sábado, setembro 27, 2025

REFLEXÃO PARA O 26º DOMINGO DO TEMPO COMUM – LUCAS 16,19-31 (ANO C)



Na liturgia deste domingo – o vigésimo sexto do tempo comum – o evangelho continua sendo tirado do capítulo dezesseis de Lucas, a exemplo do domingo passado. O tema predominante desse capítulo é o uso das riquezas e dos bens materiais em geral, que é um dos temas mais importantes de toda a obra lucana. O evangelista evidencia esse tema como forma de denúncia às injustiças e como advertência à sua comunidade e aos leitores de todos os tempos, ao mesmo tempo em que deixa cada vez mais explícita a opção preferencial de Jesus pelos pobres e por todas as categorias de pessoas marginalizadas. O texto lido hoje é a parábola do rico indiferente e o pobre Lázaro – Lc 16,19-31. Estudos recentes colocam essa parábola como a terceira mais conhecida de todo o Novo Testamento, ficando atrás apenas daquela do “pai misericordioso e os dois filhos” ou do “filho pródigo” – 15,11-32 (a primeira), e daquela do “bom samaritano” – 10,25-37 (a segunda). Todas três, por sinal, são exclusivas do Evangelho de Lucas e estão localizadas na seção do caminho de Jesus para Jerusalém (Lc 9,51– 9,36). Como temos enfatizado no decorrer dos últimos domingos, mais do que um percurso físico-geográfico, esse caminho é um itinerário catequético, teológico e espiritual. Trata-se de um verdadeiro programa formativo para o discipulado de Jesus. Como refinado escritor e bom catequista, Lucas reuniu os principais ensinamentos de Jesus e os distribuiu nesse itinerário, antecipando a imagem de Igreja que será apresentada no segundo volume de sua obra – o livro dos Atos dos Apóstolos: uma Igreja, peregrina e missionária, profética e livre, cuja confiança é toda depositada no Espírito Santo, a força motriz da evangelização.

Os destinatários principais dos ensinamentos ao longo do caminho são sempre os discípulos, mesmo quando os interlocutores diretos de Jesus são outros personagens; inclusive, neste capítulo dezesseis há dois grupos de interlocutores: os discípulos, conforme iniciava o texto do domingo passado: «Jesus dizia aos discípulos...» (Lc 16,1a), e os fariseus, a quem é dirigida de maneira mais direta a parábola de hoje. Ora, a parábola do “administrador acusado de desonestidade” (vv. 1-8), lida no domingo passado, é seguida de algumas sentenças proverbiais (vv. 9-13), sendo esta a última: «não podeis servir a Deus e ao dinheiro» (v. 13). Logo depois dessa última afirmação, na qual o dinheiro é colocado como opositor de Deus, o evangelista diz que «os fariseus, amigos do dinheiro, ouviam tudo isso e zombavam de Jesus» (16,14). As reações negativas dos fariseus aos ensinamentos de Jesus são muito comuns, em todos os evangelhos; em Lucas, particularmente, eles reagiam com murmúrio (Lc 5,9; 15,2), com perguntas (Lc 6,2) e até com perseguição (Lc 11,53). Porém, como a catequese de Jesus sobre o uso do dinheiro e das riquezas estava sendo muito radical, dessa vez os fariseus reagiram zombando, ou seja, ridicularizando-o. Foi, portanto, da reação sarcástica dos fariseus a Jesus que nasceu a parábola de hoje. Logo, essa parábola se torna uma advertência a todos os “amigos do dinheiro” como eram os fariseus.

Feitas as devidas observações a nível de contexto, iniciamos o estudo do texto, que começa desta maneira: «Havia um homem rico, que se vestia com roupas finas e elegantes e fazia festas esplêndidas todos os dias» (v. 19). É muito típico de Lucas introduzir episódios e parábolas com descrições detalhadas dos personagens principais, como ele faz aqui. E a descrição do rico chega a ser impressionante: um homem que se vestia elegantemente e festejava todos os dias. Embora a tradução litúrgica empregue a expressão genérica «se vestia com roupas finas e elegantes», para descrever o luxo do homem rico no vestir, o texto na língua original descreve de modo mais específico, indicado a qualidade dos tecidos, afirmando que ele «se vestia de púrpura e linho fino». Esses tipos de tecido indicavam luxo e riqueza em excesso; eram usados nas vestes reais e também para a confecção das indumentárias sacerdotais em Israel (Ex 28,5). Com isso, se pode dizer que também a classe sacerdotal de Jerusalém se torna alvo da crítica e denúncia de Jesus, com essa parábola. Além do vestir, o excesso de luxo do rico é reforçado pelo seu banquetear-se todos os dias. Ora, numa sociedade em que a maioria da população era pobre e explorada, como era a Palestina no tempo de Jesus, essa descrição foi impactante, e o objetivo do autor era mesmo causar impacto nos ouvintes/leitores.

Como se sabe, é típico de Lucas apresentar personagens com características opostas em paralelo numa mesma história, mediante a técnica retórica do paradoxo, como ele faz nesta parábola em tantas outras, como a do fariseu e o publicano (18,9-140), por exemplo. Por isso, a descrição do segundo personagem desta parábola também é impressionante, sendo que suas características são completamente opostas às do rico: «Um pobre chamado Lázaro, cheio de feridas, estava no chão, à porta do rico. Ele queria matar a fome com as sobras que caíam da mesa do rico. E, além disso, vinham os cachorros lamber suas feridas» (vv. 21-22). Como se vê, o autor não se contenta em dizer que havia um homem rico de um lado e um pobre do outro, mas faz questão de enfatizar as diferenças extremas entre os dois personagens: um é rico demais, e o outro é pobre demais. É interessante perceber que o autor faz uma descrição minuciosa dos personagens, mas não faz referência à conduta ética de nenhum deles: não diz se o rico era bom ou mau, justo ou injusto, mas apenas diz que era rico; o mesmo acontece com Lázaro: não se diz se era uma pessoa de boa ou má conduta, simplesmente diz que era extremamente pobre e vivia em condições sub-humanas. O forte contraste entre os dois visa motivar o ouvinte/leitor a tomar partido por um dos lados e, consequentemente, rever seu próprio estilo de vida.

Embora seja típico de Lucas, como já afirmamos, apresentar personagens com características opostas em paralelo, em nenhuma outra ocasião ele fez isso com tanto exagero quanto nesta parábola. Recordemos as diferenças de atitude entre Zacarias e Maria, ao receberem os respectivos anúncios (Lc 1,5-38), entre Marta e Maria (Lc 10,38-42), entre os dois filhos da parábola do pai misericordioso (Lc 15,11-32) e entre o fariseu e o publicano (Lc 18,9-14); em nenhuma dessas ocasiões as diferenças entre os personagens contrapostos chegam a ser tão abissais quanto entre o rico e Lázaro desta parábola. Embora próximos fisicamente, pois o pobre permanecia à porta do rico, havia um verdadeiro abismo entre os dois. A primeira e talvez a mais significativa das diferenças é o nome: somente o pobre tem nome e, por sinal, é um nome carregado de esperança: Lázaro significa “Deus ajuda”. Por sinal, esse é o único personagem de uma parábola a receber um nome próprio; e o nome, na Bíblia, indica a identidade e a dignidade da pessoa. Contrastando com as roupas finas do rico, o corpo de Lázaro era coberto de feridas; isso significa que, além da exclusão social, ele era excluído também da vida religiosa, já que uma pessoa com feridas expostas era considerada impura; além disso, como os cachorros eram animais impuros para os judeus, isso aumentava ainda mais a marginalização de Lázaro, uma vez que os cachorros lambiam suas feridas. Aos banquetes do rico, contrapõem-se as migalhas que caíam no chão, com as quais Lázaro queria matar a fome e, mesmo assim, não tinha acesso.

