sábado, novembro 30, 2024

REFLEXÃO PARA O 1º DOMINGO DO ADVENTO – LUCAS 21,25-28.34-38 (ANO B)

 


Neste domingo – o primeiro do advento – a Igreja inicia um novo ano litúrgico, convidando-nos, mais uma vez, a percorrer o caminho de Jesus Cristo, contemplando o mistério da sua vida, desde anúncio do seu nascimento até a ressurreição e ascensão. O tempo do advento, iniciado hoje, é a primeira etapa desse itinerário catequético-espiritual. O termo advento (adventus em latim) significa “visita”, “chegada” ou “vinda”; possui o mesmo significado do termo grego parusia (παρουσία). Fazia parte do vocabulário das religiões pagãs no império romano, sendo usado em referência às supostas visitas das divindades aos seus respectivos templos, e no âmbito civil era usado para designar as visitas de funcionários ilustres e dos imperadores às cidades e províncias do império. Por volta do século IV, o cristianismo absorveu a palavra advento, passando a utilizá-la no contexto do Natal, a visita de Deus ao mundo, por excelência, uma vez que já estava consolidado o uso do termo grego “parusia” para designar a segunda vinda de Cristo. Como o próprio termo evoca, uma visita especial é sempre motivo de esperanças e expectativas, e essa é uma das características principais do tempo do advento. E a esperança suscitada com esse tempo gira em torno da construção de um mundo novo, no qual devem reinar a justiça, o amor e a paz.

Com o início do novo ano litúrgico, iniciamos também a leitura do Evangelho segundo Lucas, como é típico do ciclo litúrgico C. Porém, não iniciamos a leitura do início do Evangelho, mas do seu final, precisamente do seu discurso escatológico. De fato, a leitura semi-contínua do Evangelho de cada ano litúrgico só é percebida nos domingos do tempo comum. Por isso, o texto proposto para hoje é Lc 21,25-28.34-36. O discurso escatológico está presente nos três evangelhos sinóticos (Mateus, Marcos e Lucas), e trata simbolicamente das realidades últimas e finais da história, antecedendo as narrativas da paixão, morte e ressurreição de Jesus. A princípio, parece até paradoxal que a preparação para o natal seja iniciada com palavras sobre as realidades últimas. Porém, é necessário compreender o advento como uma oportunidade de preparação para a vinda constante do Senhor na vida de cada pessoa, tornando essa vinda uma presença contínua, ao invés de apenas alimentar uma expectativa futurista e preparar para uma única data ou evento. É importante recordar que o evangelho de hoje é praticamente a repetição daquele do penúltimo domingo do ano litúrgico precedente, quando foi lido o mesmo episódio, porém, na versão de Marcos (Mc 13,24-32). É claro que tem variações significativas entre uma versão e outra, mas a mensagem é semelhante. Com isso, percebe-se a continuidade do tempo: o ano (litúrgico) começa e termina animando a comunidade à esperança e advertindo-a à vigilância.

O trecho do Evangelho lido hoje pertence ao conjunto das últimas palavras de Jesus antes do relato da paixão. É necessário fazer uma pequena contextualização para uma compreensão mais adequada do mesmo. Jesus se encontrava em Jerusalém, na sua última semana, ensinando no templo, denunciando a hipocrisia religiosa dos escribas e fariseus na maneira de viver a reliogiosidade, observando as verdadeiras e as falsas práticas religiosas (Lc 21,1-4). Os discípulos estavam sempre ao seu lado, escutando seus ensinamentos e também observando as novidades da grande cidade que, certamente, possuía um ritmo de vida muito diferente dos povoados da Galileia, de onde eles tinham saído. Ora, como se sabe, os primeiros discípulos de Jesus, em sua grande maioria, eram camponeses e pescadores, pessoas de origens muito simples; ao chegar em Jerusalém, eles se admiravam com a beleza e a grandeza da cidade e, principalmente, do grandioso templo, considerado uma das maravilhas do mundo, na época (Lc 21,5). À admiração dos discípulos, Jesus respondeu: «Vós contemplais estas coisas, mas dias verão em que não restará pedra sobre pedra que não seja derrubada» (Lc 21,6). Curiosos e espantados com essa afirmação de Jesus, os discípulos perguntaram: «Mestre, quando acontecerá isso? Qual o sinal de que isso está para acontecer? » (Lc 21,7). O questionamento dos discípulos é compreensível, tendo em vista o impacto das palavras de Jesus.

O discurso escatológico é, portanto, a resposta de Jesus a essa pergunta dos seus discípulos. Com Pertence ao gênero literário apocalíptico, derivação da palavra apocalipse (em grego: ἀποκάλυψις = apocalípsis), cujo significado é “revelação”, “manifestação da verdade” ou “tornar conhecido algo que estava escondido”. O gênero apocalíptico foi bastante distorcido ao longo da história, passando a ser compreendido como anúncio de catástrofes e desastres, causando medo, quando, na verdade, é um gênero literário usado pelos autores bíblicos para transmitir mensagens de esperança e resistência. Por isso, foi empregado com mais frequência nos tempos de perseguição, tanto no Antigo quanto no Novo Testamento, como atestam os livros de Daniel e o Apocalipse de São João, as obras mais apocalípticas da Bíblia. Portanto, ao invés de causar terror e medo, a mensagem do evangelho de hoje deve nos animar, como veremos no decorrer da reflexão. Não é uma descrição de eventos catastróficos, mas uma forma simbólica de apresentar o triunfo de Deus sobre a história. Por isso, é muito oportuno o seu uso no advento, tempo pautado por mensagem e espiritualidade marcadas pelo tema da esperança.

E o texto de hoje já começa com palavras de grande impacto: «Haverá sinais no sol, na lua e nas estrelas. Na terra, as nações ficarão angustiadas, com pavor do barulho do mar e das ondas» (v. 25). A princípio, parece uma cena aterrorizante, mas na verdade é um sinal de esperança. Os astros (sol, lua e estrelas) eram imagens de divindades nos mundos greco-romano e egípcio. Embora Lucas não afirme, como Marcos, que esses astros irão desmoronar, ele diz que entrarão em caos, o que representa o colapso dos sistemas de dominação responsáveis pelas perseguições vividas pelas comunidades da época da redação do evangelho e toda a trajetória do povo de Deus, ao longa da história. Até mesmo o mar, onde residiam as forças do mal para a mentalidade semita, será abalado; isso ignifica que o mal será cortado pela raiz. Obviamente, tais acontecimentos trarão angústia e medo para o mundo todo, até então, conformado com a ordem injusta das coisas. Por isso, «Os homens vão desmaiar de medo, só em pensar no que vai acontecer ao mundo, porque as forças do céu serão abaladas» (v. 26). Já as forças do céu, aqui, não são divindades, mas a ordem e harmonia do cosmos; esse abalo faz parte do processo de reordenamento do mundo. A imagem da revolução cósmica representa a reviravolta na história provocada pela instauração do Reino de Deus no mundo.

O que parece catastrófico, portanto, é apenas pretexto para a passagem de uma fase à outra da história. O mundo velho, até então ordenado com falsa segurança e sistemas injustos, como era o império romano, não poderia permanecer para sempre. Ora, perseguidos e já quase sem esperanças, como estavam muitos cristãos nas comunidades lucanas, não era fácil acreditar em transformação. Mas o evangelista não desiste e reconstrói as palavras de Jesus que seriam de grande importância para o seu contexto: «Então eles verão o Filho do Homem, vindo numa nuvem com grande poder e glória. Quando estas coisas começarem a acontecer, levantai-vos e erguei a cabeça, porque vossa libertação está próxima» (vv. 27-28). A construção de um mundo novo requer a destruição das estruturas velhas de poder e dominação. É esse o sentido do texto até aqui. O mundo velho, governado por tiranos que se sentiam iluminados por falsas divindades (os astros), sustentadoras de um sistema tão nocivo para o ser humano quanto às forças do mar, não seria eterno; haveria de dar lugar a um mundo novo, plenamente humanizado pelo amor: o Reino de Deus.

