Enquanto nos dois primeiros domingos da Quaresma, a liturgia apresentou episódios comuns aos três evangelhos sinóticos (Mateus, Marcos e Lucas): as tentações e a transfiguração, respectivamente. O episódio relatado no evangelho deste terceiro domingo é exclusivo de Lucas – 13,1-9. Com esse texto, a liturgia evidencia o tema principal da espiritualidade quaresmal: a necessidade de conversão. Como esse tema ainda não havia sido tratado diretamente nos evangelhos dos dois primeiros domingos, podemos dizer que somente hoje a liturgia dominical da Quaresma encontra seu foco principal: o chamado à conversão. Partindo dessa constatação, é correto afirmar que o primeiro e o segundo domingo foram verdadeiras introduções, que nos ajudaram a conhecer a identidade de Jesus enquanto Filho de Deus, para, de agora em diante, ouvirmos o que ele tem a nos dizer, conforme as palavras do próprio Deus, o seu Pai, no evangelho do domingo passado: «Este é o meu Filho, o Escolhido. Escutai o que Ele diz!» (Lc 9,35). E, hoje, especificamente, ele nos diz que todos temos necessidade de conversão e de produzir frutos.
Como sempre, é necessário contextualizar o texto lido, situando-o no conjunto do Evangelho para uma compreensão mais adequada. E começamos recordando que a passagem de Lc 13,1-9 faz parte da grande seção do caminho de Jesus com seus discípulos para Jerusalém; essa é a maior seção narrativa do Evangelho de Lucas, compreendendo dez capítulos (Lc 9,51–19,27). Enquanto caminha, Jesus ensina, cura, reza, interage com as pessoas, independentemente da condição social, entra em conflitos e aprofunda a formação dos seus discípulos. Enfim, é no caminho que ele apresenta com mais clareza e profundidade seu projeto de libertação, que visa, antes de tudo, a humanização do mundo. O texto de hoje está inserido numa sequência de ensinamentos após um dos tantos conflitos com os fariseus e mestres da Lei (Lc 11,53; 12,1). Jesus tinha sido convidado por um fariseu para almoçar em sua casa e aceitou o convite (Lc 11,37). Durante a refeição, aconteceu uma ferrenha disputa com o anfitrião e os demais convidados. Esse encontro acirrou ainda mais os ânimos entre Jesus e os fariseus. Logo que saiu da casa do fariseu, Jesus chamou a atenção dos discípulos para terem cuidado com “o fermento dos fariseus” (Lc 12,1). Certamente, essa é uma das maiores precauções que a comunidade cristã deve ter em todos os tempos: ter cuidado para não reproduzir aquilo que Jesus reprovou e condenou em seus tradicionais adversários, sobretudo a concepção de Deus. O evangelho de hoje ajuda a evitar isso, indicando que a necessidade mais urgente de conversão é a ressignificação da imagem de Deus. Assim como os fariseus do tempo de Jesus, muitos segmentos do cristianismo continuam ignorando o Deus Pai que ele veio revelar, preferindo o Deus mercantilista, vingativo e intolerante dos seus adversários.
Olhemos então para o texto, que começa dessa maneira: «Naquele tempo, vieram algumas pessoas trazendo notícias a Jesus a respeito dos galileus que Pilatos tinha matado, misturando seu sangue com o dos sacrifícios que ofereciam» (v. 1). Desta vez, a expressão introdutiva “Naquele tempo” faz parte mesmo do texto, o que é um fato raro, pois, na maioria das vezes, ela é colocada genericamente e, com muita frequência, até atrapalha a compreensão do texto. Nesse versículo, como indicação de tempo, o evangelista emprega o termo “kairós” (καιρός), que significa precisamente o momento oportuno. Jesus estava ensinando às multidões (Lc 12,54), e a maneira como o episódio é introduzido passa a impressão de que ele foi interrompido por algumas pessoas que relataram um acontecimento trágico. Como um bom mestre e catequista, Jesus não monopolizava a palavra quando ensinava; dava espaço para os ouvintes fazerem observações, perguntas, e até críticas. Como mestre de humanização, ele sabia ouvir. Aqui, Lucas revela uma de suas grandes habilidades narrativas: dosar história com teologia. As pessoas que interagem com Jesus trazem notícias de um fato histórico, certamente, embora não haja registro em outras fontes. De fato, somente Lucas fala desse acontecimento, entre os evangelistas, e não há atestação do mesmo em fontes extra-bíblicas. Como Pilatos era conhecido pela crueldade, gostava de humilhar o povo judeu e não perdia uma oportunidade para mostrar a força do império romano, a veracidade do fato mencionado não pode ser descartada. A notícia é de um acontecimento trágico, chocante, não apenas pela matança dos galileus, mas pelo contexto: provavelmente, foram mortos na Páscoa e nas dependências do templo; é o que se deduz da expressão «misturando seu sangue com o dos sacrifícios». Trata-se, portanto, de um fato abominável em todos os sentidos.