Das descrições iniciais que evidenciam o abismo entre os dois personagens, o autor passa a um dado comum e igual para todos os seres humanos, a morte. Inevitavelmente, todos morrem. Por isso, é tão importante dar sentido à existência enquanto se vive. Daí, ele se diz que «Quando o pobre morreu, os anjos levaram-no para junto de Abraão. Morreu também o rico e foi enterrado» (v. 22). Como se sabe, e temos reforçado, a morte é inevitável; ricos e pobres passam por ela, indistintamente. Como a parábola tem uma função didática muito forte, Jesus acaba usando uma linguagem até apocalíptica, ao aplicar as imagens do destino final dos dois personagens, embora não seja sua intenção descrever as realidades futuras, ou seja, céu, inferno ou purgatório, como a parábola tem sido equivocadamente interpretada. Fica claro, no entanto, que há uma inversão de destinos, após a morte de cada um: «Quando o pobre morreu, os anjos levaram-no para junto de Abraão. Morreu também o rico e foi enterrado. Na região dos mortos, no meio dos tormentos, o rico levantou os olhos e viu de longe a Abraão, com Lázaro ao seu lado» (vv. 22-23). Ao descrever o destino de Lázaro, o evangelista emprega um termo muito importante, que foi ignorado pela tradução litúrgica: seio ou colo (em grego: κόλπος – kólpos). Portanto, ao invés de dizer que Lázaro foi para junto de Abraão, diz o evangelista que ele foi para o “seio de Abraão”, o destino dos justos. Contudo, não temos aqui uma descrição das realidades futuras, mas um alerta para que o ser humano procure dar sentido à sua existência enquanto há tempo. Se o sentido da parábola fosse escatológico, ela estaria localizada na seção do ministério de Jesus em Jerusalém, já no final do Evangelho, onde está o ensinamento nesse gênero. Aqui, o evangelista quer mostrar que o fechamento em si, o egoísmo desenfreado, não é causa de condenação, mas já é a condenação em si mesma. Os abismos entre as pessoas só podem ser superados durante a vida terrena. A situação pós-morte descrita na parábola mostra apenas a perpetuação dos abismos, quando não há empenho para superá-los enquanto é possível, ou seja, enquanto se vive neste mundo (v. 26).

Percebendo as consequências desastrosas de suas escolhas em vida, o rico inicia um diálogo com Abraão, a quem chama de “pai”. Com isso, o autor revela que se trata de uma pessoa religiosa, um judeu devoto: «Então gritou: “Pai Abraão, tem piedade de mim! Manda Lázaro molhar a ponta do dedo para me refrescar a língua, porque sofro muito nestas chamas”. Mas Abraão respondeu: “Filho, lembra-te que tu recebeste teus bens durante a vida e Lázaro, por sua vez, os males. Agora, porém, ele encontra aqui consolo e tu és atormentado”» (vv. 24-25). O reconhecimento de Abraão como pai era um traço característico de todo bom judeu. Porém, esse homem devoto viveu uma fé equivocada, pois não soube traduzi-la em frutos de justiça em favor do pobre que sofria à sua porta. É interessante notar que o texto não fala de inferno como destino do rico, apenas diz que ele foi enterrado, ocupando a região dos mortos. E, de lá, gritou a Abraão, cuja resposta reforça as consequências do abismo intransponível construído pela indiferença do rico ainda em vida. Ao dar a sua causa por perdida e de certo modo contentar com tal realidade, o rico pensa, embora tarde, nos seus familiares: «O rico insistiu: “Pai, eu te suplico, manda Lázaro à casa do meu pai, porque eu tenho cinco irmãos. Manda preveni-los, para que não venham eles para este lugar de tormento”» (vv. 27-28). Com esse pedido, o rico só reforça a sua mentalidade egoísta e mesquinha, pois pensa somente nos seus; não pensa na humanidade, mas apenas no seu pequeno mundo: os seus irmãos, que provavelmente eram aqueles que se banqueteavam com ele todos os dias. É interessante notar o número dos componentes da família: seis irmãos; cinco vivos e um já morto. Como se sabe, na Bíblia o número seis evoca imperfeição, incompletude, enquanto o número sete significa perfeição e plenitude. Se os seis tivessem acolhido Lázaro como irmão, aquela família teria se tornado completa, perfeita, plena. A indiferença com Lázaro foi a causa de ruína para todos eles. Embora o texto não afirme, tudo indica que os outros cinco terão o mesmo destino do primeiro deles que morreu.

A resposta de Abraão às novas súplicas do rico é muito clara: «Mas Abraão respondeu: “Eles têm Moisés e os Profetas, que os escutem!”» (v. 29). A expressão “Moisés e os Profetas” significa as Sagradas Escrituras, a Bíblia, o que para os judeus corresponde ao que a tradição cristã denominou de Antigo Testamento. E desde Moisés – a Lei (Ex 5,6; 23,10; Lv 19,10) até os profetas (Am 4,1; 8,4) –, a Palavra de Deus adverte para a necessidade do cuidado com os pobres, mostrando a predileção de Deus por eles. Negligenciar os pobres, portanto, é negligenciar o próprio Deus. Com essa mesma expressão, o evangelista também chama a atenção da sua comunidade para a eficácia da Palavra e que, diante dessa, não há necessidade de fenômenos sobrenaturais como milagres, visões e aparições. Assim, o evangelista ensina que uma fé autêntica e comprometida se fundamenta na Palavra de Deus. A Lei e os Profetas são suficientes para indicar o caminho a ser percorrido, qual o estilo de vida a ser adotado e como corresponder à vontade de Deus. Para viver autenticamente a fé, a necessidade básica é a atenção à Palavra de Deus e a adesão às exigências que essa contém, sobretudo a atenção especial aos mais necessitados. Quem tem “Moisés e os Profetas”, ou seja, o conjunto das Sagradas Escrituras (v. 31), mais o que chamamos de Novo Testamento, o texto cristão por excelência, tem tudo o que é necessário para viver e dar sentido à vida. Por isso, ler Moisés e os Profetas, ou seja, a Sagrada Escritura, e não lutar para que os abismos criados entre as pessoas e as desigualdades sociais sejam abolidas é simplesmente ignorar os apelos de Deus.  

Para concluir, recordamos que alguns estudiosos acreditam que, seja por Lucas ou pelo próprio Jesus, a construção desta parábola foi inspirada em Amós, o profeta da justiça, por excelência. Seguindo essa linha, o rico é imagem da elite luxuosa de Israel, que esbanjava riqueza às custas da exploração dos pobres, e Lázaro é imagem dos pobres explorados, por quem Amós tomou partido, em nome de Deus. Não esqueçamos que o final trágico do rico foi consequência da sua indiferença ao sofrimento do pobre e por falta de atenção à Palavra de Deus. Que o olhar atento à parábola, bem como ao conjunto da Palavra de Deus e da realidade do mundo, nos motive a tomar partido e assumir o lado certo da história, como fizeram Amós e Jesus.

Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

sábado, setembro 20, 2025

REFLEXÃO PARA 25º DOMINGO DO TEMPO COMUM – LUCAS 16,1-13 (ANO C)

 


O evangelho deste vigésimo quinto domingo do tempo comum continua ambientado no contexto do caminho de Jesus com seus discípulos para a cidade de Jerusalém, onde viverá a consumação do seu ministério, com os eventos da paixão e morte na cruz. O texto lido hoje – Lc 16,1-13 – é considerado um dos ensinamentos mais difíceis e surpreendentes de Jesus, e até contraditório, pelas razões que mostraremos a seguir. Trata-se da chamada parábola do “administrador infiel” ou “desonesto” (vv. 1-8a), seguida de algumas sentenças de estilo sapiencial (vv. 8b-13), que visam explicar o sentido da parábola, tornando-a menos contraditória, pelo menos. A parábola é exclusiva do Evangelho de Lucas, enquanto parte das sentenças que a seguem encontram paralelismos no Evangelho de Mateus. A maioria dos estudiosos consideram esta parábola a mais difícil de todas as parábolas da Bíblia, pois, à primeira vista, Jesus parece apresentar um homem desonesto como a modelo a ser imitado pelos discípulos. Aqui, vale lembrar que o caminho, no Evangelho de Lucas, é o programa formativo de Jesus para seus discípulos, mais do que um percurso físico e geográfico. Geralmente, as parábolas propõem um personagem exemplar, um modelo a ser imitado pelos discípulos de Jesus, mas nesta de hoje nenhum dos personagens serve de paradigma: nem o patrão, nem o administrador, embora seja louvável a sua capacidade de tomar uma decisão acertada no momento mais crítico da vida.

