sábado, novembro 09, 2024

REFLEXÃO PARA O 32º DOMINGO DO TEMPO COMUM – MARCOS 12,38-44 (ANO B)


Depois de uma pausa para a solenidade de todos os santos, celebrada no domingo passado, a liturgia retoma a leitura semi-contínua do Evangelho de Marcos, como é típico do ano litúrgico B, que já se encontra em sua reta final. O texto proposto para este domingo, o trigésimo segundo do tempo comum, é Mc 12,38-44. Nessa passagem, Jesus já se encontra na cidade de Jerusalém, vivendo os dias do seu ministério e da sua vida terrena. Após ter percorrido um longo caminho com seus discípulos, pois partiram do extremo norte da Galileia, Jesus entrou na grande cidade e começou a exercer o seu ministério também ali, principalmente nos átrios do templo e em seus arredores. Ao longo do caminho, além dos discípulos, também as multidões acompanhavam Jesus, sobretudo na reta final, quando já se aproximavam de Jerusalém, pois as caravanas aumentavam cada vez mais, à medida em que a Páscoa de aproximava. E, caminhando, Jesus continuava a exercer sua missão de enviado do Pai – um messias às avessas das expectativas da época –, ensinando, curando e denunciando. O caminho foi a etapa privilegiada de ensino aos discípulos, principalmente, a fim de que assimilassem o seu projeto humanizante. Ao chegar em Jerusalém, sua primeira atividade de Jesus foi a expulsão dos comerciantes do templo (Mc 11,15-16), cumprindo um gesto profético, como forma de denúncia enfática à lideranças religiosas que exploravam as pessoas em nome de Deus.  Além desse fato, durante alguns dias, Jesus se envolveu em diversas controvérsias e disputas com os líderes religiosos, aprofundando cada vez mais a sua crítica à religião da época.

O episódio retratado no evangelho de hoje é a última controvérsia ou investida contra a religião dentro do próprio recinto do templo. É a última semana de Jesus, na qual ele aproveitou para entrar em conflito com todos os grupos hegemônicos da época, aprofundando o seu profetismo denunciador. Na verdade, de acordo com o relato de Marcos, essa foi a última vez que Jesus entrou no templo, o que torna o texto ainda mais significativo, pois atesta sua ruptura total com o sistema religioso que o condenará pouco tempo depois. No episódio anterior, ele tinha entrado em conflito com os escribas por motivos doutrinais (Mc 12,28-37); no texto que a liturgia oferece para hoje, o conflito diz respeito ao comportamento dos escribas ou mestres da Lei, como prefere a versão da liturgia. Os escribas (em grego: γραμματευς = gramateús) eram os teólogos oficiais, intérpretes credenciados da Lei, além de ser também, como sugere o próprio nome, responsáveis pela escrita das cópias da Escritura e dos comentários dos rabinos para serem lidos nas sinagogas. Eles exerciam papel proeminente no judaísmo da época; eram os responsáveis diretos pela dominação ideológica da religião sobre o povo, o que justifica a severidade das denúncias de Jesus contra eles. De fato, para Jesus, o pecado mais grave, intolerável, era a instrumentalização do nome de Deus e a consequente exploração. Por isso, ele foi tão duro com as lideranças religiosas de seu tempo e os evangelistas recordam isso para prevenir suas comunidades e as de todos os tempos para não reproduzirem o modelo de religião que ele combateu e, por isso, levou-o à morte. 

Feita a contextualização, voltemos então a atenção para o texto, partindo da primeira parte do primeiro versículo: «Jesus dizia, no seu ensinamento, a uma grande multidão: “Tomai cuidado com os doutores da Lei!”» (v. 38a). Como a Páscoa já estava bastante próxima, certamente já havia muitos peregrinos em Jerusalém, que certamente ouviam os ensinamentos de Jesus, incluindo as multidões que tinham entrado com ele. À medida em que ouviam, repercutiam, fazendo o seu auditório aumentar a cada dia, o que fazia aumentar também a preocupações dos grupos privilegiados que se sentiam ameaçados pelo teor da sua pregação. Aqui, o polêmico ensinamento é introduzido com uma enfática forma de denúncia, traduzida pelo lecionário por “Tomai cuidado!”. Contudo, apesar de enfática, essa expressão ainda não exprime totalmente o que o texto diz na língua original, pois o evangelista emprega uma forma imperativa de um dos mais expressivos verbos gregos da visão – verbo ver, em grego: βλέπω – blêpo. Literalmente, a expressão empregada pelo evangelista é “abri os olhos” (em grego: βλέπετε – blêpete). Isso quer dizer que Jesus considerava os doutores da Lei muito perigosos, embora fossem as pessoas mais bem vistas e respeitadas pela sociedade da época. É importante recordar que Jesus jamais mandou os discípulos e as multidões tomarem cuidado com as prostitutas, os publicanos ou os pecadores em geral, mas somente com as classes das pessoas mais religiosas da época, como os escribas doutores da Lei, fariseus e sacerdotes.

