Todos os anos,
a liturgia do segundo e do terceiro domingos do advento destaca a figura de
João Batista, apresentado como o profeta que precede de imediato o Messias e,
por isso, prepara a missão de Jesus, conforme as narrativas dos evangelhos. Por
ocasião do ciclo litúrgico “A”, neste ano temos a oportunidade de ler a versão
de Mateus sobre o Batista, tanto hoje quanto no próximo domingo. Segundo a
perspectiva dos quatro evangelhos canônicos, a compreensão da identidade e
missão de Jesus passa necessariamente pelo entendimento da missão de João. E a
liturgia da Igreja adotou essa perspectiva. Isso faz do Batista um personagem
chave para a teologia e espiritualidade do tempo do advento. O texto lido neste
domingo – Mt 3,1-12 – apresenta os principais traços característicos de João,
com uma pequena descrição da sua missão e uma síntese da sua pregação. Na
verdade, esse esquema é comum aos evangelhos sinóticos, embora cada um o tenha
desenvolvido à sua maneira, conforme suas habilidades literárias e as respectivas
intenções teológicas. A importância de João é evidenciada também no Quarto
Evangelho, no qual ele é apresentado, pelo menos implicitamente, como o mentor
de Jesus, possibilidade bastante plausível, conforme tem mostrado a exegese
contemporânea. É provável, inclusive, que o movimento de Jesus tenha surgido
como dissidência do movimento dos batistas, liderado por João.
O texto
proposto pela liturgia deste domingo é relativamente longo, composto de muitas
informações, o que dificulta um comentário mais pormenorizado de cada
versículo. Por isso, procuraremos destacar os elementos principais e a mensagem
central. Considerando que os dois primeiros capítulos do Evangelho de Mateus –
chamados de “evangelho da infância” (Mt 1–2) –, assim como no de Lucas, foram
escritos por último e acrescentados quando a obra já estava concluída, podemos
dizer que o texto de hoje é a abertura original da obra. Se trata, portanto, de
um texto muito importante para a compreensão da missão de João, de Jesus, e da
própria obra de Mateus. Por isso, começamos nossa reflexão a partir do primeiro
versículo, que é carregado de relevantes elementos teológicos: «Naqueles
dias, apareceu João Batista, pregando no deserto da Judeia» (v. 1).
Nessa afirmação, há três dados fundamentais para a compreensão do texto e da
missão do Batista: o indicativo temporal – naqueles dias –, a atividade – pregando
–, e o cenário – o deserto.
Nos
deteremos, inicialmente, nos indicadores de tempo e espaço, deixando para
falarmos da pregação quando analisarmos diretamente a fala do personagem, que
expressa o conteúdo da sua pregação. A expressão “naqueles dias” (em grego: ταῖς ἡμέραις ἐκείναις – tais hemerais ekeinais) dimensão temporal, é um indicativo de importância do
acontecimento narrado e do personagem apresentado. Por sinal, reconhecemos como
bastante salutar que a versão litúrgica não a tenha substituído pela genérica fórmula
introdutória “naquele tempo”. Ora, foi com a expressão “naqueles dias” que o
redator do livro do Êxodo introduziu a missão de Moisés (Ex 2,11), e muitos
profetas introduziam os anúncios das mais esperadas intervenções de Deus na
vida do povo (Is 31,7; Jr 3,16.18; Jl 4,1), e o Evangelho de Marcos, a fonte
utilizada por Mateus neste episódio, introduziu o ministério do próprio Jesus,
no momento do batismo (Mc 1,9). Portanto, com a indicação temporal “naqueles
dias”, o evangelista evidencia que a ação batizadora de João constitui um
evento importante, que faz parte do projeto de Deus, o que confirma a
autenticidade e autoridade de todo o seu ministério.
A segunda
informação importante, a dimensão espacial, acerca da atividade do Batista
também é fortemente carregada de teologia: “no deserto da Judéia”. Na verdade,
muito mais do que uma indicação espacial, a palavra deserto aqui possui um
profundo significado teológico, como, aliás, acontece em toda a Bíblia. Ora, o
deserto (em grego: ἐρήμος – erémos) é o lugar clássico do encontro com
Deus; representa uma etapa importante no processo de libertação, como aconteceu
no primeiro êxodo. Ao longo da história, quando o povo demonstrava
infidelidade, os profetas apresentavam a necessidade de retornar ao deserto
para voltar a viver o ideal da aliança (Os 2,14; 9,10; 13,5; Am 2,10; 5,25).
Assim, a presença de João no deserto é um convite para Israel romper com as estruturas
vigentes de injustiça e opressão e, assim, retornar às suas origens, voltando a
viver como povo livre e confiante somente em seu Deus, o autor da libertação e
de toda expressão de liberdade.