A imagem do Filho do Homem vindo das nuvens evoca o reinado e senhorio de Deus sobre o mundo, através do seu filho Jesus Cristo, prestes a ser condenado, no contexto imediato do discurso escatológico. Aplicada ao contexto do advento, recorda a plena humanidade de Jesus; um Deus que assume a plenamente a condição humana, inserindo-se nas realidades mais humildes da história, como demonstrado pelo nascimento em um estábulo de animais. Para o Reino de Deus acontecer em sua plenitude é necessário que uma nova ordem seja estabelecida no mundo. Na verdade, o Reino é a nova ordem. Portanto, o caos descrito nos primeiros versículos e a manifestação do Filho do Homem evocam a necessidade de transformação da humanidade, para o estabelecimento de um mundo novo, justo e fraterno. Embora ainda não realizado, esse é o ideal e o que deve manter nos cristãos a chama da esperança acesa. Há, em curso, um processo de libertação plena para a humanidade, iniciado com a encarnação e o nascimento de Jesus, que um dia há de ser completamente realizado. Por isso, os cristãos não podem desanimar, por mais difícil que seja a situação, devem manter-se «de cabeça erguida, porque a libertação está próxima» (v. 28); a cabeça erguida é o sinal da dignidade e a consciência da pessoa que não reconhece os poderes injustos e opressores deste mundo, e nem é conivente com eles; é a postura de quem não se curva diante de falsos deuses e mantém firme a esperança somente no Deus de Jesus Cristo, que é o Libertador, por excelência.

Embora certa, a libertação pode retardar bastante, o que tende a levar muitos cristãos ao desânimo e até mesmo a abandonarem a fé, sobretudo quando são vítimas de injustiças e opressão. Por isso, paralelo à certeza de que a ordem injusta não é eterna, pois é certo que um dia a libertação acontecerá, o evangelista alerta para a necessidade da vigilância, para não serem surpreendidos, uma vez que não há uma data exata para isso acontecer: «Tomai cuidado para que vossos corações não fiquem insensíveis por causa da gula, da embriaguez e das preocupações da vida, e esse dia não caia de repente sobre vós, pois esse dia cairá como uma armadilha sobre todos os habitantes de toda a terra» (vv. 34-35). O cuidado para não deixar o coração ficar insensível é muito significativo; inclusive, é uma exclusividade de Lucas, no contexto do discurso escatológico. Ora, sendo ele o evangelista da misericórdia, já tinha mostrado Jesus pedindo aos discípulos para serem misericordiosos como o Pai é misericordioso (Lc 6,36). A insensibilidade de coração é, portanto, a ausência de misericórdia, o que é incompatível com a vida cristã. Deixar o coração insensível equivale à indiferença diante das injustiças, é a naturalização do mal e do sofrimento do próximo. Por isso, Jesus exorta o seu discipulado a manter-se de coração sensível, sempre.

Os elementos que poderiam contribuir para a insensibilidade de coração dos discípulos – comida, bebida e preocupações da vida – não constituem, aqui, um elenco de vícios a serem combatidos, como nas cartas de Paulo, mas representam o cotidiano, o dia-a-dia das pessoas, do qual os cristãos não podem privar-se, mas não podem viver somente em função disso. É uma advertência a mais: viver somente em função do cotidiano, sem almejar algo a mais na vida é perigoso; além de tornar insensível o coração, fecha o horizonte à esperança. É também sinal de comodismo e egoísmo. Quem reduz a sua existência ao comer, ao beber e às suas próprias preocupações, está fechado ao cuidado com o próximo e à esperança de mudança e transformação do mundo. Por isso, a cotidianidade não pode fechar o horizonte do discípulo. Quanto ao caráter improviso “desse dia”, trata-se de um aspecto tradicional na Bíblia, desde o anúncio do “Dia do Senhor” pelos antigos profetas (Jl 2,31; Am 5,18, etc.). É preciso viver continuamente em comunhão com Deus para não ser surpreendido. Quem já vive no dia-a-dia a presença constante do Senhor, através da oração e do cultivo de relações humanas autênticas e fraternas, não será sofrerá surpreendido.

Como Lucas é o evangelista que mais privilegia a oração, ele apresenta essa como a mais consistente das formas de vigilância: «Portanto, ficai atentos e orai a todo momento, a fim de terdes força para escapar de tudo o que deve acontecer e para ficardes em pé diante do Filho do Homem» (v. 36). A oração sincera, junto com o espírito de vigilância mostram, acima de tudo, que os cristãos não podem acostumar-se à ordem vigente, não podem ser tolerantes com as injustiças e opressões, mas devem estar sempre em busca de um mundo melhor, não apenas esperando, mas também construindo, no dia-a-dia, as condições necessárias para o reinado de Deus se estabelecer definitivamente sobre o mundo, o que não acontecerá passivamente, mas somente com a destruição de todas as forças de morte, conforme a descrição dos primeiros versículos. E isso exige muito empenho da comunidade cristã. É importante recordar a ênfase que o evangelista dá à oração: o convite é para “orar a todo momento”, e o efeito da oração é a força para suportar as dificuldades e manter-se de pé, o que não significa uma mera sobrevivência, mas estar consciente da realidade e pronto para nela intervir; é também a postura de quem não se curva diante das injustiças, além de evocar a importância da vigilância. Ficar de pé diante do Filho do Homem é, portanto, estar com a consciência tranquila de ter lutado para o seu Reino acontecer.

Que o novo ano litúrgico e, sobretudo, o tempo do advento renovem o entusiasmo de nossas comunidades na expectativa do Reino de Deus, não como um evento extraordinário, mas como uma realidade que se constrói cotidianamente. Para isso, é necessário manter os corações sensíveis aos acontecimentos e situações que exigem solidariedade, empatia, amor e justiça. A indiferença ao próximo e a conivência com as injustiças retardam a libertação e, consequentemente, a construção do Reino de Deus. Que o advento seja, portanto, tempo de esperança e, ao mesmo tempo de advertência e resistência.

Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

sábado, novembro 23, 2024

REFLEXÃO PARA A SOLENIDADE DE NOSSO SENHOR JESUS CRISTO, REI DO UNIVERSO – JOÃO 18,33b-37 (ANO B)


Com a liturgia do trigésimo quarto domingo do tempo comum, o último do ano litúrgico, a Igreja celebra a solenidade de Jesus Cristo como rei do universo. As leituras desta festa variam conforme o ciclo litúrgico. Neste ano, por ocasião do ciclo litúrgico B, o evangelho proposto é Jo 18,33b-37. Como se sabe, ao longo do ano litúrgico B, apesar de ter como texto evangélico predominante a obra de Marcos, a liturgia se serve do Evangelho de João em vários domingos, portanto, não é novidade que hoje utilize um texto seu. O título atribuído a Jesus nesta solenidade, por si só, já nos desperta bastante atenção e curiosidade, despertando também a necessidade de profunda reflexão para não distorcermos a natureza da realeza de Jesus. Ao falar de alguém como rei, a tendência imediata é atribuir-lhe as características próprias dos reis deste mundo, como coroa, trono, cetro e poder; associar Jesus a esses sinais de realeza é trair completamente o seu Evangelho, mesmo que as imagens e representações usadas em muitas igrejas façam isso. Diante disso, podemos dizer que dar a Jesus trono, cetro e coroa é zombar dele; independentemente do contexto histórico, é repetir a zombaria dos soldados que o crucificaram: «Os soldados, tendo feito uma coroa de espinhos, colocaram-na em sua cabeça, e o envolveram com um manto de púrpura» (Jo 19,2).

Mesmo concentrando a nossa reflexão no texto evangélico proposto – João 18,33b-37 – é oportuno e necessário fazermos uma pequena contextualização histórica sobre a instituição desta solenidade. Trata-se de uma festa relativamente nova, considerando que a maioria das festas da Igreja encontram suas raízes na antiguidade cristã. Esta soleidade foi instituída somente no ano de 1925, pelo papa Pio XI. Aquele era um momento conturbado para a Europa e todo o mundo: a primeira guerra mundial tinha acabado fazia pouco tempo e já se desenhava o cenário da segunda; a ganância pelo poder com as consequências drásticas que desse derivam estavam em efervescência, mais do que nunca. Diversos regimes totalitários se espalhavam pelo mundo. Na época, já estavam consolidados o fascismo na Itália, o socialismo na União Soviética (Rússia), e o nazismo estava em gestação na Alemanha. Também em Portugal e Espanha estavam sendo gerados projetos ditatoriais, consolidados na década de 30. Havia, portanto, muita gente buscando poderes absolutos, querendo ser “senhor do mundo”. Foi nesse contexto que o papa Pio XI instituiu, com muita sabedoria, a solenidade de Cristo Rei, como um lembrete e advertência para aqueles que almejavam o senhorio da história e o domínio do mundo.

