo; por isso, quando Jesus ficava somente com eles, como no episódio da transfiguração (Mc 9,2-8; Mt 17,1-8; Lc 9,28-36), não se tratava de privilégio, mas de necessidade. Pelo comportamento e temperamento, eles necessitavam de uma catequese mais intensa, por isso, também sofriam as repreensões mais duras

A atividade de “expulsar demônios” nos evangelhos, e principalmente em Marcos, significa a promoção da liberdade e da dignidade das pessoas. É, acima de tudo, uma atitude de humanização. Mais do que uma demonstração de poder, a expulsão de demônios nos evangelhos revelam o potencial humanizante do amor de Deus pelo mundo com as pessoas que nele habitam. Trata-se de abrir as portas do Reino de Deus, tornando-o acessível à humanidade inteira. É a difusão da boa nova que transforma vidas, rompendo com as estruturas de morte e opressão vigentes em qualquer sistema. Uma atividade assim, de promoção plena do bem das pessoas, não pode ser estranha ao programa e à mensagem de Jesus, independentemente de pertença ou não a algum grupo ou movimento denominado cristão. Quem faz o bem ao próximo, está em sintonia Deus. Ao afirmar que o homem estava «expulsando demônios em nome de Jesus», o evangelista evidencia que ele estava em sintonia e comunhão plena com Jesus, mesmo sem pertencer ao grupo dos Doze, e nem os seguir. Logo, a proibição imposta por João denuncia o fechamento e o fanatismo dele e dos seus companheiros de grupo. Uma atitude dessas coloca em risco a eficácia e a credibilidade do Evangelho.

Tão grave quanto a atitude é a justificativa de João: ele e seus companheiros de grupo proibiram o exorcista autônomo de expulsar demônios em nome de Jesus porque não seguia a eles, aos discípulos mesmos. Ele não alega que aquele homem não seguia Jesus, mas que não “os seguia”, ou seja, não seguia aos discípulos, não pertencia ao gueto deles. Além da tentativa de monopolizar o poder, eles se colocavam no lugar de Jesus, reivindicando o seguimento para eles próprios. A expressão “nós o proibimos” denuncia que não foi uma atitude isolada de João, mas do grupo dos Doze. É importante recordar que o evangelista faz memória do episódio pensando na sua comunidade e nas comunidades futuras. Ora, na época da escrita do        Evangelho, as comunidades passavam por grandes transformações, vivendo novas experiências de organização, à medida em que cresciam e novas gerações eram formadas. Com isso, havia uma forte tendência à hierarquização. As lideranças queriam monopolizar o “nome de Jesus”. Por isso, o evangelista faz a advertência, ensinando que nenhuma pessoa e nenhuma instituição podem controlar o nome de Jesus, pois sua mensagem libertadora é universal, visando a humanização de todo o mundo. E é o próprio Jesus quem não aceita ser controlado por ninguém. É normal e necessário que as comunidades se organizem, que tenham lideranças, mas com a clara consciência de que o “nome de Jesus” extrapola os limites de qualquer religião, igreja, grupo ou movimento.

Diante do absurdo verificado na fala de João, a reação de Jesus não poderia ser outra senão de reprovação total e repreensão: «Jesus disse: “Não o proibais, pois ninguém faz milagres em meu nome para depois falar mal de mim. Quem não é contra nós é a nosso favor”» (vv. 39-40). Ora, fazer qualquer coisa em nome de Jesus, como expulsar demônios e outros tipos de milagres, significa, na linguagem do evangelista, estar em plena sintonia com ele; só faz isso quem reconhece a sua autoridade e conduz a vida de acordo com o seu Evangelho, quem aceita seus ensinamentos e os recebe como instrumento de libertação. Ninguém pode ser impedido de fazer o bem, em nome de ninguém, muito menos quando for em nome de Jesus, que veio ao mundo para fazer o bem a todas as pessoas, sobretudo as mais necessitadas de libertação. Ora, proibir alguém de agir em nome de Jesus é querer aprisionar a sua mensagem e delimitar a ação do Espírito Santo, o que é impossível. Dos discípulos, exige-se abertura, compreensão e consciência de que a mensagem do Evangelho não é propriedade de nenhuma instituição religiosa, mas dom acessível a quem tem sede de justiça e de amor. Com um simples, embora profundo, provérbio, Jesus fecha a questão: «Quem não é contra nós é a nosso favor»Ser contra, significa optar pelo mal e fechar-se aos valores do Reino; quem não faz isso, já está, consequentemente, a favor e, portanto, apto a agir em seu nome, independentemente de pertencer ou não a algum grupo religioso. Os sinais distintivos da pertença a Jesus são apenas estes: amar, fazer o bem e não compactuar com mal, jamais.