Ainda a nível de contexto, é importante recordar que este texto faz parte de um capítulo todo dedicado à reflexão sobre o uso dos bens materiais e das riquezas. Trata-se do capítulo dezesseis de Lucas, que começa com a parábola do administrar infiel (vv. 1-8a) e termina com a do “pobre Lázaro e o rico avarento” (Lc 16,19-31). Isso mostra a importância que o tema do uso dos bens materiais tem na obra de Lucas. Como se vê, no programa formativo dos discípulos ele dedica um espaço bastante considerável a essa temática. Além da relevância do tema, esse dado revela as prováveis dificuldades da comunidade na vivência desta dimensão importante da vida cristã. E as duas parábolas recordadas são exclusivas do Evangelho de Lucas, o que vem a reforçar o quanto o respectivo evangelista se preocupou com essa dimensão. Ambas as parábolas são intercaladas por sentenças de efeito prático-exortativo em estilo sapiencial, que funcionam como interpretação da primeira parábola, a de hoje, e preparação para a segunda, que será lida na liturgia do próximo domingo.  Lucas é o evangelista que mais combate a concentração de riquezas, propondo a partilha e a solidariedade. Por isso, seu Evangelho é considerado o “evangelho dos pobres”. E no segundo volume de sua obra – Atos dos Apóstolos – ele continuará insistindo com o tema das riquezas e a necessidade de fazer bom uso delas, ensinando insistentemente que se deve abrir mão delas pelo bem da comunidade.

Assim, tendo já identificado o contexto da parábola, a catequese sobre o uso dos bens materiais e riquezas, podemos, logo de início, identificar os destinatários da mesma: os discípulos, como vem afirmado no texto: «Jesus dizia aos discípulos» (v. 1a). Na verdade, os destinatários principais dos ensinamentos de Jesus são sempre os discípulos, tanto aqueles de primeira hora quanto os do futuro, mesmo quando seus interlocutores no episódio narrado são outros personagens, incluindo até os fariseus e mestres da Lei, os tradicionais adversários. No entanto, quando um evangelista afirma explicitamente que Jesus está dirigindo um ensinamento diretamente aos seus discípulos, quer dizer que se trata de algo urgente, e, portanto, inadiável; e quando ele insiste com um mesmo tema, significa que esse tema é muito importante e, ao mesmo tempo, que os discípulos não estão assimilando bem, a ponto de ser necessário repetir diversas vezes e de diferentes maneiras aquilo que está sendo ensinado. Tudo isso se verifica quando se trata do cuidado com o uso dos bens materiais e das riquezas. Recordemos algumas ocasiões, ao longo do caminho, em que Jesus advertiu os discípulos sobre isto: na oração do Pai Nosso, ao recomendar que pedissem ao Pai apenas o necessário para cada dia (Lc 11,3); quando se negou a interferir em questões relacionadas à divisão de uma herança, contando, em seguida, a parábola do “rico insensato” (Lc 12,16-21); na apresentação das exigências para o seu seguimento, ao colocar a renúncia de todos os bens como condição para ser seu discípulo (Lc 14,33). Como se vê, há uma insistência de Jesus ao apresentar o tema do uso dos bens materiais e das riquezas, e isso se deve à resistência dos discípulos, que persistiam em fazer pouco caso com uma questão tão fundamental, a ponto de Jesus, por necessidade, tornar-se repetitivo.

Feitas as devidas considerações introdutórias, entramos diretamente no conteúdo da parábola, cujo enredo é sintetizado já no primeiro versículo: «Um homem rico tinha um administrador que foi acusado de esbanjar os seus bens» (v. 1). Embora se trate de uma parábola, alguns estudiosos acreditam que Jesus conhecesse histórias reais semelhantes a essa, pois casos desse tipo eram muito frequentes. Ora, como na época havia uma forte concentração de terras em poucas mãos, esse versículo inicial descreve uma situação muito comum. Geralmente, os proprietários possuíam grandes latifúndios e não tinham condições de administrarem sozinhos. Por isso, confiavam a administração a terceiros, dando como pagamento uma comissão nos rendimentos. O administrador (em grego: οἰκονόμος = oikônomos), cujo significado literal é “legislador da casa”, “aquele que cuida dos bens da casa” ou “regente da casa”. Desse termo deriva a palavra ecônomo, que designa aquele cuida da economia de uma determinada instituição ou repartição. No mundo antigo, sobretudo na Palestina, essa pessoa tinha total liberdade no gerenciamento dos negócios de uma pessoa ou de um grupo; isso significa que era uma pessoa que gozava de plena confiança do patrão, o que levava muitas vezes a abusos e corrupção. Porém, é interessante que a parábola não diz como o administrador esbanjava os bens do seu patrão. Diz apenas que ele esabanjava. E isso poderia acontecer de diversas maneiras, inclusive, ajudando aos mais necessitados, o que na ótica da economia e da cultura do acúmulo, ao contrário da lógica Reino de Deus, seria um modo de esbanjar.

Diante da acusação de esbanjar os bens que não lhe pertenciam, o destino do administrador não poderia ser outro, senão a destituição da sua função, ao ser chamado pelo patrão para prestar contas da administração. E é exatamente isso o que diz o texto: «Ele o chamou e lhe disse: “Que é isto que ouço a teu respeito? Presta contas da tua administração, pois já não podes mais administrar meus bens”» (v. 2). Parece que o próprio administrador aceita ser tratado como desonesto, pois não apresenta uma única justificativa, não dá explicação alguma e nem sequer pede perdão ou desculpas ao seu patrão, como mostra a sequência da história. A dúvida que se poderia suscitar se ele tinha sido desonesto mesmo parece ser esclarecida pelos fatos, inclusive pelo seu silêncio diante da acusação, o que soa como uma confissão de culpa. Com efeito, ele aceita passivamente a acusação, o que pode ser compreendido como reconhecimento de culpa. Chama a atenção o fato de que o patrão não apresenta nenhum dado concreto, mas julga o administrador apenas pelo que escutou a seu respeito, e logo decreta a demissão. É uma atitude arrogante, típica dos poderosos deste mundo. Por outro lado, também é significativo o fato de que esse mesmo patrão não decreta imediatamente uma punição ou castigo pelos prejuízos causados, mas apenas determina a demissão. Como proprietário e patrão, ele esperava apenas que seus bens fossem bem cuidados e lhe gerassem lucros. Não demonstra ser adepto de uma lógica punitiva. Isso revela um traço que o aproxima do Deus revelado por Jesus. Apesar disso, no entanto, esse patrão não pode ser identificado como imagem de Deus na parábola. O comportamento arrogante e a demissão baseada em rumores são atitudes que não se alinham com a essência de Deus, conforme revelada nos ensinamentos de Jesus.

Consciente da demissão, o administrador se preocupa imediatamente com o seu futuro, o que o leva a uma profunda reflexão, expressa no texto por um pequeno monólogo interior: «O administrador então começou a refletir: “o senhor vai me tirar a administração. Que vou fazer? Para cavar, não tenho forças; de mendigar, tenho vergonha. Ah, já sei o que fazer, para que alguém me receba em sua casa, quando eu for afastado da administração”» (vv. 3-4). O monólogo interior, conhecido também como solilóquio, era um refinado recurso literário, bastante utilizado na literatura antiga greco-romana e muito apreciado por Lucas, o único autor do Novo Testamento que o utiliza, um fato que confirma seu refino literário. A função deste recurso é, antes de tudo, revelar aspectos do caráter de um personagem; e o que se revela desse administrador é que se trata de um homem calculista e prudente, consciente de suas limitações e preocupado com o futuro. O medo do trabalho braçal e a vergonha de mendigar (v. 3) o levam a uma tomada de decisão firme e corajosa, própria de quem fez uma reflexão profunda. Inclusive, ele não nega a acusação de esbanjar os bens, não dá explicações e nem sequer pede perdão ao patrão, o que certamente não adiantaria muito. Isso demonstra que as acusações possuíam fundamento. Apesar de desonesto, o administrador era um homem reflexivo; sabia que o futuro se constrói no presente, ou seja, desde agora, e há decisões que não podem ser adiadas. E, no momento mais crucial da vida, ele chegou à conclusão de que o mais importante é investir em amizade, um “bem” do qual não serão exigidas prestações de contas, além de ser incorruptível, ao contrário do azeite e do trigo, por exemplo, que poderiam ser roubados ou perecer com o tempo.