Uma vez instituída e consolidada, essa festa não deixa de trazer certos perigos em sua interpretação. O problema se dá na concepção e representação que se tem feito da realeza de Jesus. Combater os reinos deste mundo para implantar o Reino de Deus não é uma simples substituição na detenção do poder, mas uma mudança radical na forma de conceber o Reino. Assim como Jesus não pretendeu ocupar o lugar de César (o imperador romano), jamais pretenderia também ocupar o lugar de Mussolini, Stálin, Hitler ou qualquer outro dirigente totalitário, como os que ameaçam os regimes democráticos na atualidade. A proposta de reinado (ou Reino) de Jesus é totalmente incompatível com as experiências de poder até hoje experimentadas pela humanidade. Jesus não propõe apenas um mundo diferente deste que tem proporcionado os detentores de poder, mas um mundo totalmente oposto, com relações completamente novas, capazes de gerar paz, justiça e fraternidade. Enfim, ele propõe um mundo novo e exige a colaboração dos seus discípulos e discípulas de todos os tempos na sua construção. E a exigência básica consiste em viver radicalmente o amor.

O texto evangélico específico para a liturgia de hoje faz parte do relato da paixão de Jesus no Quarto Evangelho. É um trecho do processo de Jesus diante de Pilatos, governador romano da província da Judéia, na época. A capital da província era a cidade de Cesaréia Marítima, onde morava o governador; porém, nos períodos das grandes festas, como a páscoa, a governadoria se transferia para Jerusalém, tanto para monitorar possíveis rebeliões e combatê-las, quanto para mostrar a força do poder romano, o que era visto pelos judeus como motivo de humilhação. Por isso, Pilatos teve a oportunidade de interrogar Jesus, pois já se encontrava em Jerusalém por ocasião da páscoa, conforme o contexto narrativo do Evangelho. No momento do interrogatório, Jesus estava sozinho diante de Pilatos com seus soldados, pois os judeus não podiam entrar no palácio, com medo de ficarem impuros e, assim, não poderiam celebrar a páscoa no dia seguinte. Por isso, Jesus entrou sozinho no pretório para ser interrogado. O encontro de Jesus com Pilatos é apenas uma formalidade, pois a sua morte já estava decidida. A cúpula da religião judaica, incomodada com a pregação e a práxis de Jesus já planejava a sua morte há muito tempo. Já haviam decidido que daquela páscoa ele não passaria! Como os chefes religiosos não tinham poder de execução, mesmo com a pena já decidida, era necessário convencer o poder romano a fazer a executá-lo.

Eis o que diz o texto: «Pilatos chamou Jesus e perguntou-lhe: “Tu és o rei dos judeus?”» (v. 33b). A pergunta dá a entender que Pilatos já sabia que aquele caso se tratava de uma questão muito interna da religião judaica, embora representasse também uma ameaça de rebelião, o que poderia trazer consequências para o poder romano. Na verdade, todos os governadores romanos enviados para a província da Judéia já iam prevenidos do risco constante de rebeliões de líderes radicais dos movimentos populares do judaísmo, principalmente da parte dos galileus, como era Jesus. A pergunta de Pilatos revela também uma espécie de surpresa: o homem que está diante dele não aparenta causar perigo algum à ordem imperial, embora tenha sido entregue como agitador e malfeitor, ou seja, como bandido. Parece que Pilatos não vê Jesus como ameaça. Além de surpresa, essa pergunta também expressa escárnio. Mas Jesus não se intimida com a pergunta do governador, e faz o diálogo fluir: «Estás dizendo isto por ti mesmo ou outros te disseram isto de mim?» (v. 34). É costume de Jesus responder a uma pergunta com uma nova pergunta. Com isso, ele chama a atenção de Pilatos para pensar por conta própria sem deixar-se manipular pela opinião dos outros. Foi com esse método de responder perguntando que ele, ao longo do ministério, desmascarou a hipocrisia de tantas pessoas religiosas, como escribas e fariseus, como também conquistou discípulos para o seu seguimento, embora àquela altura todos tivessem fugido com medo.

Na continuidade do diálogo, Pilatos reage à pergunta provocatória de Jesus: «Pilatos falou: “Por acaso, sou judeu? O teu povo e os sumos sacerdotes te entregaram a mim. Que fizestes?”» (v. 35). A intenção do governador é isentar-se ao máximo possível da responsabilidade pela condenação de Jesus, provavelmente por já ter notícia da força do seu movimento na Galileia e em todas as regiões por onde passou. Ao tentar provar neutralidade, Pilatos exerce a pior das hipocrisias: a indiferença diante da injustiça. Ao mesmo tempo, sintetiza uma realidade que já fora demonstrada ao longo de todo o Quarto Evangelho: toda a classe dirigente dos judeus estava contra Jesus: a expressão «o teu povo e os sumos sacerdotes» significa o complô dos grupos judaicos hegemônicos com os dirigentes do templo. No final, por mais que o poder romano tenha sido conveniente e executor da condenação de Jesus, o evangelista deixa claro de onde partiu a iniciativa: das autoridades religiosas judaicas, que se viam ameaçadas diante da mensagem emancipadora de Jesus, sobretudo, por revelar que o verdadeiro Deus, o seu Pai, nada tinha a ver com a caricatura de Deus vendida na templo como mercadoria.

Pilatos tinha perguntado o que Jesus tinha feito para ser entregue pelo seu próprio povo. Ora, o que Jesus fez foi amar sem medidas e revelar um Deus que é todo amor, o que a religião do seu tempo não aceitou. Contudo, a essa pergunta Jesus não respondeu, preferiu voltar para o tema da primeira pergunta, a respeito da natureza do seu reino: «O meu reino não é deste mundo. Se o meu reino fosse deste mundo, os meus guardas lutariam para que eu não fosse entregue aos judeus. Mas o meu reino não é daqui» (v. 36). A declaração «o meu reino não é deste mundo» é bastante esclarecedora, mas também complexa e, por isso, fácil de ser distorcida. Antes de tudo, não se trata de uma contraposição entre o céu e a terra. Aqui, Jesus se refere à origem, à concepção do seu reino, e não à sua efetivação; os reinos deste mundo se sustentam com o uso da força, da violência, da injustiça e da hipocrisia de um modo geral. Jesus, com essa afirmação, diz que seu reino não se baseia nesses meios. Porém, ele não está falando de um reino para o além ou outro mundo. O seu reino, baseado na justiça, no amor e na fraternidade deve ser efetivado nesse mundo, onde estão as pessoas com suas necessidades concretas, com suas angústias e necessidade de humanização. O reino de Jesus não é deste mundo por não se assemelhar aos reinos deste mundo, mas deve ser construído e vivido já nesse mundo. Inclusive, em uma das petições do Pai nosso, a oração modelo da comunidade cristã, pede-se justamente que venha a este mundo o Reino de Deus, que é um projeto de mundo novo, humanizado pelo amor. E o Pai nosso foi ensinado pelo próprio Jesus.

A Pilatos, Jesus dá uma resposta muito concreta, não apenas com palavras, mas pelo jeito de ser, de que seu reino, de fato, não é deste mundo: não tem exército nem guardas para lutar contra a sua condenação. Um exército era a primeira necessidade para a formação de um reino na antiguidade. De fato, o aparato básico para alguém considerar-se rei era ter um exército à disposição. Inclusive, os movimentos judaicos de resistência que, de vez em quando, causavam preocupação à casta sacerdotal e ao poder romano, proponham sempre a luta armada, faziam recruta de militantes. E nem com esses o movimento de Jesus se assemelhava. Na verdade, para Jesus e seus seguidores, a violência nunca pode ser a resposta. Pelo contrário, à violência, ao ódio e à injustiça e ao mal em geral, a resposta ensinada por Jesus é sempre o amor. Por isso, é sempre incoerente caricaturá-lo com os sinais de realeza terrena, come ele vem representado na maioria das imagens e pinturas que circulam em tantas igrejas. É uma verdadeira traição ao seu projeto. Por essa razão, também é clara contradição ao seu Evangelho propagar políticas armamentistas, por exemplo, e a disseminação de discursos de ódio e intolerância. Ao invés do uso da força, Jesus propõe a construção do seu Reino pelo amor, o único meio de humanizar o mundo.

