Independentemente do ciclo litúrgico vigente, o evangelho do segundo domingo do tempo comum é sempre um texto do Evangelho segundo João (Ano A: Jo 1,29-34; Ano B: Jo 1,35-42). Neste ano, por ocasião do ciclo litúrgico “C”, o texto proposto é Jo 2,1-11, que corresponde ao relato do episódio conhecido como as “Bodas de Caná”. Como se sabe, ao longo do ano, a liturgia do tempo comum faz uma apresentação contínua da vida pública de Jesus, desde os seus primeiros passos na Galileia até o seu final, em Jerusalém, onde viveu a paixão e morreu na cruz. Para começar o tempo comum, recorre-se, portanto, ao Evangelho de João no segundo domingo, como estratégia didática e catequética, porque é esse o Evangelho que melhor introduz a vida pública de Jesus, através de uma sequência de eventos denominada pelos estudiosos de “semana inaugural” (Jo 1,19–2,11). Essa semana começa o envio de uma comitiva pelas autoridades religiosas de Jerusalém para fiscalizar a atividade de João, o batizador (Jo 1,19-28), e concluída com o episódio das bodas de Caná, texto empregado na liturgia de hoje.
Embora simples do ponto de vista narrativo, pois trata-se de uma história com trama, cenário e personagens bem definidos, o texto apresenta uma grande complexidade teológica. Por isso, preferiu-se, ao longo dos séculos, uma interpretação quase literal, limitada a fundamentar uma suposta intercessão de Maria e, assim, fomentar a devoção mariana, sem explorar a riqueza teológica empregada pelo evangelista. Tem sido grande, portanto, o esforço da exegese das últimas décadas para restituir ao texto o seu valor cristológico, praticamente ofuscado pela leitura devocionista aplicada ao longo dos séculos. O primeiro passo para isso é situar o texto no seu devido contexto. Como foi acenado acima, o evangelista João introduz a vida pública de Jesus com uma série de episódios distribuídos ao longo de uma semana, chamada pelos estudiosos de “semana inaugural”. E o ponto alto dessa semana é exatamente o episódio das bodas de Caná, que funciona como introdução e porta de entrada para todo o Evangelho. Tudo o que será desenvolvido ao longo do Quarto Evangelho, portanto, será desdobramento desse episódio. Inclusive, esse é o primeiro episódio que tem Jesus como o real protagonista. Até então, os protagonistas tinham sido João e alguns discípulos – André, que era discípulo de João, seu irmão Simão Pedro, Filipe e Natanael.
O texto começa com um dado importante, infelizmente, omitido pela tradução litúrgica: a expressão “No terceiro dia”, substituída pela genérica e desnecessária fórmula de introdução “Naquele tempo”. Embora já se trate do dia conclusivo da semana, o evangelista omite alguns dias de propósito, para que este episódio se realize no “terceiro dia”. Ora, o último episódio narrado tinha sido o encontro de Jesus com Filipe e Natanael (Jo 1,43-51), que correspondia ao quarto dia da semana; as bodas de Caná, portanto, acontecem no “terceiro dia” após esse episódio. Mais do que um dado cronológico, a expressão “terceiro dia” é um indicativo teológico: significa uma manifestação especial de Deus, uma intervenção divina. De imediato, esta expressão leva o leitor a pensar na ressurreição de Jesus, o maior dos fatos acontecidos no “terceiro dia”, conforme o conjunto das Escrituras. No entanto, há diversos episódios importantes da Bíblia que também aconteceram no “terceiro dia”. De fato, diz a Bíblia que foi no “terceiro dia” que Abraão subiu à montanha para sacrificar Isaac, provando a sua fé (Gn 22,4), e foi no “terceiro dia” que Deus manifestou a sua glória no Sinai e entregou a Lei a Moisés (Ex 19,16ss). O maior de todos, como acenado anteriormente, obviamente, é a ressurreição de Jesus, a intervenção definitiva de Deus. Ora, ao apresentar o primeiro sinal de Jesus ao “terceiro dia”, João sinaliza que toda a sua vida será manifestação e intervenção de Deus na história, cujo ápice será a ressurreição. Portanto, “terceiro dia” é uma expressão teológica que indica o agir de Deus. Tudo isso ajuda a compreender a importância do episódio das bodas de Caná para o conjunto do Quarto Evangelho.