Da reflexão do administrador, veio a decisão, e da decisão a atitude, como mostra a continuação da parábola: «Então ele chamou cada um dos que estavam devendo ao seu patrão. E perguntou ao primeiro: “Quanto deves ao meu patrão?” Ele respondeu: “Cem barris de óleo!” O administrador disse: “Pega a tua conta, senta-te, depressa, e escreve cinquenta!” Depois ele perguntou a outro: “E tu, quanto deves?” Ele respondeu: “Cem medidas de trigo”. O administrador disse: “Pega a tua conta e escreve oitenta”» (vv. 5-7). Temos aqui o centro da parábola. Ora, o sistema tributário da época era bastante abusivo, contrariando, inclusive, as leis do Antigo Testamento que proibiam a usura, ou seja, o empréstimo por juros (Ex 22,19; 25,36-37; etc.). As altas quantias que os devedores deviam ao patrão podiam ter sido aumentadas também por juros injustos, aplicados pelo próprio administrador, ao longo do tempo. Contudo, o foco aqui é a sua reflexão sobre o futuro e a tomada de decisões favoráveis. Ele partiu de um dilema: agradar ao patrão ou aos devedores? Pensando no futuro, preferiu a segunda opção e convidou os devedores a uma revisão nas contas. Também neste momento ele revela uma clara falta de honestidade e transparência, propondo que os próprios devedores adulteram suas contas, ao pedir que sejam eles mesmos a escrever a nova fatura, embora revele também uma certa benevolência e confiança, elementos indispensáveis para uma amizade duradoura e saudável. Com a redução da dívida, ele demonstra disposição para correr riscos pelos novos amigos, o que também é característico de uma amizade verdadeira.

Embora a parábola apresente apenas dois devedores, supõe-se que havia um número muito maior, devido às proporções e consequências do caso, a ponto de causar a sua demissão do patrão. Os dois casos descritos, um devedor de azeite e outro de trigo, ajudam a compreender que, mesmo se tratando de quantias muito grandes, se trata de produtos de subsistência e, embora de grande valor, eram necessidades primárias para a alimentação no dia-a-dia, o que vem a supor que os devedores eram pessoas pobres que se endividaram para garantir o pão cotidiano. O texto não esclarece se eram compradores dos produtos do patrão ou se eram arrendatários de terra e, por isso, deveriam devolver parte da produção ao dono da terra, o que também era uma prática muto comum, na época. O que se sabe é que eles deviam muito, e eram bens de necessidade básica. Textos proféticos do Antigo Testamento denunciam a escravização por dívidas. Muitas vezes, os pobres endividados eram escravizados e até transformados em mercadoria (Am 2,6; 8,6), quando não conseguiam pagar suas dívidas. Por isso, os anos jubilares eram tão importantes, comportavam também o perdão das dívidas e a libertação dos escravos. A revisão nas contas prova que o administrador fez uma opção clara: escolheu o lado dos mais fracos, dos endividados, tornando-se amigo deles (v. 9). Quanto ao favorecimento dos devedores, muitas interpretações afirmam que o administrador, com os supostos descontos de cinquenta por cento para um e vinte para o outro, estava apenas abrindo mão da sua desonesta comissão. Com total liberdade para gerenciar os negócios, os administradores costumavam cobrar valores mais altos e exigir comissões, como faziam também os cobradores de impostos.

É inegável que o administrador foi calculista e esperto, soube sair de uma situação que, aparentemente, não tinha saída. Tanto é que, no final, foi elogiado até mesmo pelo patrão, que apareceu no início da parábola como acusador: «E o senhor elogiou o administrador desonesto, porque ele agiu com esperteza» (v. 8a). Na verdade, bem mais do que esperteza, o termo que Lucas utiliza equivale a prudência (em grego: φρονίμως = fronímos), que é uma das qualidades do homem sábio, conforme a tradição bíblica. Daí, também a observação conclusiva de Jesus, na segunda parte do versículo: «Com efeito, os filhos deste mundo são mais espertos em seus negócios do que os filhos da luz» (v. 8b). A expressão “filhos da luz” designa aqui, obviamente, os membros da comunidade. Embora rara no Novo Testamento, essa expressão era muito usada em comunidades judaicas do primeiro século, inclusive em Qumran. Aqui se contrapõem os membros da comunidade cristã aos de fora. Obviamente, nem Jesus e nem o evangelista querem que se reproduzam na comunidade as relações mercantilistas do império. Na verdade, ele está denunciando que, entre os cristãos, falta empenho e compromisso na edificação do Reino. Se os cristãos e cristãs se empenhassem na construção do Reino com o mesmo afinco com que os homens de negócios se empenham na obtenção de suas vantagens, o mundo seria diferente, com certeza. Não é um convite ao uso de práticas desonestas, tampouco ao proselitismo intolerante, obviamente, mas ao esforço contínuo para fazer o Reino de Deus acontecer, um estímulo à agilidade na reflexão e na ação em prol do Reino e suas exigências.

As sentenças que seguem à parábola são de caráter sapiencial e visam elucidar e reforçar o seu sentido, como acenamos na introdução. Na primeira delas, chama a atenção a recomendação de Jesus: «E eu vos digo: usai o dinheiro injusto para fazer amigos, pois quando acabar, eles vos receberão nas moradas eternas» (v. 9). Para Jesus, o dinheiro é sempre injusto porque através dele as pessoas se apossam do que deve pertencer a todos: os bens da criação, gerando divisão entre pobres e ricos, o que não corresponde aos planos de Deus, que criou o mundo para a igualdade e a fraternidade. A palavra grega que o evangelista emprega como correspondente a dinheiro (μαμωνα – mamona) era também o título de uma divindade cananeia, a quem se atribuíam a prosperidade e o enriquecimento, o que justifica a denúncia de Jesus e do evangelista de que o dinheiro é fonte de idolatria; porém, na impossibilidade de viver sem ele, que ao menos seja utilizado para coisas boas em favor do próximo. Assim, Jesus eleva a amizade à dignidade de mandamento na sua comunidade. É claro que Jesus não concebe a amizade como algo que possa ser comprado; apenas recomenda que tudo o que o ser humano disponha deve ser usado em prol de relações sinceras e amorosas com Deus e com o próximo. O administrador foi solidário com os endividados, usando o dinheiro injusto para fazer amigos, ou seja, preferiu bens que não passam, e a amizade é um destes bens eternos, ao aumento dos lucros do seu patrão.

A sequência das sentenças reforça a necessidade de uma característica imprescindível no discipulado, que é a fidelidade: «Quem é fiel nas pequenas coisas também é fiel nas grandes, e quem é injusto nas pequenas também é injusto nas grandes. Por isso, se vós não sois fiéis no uso do dinheiro injusto, quem vos confiará o verdadeiro bem? E se não sois fiéis no que é dos outros, quem vos dará aquilo que é vosso?» (vv. 10-12). Talvez essa seja a parte mais lógica e óbvia de todo o texto, ao mesmo tempo em que parece ser a mais contraditória, considerando o conjunto da parábola. O administrador foi infiel ao patrão, e por isso lhe foi tirada a administração; se tivesse fiel ao patrão, não teria amenizado os débitos dos devedores. Isso gera uma reflexão a mais: não resta dúvidas de que se deve cultivar a fidelidade, mas é importante ter clareza do lado ao qual se deve ser fiel. O conjunto das sentenças ensina que a fidelidade nas coisas de pouco valor habilita o ser humano a ser fiel também em coisas maiores. Antes de tudo, é a Deus que devemos ser fiéis. E fidelidade a Deus significa, na visão de Jesus, estar do lado dos pobres e necessitados, opção feita pelo administrador da parábola no momento mais decisivo da sua vida, quando preferiu amenizar a situação dos endividados ao invés de favorecer os lucros do patrão.