Ao dizer que tem um reino, mesmo não sendo deste mundo, Jesus despertou ainda mais a curiosidade de Pilatos, que lhe perguntou novamente: «Então tu és rei?» (v. 37a). A insistência com a mesma pergunta revela a insegurança e o medo de um possível concorrente, o que faz parte da lógica dos reinos deste mundo, compostos por oprimidos e opressores, privilegiados e não privilegiados. A concorrência é a negação da fraternidade e da igualdade. Quem vê o outro como concorrente deixa de vê-lo como irmão, como igual. À nova indagação de Pilatos, finalmente, Jesus confirma que é rei, mas faz questão de reforçar a incompatibilidade entre o seu reino e aquele que Pilatos representava: «Jesus respondeu: “Tu o dizes: eu sou rei. Eu nasci e vim ao mundo para isto: para dar testemunho da verdade. Todo aquele que é da verdade escuta a minha voz”» (v. 37). Pilatos perguntou, no início, se Jesus era rei dos judeus; a essa pergunta Jesus se negou a responder. Quando responde ser rei, não se diz de um povo específico, o que mostra o alcance universal de sua mensagem. Trata-se de um detalhe importante, pois Jesus não veio ao mundo com uma missão restrita e destinada a um povo específico, mas trouxe um projeto de reino universal, inclusivo, alicerçado na verdade.

A verdade (em grego:  ἀληθείᾳ = alethéia) é uma palavra-chave para a construção da missão e da identidade de Jesus no Evangelho de João. Já no prólogo, no versículo principal daquele poema, quando o evangelista afirma que “a Palavra se fez carne, como Unigênito do Pai”, ele diz que esse Unigênito – Jesus – veio “cheio de verdade” (Jo 1,14); também no prólogo, ainda, o evangelista contrapõe a graça à lei, dizendo que junto com a graça, veio a verdade ao mundo, por meio de Jesus Cristo (Jo 1,17). Na ceia, ao responder a uma pergunta de Tomé, Jesus se revelou como “o caminho, a verdade e a vida” (Jo 14,6). Finalmente, no processo, diante de Pilatos, Jesus reafirma a sua relação com a verdade e sua missão de testemunhá-la. E foi uma missão irrenunciável, a ponto de custar-lhe a vida. A verdade é um atributo de Jesus e ao mesmo tempo a sua meta e missão, como deve ser de seu discipulado. Não se trata de uma doutrina para ser preservada e anunciada, mas de uma realidade a ser vivida e testemunhada, o que só é possível em estreita comunhão de vida com ele. Ora, a verdade é, junto à felicidade, a mais alta aspiração do ser humano. E, como Jesus é a verdade, significa é a comunhão com ele que torna o ser humano plenamente realizado, ou seja, verdadeiramente humanizado. E a comunhão se dá à medida em que se dá adesão à sua proposta de vida em abundância, de mundo novo. É essa comunhão que faz nascer o verdadeiro reino por Jesus anunciado.

Que neste domingo em que a Igreja no Brasil celebra também o Dia Nacional do Laicato – dia de todas as leigas e leigos –, despertemos para uma autêntica busca da Verdade, a começar pela ressignificação da imagem de realeza que se tem de Jesus. É preciso recuperar a imagem da Testemunha da Verdade, que caminha lado a lado com os pequeninos, diferente do imaginário soberano. O despertar para o “caminhar juntos”, meta de uma Igreja que vive a sinodalidade, precisa sentir a presença de Jesus na caminhada, muito mais do que nos tronos.

Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues

sábado, novembro 16, 2024

REFLEXÃO PARA O 33º DOMINGO DO TEMPO COMUM – MARCOS 13,24-32 (ANO B)


A reta final do ano litúrgico é sempre marcada pelo uso intenso de textos do gênero literário apocalíptico, como acontece neste domingo, o trigésimo terceiro do tempo comum. Chegamos ao penúltimo domingo do ano litúrgico em curso, cujo evangelho proposto é Mc 13,24-32. Com esse texto encerramos a leitura dominical do Evangelho de Marcos, por este ano, já que o evangelho do próximo domingo, solenidade de Cristo Rei, será tirado da obra de João. Ao longo dos domingos de todo este ano litúrgico, foi feita a leitura quase completa do Evangelho de Marcos, e hoje nos despedimos dele. Como foi mencionado acima, o trecho lido hoje pertence ao gênero literário apocalíptico, e faz parte do “discurso escatológico” de Jesus, chamado também de “pequeno apocalipse” do Evangelho de Marcos. Antes de entrar propriamente no conteúdo do texto, é necessário contextualizar e fazer algumas observações, como faremos agora, à maneira de introdução.

A primeira observação diz respeito ao gênero literário ao qual pertence o texto: o gênero apocalíptico. Derivado da palavra apocalipse (em grego: ἀποκάλυψις – apocalípsis), cujo significado é “revelação”, “manifestação da verdade” ou “tornar conhecido algo que estava escondido”, o gênero apocalíptico é bastante empregado na Bíblia, mas tem sido muito distorcido ao longo da história, passando a ser sinônimo de catástrofes e desastres, causando medo nas pessoas, quando, na verdade, é um gênero literário usado pelos autores bíblicos para transmitir mensagens de esperança e resistência às comunidades destinatárias. Logo, ao invés de causar terror e medo, a mensagem do evangelho de hoje deve nos animar, como veremos no decorrer da reflexão. O discurso escatológico está presente nas últimas partes dos três evangelhos sinóticos (Mateus, Marcos e Lucas), antecedendo os relatos da paixão, morte e ressurreição de Jesus. Os evangelistas fazem questão de situá-los no curto ministério de Jesus em Jerusalém. O adjetivo “escatológico” deriva da palavra grega “escatón” (ἔσχατον), que significa fim. Ao falar de fim, os evangelistas pensam em dois sentidos: fim como extermínio de tudo o que impede a realização plena do Reino de Deus, e como finalidade da criação, sobretudo do gênero humano, alcançando seu verdadeiro destino.

Em Marcos, o discurso escatológico surge como resposta de Jesus a algumas perguntas dos discípulos. Ora, eles ficaram muito admirados com a beleza e esplendor do templo de Jerusalém (Mc 13,1). A essa admiração, Jesus respondeu que, de tudo aquilo, “não restaria pedra sobre pedra” (Mc 13,2). Curiosos, os discípulos perguntaram também quando aconteceria a destruição do templo (Mc 13,4); a essa pergunta, Jesus respondeu com um longo discurso (Mc 13,5-37), do qual o evangelho desse domingo faz parte. É um discurso dirigido essencialmente aos discípulos, os mais necessitados de respostas naquele momento, o que reflete também a necessidade da comunidade de Marcos. Ora, mais de trinta anos separam a ressurreição de Jesus da redação do Evangelho de Marcos. Muitos cristãos da sua comunidade começavam a levantar dúvidas sobre a veracidade das palavras anunciadas como se fossem de Jesus, enquanto surgiam dificuldades com perseguições de todas as partes: tanto do poder imperial romano, quanto da sinagoga que não aceitava mais continuar perdendo adeptos para o movimento cristão. Diante disso, além de levantar questionamentos, muitos membros da comunidade cristã desanimaram, perdendo a esperança e a motivação para continuar acreditando no projeto de Jesus. Por isso, o evangelista recorda o que Jesus disse e convida a sua comunidade a resistir diante das dificuldades.

O texto de hoje começa com uma afirmação importante de Jesus: «Naqueles dias, depois da grande tribulação, o sol vai se escurecer, e a lua não brilhará mais, As estrelas começarão a cair do céu e as forças do céu serão abaladas» (vv. 24-25). Percebe-se que essas palavras ainda fazem parte da resposta de Jesus à pergunta dos discípulos a respeito de “quando” aconteceria a destruição do templo, que significa a “grande tribulação” aqui mencionada. Ora, para Jesus, o templo de Jerusalém, que já não era mais uma casa de oração, e sim casa de comércio e covil de ladrões, era a primeira das estruturas de poder e dominação a ser destruída. A realização plena do Reino de Deus depende da derrocada das forças opressoras deste mundo, das quais, para Jesus, a mais cruel era a instituição religiosa que oprimia em nome de Deus; depois que essa desmoronasse, também as outras forças malignas desmoronariam, como aqui ele anuncia, ao usar as imagens dos astros: sol, lua e estrelas. Aqui, ele não se refere a uma catástrofe cósmica, mas usa uma linguagem simbólica, típica das literaturas de resistência, como a apocalíptica. Os astros aqui mencionados – sol, lua e estrelas – representam os poderes opressores e as divindades pagãs às quais estes poderes estavam associados. Esses astros eram divindades adoradas pelos romanos e egípcios, os quais acreditavam que seus imperadores fossem imagens e representantes dessas divindades.