Além de ser o
lugar ideal do encontro com Deus, o deserto, nesse contexto, é também uma
nítida contraposição ao aparato religioso institucional de Israel, sediado no
templo de Jerusalém; é uma crítica à classe sacerdotal, sobretudo. Com essa
imagem, o evangelista diz que o grande templo de Jerusalém já não favorecia
mais a relação do povo com Deus, pois, à medida em que foi transformado em casa
de comércio, Deus afastou-se de lá, deixando-se encontrar somente no deserto,
onde não há obstáculo algum à comunicação com ele, por ser o lugar do silêncio.
É o ambiente onde se vive somente com o necessário e se percebe que tudo provém
de Deus, como o antigo maná (Ex 16), por exemplo. Outro sentido para o deserto
na linguagem bíblica, é o da provação e da confiança, uma vez que, na privação
completa de bens, não há outra saída senão confiar somente em Deus. Foi no
deserto onde Jesus venceu as tentações de satanás (Mt 4,1-11), e é para o
deserto que povo é convidado por Deus, através do Batista, à conversão e,
assim, voltar a seguir os caminhos da justiça.
Das indicações
de tempo e espaço da atividade de João, o evangelista passa para o conteúdo da
sua pregação, e é exatamente aqui que a narrativa de Mateus se destaca sobre as
demais: «Convertei-vos, porque o Reino dos Céus está próximo» (v.
2). Ora, os três sinóticos são unânimes em mostrar que a pregação de João
consistia num convite à conversão, mas somente no relato de Mateus se diz que
ele anunciava a proximidade do Reino, que vai ser também o tema da pregação de
Jesus (Mt 4,17). Desse modo, ele mostra João e Jesus bastante alinhados,
envolvidos num mesmo projeto de salvação e libertação. Essa harmonização entre
os dois serviu, provavelmente, para o evangelista combater uma certa rivalidade
entre os dois movimentos, após a dissidência de Jesus. Ele quis mostrar que não
havia incompatibilidade entre os dois; ambos anunciaram o mesmo Reino. A
necessidade de conversão sempre foi recordada, sobretudo, na pregação dos
profetas de Israel. Logo, João é apresentado como uma figura profética, tanto
pela mensagem da sua pregação, quanto pela maneira como se apresentou diante do
povo.
Com o
imperativo “convertei-vos”, (em grego μετανοεῖτε –
metanoeite), João faz um apelo para uma mudança de mentalidade. Na Bíblia,
conversão (metanoia), nunca significa a adesão a um conjunto de ritos
penitenciais ou práticas devocionais, e sim uma mudança de pensamento ou
mentalidade, com a assimilação de um jeito novo de viver. No mesmo versículo,
João diz o motivo da necessidade de conversão: a chegada do Reino dos Céus.
Aqui, verifica-se outra particularidade de Mateus: enquanto Marcos e Lucas usam
a expressão “Reino de Deus”, Mateus prefere usar “Reino dos Céus” (em
grego: βασιλεία τῶν οὐρανῶν – basileia ton uranôn), tendo em vista que sua
comunidade era fortemente marcada pelo judaísmo e, como sabemos, a pronúncia do
nome de Deus era uma ofensa para os judeus. Por isso, Mateus usa uma expressão
equivalente para não ferir a sensibilidade dos irmãos judeus. O Reino de Deus
ou dos Ceus não significa a vida no além, mas o estabelecimento do projeto de
Deus neste mundo, que passa pela superação das injustiças, da violência, do
preconceito, das desigualdades e de todas as formas de exclusão. É um mundo
fraterno, justo e solidário, humanizado pelo amor, como já tinha sido anunciado
pelos profetas do Antigo Testamento, e começa e a se concretizar a partir de
Jesus.
O convite à
conversão é feito porque, com a mentalidade antiga, não é possível reconhecer o
Reino que está próximo, ou seja, pensando do mesmo jeito de sempre, é
impossível perceber a chegada do Reino e, sem perceber, é impossível também
acolhê-lo e dar-lhe adesão. Por isso, o primeiro convite é para a mudança. Mas,
que tipo de mudança? Mudança no modo de conceber e compreender as coisas,
sobretudo, a relação com Deus e com o próximo. Portanto, é urgente mudar o
jeito de pensar. É importante reconhecer a urgência da conversão, considerando
que o reino “está próximo”. Essa proximidade, na perspectiva do evangelista, é
mais física do que temporal. O Reino dos céus é o próprio Jesus, ele é o Reino
em pessoa, com sua mensagem libertadora, conforme Ele mesmo dirá mais tarde, no
próprio Evangelho de Mateus, ao contar as parábolas do reino (Mt 13),
comparando esse reino a uma rede de pescador (13,47-50), a um tesouro escondido
(13,44-46), a um grão de mostarda (13,31-32), ao fermento (13,33), e muitos
outros exemplos.