Como sempre, as repreensões de Jesus aos discípulos são seguidas de catequeses mais aprofundadas e práticas, o que se acentua ainda mais neste contexto do início do caminho, marcado por uma grande crise entre eles: «Em verdade eu vos digo: quem vos der a beber um copo de água, porque sois de Cristo, não ficará sem receber a sua recompensa» (v. 41). Embora seja um gesto, aparentemente, simples, dar um copo de água era, na cultura semita, uma das maiores demonstrações de hospitalidade e acolhida. A recompensa, aqui, não significa um prêmio no futuro, mas a pertença a Jesus e sua comunidade; é a comunhão com ele. Essa pertença não depende de discursos ou formulações doutrinárias, mas de gestos e atitudes que revelem amor e justiça, como dar um simples copo de água a uma pessoa sedenta. O que importa, de acordo com o evangelista, é que tudo seja feito em “nome de Jesus”, ou seja, em comunhão com ele, motivado pelo seu amor. Aqui, o ensinamento é dirigido exclusivamente aos discípulos: eles não devem esperar muita coisa, nem grandes adesões; basta um simples gesto de reconhecimento da pertença a Cristo, para que os destinatários sejam recompensados, ou seja, entrem em comunhão com sua vida. Merece atenção o fato de ser essa a primeira vez que Jesus aplica a si o título “Cristo”, que significa Messias. Até então, esse título sido empregado apenas duas vezes, no Evangelho de Marcos: pelo narrador, logo na abertura do livro (1,1) e por Pedro, no caminho de Cesareia (8,29). Com ele, Jesus assume sua verdadeira identidade messiânica, e ensina que seus discípulos não receber mais do que o necessário, sem privilégios.

Na sequência, a catequese é continuada com a retomada da importância dos “pequeninos” para o Reino de Deus, já introduzida no domingo passado com o exemplo da criança. Eis o que diz o texto de hoje: «E, se alguém escandalizar um destes pequeninos que creem, melhor seria que fosse jogado no mar com uma pedra de moinho amarrada ao pescoço» (v. 42). Escandalizar, aqui, é criar obstáculo ou impedimento à fé e à vida digna. Os maiores exemplos de escândalo numa comunidade são: autoritarismo, ambição, fanatismo, intolerância e indiferença aos “pequeninos”. O termo “pequeninos” (em grego: μικρός – mikrós), é a síntese de todas as categorias de pessoas vulneráveis e historicamente excluídas: pobres, mulheres, pecadores, enfermos, etc. Quando os membros da comunidade cristã são motivos de escândalo para essas pessoas, isto é, quando não favorecem a acolhida e a inclusão, Jesus os reprova e adverte severamente. Por sinal, os evangelhos mostram que Jesus tolerava muitas incoerências nos seus discípulos. Ele conhecia perfeitamente os limites da condição humana. A única a única coisa que ele não tolerava era a indiferença e o desprezo aos pequeninos, os seus prediletos. A sorte de quem os rejeita é trágica. Por isso, emprega-se uma linguagem bastante severa para denunciar e advertir os seus discípulos e, sobretudo, para motivá-los a manter os “pequeninos” como prioridade na comunidade.