Eis, então, que no “terceiro dia”: «houve um casamento em Caná da Galileia. A Mãe de Jesus estava presente» (v. 1). As festas de casamento, na cultura semita, eram esperadas com muita ansiedade. Era a festa dos sonhos; normalmente, duravam uma semana, mas a depender das condições dos noivos, poderia se estender por até duas semanas. Em Israel, Além do seu sentido social, o matrimônio servia como símbolo da relação entre Deus e o seu povo, desde os tempos do profeta Oséias (século VIII a.C.). Com essa festa, portanto, o evangelista quer mostrar a situação da aliança, como o povo de Israel estava se relacionando com o seu Deus, e a necessidade urgente de uma intervenção, com uma verdadeira mudança de rumo. Como se vê, a Mãe de Jesus não é mencionada pelo seu nome próprio nesse episódio, porque ela é uma personalidade corporativa, quer dizer, representa uma coletividade, ou seja, uma comunidade, e não apenas a pessoa individual de Maria. Quando os profetas denunciavam as injustiças e a corrupção reinantes em Israel, mencionavam também um “resto” fiel que veria a realização das promessas de Deus. Portanto, a Mãe de Jesus é, nesse relato, a imagem do resto fiel de Israel que nunca se distanciou de Deus. Por isso, ela já “estava presente” no casamento, porque fazia parte daquela comunidade.
Ao contrário da Mãe que já “estava presente”, o evangelista diz que «Jesus e os discípulos foram convidados para o casamento» (v. 2). Embora sutilmente, o evangelista faz uma distinção: Jesus e os discípulos foram à festa como convidados, mas não faziam parte. Ao longo de todo o seu Evangelho, João mostrará como Israel não aceitou Jesus, tratando-o como um estranho e até como inimigo, inclusive no prólogo ele já tinha antecipado: «Veio para os seus, mas os seus não o acolheram» (Jo 1,11). Porém, para conhecer as reais necessidades e problemas de um povo, é necessário estar inserido e fazer parte da realidade; tampouco basta conhecer as necessidades e os problemas; é preciso tomar iniciativa e buscar soluções, como fez a Mãe: «Como o vinho veio a faltar, a Mãe de Jesus lhe disse: “Eles não têm mais vinho”» (v. 3). A Mãe de Jesus, como imagem do resto fiel de Israel, é a mais legítima conhecedora das carências e falhas na relação de seu povo com Deus, por isso, ela apresenta uma triste realidade: a falta de vinho. É importante recordar, como mostra claramente o texto, que ela não faz um pedido a Jesus, como insinuam as interpretações mais devocionistas. Ela constata uma situação e faz uma denúncia: a falta de vinho nessa festa de casamento é, na verdade, a falta de amor e de alegria na antiga aliança. A Mãe constata que Israel falhou em sua relação com Deus e, portanto, a aliança fracassou. O vinho era essencial numa festa e, na Bíblia, é sinal de alegria, amor e felicidade.
A Mãe de Jesus é a primeira a perceber a esterilidade e a superficialidade da relação de Israel com Deus. Ora, o povo de Israel imaginava que entrava em comunhão com Deus através de sacrifícios, purificações e ritos, independentemente da prática da justiça e da conduta ética, sem qualquer compromisso nas relações com o próximo. Praticava-se a religião do mérito com muitas ofertas, sacrifícios e pouco amor. Foi isso que a Mãe de Jesus constatou ao lhe dizer que não havia mais vinho na festa. Não havia mais amor e alegria na maneira do povo relacionar-se com Deus. Ela percebeu também que somente Jesus poderia contornar aquela situação, por isso lhe comunicou a carência. Ela sabia que a proposta de vida que Jesus veio oferecer ao mundo, fundamentada no amor, era a única saída para Israel reencontrar-se consigo mesmo e com Deus, e continua sendo, para toda a humanidade. Como a Mãe, nesse episódio, representa toda a comunidade do resto fiel de Israel, a sua relação com Jesus carrega um certo formalismo, como se vê na resposta de Jesus: «Jesus respondeu-lhe: “Mulher, por que dizes isto a mim? Minha hora ainda não chegou”» (v. 4). Jesus não a chama de Mãe, mas apenas de mulher, e esclarece que não depende somente dele para contornar aquela situação; de fato, ao dizer que a sua hora ainda não chegou, ele confessa depender do Pai, sobretudo, pois foi aquele que o enviou. Na dinâmica do Quarto Evangelho, a hora de Jesus é preparada e aguardada com muita expectativa. Definitivamente, ela chegará na cruz. Mas, assim como a cruz não foi um ato isolado, e sim consequência de uma vida inteiramente doada, também a “hora” será construída paulatinamente, à medida em que serão encontradas situações necessitadas de transformação.