Quem esperava a
restauração da dinastia davídica e do reino de Israel, logo, não poderia
aceitar o reino inaugurado por Jesus sem passar por uma mudança radical de
pensamento. Os que tinham projetado toda a esperança em um futuro escatológico
também se decepcionavam com essa pregação, pois o reino que João afirma ter se
aproximado e que Jesus confirma, acontece já aqui e agora: é o reino dos céus
porque é o projeto de Deus para a humanidade, mas não se realiza no céu;
realiza-se já aqui e, aceitar essa novidade é o único sinal de conversão
exigido. A necessidade de conversão, ou seja, de mudança de mentalidade, portanto,
deve-se ao fato de o Reino dos Céus não ter chegado conforme Israel esperava,
ou seja, em meio a grandes teofanias, sinais e prodígios extraordinários, mas
veio na simplicidade de um homem simples e pobre, um filho de carpinteiro,
Jesus de Nazaré.
A descrição de
João feita pelo evangelista serve como credencial para ter sua missão profética
reconhecida: «Usava roupa feita de pelos de camelo e um cinturão de
couro em torno dos rins; comia gafanhotos e mel do campo» (v. 4). De
fato, a descrição do vestuário e da dieta de João revelam seu estilo de vida; é
típico dos profetas (Zc 13,4; 2Rs 1,8). É mais uma prova de que o
verdadeiro profeta é aquele que anuncia com palavras, ações e, principalmente,
com o testemunho. O estilo de vida simples de João comprova esse testemunho e
ainda serve de contraposição à vida opulenta da elite religiosa e política de
Jerusalém. Essa descrição funciona como um apelo do evangelista para a
comunidade cristã configurar-se como religião profética, combatendo as
primeiras tendências de institucionalização do cristianismo. É um modo de dizer
que o carisma, principal traço característico da missão profética, é
praticamente inconciliável com a institucionalização.
As credenciais
de profeta descritas acima davam autoridade e reconhecimento a João, fazendo
com que muitas pessoas fossem ao seu encontro, como diz o evangelista: «Os
moradores de Jerusalém, de toda a Judéia e de todos os lugares em volta do rio
Jordão vinham ao encontro de João» (v. 5). Nessa passagem,
especialmente, a tradução litúrgica não expressa o real significado do texto:
ao invés de afirmar que “as pessoas iam ou vinham de Jerusalém ao encontro de
João”, a tradução correta seria “saíam ao encontro”. De
fato, aqui o evangelista emprega o verbo do êxodo: sair, que expressa
libertação, acima de tudo. Logo, essa saída significa que há um novo êxodo em
curso. A expressão “Jerusalém e toda Judéia”, aqui, significa a instituição
religiosa; é o espaço no qual a religião institucionalizada tinha total
controle sobre a vida das pessoas. À medida em que os moradores saíam dessa
área, eles se libertavam. Com essa informação, portanto, além de valorizar o
sucesso da pregação do Batista, o evangelista está mostrando um novo êxodo
acontecendo, cujo desfecho é a construção do Reino dos Céus.
A antiga terra
prometida, principalmente a cidade de Jerusalém, tinha se transformado em terra
de escravidão. Na época de Jesus, já não era um faraó o algoz, mas a própria
casta sacerdotal do templo, em conluio com o poder romano. Foi dessa gente que
controlava a vida do povo e explorava em nome de Deus que Jesus veio libertar,
em primeiro lugar. A religião institucionalizada era sinal de exploração e
abuso de poder. E, de todas as formas de exploração, a pior é aquela que usa o
nome de Deus, ou seja, a exploração religiosa. As pessoas que saíam das antigas
estruturas, «Confessavam os seus pecados e João os batizava no rio
Jordão» (v. 6). A confissão aqui, não é um rito, mas um reconhecimento
do pecado e arrependimento, conforme rezava o salmista: «Confessei a ti
o meu pecado, e minha iniquidade não te encobri; eu disse: “Vou a Iahweh
confessar a minha iniquidade!”» (Sl 32,4). Ser batizado no Jordão quer
dizer atravessá-lo, é passar por ele, como passou o povo do primeiro êxodo. De
fato, a travessia do Jordão foi a última etapa da longa caminhada do povo de
Deus antes de entrar na terra prometida, já sob a liderança de Josué, após a
morte de Moisés (Js 1,2). Assim, a proposta de João é um convite a um novo
êxodo, ou seja, uma nova libertação que se aproxima, e só pode participar quem
fizer a experiência do deserto e da travessia, ou seja, quem passa de uma
mentalidade antiga para uma nova.