Após a advertência inicial, expressa pela fórmula “abri os olhos!”, Jesus diz o porque se deve ter cuidado com os doutores da Lei: «Eles gostam de andar com roupas vistosas, de ser cumprimentados nas praças públicas; gostam das primeiras cadeiras nas sinagogas e dos melhores lugares nos banquetes» (vv. 38b-39). É por causa da presunção e desse comportamento hipócrita e falso dos doutores da Lei que as pessoas precisam ter muito cuidado com eles. O comportamento deles é perigoso porque, em nome da religião, camuflam muita perversidade e maldade; são pessoas que vivem de aparências, se sentem superiores, são soberbas e cultivam privilégios, esbanjando ostentação. Um comportamento assim, é totalmente oposto ao que Jesus pede de seus discípulos; e o pior, para Jesus, é que os doutores da Lei faziam tudo isso em nome de Deus e da religião. Eles viviam uma religião de aparências, eram verdadeiros hipócritas, embora Jesus não lhes aplique essa palavra aqui, mas o faz em outras ocasiões. A ênfase de Jesus e do evangelista com essa denúncia visa advertir as comunidades cristãs para que uma prática religiosa desse tipo não se reproduza. Na época da redação do Evangelho de Marcos, logo após a morte dos apóstolos Pedro e Paulo, as comunidades viviam uma verdadeira transição nos modelos de organização interna. O evangelista se preocupava com uma tendência hierarquizante no exercício da liderança. Suas denúncias, portanto, tem a função de prevenir para que a estrutura da religião que levou Jesus à morte não se reproduza nas comunidades. 

Na continuidade da denúncia, Jesus identifica uma falta ainda mais grave na falsa religiosidade dos mestres da Lei: «Eles devoram as casas das viúvas, fingindo fazer longas orações. Por isso eles receberão a pior condenação» (v. 40). A categoria das viúvas é uma das imagens de pessoas mais vulneráveis e necessitadas da Bíblia; juntamente com os pobres, os órfãos e estrangeiros, as viúvas são destinatárias prediletas do cuidado de Deus e, por isso, símbolo da sua preferência pelos humildes. Inclusive, a Lei hebraica previa proteção especial às viúvas (Ex 22,21-23), mas nem sempre isso era bem observado. Entre o Antigo e o Novo Testamento, não faltam críticas e lamentos pelos direitos usurpados das viúvas. Ora, se a mulher em si já era uma categoria marginalizada na época, se tornava ainda mais se ficasse viúva. A mulher que ficasse viúva sem ter um filho homem, e se não casasse novamente com um cunhado, em caso de ter ficado com herança, deveria confiar o cuidado dessa herança aos escribas doutores da Lei, já que a mulher não podia fazer negócios; é a esse fato que Jesus alude ao dizer que os escribas devoram as casas das viúvas. Constatava-se que, ao receber o direito de administrar o patrimônio das viúvas, os escribas na verdade se desfrutavam desse, roubando até devorar, literalmente. Para Jesus, nenhuma forma de injustiça e exploração é aceitável, mas quando isso acontece em nome de Deus e da religião, é muito pior. Por isso, a sentença é tão dura: “eles receberão a pior condenação”. De acordo com o Evangelho, o que leva o ser humano à condenação é a prática da injustiça, principalmente a exploração e a falta de cuidado com as pessoas mais vulneráveis e necessitadas.

Após a polêmica com os doutores da Lei, Jesus continua no templo observando o movimento e, certamente, inconformado com tudo o que via ali. Na verdade, dessa vez a polêmica não tinha sido exatamente com os doutores da Lei, mas eles tinham sido empregados como exemplo negativo; a prática religiosa e o estilo de vida deles foram recordados como modelo a ser evitado na comunidade cristã. Jesus sabia que o templo já não era casa de oração, mas casa de comércio e covil de ladrões, como tinha denunciado há pouco tempo (Mc 11,15-18). Chamava sua atenção a mercantilização da fé, o que lhe deixava indignado. Por isso, o evangelista recorda que «Jesus estava sentado no templo, diante do cofre das esmolas, e observava como a multidão depositava suas moedas no cofre. Muitos ricos depositavam grandes quantias» (v. 41). O povo tinha se acostumado com uma Deus que pedia ofertas para revertê-las em favores e proteção aos que ofertavam. A posição de Jesus era de completo repúdio àquele sistema, pois a religião dos favores se transforma em religião do mérito e, por fim, em religião do domínio. Com seu programa de humanização, o Reino de Deus, Jesus repudiava tudo isso. Para o sistema do templo, o valor da oferta determinava a dimensão do favor de Deus. Esse Deus mercador não podia ser o Pai de Jesus!