Mesmo sem receber uma resposta positiva, a Mãe confia na providência, como modelo de crente. Conhecedora da situação, ela vê como urgente a intervenção de Deus, através de Jesus; por isso, ordenou aos que estavam servindo: «Fazei o que ele vos disser» (v. 5). Ora, a antiga aliança foi concluída com uma resposta solene do povo a Moisés: «Sim, nós faremos tudo o que Iahweh disse!» (Ex 24,7). Porém, a história mostra que Israel falhou e não fez a vontade de Deus, ou seja, não fez o que “Iahweh disse”. Logo, a antiga aliança fracassou exatamente porque o povo não cumpriu essa promessa, e a Mãe de Jesus sabia disso; por isso a recomendação para fazer o que ele disser, de agora em diante, mediante Jesus, o revelador por excelência. Com esta ordem – Fazei o que ele vos disser – a Mãe de Jesus reconhece não ser a dona da mensagem. De fato, ela reconhece que não tem o que dizer a não ser indicar a Boa Nova de Jesus como único caminho de vida. Ela confessa que não pode fazer nada. Não se trata de uma carência ou fraqueza dela; reconhecer que não tem o que dizer e nem o que fazer é, na verdade, a maior virtude da Mãe de Jesus. Essa deve ser a postura de todos os discípulos e discípulas em todos os tempos: apontar para o que Jesus diz, pois só ele tem palavras de vida, como também reconhecerá Pedro, mais tarde (Jo 6,68). Nesse caso, a Mãe se antecipa. Quando Jesus ainda não tinha manifestado qualquer sinal de glória e poder, ela acreditou que ele poderia fazer algo. Por isso, ela é modelo.
A partir da constatação da Mãe e da sua ordem aos que estavam servindo, o evangelista prossegue denunciando ainda mais a esterilidade da religião de Israel: «Estavam seis talhas de pedra colocadas aí para a purificação que os judeus costumam fazer. Em cada uma delas cabiam mais ou menos cem litros» (v. 6). Essas talhas (jarros) de pedra simbolizam a Lei; estavam vazias porque a Lei tinha chegado ao seu limite; através delas, os judeus faziam ritos de purificação, mas não se encontravam verdadeiramente com Deus. De fato, a expressão «a purificação que os judeus costumam fazer» indica toda a situação de carência em que Israel se encontrava. A necessidade de purificar-se indica que eles não se sentiam plenamente em comunhão com Deus. A relação que a religião da Lei proporcionava era superficial e momentânea, não gerava laços de comunhão. A grande capacidade das talhas – cerca de cem litros cada uma – indica ainda mais profundidade da decadência. Era necessária muita água para a purificação, e era uma purificação apenas exterior, não alcançava o coração. E mesmo assim as talhas estavam vazias. Isso quer dizer que nem mesmo aquela relação superficial estava garantida. Criava-se um abismo entre a religião ritualista e o Deus Criador e Pai. A constatação desse abismo ficará mais evidente no episódio seguinte, quando o evangelista vai narrar a denúncia de Jesus ao templo de Jerusalém, com a expulsão dos cambistas e vendedores (Jo 2,13-22). Naquela ocasião, ao invés de purificar o templo, como apontam algumas interpretações, Jesus propõe a destruição completa.
A continuação do episódio ressalta o quanto Jesus se solidariza com seu povo e intervém, após a constatação da Mãe. Ele percebe que nem tudo está perdido. Na figura da Mãe, ele vê um sinal de esperança no seu povo; por isso, toma a iniciativa, como conta o evangelista: «Jesus disse aos que estavam servindo: “Enchei as talhas de água”. Encheram-nas até a boca» (v. 7). Aqui, “Os que estavam servindo” (em grego: διακονος = diáconos) são prefiguração da comunidade ideal de discípulos e discípulas que devem agir conforme “tudo o que Jesus disser”; são esses que devem preencher o vazio de amor em Israel e, posteriormente, em toda a humanidade, enchendo as talhas até a boca, quer dizer, servindo e amando sem medidas. E Jesus dá mais uma ordem: «“Agora tirai e levai ao mestre-sala”. E eles levaram» (v. 8). O mestre-sala era o responsável pela organização e coordenação da festa; era ele quem deveria vigiar e ficar atento se estava faltando alguma coisa. Porém, negligenciou completamente o seu papel, não percebeu que o vinho tinha acabado. Nesse episódio, ele representa os anciãos e sacerdotes (a classe dirigente de Israel) que tinha se distanciado de suas responsabilidades, não conheciam mais as reais necessidades do povo, estavam alheios à vida cotidiana das pessoas.