O escurecimento do sol e da lua, junto à queda das estrelas, significa, portanto, que as forças opressoras, principalmente o poder religioso e o império romano, irão cair; desses acontecimentos brotará o Reino de Deus, instaurado definitivamente pelo Ressuscitado que, vivo, retornará glorioso: «Então vereis o Filho do Homem vindo nas nuvens com grande poder e glória» (v. 26). Nessa imagem, está a grande esperança de um novo tempo e de um novo mundo para todos os que perseverarem, pois «Ele enviará os anjos aos quatro cantos da terra e reunirá os eleitos de Deus, de uma extremidade à outra da terra» (v. 27). Ao invés de um julgamento severo, o evangelista diz que o Filho do Homem vem para reunir a criação inteira, e esse é um dos grandes distintivos do discurso apocalíptico de Marcos, isento de qualquer mensagem ameaçadora e punitiva. Os quatro cantos e as extremidades da terra significam a totalidade da humanidade a ser reunida e renovada; com isso, será instaurada a paz messiânica sobre a terra. São os poderes opressores com suas respectivas ideologias que impedem a convivência fraterna entre todos os povos da terra; com a queda dessas forças, a humanidade alcançará o seu verdadeiro fim e, assim, a paz será instaurada definitivamente. Com isso, os pobres e pequeninos terão vez e voz, serão protagonistas. As imagens que evocam o fim são, portanto, sinais de esperança, pois indicam um novo começo. É o velho mundo dando lugar a um mundo novo, com a instauração definitiva do Reino de Deus.

Assim é a história da salvação: nela, as coisas não acontecem repentinamente, nem através de eventos extraordinários, mas por meio de processos históricos que se desenrolam no tempo até que, um dia, desses acontecimentos, surgirá o Reino de Deus de modo definitivo. Com isso, ensinam Jesus e o evangelista que, para alcançar o Reino de Deus em sua máxima manifestação, os cristãos não devem fugir do mundo, nem ignorar a história; pelo contrário, inseridos no mundo e construtores da história, esses devem transformar, como agentes habilitados e enviados pelo próprio Cristo. A vitória é fruto e consequência de muita luta contra as forças do mal. Como viviam perseguidos os cristãos da comunidade de Marcos, o evangelista encontrou no gênero apocalíptico o meio mais adequado para transmitir sua mensagem encorajadora. A autêntica compreensão da história começa pela observação das coisas simples da natureza; por isso, o convite: «Aprendei, pois, da figueira esta parábola: quando seus ramos ficam verdes e as folhas começam a brotar, sabeis que o verão está perto» (v. 28). Os sinais estarão sempre disponíveis para quem tem a necessária capacidade do discernimento. E é muito significativo que Jesus convide seus seguidores a observar os sinais dos tempos a partir dos elementos da criação. Mesmo sendo a sua pessoa a plenitude da revelação, ele não abre mão dos elementos da criação – astros e plantas – como sinais mediadores e indicadores do agir de Deus no mundo.

Os cristãos perseguidos da comunidade de Marcos não cansavam de perguntar quando seriam libertados, quando as tribulações passariam. Muitos deles, assim como os primeiros discípulos, queriam até uma data determinada e fixa. Porém, nem Jesus nem o evangelista fixaram datas; apenas convidaram todos a manterem-se vigilantes e atentos, lendo os sinais dos tempos: «Assim também, quando virdes acontecer essas coisas, ficai sabendo que o Filho do Homem está próximo, às portas» (v. 29). “Estas coisas”, aqui, são os acontecimentos históricos representados pela imagem do desmantelamento dos astros (vv. 24-25), o que significa o desmoronamento das forças opressoras, a começar pela queda do templo de Jerusalém, como fim da exploração religiosa e, posteriormente, a derrocada das outras forças, como o império romano. É importante o sentido das palavras empregadas com a sua simbologia: os astros são meras imagens. Mas não é para o alto que os cristãos devem olhar, e sim para o que está ao seu redor, como o renovamento da ramagem da figueira, que é uma imagem mais acessível. Mais do que esperar acontecimentos portentosos, portanto, os discípulos de Jesus devem olhar para os fatos simples e cotidianos. O ciclo de mudanças de uma planta, como sinal de simplicidade e mistério, ao mesmo tempo, é mais pedagógico do que uma imaginária revolução cósmica, pois é algo concreto, observável no cotidiano. Por isso, é preciso ver a história acontecendo e interpretá-la com discernimento, para transformá-la, sem esperar sinais extraordinários.

Aparentemente, há uma contradição entre os versículos 30 e 32: enquanto no versículo 30 está escrito que «esta geração não passará até que tudo isto aconteça», o versículo 32 afirma que «Quanto àquele dia e hora, ninguém sabe, nem os anjos do céu, nem o Filho, mas somente o Pai» (32). O versículo 30 é, com muita probabilidade, uma advertência do próprio evangelista à sua comunidade que via a destruição de Jerusalém e do seu templo como inevitável – o Evangelho de Marcos foi escrito, provavelmente, já no final dos anos 60, e Jerusalém foi destruída no ano 70. De fato, a destruição de Jerusalém e do templo era vista com a primeira fase “destes acontecimentos” de quedas das forças opressoras. Se aquela grande casa de comércio, o templo, com toda a sua força e ideologia estava prestes a cair, também os demais reinos opressores cairiam um dia, mesmo que num tempo muito distante, efetivando a instauração definitiva do Reino de Deus. Porém, quanto à chegada definitiva desse Reino, somente o Pai sabe; aos filhos, discípulos de Jesus em todos os tempos, cabe apenas lutar perseverantes para um dia isso acontecer. Essa luta depende da disposição de cada pessoa em fazer somente o bem, para que o mal seja completamente destruído e, assim, um novo mundo surgirá.

Não obstante as contradições da história e as dificuldades de ver os sinais do Reino presentes, os cristãos e cristãs são motivados por uma única certeza: «O céu e a terra passarão, mas as minhas palavras não passarão» (v. 31). Esse é, de fato, um versículo conclusivo e bastante significativo. Muitos questionamentos eram e continuam sendo feitos, pois, embora dinâmica, a história parece não caminhar para um final feliz. Os processos históricos, em sua grande maioria, ao invés de melhorar a vida das pessoas, trazendo inclusão e bem-estar, parecem piorar, sobretudo, para os menos favorecidos. As contradições aumentam cada vez mais, junto com as desigualdades. Porém, ao invés de desanimar, todas estas contradições da história devem nos animar e alimentar a esperança, pois mostram que nada permanece para sempre, tudo muda. Dessa certeza, resta-nos acreditar e apostar cada vez mais na única realidade que não passa: o Evangelho. É a totalidade das palavras e da práxis de Jesus que garante à humanidade a única alternativa de mudança de rumo e de realização plena de um novo mundo e uma nova história.

É consolador saber que, diante de tantas coisas passageiras e de outras que parecem permanentes, somente as palavras de Jesus nunca passarão, continuarão sempre novas. Por ser eternas, são palavras que resistem e geram resistência. Neste dia, que é a Jornada Mundial dos Pobres, é importante recordá-las, bem como todo o evangelho de hoje. O mundo velho, representado no texto pelos astros, vai cair, vai passar, e é importante que os seguidores de Jesus se comprometam em lutar por essa queda. Em seu lugar, surgirá um mundo novo, o Reino de Deus, que é o mundo dos pobres e pequeninos, por quem Jesus fez clara opção no seu ministério, e por quem também devem fazer os seus seguidores. O evangelho de hoje é um forte convite a acreditar no mundo novo e a lutar pela sua construção.

Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues

sábado, novembro 09, 2024

REFLEXÃO PARA O 32º DOMINGO DO TEMPO COMUM – MARCOS 12,38-44 (ANO B)


Depois de uma pausa para a solenidade de todos os santos, celebrada no domingo passado, a liturgia retoma a leitura semi-contínua do Evangelho de Marcos, como é típico do ano litúrgico B, que já se encontra em sua reta final. O texto proposto para este domingo, o trigésimo segundo do tempo comum, é Mc 12,38-44. Nessa passagem, Jesus já se encontra na cidade de Jerusalém, vivendo os dias do seu ministério e da sua vida terrena. Após ter percorrido um longo caminho com seus discípulos, pois partiram do extremo norte da Galileia, Jesus entrou na grande cidade e começou a exercer o seu ministério também ali, principalmente nos átrios do templo e em seus arredores. Ao longo do caminho, além dos discípulos, também as multidões acompanhavam Jesus, sobretudo na reta final, quando já se aproximavam de Jerusalém, pois as caravanas aumentavam cada vez mais, à medida em que a Páscoa de aproximava. E, caminhando, Jesus continuava a exercer sua missão de enviado do Pai – um messias às avessas das expectativas da época –, ensinando, curando e denunciando. O caminho foi a etapa privilegiada de ensino aos discípulos, principalmente, a fim de que assimilassem o seu projeto humanizante. Ao chegar em Jerusalém, sua primeira atividade de Jesus foi a expulsão dos comerciantes do templo (Mc 11,15-16), cumprindo um gesto profético, como forma de denúncia enfática à lideranças religiosas que exploravam as pessoas em nome de Deus.  Além desse fato, durante alguns dias, Jesus se envolveu em diversas controvérsias e disputas com os líderes religiosos, aprofundando cada vez mais a sua crítica à religião da época.