Ao contrário do
povo simples que “saía”, os fariseus e os saduceus “iam”, realmente (v. 7).
Para esses, o autor emprega um verbo que significa mesmo vir ou chegar. Com
isso, o evangelista afirma que os fariseus e os saduceus não buscavam um novo
êxodo, pois estavam satisfeitos com a situação vigente, concordavam com as
injustiças e a violência praticadas, uma vez que faziam parte do sistema de
dominação. Por isso, as palavras de João dirigidas a eles são muito duras, têm
a função de desmascará-los: “raça de cobras venenosas”; trata-se de uma
afirmação dura que denuncia o mal representado por eles. A cobra – serpente – é
o pior dos animais, para o imaginário judaico; além representar a morte, é
símbolo do próprio pecado; assim, João está afirmando que, além de não se
converterem, os fariseus e os saduceus ainda são obstáculo para a conversão dos
demais, eram pessoas venenosas, cuja existência ameaçava a vida dos outros.
Inclusive, a afirmação “muitos fariseus vinham para o batismo”, denota uma
atitude fiscalizadora: eles não iam para serem batizados, mas para observar o
que estava acontecendo com a atividade de João, pois estavam preocupados,
porque sabiam que a chegada do Reino dos Céus seria o fim do reino deles,
marcado pela injustiça, hipocrisia, mentira e violência institucionalizada.
Sabendo que, de
fato, os fariseus e saduceus não estavam dispostos a mudar de mentalidade, ou
seja, a se converterem, João deixa claro que é necessário produzir frutos para
entrar na dinâmica do novo Reino: «Produzi frutos que provem a vossa
conversão» (v. 8). Essa afirmação constitui mais um elemento da
pregação de João com ecos fortemente proféticos, e que terá ressonâncias na
pregação de Jesus, sobretudo quando ele afirmar que não basta dizer “Senhor,
Senhor”, mas é necessário fazer a vontade do Pai e sua (Mt 9,21-27). A
necessidade de frutos que provém a conversão foi repetidamente recordada pelos
antigos profetas, visando a superação da hipocrisia religiosa. Amós e Isaías
foram os principais expoentes dessa corrente. Como acontece ainda hoje, também
nos tempos bíblicos confundia-se conversão com devoção, de modo que as
advertências dos profetas continuam cada vez mais atuais, tendo em vista que o
cristianismo institucionalizado continua sobrepondo o devocionismo ao culto em
espírito e em verdade que Jesus veio inaugurar.
E João adverte
que um novo jeito de se relacionar com Deus está surgindo com o advento do
Reino, pois o que vale já não é considerar-se filho de Abraão (v. 9), mas fazer
a vontade de Deus, quer dizer, produzir frutos. Ser “filho de Abraão” para o
mundo judaico equivale a ser batizado/batizada nas tradições cristãs. Logo,
também não é suficiente receber sacramentos, se a vida não for marcada por
frutos de conversão, ou seja, pela prática da justiça. E a justiça, na Bíblia,
significa, acima de tudo, opção pelos menos favorecidos e compromisso concreto
em favor deles. Trata-se de ajustar-se ao projeto de Deus. E a maneira clássica
de Deus fazer justiça, na Bíblia, é ouvindo o clamor dos pobres! Por isso, a
linguagem ameaçadora do fogo, na pregação de João, é um alerta para aqueles que
querem entrar no Reino sem abraçar os princípios desse reino; o Reino não
exclui ninguém, são as pessoas que se auto excluem, ao preferirem a mentalidade
antiga, como os fariseus e os saduceus e muitos grupos religiosos nos dias
atuais.
João
administrava apenas um rito: o batismo com água, o qual era somente um sinal do
batismo por excelência: aquele com o Espírito Santo. Esse batismo é definitivo,
é o cumprimento de profecias e condição para o povo de Israel voltar à condição
de povo de Deus (Ez 36,24-28) e, ao mesmo tempo, sinal da universalização da
salvação: o Espírito Santo, como superação e substituição da Lei, dará
condições, ao ser acolhido, para que todos os povos sejam contemplados com a
libertação inaugurada por Jesus. Somos, então, neste segundo domingo do
advento, convidados a rever nossa prática religiosa, e tomar uma decisão,
fazendo um êxodo pessoal: abraçar a religião profética, abandonando todas as
práticas das antigas estruturas, renovando a maneira de conceber a Deus e
abrindo-se ao Espírito Santo, dom de Jesus, o batizador por excelência.
Pe. Francisco
Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

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