Como foi dito no início, as sentenças que seguem à parábola têm a função de explicá-la e torná-la menos contraditória. E o versículo conclusivo mostra isso, sendo, por isso, considerado o coração de todo o texto: «Ninguém pode servir a dois senhores; porque ou odiará um e amará o outro, ou se apegará a um e desprezará o outro. Vós não podeis servir a Deus e ao dinheiro» (v. 13).  A afirmação parte de um exemplo bem concreto: a impossibilidade de um servo trabalhar fielmente para dois senhores, ao mesmo tempo. É claro que o exemplo reflete a cultura da época. O servo, em questão, era o escravo, que servia incondicionalmente ao patrão, e por isso não era possível fazer o mesmo para dois, ao mesmo tempo. Deste exemplo conhecido por todos da época, Jesus mostra a incompatibilidade entre o serviço a Deus e ao dinheiro. O projeto do Reino de Deus é incompatível com a lógica do acúmulo e do mercado. Diante dessa incompatibilidade, o ser humano é obrigado a tomar uma decisão e optar por um ou outro. Deus e o dinheiro são apresentados como polos opostos, que vem personificados. O lado de Deus compreende amor, justiça, solidariedade, fraternidade, paz, serviço; o lado do dinheiro comporta orgulho, ódio, cobiça, inveja, violência, exploração, tudo o que é contrário ao Reino de Deus. Por isso, é incompatível servir aos dois.

O objetivo da parábola e das sentenças explicativas, portanto, é motivar os membros da comunidade a refletir e decidir de que lado pretendem estar. E por incrível que pareça, o administrador, mesmo desonesto, acaba sendo o exemplo de quem levou a sério esse ensinamento e escolheu um único senhor, diante das duas opções: ajudando seu patrão no acúmulo, estaria servindo ao dinheiro; como preferiu ajudar às pessoas endividadas, escolheu servir a Deus, mesmo inconscientemente. Do seu comportamento, o que serve de exemplo é ter tomado a decisão certa na hora em que não podia errar.

Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

sábado, setembro 13, 2025

REFLEXÃO PARA A FESTA DA EXALTAÇÃO DA SANTA CRUZ – JOÃO 3,13-17

 


Neste ano, a liturgia do vigésimo quarto domingo do tempo comum é substituída pela Festa da exaltação da Santa Cruz, cujo evangelho é Jo 3,13-17. Trata-se de uma das festas mais antigas da Igreja, cujas origens remontam aos primórdios da era constantiniana, quando, segundo a tradição, a cruz de Cristo foi descoberta por Helena, mãe do imperador Constantino, durante uma peregrinação à Jerusalém, por volta do ano 326. Logo após a suposta descoberta, o imperador mandou construir duas grandes basílicas em Jerusalém, nos lugares tradicionalmente identificados como locais da crucificação e do sepulcro de Jesus. Essas igrejas foram inauguradas nos dias treze e quatorze de setembro do ano 335. Assim nasceu a festa celebrada hoje. Tendo começado no Oriente, logo se espalhou pelo Ocidente e todo o mundo conhecido de então. Inicialmente, era considerada tão importante quanto a Páscoa, inclusive, a celebração costumava durar uma semana, sendo marcada por grandes procissões, expressando um aspecto altamente triunfalista. Por muitos séculos ela foi celebrada dessa maneira. Historicamente, o sucesso inicial da festa pode ser considerado positivo, pois ajudou a valorizar o sentido da cruz na vida cristã, embora, com o passar dos anos, tenha sido distorcido, devido ao excesso de devocionismo pouco reflexivo, que acabou transformando a cruz em símbolo de resignação e conformismo diante das situações de injustiças e sofrimentos.

No início do cristianismo, houve muita resistência à aceitação da cruz como símbolo e sinal de pertença a Jesus Cristo. Como se sabe, a cruz estava entre os instrumentos de execução e tortura mais temidos no império romano. Era usada para punir os piores criminosos, as pessoas que realmente representavam perigo para a ordem social, como os rebeldes, assaltantes e assassinos. A morte na cruz era lenta, humilhante e altamente dolorosa. À dor física, somavam-se a vergonha, a humilhação, uma vez que a execução na cruz era exposta, geralmente, acontecia em lugares altos, para que o maior número possível de pessoas pudesse ver e, assim, ficassem de sobreaviso sobre os riscos de cometer crimes e desafiar o sistema opressor. Tudo isso, obviamente, desencoraja muitas pessoas a aceitar Jesus como Messias e Senhor, afinal, a cruz era sinônimo de fracasso e, acima de tudo, de perigo. Logo, era difícil conceber que o Filho de Deus terminasse morto na cruz. Isso justifica a insistência dos autores do Novo Testamento em apresentar Jesus como o Filho de Deus que morreu na cruz, mas ressuscitou. Por isso, até os três primeiro séculos, os cristãos evitavam usar a cruz como símbolo, preferindo outras imagens como o peixe, o bom pastor e o cordeiro. O sucesso inicial da festa celebrada hoje ajudou na superação dessa visão. A reforma litúrgica do Concílio Vaticano II ressignificou seu sentido, fazendo a passagem de um culto à cruz enquanto objeto à contemplação do mistério da cruz como instrumento de salvação, de modo que, mais do que uma exaltação da cruz, pode-se falar de uma exaltação na cruz, como sugere o evangelho do dia.

Da contextualização histórica da festa, passamos para o contexto narrativo do evangelho nela empregado. Trata-se de Jo 3,13-17, uma passagem localizada na primeira parte do Evangelho de João, chamada tradicionalmente de “livro dos sinais” (Jo 1–12). Considerando um contexto mais imediato, esse texto faz parte do diálogo entre Jesus e Nicodemos (Jo 3,1-21), que é o primeiro dos grandes diálogos do Quarto Evangelho. Os diálogos constituem uma das principais características do Evangelho de João, sendo um dos instrumentos privilegiados de revelação da identidade de Jesus. Naquela ocasião, Jesus se encontrava em Jerusalém por ocasião da festa da “Páscoa dos judeus” (Jo 2,13.23). Durante sua estadia na grande cidade, ele realizou muitos sinais, despertando, além de oposição nas autoridades, adesão ao seu nome e curiosidade em alguns, como Nicodemos, com quem desenvolveu um prolongado e rico diálogo (Jo 3,1-21). O evangelista descreve Nicodemos como um judeu importante, pertencente ao grupo dos fariseus (Jo 3,1), profundo conhecedor da Lei (Jo 7,50-52), e curioso pela novidade de Jesus. Sua curiosidade para conhecer melhor a mensagem de Jesus revela sinceridade e respeito, inclusive o reconhecimento de que Jesus “vem da parte de Deus” (Jo 3,2), o que muitos fariseus tinham dificuldade de reconhecer, conforme as informações fornecidas pelos quatro evangelhos.