O episódio retratado no evangelho de hoje é a última controvérsia ou investida contra a religião dentro do próprio recinto do templo. É a última semana de Jesus, na qual ele aproveitou para entrar em conflito com todos os grupos hegemônicos da época, aprofundando o seu profetismo denunciador. Na verdade, de acordo com o relato de Marcos, essa foi a última vez que Jesus entrou no templo, o que torna o texto ainda mais significativo, pois atesta sua ruptura total com o sistema religioso que o condenará pouco tempo depois. No episódio anterior, ele tinha entrado em conflito com os escribas por motivos doutrinais (Mc 12,28-37); no texto que a liturgia oferece para hoje, o conflito diz respeito ao comportamento dos escribas ou mestres da Lei, como prefere a versão da liturgia. Os escribas (em grego: γραμματευς = gramateús) eram os teólogos oficiais, intérpretes credenciados da Lei, além de ser também, como sugere o próprio nome, responsáveis pela escrita das cópias da Escritura e dos comentários dos rabinos para serem lidos nas sinagogas. Eles exerciam papel proeminente no judaísmo da época; eram os responsáveis diretos pela dominação ideológica da religião sobre o povo, o que justifica a severidade das denúncias de Jesus contra eles. De fato, para Jesus, o pecado mais grave, intolerável, era a instrumentalização do nome de Deus e a consequente exploração. Por isso, ele foi tão duro com as lideranças religiosas de seu tempo e os evangelistas recordam isso para prevenir suas comunidades e as de todos os tempos para não reproduzirem o modelo de religião que ele combateu e, por isso, levou-o à morte. 

Feita a contextualização, voltemos então a atenção para o texto, partindo da primeira parte do primeiro versículo: «Jesus dizia, no seu ensinamento, a uma grande multidão: “Tomai cuidado com os doutores da Lei!”» (v. 38a). Como a Páscoa já estava bastante próxima, certamente já havia muitos peregrinos em Jerusalém, que certamente ouviam os ensinamentos de Jesus, incluindo as multidões que tinham entrado com ele. À medida em que ouviam, repercutiam, fazendo o seu auditório aumentar a cada dia, o que fazia aumentar também a preocupações dos grupos privilegiados que se sentiam ameaçados pelo teor da sua pregação. Aqui, o polêmico ensinamento é introduzido com uma enfática forma de denúncia, traduzida pelo lecionário por “Tomai cuidado!”. Contudo, apesar de enfática, essa expressão ainda não exprime totalmente o que o texto diz na língua original, pois o evangelista emprega uma forma imperativa de um dos mais expressivos verbos gregos da visão – verbo ver, em grego: βλέπω – blêpo. Literalmente, a expressão empregada pelo evangelista é “abri os olhos” (em grego: βλέπετε – blêpete). Isso quer dizer que Jesus considerava os doutores da Lei muito perigosos, embora fossem as pessoas mais bem vistas e respeitadas pela sociedade da época. É importante recordar que Jesus jamais mandou os discípulos e as multidões tomarem cuidado com as prostitutas, os publicanos ou os pecadores em geral, mas somente com as classes das pessoas mais religiosas da época, como os escribas doutores da Lei, fariseus e sacerdotes.

Após a advertência inicial, expressa pela fórmula “abri os olhos!”, Jesus diz o porque se deve ter cuidado com os doutores da Lei: «Eles gostam de andar com roupas vistosas, de ser cumprimentados nas praças públicas; gostam das primeiras cadeiras nas sinagogas e dos melhores lugares nos banquetes» (vv. 38b-39). É por causa da presunção e desse comportamento hipócrita e falso dos doutores da Lei que as pessoas precisam ter muito cuidado com eles. O comportamento deles é perigoso porque, em nome da religião, camuflam muita perversidade e maldade; são pessoas que vivem de aparências, se sentem superiores, são soberbas e cultivam privilégios, esbanjando ostentação. Um comportamento assim, é totalmente oposto ao que Jesus pede de seus discípulos; e o pior, para Jesus, é que os doutores da Lei faziam tudo isso em nome de Deus e da religião. Eles viviam uma religião de aparências, eram verdadeiros hipócritas, embora Jesus não lhes aplique essa palavra aqui, mas o faz em outras ocasiões. A ênfase de Jesus e do evangelista com essa denúncia visa advertir as comunidades cristãs para que uma prática religiosa desse tipo não se reproduza. Na época da redação do Evangelho de Marcos, logo após a morte dos apóstolos Pedro e Paulo, as comunidades viviam uma verdadeira transição nos modelos de organização interna. O evangelista se preocupava com uma tendência hierarquizante no exercício da liderança. Suas denúncias, portanto, tem a função de prevenir para que a estrutura da religião que levou Jesus à morte não se reproduza nas comunidades. 

Na continuidade da denúncia, Jesus identifica uma falta ainda mais grave na falsa religiosidade dos mestres da Lei: «Eles devoram as casas das viúvas, fingindo fazer longas orações. Por isso eles receberão a pior condenação» (v. 40). A categoria das viúvas é uma das imagens de pessoas mais vulneráveis e necessitadas da Bíblia; juntamente com os pobres, os órfãos e estrangeiros, as viúvas são destinatárias prediletas do cuidado de Deus e, por isso, símbolo da sua preferência pelos humildes. Inclusive, a Lei hebraica previa proteção especial às viúvas (Ex 22,21-23), mas nem sempre isso era bem observado. Entre o Antigo e o Novo Testamento, não faltam críticas e lamentos pelos direitos usurpados das viúvas. Ora, se a mulher em si já era uma categoria marginalizada na época, se tornava ainda mais se ficasse viúva. A mulher que ficasse viúva sem ter um filho homem, e se não casasse novamente com um cunhado, em caso de ter ficado com herança, deveria confiar o cuidado dessa herança aos escribas doutores da Lei, já que a mulher não podia fazer negócios; é a esse fato que Jesus alude ao dizer que os escribas devoram as casas das viúvas. Constatava-se que, ao receber o direito de administrar o patrimônio das viúvas, os escribas na verdade se desfrutavam desse, roubando até devorar, literalmente. Para Jesus, nenhuma forma de injustiça e exploração é aceitável, mas quando isso acontece em nome de Deus e da religião, é muito pior. Por isso, a sentença é tão dura: “eles receberão a pior condenação”. De acordo com o Evangelho, o que leva o ser humano à condenação é a prática da injustiça, principalmente a exploração e a falta de cuidado com as pessoas mais vulneráveis e necessitadas.

Após a polêmica com os doutores da Lei, Jesus continua no templo observando o movimento e, certamente, inconformado com tudo o que via ali. Na verdade, dessa vez a polêmica não tinha sido exatamente com os doutores da Lei, mas eles tinham sido empregados como exemplo negativo; a prática religiosa e o estilo de vida deles foram recordados como modelo a ser evitado na comunidade cristã. Jesus sabia que o templo já não era casa de oração, mas casa de comércio e covil de ladrões, como tinha denunciado há pouco tempo (Mc 11,15-18). Chamava sua atenção a mercantilização da fé, o que lhe deixava indignado. Por isso, o evangelista recorda que «Jesus estava sentado no templo, diante do cofre das esmolas, e observava como a multidão depositava suas moedas no cofre. Muitos ricos depositavam grandes quantias» (v. 41). O povo tinha se acostumado com uma Deus que pedia ofertas para revertê-las em favores e proteção aos que ofertavam. A posição de Jesus era de completo repúdio àquele sistema, pois a religião dos favores se transforma em religião do mérito e, por fim, em religião do domínio. Com seu programa de humanização, o Reino de Deus, Jesus repudiava tudo isso. Para o sistema do templo, o valor da oferta determinava a dimensão do favor de Deus. Esse Deus mercador não podia ser o Pai de Jesus!