Distante da realidade, o mestre-sala não sabia sequer que o vinho tinha acabado, menos ainda de onde tinha surgido o vinho novo e bom: «O mestre-sala experimentou a água que se tinha transformado em vinho. Ele não sabia de onde vinha, mas os que estavam servindo sabiam, pois era eles que tinham tirado a água» (v. 9). Enquanto isso, os que estavam servindo, sabiam de tudo, pois fizeram o que Jesus ordenou, conforme aconselhou a Mãe. Isso mostra, mais uma vez, que eles e a Mãe são mesmo prefiguração da nova comunidade; a Mãe é o resto de Israel que encontra a nova humanidade disposta a pôr em prática as palavras de Jesus. Quanto ao mestre-sala, mesmo sem conhecer a origem do vinho novo, ele ficou surpreso com o sabor: «O mestre-sala chamou então o noivo e lhe disse: “Todo mundo serve primeiro o vinho melhor e, quando os convidados já estão embriagados, serve o vinho menos bom. Mas tu guardaste o vinho melhor até agora!”» (v. 10). Aqui, o evangelista ironiza e denuncia o distanciamento dos chefes de Israel em relação ao cotidiano das pessoas. Apesar de desconhecer a origem, o mestre-sala reconhece a qualidade do vinho, e se expressa até com surpresa, certamente por estar provando vinho bom pela primeira vez, tendo em vista que, enquanto representação das autoridades religiosas de Israel, nunca tinha experimentado vinho de verdade, mas apenas a água parada das talhas. O que ele tomava antes, imaginando ser vinho, não passava de água, pois sua relação com Deus não era movida pelo amor, e sim pelo medo. É por isso que ele se surpreende. Mais adiante, pela surpresa introduzida por Jesus no modo de se relacionar com Deus, as autoridades religiosas, aqui simbolizadas pelo mestre-sala, tramarão a sua morte. Acostumadas à água das talhas, elas não suportarão o vinho novo e abundante de Jesus.
Pela primeira vez no relato, o evangelista faz referência ao noivo, quem deveria ser o verdadeiro protagonista da festa. Esse noivo é o próprio Deus; a missão de Jesus, fornecendo amor em abundância, representado pelo vinho, é reatar os laços entre o Deus, o noivo-esposo, e a humanidade inteira, a nova noiva-esposa. Como esse episódio é a verdadeira porta de entrada para todo o Evangelho de João, ele diz que «este foi o início dos sinais de Jesus. Ele o realizou em Caná da Galileia e manifestou a sua glória e seus discípulos creram nele» (v. 11). Um sinal, como sabemos, não é um fim em si mesmo, mas aponta para uma realidade muito mais profunda. O sinal da mudança da água em vinho preconiza muitas transformações que Jesus irá fazer e propor ao longo de todo o evangelho. A principal transformação, a primeira e mais necessária, diz respeito à maneira de relacionar-se com Deus. De uma relação servil e ritualista, ele nos convida a uma relação de amor, cuja imagem mais visível e clara é a do matrimônio, pois pressupõe um amor recíproco, com liberdade e confiança. O vinho novo, de qualidade superior, representa essa nova relação. É nisso que a sua glória se manifesta, e o que fortalece a fé.
Para ser autenticamente discípulo e discípula é necessário ser como a Mãe e os servidores, ao mesmo tempo: perceber as reais necessidades do próximo, tomar iniciativas concretas e fazer tudo o que Jesus disser. A abundância do vinho, imagem do amor, depende unicamente da disposição de fazer o que Jesus disser. E fazer o que Jesus disser é o único caminho para o cristianismo recuperar sua originalidade e, consequentemente, sua força transformadora.
Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN
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