A leitura atenta do encontro com o diálogo em seu conjunto (Jo 3,1-21) revela que Nicodemos não estava satisfeito com a religião oficial. Parece que a imagem do Deus pregado pela sua religião já não lhe convencia plenamente. Certamente, ele desejava uma profunda renovação, embora ainda não estivesse pronto para romper com o sistema e aderir ao projeto de Jesus. A simples curiosidade, no entanto, já é um passo importante para quem estava plenamente atrelado à estrutura religiosa da época, inclusive como uma das lideranças. Nicodemos aparecerá em mais duas ocasiões no Quarto Evangelho, e sempre tomando posições a favor de Jesus: defendendo-o da ira dos fariseus quando ele tinha se apresentado como fonte de água-viva, em alusão ao Espírito Santo (7,37-52), e ajudando em seu sepultamento (19,39). Se já tinha interesse em conhecer Jesus pelo que ouvia a seu respeito, certamente o interesse aumentou ainda mais ao dialogar com ele. Como último aspecto a nível de introdução e contexto, recordamos as circunstâncias em que Nicodemos procurou Jesus: foi na “calada da noite” (Jo 3,2). Esse detalhe tem sido alvo de muitas tentativas de explicação pelos estudiosos. A explicação mais conhecida afirma que Nicodemos procurou Jesus à noite para não ser visto pelos seus colegas de doutrina, ou seja, os fariseus e os líderes religiosos de Jerusalém, uma vez que Jesus não era bem-visto por esse meio. De fato, para quem defendia a moral e os bons costumes na época, a companhia de Jesus era desaconselhada. Porém, é provável que o evangelista tivesse intenções mais teológicas do que cronológicas para registrar esse detalhe, o que não convém aprofundarmos aqui, já que não é componente do evangelho de hoje, mas apenas um elemento do seu contexto. A noite, como imagem das trevas, poderia representar, na perspectiva do evangelista, o mundo em que Nicodemos vivia, com a mentalidade religiosa vigente.

Feitas a devida contextualização, passemos então ao estudo do texto, o qual começa com a seguinte declaração de Jesus: «Ninguém subiu ao céu, a não ser aquele que desceu do céu, o Filho do Homem» (v. 13). Sendo o mais enigmático dos quatro, o Evangelho de João é marcado por paradoxos, representados por antíteses como luz e trevas, vida e morte, carne e espírito. A esses, soma-se a referência aos movimentos de subida e descida e vice-versa, evidenciado no primeiro versículo da passagem lida neste domingo. Como “ninguém subiu ao céu”, ninguém pode falar das coisas de lá. Por céu compreende-se a pertença ao mundo de Deus, e Jesus, o Filho do Homem, é o único agente autorizado para falar dessa realidade, pois foi de lá que ele veio, enquanto o Verbo que se fez carne (Jo 1,14). No contexto da festa de hoje, essa afirmação se torna ainda mais relevante, pois, pelo mistério da cruz, sobretudo no Quarto Evangelho, Jesus concede à humanidade inteira o acesso ao mundo de Deus. Obviamente, não se trata de uma realidade física, mas espiritual, trata-se, antes de tudo, de uma vida de comunhão com ele. Ora, os fariseus, grupo ao qual pertencia Nicodemos, o interlocutor de Jesus, imaginavam ter acesso ao céu mediante a observação minuciosa da Lei de Moisés e, em resposta, Jesus diz que o acesso depende dele, o que desceu do céu. Somente ele conhece o caminho e, por isso, pode indicar para o mundo. Da cruz, Jesus retorna ao mundo do Pai, de onde veio; esse retorno se dá após ensinar a todas as pessoas o caminho, que é o amor incondicional e ilimitado, como ele amou.

Na continuação, vem apresentado um dado das Escrituras, aplicado por Jesus a si mesmo: «Do mesmo modo como Moisés levantou a serpente no deserto, assim é necessário que o Filho do Homem seja levantado» (v. 14). Ora, sabendo que Nicodemos conhecia bem a Escritura, afinal, era um fariseu de destaque, Jesus cita explicitamente um episódio do livro dos Números (Nm 21,4-9), para ilustrar o movimento de descida e subida ao céu realizado por Ele mesmo (Jo 3,13) e, ao mesmo tempo, para ajudar seu interlocutor a compreender como será a sua elevação: através da cruz, cujo mistério é aqui antecipado. Por sinal, essa é a primeira afirmação da elevação de Jesus no Evangelho de João acerca da sua elevação, e chama a atenção porque estamos ainda no início do livro. Se trata de um acontecimento tão indispensável para o seu plano salvífico, que ele começa a preparar a comunidade dos seus seguidores desde cedo. A citação do livro dos Números é, portanto, apenas ilustrativa. Na verdade, é o próprio evangelista insistindo com a sua comunidade para que aceite a cruz, pois, como consequência do amor, ela faz parte da vida conforme o programa de Jesus. Ser levantado se torna necessidade para Jesus, pois o seu projeto de comunicar vida em plenitude à humanidade inteira é irrenunciável. Porém, Ele não escolheu a cruz; escolheu ser fiel ao Pai, por amor, até as últimas consequências, e isso implicou passar pela cruz. Por isso, “ser levantado” se tornou necessário «Para que todos os que nele crerem tenham a vida eterna» (v. 15). O importante é a doação do dom da vida em plenitude, por isso, eterna. Essa é a primeira vez que é mencionada a “vida eterna” no Quarto Evangelho. Crer nele não significa expressar uma fórmula de fé, mas deixar-se guiar pelo seu ensinamento e assumir a sua forma de vida.

Jesus apresenta Deus como aquele que ama incondicionalmente e, ao mesmo tempo, se auto apresenta como a prova desse amor incondicional de Deus, já que é, Ele mesmo, o Filho doado: «Deus amou tanto o mundo, que deu o seu Filho unigênito, para que não morra todo o que nele crer, mas tenha a vida eterna» (v. 16). Há estudiosos que consideram essa afirmação de Jesus o coração do Quarto Evangelho e de toda a teologia de tradição joanina (1Jo 4,7-8). Inclusive, aqui aparecem três dos verbos mais importantes do respectivo Evangelho, a saber, os verbos amar (em grego: ἀγαπάω – agapáo), dar ou oferecer (em grego: δίδωμι – didomi). Por meio deles, o autor reforça a gratuidade do amor de Deus pelo mundo. É um Deus que só tem amor para oferecer ao mundo, e o faz de modo livro e gratuito, exatamente porque ama infinitamente. E o mundo é o destinatário do amor de Deus. Esse mundo é a humanidade inteira. Com essa afirmação, Jesus toca numa ferida para os judeus mais devotos, pois declara o fim do exclusivismo de Israel como destinatário do amor e das promessas de Deus. Com Jesus, a pertença a Deus deixa de ser privilégio de um povo e passa a ser um direito da humanidade inteira. Jesus praticamente inverte o primeiro mandamento da Lei: foi Deus quem amou a humanidade sobre todas as coisas! A afirmação «Deus amou o mundo» é única em toda a Bíblia. É uma exclusividade do Quarto Evangelho. A prova maior desse amor da parte de Deus é o seu dom, a qualidade da sua oferta: o Filho unigênito doado ao mundo para que, ao ser acolhido, se estabeleça na humanidade a vida eterna.

É importante recordar e jamais esquecer que «Deus deu o seu Filho» para a humanidade. Quer dizer que o mundo inteiro é convidado a receber esse dom do Pai. Quem o acolhe e crê, recebe a vida eterna. Aqui, é importante recordar um terceiro verbo fundamental empregado neste versículo, que também possui relevância determinante em toda a teologia joanina; trata-se do verbo crer (em grego: πιστεύω – pistêuo). De fato, “crer” é um dos temas principais do Quarto Evangelho. Inclusive, no texto de hoje aparece duas vezes (vv. 15 e 16). Como já foi afirmado, mais do que expressar uma profissão de fé, crer significa, aqui, acima de tudo, a adesão plena à pessoa de Jesus e sua mensagem libertadora. Quem crê nele, conforme essa perspectiva, ressignifica a própria existência, por isso, passa a ter a vida eterna. Essa, a vida eterna, não significa uma vida no além. Eterna aqui não é apenas a duração, mas é a qualidade da vida de quem acolhe Jesus e seu Evangelho. Logo, a «vida eterna» não é um prêmio que os bons receberão no futuro, como pensavam os fariseus e ainda pensam muitos cristãos. A vida se torna eterna quando se faz opção por Jesus e seu projeto de mundo, o Reino de Deus. Essa vida é eterna porque é tão plena, a ponto de nem a morte poder destruí-la. E ela começa aqui na terra, é essa vida presente que não será destruída nem com a morte. À medida em que o ser humano encontra sentido para a sua existência, ele eterniza a sua vida. E o sentido pleno da vida só pode ser encontrado quando se consegue viver bem como imagem e semelhança do Criador, cujo exemplo completo é Jesus de Nazaré.