Entre tantas pessoas devotas que passavam pelo templo, Jesus observa um caso muito particular, que lhe chama a atenção: «Então chegou uma pobre viúva que deu duas pequenas moedas, que não valiam quase nada» (v. 42). Ora, de acordo com a Lei, o sistema religioso deveria prover as viúvas pobres do necessário para a sobrevivência (Dt 14,28-29). E, de repente, Jesus constata o contrário: o sistema religioso recebendo até mesmo de quem não podia ofertar e mal tinha como sobreviver. Embora voluntária e generosa, a oferta da viúva é motivada por uma concepção errada de Deus; ela é coagida ideologicamente a ofertar o pouco que tem, para poder receber benefícios de Deus. Era isso que os doutores da Lei e os sacerdotes pregavam. As pequenas moedas ofertadas pela viúva eram suficientes para comprar cem gramas de pão, cada uma, conforme a terminologia empregada pelo evangelista, na língua original do texto (em grego: λεπτός – leptós). As duas moedinhas significam, simbolicamente, o que a viúva tinha para viver o dia de hoje e o dia seguinte. Quer dizer que ela abriu mão de tudo, renunciou a si mesma, fez o que Jesus pedia insistentemente aos seus discípulos, mas eles ainda não tinham conseguido, pois, ao longo do caminho tinham se revelado ambiciosos, pretensiosos e sedentos por poder. De repente, surge uma pessoa que não conhecia o ensinamento de Jesus, mas estava sintonizado com ele. O problema, no entanto, constatado por Jesus, é que a religião estava tirando a vida da pobre viúva. A viúva imaginava estar ofertando a Deus, mas, a verdade, estava ofertando à caricatura de Deus que a religião tinha fabricado. 

Ao ver a viúva ofertando tudo o que tinha para viver, Jesus se comove e chama a atenção dos seus discípulos, tão necessitados de mudança de mentalidade. Por isso, ele faz da viúva uma parábola vivente: «Jesus chamou os discípulos e disse: “Em verdade vos digo: esta pobre viúva deu mais do que todos os outros ofereceram esmolas. Todos deram do que tinham de sobra, enquanto ela, na sua pobreza, ofereceu tudo aquilo que possuía para viver”» (vv. 43-44). A fórmula de introdução “em verdade vos digo” (em grego: ἀμὴν λέγω ὑμῖν – amén lêgo hymin) indica tratar-se de um ensinamento solene, indispensável para os discípulos. Ele estabelece um paralelismo antitético entre os ricos, que doavam do que sobrava, e a viúva, que doou tudo o que tinha para viver. A atitude da pobre viúva se torna um ensinamento solene para Jesus. Considerando a relação entre o que ela possuía e o que deu, ela deu mais do que todos os outros. Sua atitude mostra que toda pessoa tem algo a oferecer ao outro, todos têm algo para dar, independentemente da condição social. Jesus percebeu muita sinceridade e verdade naquela oferta. Ao contrário dos doutores da Lei, que viviam de aparências, e dos ricos que ofertavam do supérfluo, a viúva renunciou a tudo o que tinha para viver, doando as suas duas únicas pequenas moedas. Porém, a admiração de Jesus é mais uma denúncia do que um elogio: a oferta das duas moedinhas da viúva era a última prova que ele precisava para concluir que aquela instituição religiosa – o templo e seu aparato de sustentação financeiro e ideológico – estava completamente degradada, sugando até mesmo de quem não tinha, como a viúva. Jesus sentiu as dores da viúva sendo sugada pelo templo e chamou os discípulos para sentirem também essas dores, alertando-os para jamais repetirem os abusos da religião que ele estava denunciando, corresponsável pela sua morte, junto com o império romano. Mais do que comover, aquela cena causou repulsa em Jesus; por isso, ao sair do templo, pouco tempo depois, ele desejou e profetizou a sua destruição: «Não ficará pedra sobre pedra que não seja demolida» (Mc 13,2).

Jesus condena severamente a religião que se sustenta em práticas superficiais, condena a ostentação e a busca por privilégios. Ele não tolera religião de fachada, sobretudo quando essa esconde injustiças e exploração. Qualquer prática religiosa que abusa da boa vontade das pessoas simples e humildes, nada tem a ver com o projeto de Jesus. O exemplo de generosidade da viúva é modelo para os seus discípulos. Ele louva quem tem coragem de dar a vida, como ele. A viúva também deu sua própria vida, com aquela oferta. Mas é intolerável a religião que tira a vida das pessoas, como o templo tirou a vida da viúva e estava, aos poucos, tirando a vida de Jesus. 

Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues

sábado, novembro 02, 2024

REFLEXÃO PARA A SOLENIDADE DE TODOS OS SANTOS – MATEUS 5,1-12a

 


Neste ano, a liturgia do trigésimo primeiro domingo do comum é substituída pela solenidade de todos os santos. E o evangelho proposto para essa solenidade é Mt 5,1-12a, interrompendo, assim, a leitura semi-contínua do Evangelho de Mateus. É um texto fixo, lido todos os anos, certamente porque nenhuma outra passagem expressa tão bem o sentido da santidade como esse. Trata-se da introdução do primeiro dos cinco discursos de Jesus no Evangelho de Mateus, conhecido como “discurso ou sermão da montanha”. Essa introdução ficou conhecida como “bem-aventuranças”, devido à repetição constante do termo grego makárioi (μακάριοι), cujo significado é benditos, felizes ou bem-aventurados. Esse é, certamente, um dos trechos mais lidos e conhecidos de todo o Novo Testamento, apreciado por cristãos e não cristãos, pois contém o mais completo programa de humanização que o mundo já conheceu. Gandhi, por exemplo, definiu as bem-aventuranças como «as palavras mais altas que a humanidade já escutou».

As bem-aventuranças compreendem a síntese do programa de vida de Jesus e, consequentemente, daquilo que seus discípulos e discípulas de todos os tempos devem viver. É um texto belo, mas muito fácil de ter seu sentido deformado, se interpretado de modo equivocado, como geralmente tem acontecido. Ora, falar em todos os santos e santas tem tudo a ver com o autêntico seguimento de Jesus de Nazaré. Por isso, é importante refletir cada vez mais sobre as palavras de Jesus que o Evangelho apresenta. Na verdade, todo o discurso da montanha é um indicador de direção para o discipulado de Jesus e, portanto, para a santidade. Devemos, pois, concentrar nossa reflexão na mensagem evangélica, evitando que esta solenidade se transforme em mera apologia ao devocionismo fundamentalista que tanto tem se difundido nos últimos anos. Por isso, é preciso ter clareza do programa de vida de Jesus com seu projeto de sociedade e, consequentemente, das suas exigências.

De todas as palavras atribuídas a Jesus que encontramos ao longo dos evangelhos, as bem-aventuranças são as mais interpelantes e revolucionárias, embora sejam as mais fáceis de serem deturpadas, passando de uma mensagem de transformação a uma de resignação. Infelizmente, isso tem acontecido com muita frequência. Por isso, é necessário compreendê-las bem, para que sua mensagem seja sempre de encorajamento e transformação. Na versão mateana, encontramos oito bem-aventuranças, embora alguns comentadores considerem nove, devido à ocorrência do termo grego makárioi (μακάριοι) por nove vezes. Não consideramos a nona ocorrência do termo (v. 11) como uma nova bem-aventurança, mas como uma recapitulação e síntese das oito para os discípulos, reforçando a exigência para que eles de fato vivessem intensamente todas elas.

Para compreendermos as bem-aventuranças em seu sentido original, é necessário fazer mais uma consideração semântica. Como já afirmamos anteriormente, o termo grego empregado no Evangelho é makárioi (μακάριοι), o qual pode ser traduzido por benditos, felizes ou bem-aventurados; é uma fórmula que introduz uma mensagem de felicitação. É importante recordar que, embora escritos em grego, os evangelhos foram construídos segundo uma mentalidade semítica, sobretudo o de Mateus. Por isso, é importante recordar o sentido da palavra na língua original de Jesus, o hebraico. Ora, o termo correspondente ao grego μακαριοι – makárioi, em hebraico é (אשרי) “ashrei”, o qual significa uma felicitação, mas é, ao mesmo tempo, uma forma imperativa do verbo caminhar, seguir em frente, avançar ou pôr-se em marcha. Expressivas correntes da exegese atual propõem que o evangelista pensou nos dois sentidos ao formular o seu texto. De fato, sem esse segundo sentido, as bem-aventuranças podem facilmente ser transformadas em discurso de conformismo ou resignação; com ele, passam a ser uma mensagem de transformação.