Entre tantas pessoas devotas que passavam pelo templo, Jesus observa um caso muito particular, que lhe chama a atenção: «Então chegou uma pobre viúva que deu duas pequenas moedas, que não valiam quase nada» (v. 42). Ora, de acordo com a Lei, o sistema religioso deveria prover as viúvas pobres do necessário para a sobrevivência (Dt 14,28-29). E, de repente, Jesus constata o contrário: o sistema religioso recebendo até mesmo de quem não podia ofertar e mal tinha como sobreviver. Embora voluntária e generosa, a oferta da viúva é motivada por uma concepção errada de Deus; ela é coagida ideologicamente a ofertar o pouco que tem, para poder receber benefícios de Deus. Era isso que os doutores da Lei e os sacerdotes pregavam. As pequenas moedas ofertadas pela viúva eram suficientes para comprar cem gramas de pão, cada uma, conforme a terminologia empregada pelo evangelista, na língua original do texto (em grego: λεπτός – leptós). As duas moedinhas significam, simbolicamente, o que a viúva tinha para viver o dia de hoje e o dia seguinte. Quer dizer que ela abriu mão de tudo, renunciou a si mesma, fez o que Jesus pedia insistentemente aos seus discípulos, mas eles ainda não tinham conseguido, pois, ao longo do caminho tinham se revelado ambiciosos, pretensiosos e sedentos por poder. De repente, surge uma pessoa que não conhecia o ensinamento de Jesus, mas estava sintonizado com ele. O problema, no entanto, constatado por Jesus, é que a religião estava tirando a vida da pobre viúva. A viúva imaginava estar ofertando a Deus, mas, a verdade, estava ofertando à caricatura de Deus que a religião tinha fabricado. 

Ao ver a viúva ofertando tudo o que tinha para viver, Jesus se comove e chama a atenção dos seus discípulos, tão necessitados de mudança de mentalidade. Por isso, ele faz da viúva uma parábola vivente: «Jesus chamou os discípulos e disse: “Em verdade vos digo: esta pobre viúva deu mais do que todos os outros ofereceram esmolas. Todos deram do que tinham de sobra, enquanto ela, na sua pobreza, ofereceu tudo aquilo que possuía para viver”» (vv. 43-44). A fórmula de introdução “em verdade vos digo” (em grego: ἀμὴν λέγω ὑμῖν – amén lêgo hymin) indica tratar-se de um ensinamento solene, indispensável para os discípulos. Ele estabelece um paralelismo antitético entre os ricos, que doavam do que sobrava, e a viúva, que doou tudo o que tinha para viver. A atitude da pobre viúva se torna um ensinamento solene para Jesus. Considerando a relação entre o que ela possuía e o que deu, ela deu mais do que todos os outros. Sua atitude mostra que toda pessoa tem algo a oferecer ao outro, todos têm algo para dar, independentemente da condição social. Jesus percebeu muita sinceridade e verdade naquela oferta. Ao contrário dos doutores da Lei, que viviam de aparências, e dos ricos que ofertavam do supérfluo, a viúva renunciou a tudo o que tinha para viver, doando as suas duas únicas pequenas moedas. Porém, a admiração de Jesus é mais uma denúncia do que um elogio: a oferta das duas moedinhas da viúva era a última prova que ele precisava para concluir que aquela instituição religiosa – o templo e seu aparato de sustentação financeiro e ideológico – estava completamente degradada, sugando até mesmo de quem não tinha, como a viúva. Jesus sentiu as dores da viúva sendo sugada pelo templo e chamou os discípulos para sentirem também essas dores, alertando-os para jamais repetirem os abusos da religião que ele estava denunciando, corresponsável pela sua morte, junto com o império romano. Mais do que comover, aquela cena causou repulsa em Jesus; por isso, ao sair do templo, pouco tempo depois, ele desejou e profetizou a sua destruição: «Não ficará pedra sobre pedra que não seja demolida» (Mc 13,2).

Jesus condena severamente a religião que se sustenta em práticas superficiais, condena a ostentação e a busca por privilégios. Ele não tolera religião de fachada, sobretudo quando essa esconde injustiças e exploração. Qualquer prática religiosa que abusa da boa vontade das pessoas simples e humildes, nada tem a ver com o projeto de Jesus. O exemplo de generosidade da viúva é modelo para os seus discípulos. Ele louva quem tem coragem de dar a vida, como ele. A viúva também deu sua própria vida, com aquela oferta. Mas é intolerável a religião que tira a vida das pessoas, como o templo tirou a vida da viúva e estava, aos poucos, tirando a vida de Jesus. 

Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues

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