O versículo seguinte reforça o anterior: «De fato, Deus não enviou o seu Filho para condenar o mundo, mas para que o mundo seja salvo por ele» (v. 17). Se o anterior (v. 16) declarava o que o Filho de Deus veio fazer entre nós, esse segundo diz o que não veio fazer: não veio julgar (condenar)! Aqui é necessário fazer uma pequena observação a respeito da tradução do texto litúrgico: ao invés do verbo “condenar”, é mais apropriado usar a expressão “dar sentença” ou o verbo “julgar”, conforme a língua original do texto, uma vez que a condenação seria o efeito do julgamento. E o verbo grego empregado pelo evangelista significa exatamente julgar (em grego: κρίνω – krino). Portanto, Deus não enviou seu Filho nem mesmo para julgar. Só condena quem antes julga. Como Deus só sabe amar, nem sequer julga e, portanto, não condena ninguém. Pelo contrário, ele justifica, ao invés de julgar, tamanho o seu amor. Mais uma vez Jesus contradiz a ortodoxia judaica, ao excluir a ideia de Deus como um juiz. Obviamente, quem esperava um messias juiz que viesse ao mundo para separar os bons dos maus, os puros dos impuros e, assim, salvar os primeiros e condenar os segundos, não poderia acreditar no Deus que Jesus veio revelar: um Pai cheio de amor, apaixonado pela humanidade, a ponto de dar o próprio Filho. Quem julga e condena são os próprios seres humanos com suas convicções e crenças falsamente fundadas em nome de Deus. O Deus de Jesus nem a juízo leva. Enquanto os homens julgam, Deus apenas justifica, ou seja, apenas salva, porque de quem é amor só pode sair amor. O mesmo Deus que doou livremente o seu Filho, deu também liberdade à humanidade, de modo que essa pode acolher ou não o seu Filho, Jesus. 

Celebrar a exaltação da Santa Cruz, portanto, é celebrar a exaltação do amor, da doação plena, da força humanizante que Deus ofereceu abundantemente ao mundo, com o dom do seu Filho. Como indicado na introdução, celebramos a exaltação na cruz, pois, apesar de marcada por gritos de dor, como Jesus gritou, são gritos de libertação.

Pe. Francisco Cornélio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

sábado, setembro 06, 2025

REFLEXÃO PARA O 23º DOMINGO DO TEMPO COMUM – LUCAS 14,25-33 (ANO C)



A liturgia deste vigésimo terceiro domingo do tempo comum continua a nos situar no contexto do caminho de Jesus para Jerusalém, com seus discípulos. Como já sabemos, mais do que um percurso físico, este caminho é um verdadeiro programa formativo, na perspectiva de Lucas. É um itinerário catequético, espiritual e teológico, no qual o evangelista distribui os principais ensinamentos de Jesus voltados à formação do seu discipulado, sendo também uma projeção antecipada da natureza missionária da Igreja, que deve estar sempre em saída, apesar das dificuldades e perigos que a imagem do caminho evoca. Pela natureza formativa que evoca, o caminho em Lucas se torna também um percurso humanizante, afinal, Jesus é um grande mestre de humanização, como revelam seus ensinamentos e seu estilo de vida. O evangelho de hoje – Lc 14,25-33 – apresenta a retomada da caminhada propriamente dita, após uma parada num dia de sábado para o culto da sinagoga, provavelmente, e um almoço festivo na casa de um dos chefes dos fariseus, conforme vimos no evangelho do domingo passado (Lc 14,1.7-14). Por sinal, a alternância entre a casa e a estrada possui grande relevância na obra de Lucas. Como os espaços institucionalizados eram hostis à mensagem de Jesus, o evangelista apresenta a casa e a estrada como alternativas para a anúncio da sua mensagem do nazareno, tanto no Evangelho quanto em Atos dos Apóstolos.   

À medida em que avançava no caminho, Jesus aprofundava o seu ensinamento, deixando cada vez mais claras as exigências para o seu seguimento e a seriedade que esse implica. No evangelho de hoje, ele apresenta três condições indispensáveis para quem pretende ser seu discípulo ou discípula. E são exigências muito fortes e comprometedoras. Apesar de possuir elementos comuns a Mateus e Marcos, o texto é carregado de traços tipicamente lucanos. Além de reformular o material comum aos demais, Lucas ainda ilustra as exigências com duas pequenas parábolas exclusivamente suas, conferindo ao texto um refinado teor de originalidade. Tanto o conteúdo quanto a maneira como o texto é construído tem por objetivo responder às necessidades das comunidades destinatárias, na época da redação do Evangelho, em meados da década de 80 do primeiro século. Com o passar do tempo e o surgimento das perseguições, crescia o desânimo e a falta de entusiasmo na vivência dos ensinamentos de Jesus. As comunidades passavam por um esfriamento na fé, com uma forte tendência a relativizar as exigências do discipulado. Preocupado, o evangelista procurou recordar o que é indispensável na vida cristã. Por isso, a não aceitação de qualquer uma das exigências recordadas no evangelho de hoje tem como resposta a declaração «não pode ser meu discípulo» (vv. 26.27.33), que funciona como refrão neste texto.

Começamos a analisar o texto, partindo do primeiro versículo, que funciona como introdução, ao mesmo tempo em que recorda o contexto do caminho: «Grandes multidões acompanhavam Jesus. Voltando-se, ele lhes disse:» (25). Como Jesus tinha passado um bom tempo parado, devido à refeição na casa do fariseu (Lc 14,1-24), o evangelista recorda a retomada do caminho com um verbo um de movimento – acompanhar (em grego: συμπορεύομαι – symporeuomai) – que serve também de advertência à comunidade: muita gente apenas acompanhava Jesus, mas não o seguia verdadeiramente. Era o que faziam as multidões e muitos membros da comunidade começava a fazer também: de seguidores comprometidos, tinham passado a meros acompanhadores, deixando de viver a radicalidade exigida pelo Evangelho. Por isso, o evangelista faz questão de mostrar Jesus advertindo quem apenas o acompanha. Ora, nas multidões que acompanhavam Jesus estavam pessoas impressionadas pela sua pregação, outras interessadas em aproveitar-se de possíveis milagres, outras ainda movidas pelo messianismo nacionalista, e pouca gente, de fato, comprometida com a sua causa, que é a edificação do Reino de Deus. Diante disso, ele procura esclarecer o que é necessário para alguém não apenas acompanhá-lo, mas tornar-se verdadeiro discípulo ou discípula, passando da superficialidade ao compromisso com a causa do Reino.

Voltando-se para as multidões que o acompanhavam, então, Jesus fala claramente quais são as exigências para um autêntico seguimento, advertindo para o risco de decisões precipitadas e equivocadas. Eis então, a primeira exigência: «Se alguém vem a mim, mas não se desapega de seu pai e sua mãe, sua mulher e seus filhos, seus irmãos e suas irmãs e até da sua própria vida, não pode ser meu discípulo» (v. 26). Considerando a cultura, com os costumes e tradições do mundo semita, talvez essa exigência fosse a mais dura. Ora, o valor do clã era revestido de sacralidade para aquela cultura. Romper com os laços familiares era um grande desafio, era um processo doloroso, realmente. Aqui, a tradução do texto litúrgico procura suavizar as palavras de Jesus, pois no texto original o evangelista emprega um verbo que significa odiar (em grego: μισέω = missêo), ao invés de desapegar, sendo que, para a mentalidade semita, odiar significa também “amar menos”, e é esse o sentido atribuído pelo evangelista nesta passagem. É claro que Jesus não estimularia, jamais, a disseminação do ódio; o que ele diz aqui, portanto, significa que para alguém entrar no seu discipulado é preciso amar menos do que a ele até mesmo as pessoas mais caras que temos, que são os familiares. A opção pelo Reino é tão exigente, que torna todo o restante relativo, inclusive a própria vida pessoal e familiar. Jesus exige prioridade, não por egoísmo, mas devido ao elevado comprometimento que sua mensagem comporta. A fórmula conclusiva da exigência, «não pode ser meu discípulo», mostra que essa é uma condição indispensável: ou faz isso ou não entra no discipulado! Por causa dessa exigência tão radical, muitas pessoas deixavam de segui-lo, mesmo impressionadas pela sua mensagem e seu estilo de vida (Lc 9,57-62). De fato, o amor a Jesus e suas causas devem ser colocados acima de tudo e, sobre isso, ele não faz concessões.