Para a mentalidade semita, ser jogado no mar com uma grande pedra amarrada ao pescoço era a certeza de que esse corpo jamais seria resgatado; assim, não poderia receber uma sepultura digna e, consequentemente, não teria sequer direito à ressurreição dos mortos no último dia, como acreditavam os judeus. Esse destino exclui qualquer possibilidade de salvação. O mar era símbolo do caos, a morada do mal. Por isso, dentre as tantas possibilidades de morte, a mais temida pelos judeus era o afogamento no mar, pois significava ser engolido pelo mal. Jesus emprega tal imagem para mostrar a gravidade do “escândalo aos pequeninos”. A chamada de atenção aos discípulos continua com a demonstração de certas ocasiões, através dos principais membros do corpo, que podem levar os discípulos a causarem “escândalo” aos pequeninos. A mão, o pé e o olho (vv. 43-47) eram considerados os membros do corpo responsáveis pelo bom ou mau comportamento das pessoas, segundo a mentalidade semita. Eram, portanto, os membros essenciais. As mãos, representam todo o agir da pessoa; quando a pessoa não age conforme o Evangelho, é melhor não as ter, conforme essa mentalidade. Os pés representam a conduta, podendo levar a pessoa por caminhos justos e injustos; é melhor não ter pé do que andar por caminhos errados. O olho, como “lâmpada do corpo” (Mt 6,22) é a porta de entrada dos sentimentos e desejos alimentados no coração da pessoa. Tudo o que é processado no coração, sentimentos bons e maus, passa pelo olho. Diante disso, se tais membros, que são os essenciais para a vida de uma pessoa, forem usados para o mal, é melhor o ser humano privar-se deles.

É claro que, com o uso destas imagens tao fortes, Jesus não recomenda a amputação de membros do corpo, mas adverte que a vida não tem sentido se não for toda voltada para o bem, sobretudo o bem dos pequeninos, as pessoas mais necessitadas. Também não está apontando o destino futuro, nem descrevendo a vida “pós-morte”. Porém, não vale a pena ter um corpo são e uma vida perdida, sem sentido, o que corresponde ao ser jogado no “fogo que não se apaga”. Essa expressão funciona como explicação para o termo grego que o lecionário traduz por inferno. Porém, é uma tradução insuficiente. O texto original não fala de inferno, mas de “geena” (em grego: γέεννα - gheena). É uma palavra estranha, mas poderia ser mantida, já que o próprio texto fornece a explicação: “fogo que não se apaga”. A “geena” era um vale, ao sul de Jerusalém, onde ficava o lixão da cidade; era sinônimo de imundície e de fogo constante. Inclusive, corpos humanos já tinham sido lá sacrificados, em cultos pagãos, por isso, esse local passou a ser símbolo de condenação completa para os judeus. Além do fogo, lá predominava também o mau cheiro constante. Era um símbolo concreto da negação da vida. Por ser depósito de todo o lixo de uma grande cidade, numa época em que o saneamento não era sequer imaginado, todos os tipos de resíduos iam para lá, por isso possuía um “fogo que não se apaga” (v. 48). “Geena” e fogo são, portanto, imagens de uma vida sem sentido. E o que dá sentido à vida é a adesão à pessoa de Jesus, com todas as exigências e consequências que o seu seguimento implica.

Que o evangelho de hoje, portanto, nos ajude na renovação das convicções do seguimento de Jesus. Que imprima em nós cristãos e cristãs um espírito de abertura, tolerância e acolhida, levando-nos a reconhecer que, também em outras experiências há seguimento e presença de Jesus. Onde há fanatismo e intolerância, não há seguimento nem discipulado. O critério de identificação com ele não é um vínculo institucional, mas a prática do bem, sobretudo aos pequeninos e carentes de humanização, para que sejam humanizados e emancipados.

Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

 

 

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