Olhemos, pois, para cada uma das situações contempladas por Jesus como necessitadas de transformação. Eis a primeira bem-aventurança: «Bem-aventurados os pobres em espírito, porque deles é o Reino dos Céus» (v. 3). De todas, tem sido essa a bem-aventurança que tem recebido as interpretações mais equivocadas ao longo da história, infelizmente. Longe de ser um convite ao conformismo, é um impulso à transformação. Na língua grega a palavra pobre (πτωχός – ptokós) deriva do verbo acocorar-se de medo, dobrar-se, abaixar-se, encurvar-se; designa, portanto, uma condição de humilhação extrema. O convite de Jesus é para que não desanimem, mas sigam em frente, não desistam, coloquem-se em marcha para alcançarem o Reino que foi criado para eles, o Reino dos Céus, mas não no céu, aqui mesmo na terra, como sinônimo de vida digna e plena. Aqui o termo espírito (em grego: πνεύμα – pneuma) é empregado como sinônimo de consciência da situação em que se encontram os pobres, encurvados de medo pela opressão do império romano e pela religião oficial da época. A esses, Jesus convida a perder o medo e, conscientemente, seguir em frente lutando pelo Reino. O pobre que se encontra encurvado pelo sistema, deve tomar consciência da sua situação insuportável e lutar, seguindo em busca de seus direitos de herdeiro do Reino.

A segunda bem-aventurança diz: «Bem-aventurados os aflitos, porque serão consolados» (v. 4). De todas as bem-aventuranças, certamente, essa é a mais paradoxal. Numa tradução mais literal, o termo aflitos seria substituído por “os que choram”, e essa bem-aventurança mistura felicidade com lágrimas e lágrimas com a consolação. É um paradoxo que escapa a qualquer lógica humana. É claro que Deus não compactua com as causas das aflições, mas ele está sempre do lado dos aflitos, daqueles que choram. Ora, jamais será consolado o aflito que se fecha em suas aflições, mas sim aquele que consegue mover-se, apesar do sofrimento. Ser consolado na mentalidade bíblica é ter o sofrimento eliminado por completo. A implantação do Reino dos Céus em um mundo tão hostil traz muitas aflições para os discípulos de Jesus. Mesmo assim, eles devem avançar, jamais recuar, para encontrar a consolação.

Na terceira bem-aventurança, Jesus diz: «Bem-aventurados os mansos, porque possuirão a terra» (v. 5). O termo manso equivale a humilde, e significa a pessoa que reivindica alguma coisa sem violência. Nesse caso particular, equivale às pessoas que lutam pela terra sem fazer uso da violência. A luta sem violência se torna mais lenta e, aparentemente, mais difícil de conseguir o objetivo. Por isso, Jesus encoraja, pede paciência, determinação e ação; em outras palavras, é como se ele dissesse: «não parem, continuem caminhando e lutando». Era muito comum os pequenos camponeses perderem suas terras por dívidas, com possibilidade de resgate. À medida que o tempo passava, as esperanças de resgate diminuíam e muitos desanimavam. Por isso, Jesus os consola e os encoraja.

Como não poderia deixar de ser, Jesus coloca para os discípulos, conforme ele mesmo o fizera, a justiça como uma busca incessante. Por isso, a quarta bem-aventurança é tão forte: «Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque serão saciados» (v. 6). A fome e a sede são as necessidades que mais incomodam o ser humano. Assim como o alimento e a bebida são essenciais para a vida, também deve ser a luta por justiça entre seus discípulos. A comunidade cristã não tem vida quando não se alimenta cotidianamente de justiça. Onde não há justiça, não há dignidade, não há paz. É preciso seguir em frente na luta por justiça.

Na quinta bem-aventurança, temos: «Bem-aventurados os misericordiosos, porque encontrarão misericórdia» (v. 7). É importante recordar que misericórdia, na Bíblia, não é um sentimento, mas uma ação em favor dos necessitados. Com isso, Jesus pede que seus discípulos prossigam sempre no caminho do bem, pois é do bem que o bem é gerado. Quando mais se ama mais possibilidades se tem de ser amado também. Isso faz parte da pedagogia divina e da própria essência do Deus revelado por Jesus, que é todo amor e misericórdia. De fato, a misericórdia é uma das principais características do Deus de Jesus, por isso, deve ser também para os seus seguidores. Seguir fazendo o bem ao próximo, sem distinção, é uma das principais exigências do discipulado.

Com a sexta bem-aventurança, Jesus se contrapõe claramente aos ritos de purificação da religião judaica: «Bem-aventurados os puros de coração, porque verão a Deus» (v. 8). Os antigos ritos de purificação do judaísmo tinham escondido o rosto verdadeiro de Deus. Jesus proclama a nulidade daqueles ritos e pede para seus discípulos caminharem em outra direção, avançarem por outro caminho que não seja o da religião que divide, exclui e até mata. Só há um tipo de pureza: aquela interior, e essa não é proporcionada por nenhum rito, mas somente pela disposição do ser humano em seguir os propósitos de Deus. Vê a Deus quem olha para o próximo com os olhos de Deus. É nessa direção que o discípulo de Jesus deve marchar, avançar.

A sétima bem-aventurança diz: «Bem-aventurados os que promovem a paz, porque serão chamados filhos de Deus» (v. 9). Na marcha da comunidade formada por discípulos e discípulas de Jesus, a promoção da paz é requisito básico e essencial. Não se trata de uma falsa paz como aquela imposta por Roma, intitulada “pax romana”. A paz que Jesus propõe não é uma mera ausência de conflitos, mas um retorno ao ideal hebraico expresso pela palavra (שלום) shalom: paz como bem-estar total do ser humano, harmonia com Deus, com o próximo e consigo mesmo. É por essa paz que a comunidade de discípulos e discípulas deve lutar enquanto caminha, fazendo dessa paz o rumo da caminhada. Não há prêmio para quem caminha promovendo a paz, mas há consequências: ser chamados filhos de Deus. Na tradição bíblica, ser filho é ser parecido com o pai. Quando alguém caminha promovendo a paz, se torna parecido com Deus, por isso, será chamado seu filho.

A oitava bem-aventurança funciona como uma espécie de credencial para o reconhecimento do discípulo e sua pertença ao Reino: «Bem-aventurados os que são perseguidos por causa da justiça, porque deles é o Reino dos Céus» (v. 10). A justiça, por excelência, é a prática de todas as bem-aventuranças anteriores. A quem adere plenamente à lógica do Reino, não há outra consequência a não ser a perseguição. Mas, mesmo diante da perseguição, a palavra de Jesus continua sendo de ânimo e encorajamento: continuai caminhando, avançando, marchando em busca do Reino que é vosso!

Viver as bem-aventuranças é, portanto, abraçar um projeto de sociedade alternativa que, inevitavelmente, entra em conflito com os sistemas dominantes baseados na exploração, no lucro, na sobreposição de uns sobre os demais e pela violência. Mas é diante de tudo isso, ou seja, no conflito, que a comunidade cristã deve avançar, seguir em frente sem jamais desanimar. Por isso, Jesus reforçou todo o ensinamento anterior, direcionando diretamente para os discípulos a conclusão com as consequências do abraçar o seu projeto: «Bem-aventurados sois vós, quando vos injuriarem e perseguirem, e, mentindo, disserem todo tipo de mal contra vós, por causa de mim. Alegrai-vos e exultai, porque será grande a vossa recompensa nos céus» (vv. 11-12a). Alguns estudiosos vêem essa afirmação como uma nova bem-aventurança, enquanto outros, a maioria, a vêem como um reforço e síntese conclusiva das oito anteriormente apresentadas. Aquelas oito são inseparáveis. Jesus não as apresenta como sugestões para os discípulos escolherem uma ou outra. É preciso viver todas elas para ser discípulo e discípula de Jesus, pois nelas ele traça o seu próprio retrato, diz como ele mesmo viveu, caminhou ou avançou; e o discípulo deve, inevitavelmente, viver como ele.

Assim, recordando que Paulo e os demais cristãos de suas comunidades chamavam-se mutuamente de santos, e eram cristãos porque levavam a sério as bem-aventuranças, podemos compreender que celebrar todos os santos é recordar todos os que não aceitam as coisas como são impostas, mas sabem mover-se, avançar e seguir um outro caminho, não para fugir da realidade, mas para transformá-la à maneira de Jesus.

Para seguir Jesus é preciso estar em estado permanente de marcha, caminhando contra tudo o que impede a realização do Reino já aqui na terra. A comunidade cristã não pode mais aceitar que uma mensagem tão encorajante e transformadora se transforme em sinal de resignação e aceitação passiva diante de tudo o que impede o advento do Reino. A mensagem das bem-aventuranças é libertadora porque convida o discípulo e a discípula a sair de si, colocar-se em movimento rumo a um mundo melhor, mais justo e mais fraterno. Enfim, as bem-aventuranças constituem o mais completo programa de humanização que esse mundo já conheceu.

 Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN


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