A segunda exigência é consequência da primeira, que já determinava a renúncia à própria vida, sendo ainda mais impactante, considerando o sentido da cruz aqui empregado: «Quem não carrega a sua cruz e não caminha atrás de mim, não pode ser meu discípulo» (v. 27). Ora, tanto no tempo de Jesus quanto na época da redação dos evangelhos, a cruz não era um mero adorno ou sinal sagrado como hoje, mas um sinal de condenação e maldição, aplicada às pessoas subversivas que representavam perigo para a ordem estabelecida, conforme determinava a “pax romana”, que era, na verdade, uma política de repressão e controle social do império romano. No contexto específico deste texto, a cruz significa perigo iminente de morte, e não a capacidade de suportar as provações e dificuldades do dia-a-dia com paciência e aceitação passiva, como algumas interpretações sugerem, transformando o evangelho num discurso de resignação, quando na verdade é um manifesto de contestação ao(s) sistema(s). A disponibilidade para carregar a cruz significa, portanto, a disposição para entregar a vida por causa do Reino, e quem não tem essa disposição não pode ser discípulo ou discípula de Jesus. No império romano, sistema dominante em Israel, na época de Jesus e da redação dos evangelhos, a cruz era o destino das pessoas inquietas, inconformadas e subversivas, consideradas perigosas, como era Jesus, e ele exige que seus discípulos sejam assim mesmo: subversivos e inconformados diante das injustiças e desigualdades.

Depois de apresentar as duas primeiras exigências, Jesus reforça o ensinamento e, ao mesmo tempo, prepara a terceira com duas pequenas parábolas que recordam a seriedade do seu seguimento e a necessidade de reflexão e discernimento, diante do risco de decisões precipitadas e movidas por emoções passageiras. Eis a primeira parábola: «Com efeito, qual de vós, querendo construir uma torre, não se senta primeiro e calcula os gastos, para ver se tem o suficiente para terminar? Caso contrário, Ele vai lançar o alicerce e não será capaz de acabar. E todos os que virem isso começarão a caçoar, dizendo: Este homem começou a construir e não foi capaz de acabar!» (vv. 28-30). A opção pelo Reino, ou seja, a adesão ao discipulado de Jesus, exige uma séria reflexão, sobretudo, em relação às consequências, tendo em vista a radicalidade das exigências. Nessa pequena parábola, o cálculo minucioso dos gastos que um construtor deve fazer antes de iniciar um empreendimento significa a consciência das exigências que o discipulado implica. É claro que o Reino não pode ser experimentado a partir de cálculos minimalistas e matemáticos, mas quem pretende ser discípulo ou discípula deve estar ciente, com clareza, do que condiz ou não com o seguimento de Jesus. E o investimento exigido dos discípulos e discípulos é muito mais precioso do que qualquer gasto material, pois é a própria vida. Por isso, é necessário refletir bem, o que é tão bem expresso na parábola com as atitudes de “sentar e calcular”. Esses dois verbos, de fato, simbolizam o discernimento, atitude indispensável para o seguimento de Jesus. Com isso, ele adverte sobre os riscos de um entusiasmo passageiro, como era frequente nas multidões que lhe seguiam. Muitas pessoas se impressionavam com uma pregação eloquente ou um gesto surpreendente e, diante disso, tomavam decisões improvisadas, fazendo a imediata passagem do acompanhamento ao seguimento, sem fazer a devida reflexão.

A segunda parábola tem praticamente o mesmo sentido da primeira. Eis o que se diz nela: «Qual o rei que ao sair para guerrear com outro, não se senta primeiro e examina bem se com dez mil homens poderá enfrentar o outro que marcha contra ele com vinte mil? Se ele vê que não pode, enquanto o outro rei ainda está longe, envia mensageiros para negociar condições de paz» (vv. 31-32). A primeira parábola era mais interpelante, tanto é que começava com a envolvente fórmula “qual de vós”, ausente nesta seguinte. Qualquer pessoa poderia ter se envolvido em alguma experiência de construção, mesmo que não fosse de uma torre. Logo, era um exemplo mais acessível. Nesta segunda, o exemplo parece mais distante, mas também permite a reflexão, pois além da clareza da história contada na parábola, no imaginário popular não faltavam exemplos de narrativas de guerras vencidas ou perdidas por esperteza ou incompetência de reis. Obviamente, o objetivo de Jesus com esse exemplo não é convocar os discípulos à promoção de guerra, tampouco compará-los a um rei. Assim como na primeira, o que ele quer é chamar a atenção para a necessidade da reflexão antes de qualquer escolha ou decisão. Independentemente da instância da vida, uma decisão equivocada traz, inevitavelmente, consequências danosas. Acompanhar Jesus sem ter clareza das exigências concretas que isso implica terminará sempre em decepção, constrangimento e frustração pessoal. Também nessa segunda pequena parábola se recorda a necessidade de sentar e refletir, sendo que, dessa vez, o segundo é ainda mais profundo, pois já não se trata de calcular, mas de examinar, o que seria mais correto ter sido traduzido como “aconselhar-se”, considerando a forma verbal empregada na língua original do texto, o grego (aconselhar-se em grego βουλεύομαι - buleuomai). O aconselhamento, ao longo de toda a Bíblia, é apresentado como um verdadeiro dom, uma necessidade indispensável para o ser humano conduzir bem a sua existência.

Após as duas pequenas parábolas, finalmente, Jesus apresenta a terceira condição para o seu seguimento«Do mesmo modo, portanto, qualquer um de vós, se não renunciar a tudo o que tem, não pode ser meu discípulo!» (v. 33). Ora, Jesus quer pessoas completamente livres no seu seguimento. E o apego aos bens sempre foi um dos grandes obstáculos para isso; o fato de ser mencionado por último entre as três condições, sendo preparado pelas duas parábolas, significa que era uma exigência muito desafiadora, talvez mais até do que a primeira, quer é o desapego à família. De fato, a primeira exigência, que compreendia o distanciamento, mais do que físico, sentimental, dos familiares mais próximos, poderia ser cumprida gradativamente e até superficialmente, pois se trata, acima de tudo, de uma atitude interior. Em caso de arrependimento, se poderia voltar ao seio familiar, pedindo perdão pela separação, e ser novamente aceito(a). A renúncia aos bens, pelo contrário, não poderia ser remediada; uma vez renunciando-os, seria para sempre, já que essa atitude consistia em vender tudo o que possuía e distribuir aos pobres. Portanto, essa condição exige uma decisão irrevogável, sendo necessária uma reflexão mais aprofundada e séria, o que justifica a necessidade das duas parábolas como introdução e preparação, tendo em vista o necessário discernimento para a tomada de tal decisão.

Como foi acenado ainda no início, a fórmula conclusiva de cada uma das exigências – não pode ser meu discípulo! – significa que Jesus não está propondo sugestões, mas apresentando condições indispensáveis e inegociáveis para alguém fazer parte do seu discipulado. Diante disso, devemos refletir pessoalmente e comunitariamente se, na situação em que nos encontramos, com o que temos e o que somos, estamos sendo, de fato, discípulos e discípulas de Jesus? A positividade ou negatividade da nossa resposta depende das renúncias e opções que fazemos. É importante questionar se nossas comunidades atuais são formadas por discípulos e discípulas ou apenas por pessoas que acompanham Jesus.

Pe. Francisco Cornélio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN 

REFLEXÃO PARA O 26º DOMINGO DO TEMPO COMUM – LUCAS 16,19-31 (ANO C)

Na liturgia deste domingo – o vigésimo sexto do tempo comum – o evangelho continua sendo tirado do capítulo dezesseis de Lucas, a exemplo ...