Como se sabe, somente os sacerdotes podiam imolar os animais e oferecer os sacrifícios no templo de Jerusalém; porém, na semana da Páscoa, abria-se uma exceção, devido ao grande número de peregrinos oferentes. Assim, os próprios peregrinos eram autorizados a realizar os sacrifícios, pois o número de sacerdotes não era suficiente. Sendo a Páscoa a memória do êxodo e, por isso, uma festa da libertação, ela se tornava um momento propício para motins e movimentos libertários de grupos inconformados com a dupla exploração: a romana e a religiosa, comandada pelo alto clero de Jerusalém. É muito provável que essa matança de Pilatos tenha sido repressão a um desses movimentos. Na época, a sede do procurador romano da Judeia era a cidade de Cesareia, mas durante a Páscoa, ele se transferia para Jerusalém, levando todo o seu aparato militar, com uma dupla finalidade: conter, através da repressão, qualquer revolta popular e, principalmente, humilhar os judeus, mostrando que eles não eram livres, pois era o imperador romano quem mandava neles. O termo “galileus” não designava apenas os habitantes da Galileia, mas era uma expressão pejorativa, designando as pessoas rebeldes, de um modo geral. Isso porque era na Galileia onde mais surgiam movimentos revolucionários, o que contribuía para o movimento de Jesus ser visto com desconfiança pelas autoridades, desde o seu início.
Embora o texto não cite, supõe-se que a notícia da tragédia provocada por Pilatos tenha sido seguida de perguntas sobre o acontecimento e os envolvidos; é o que deduzimos pela sequência da narrativa: «Jesus lhes respondeu: “Vós pensais que esses galileus eram mais pecadores do que todos os outros galileus, por terem sofrido tal coisa?”» (v. 2). Conforme a mentalidade da época, as causas de qualquer catástrofe eram atribuídas ao pecado. Predominava a teologia da retribuição: a ideia de um Deus que punia os pecadores com terríveis castigos, e premiava os bons. Por isso, todo sofrimento e desgraça que acontecia era visto como castigo. É claro que o que Jesus não concordava com essa mentalidade, por isso, imediatamente ele corrige, sem, no entanto, deixar de alertar para a necessidade de conversão: «Eu vos digo que não. Mas se vós não vos converterdes, ireis morrer todos do mesmo modo» (v. 3). Ora, os galileus não foram assassinados por serem pecadores, mas porque Pilatos era, de fato, cruel, o sistema era injusto e desumano. Assim, Jesus corrige uma falsa concepção de Deus, e o evangelista faz uma chamada de atenção para a sua comunidade não promover divisões ilusórias entre as pessoas “boas” e “más”. Todos devem ser acolhidos e a necessidade de conversão também é para todos.
Para reforçar seu ensinamento, Jesus recorda outra tragédia acontecida em Jerusalém: «E aqueles dezoito que morreram, quando a torre de Siloé caiu sobre eles? Pensais que eram mais culpados do que todos os outros moradores de Jerusalém? Eu vos digo que não. Mas, se não vos converterdes, ireis morrer todos do mesmo modo» (vv. 4-5). Também sobre esse acontecimento, não há registros históricos que o comprovem com exatidão, mas certamente estava na memória do povo, e era usado pelos pregadores da época para reforçar a falsa concepção de um Deus punitivo. Siloé era um bairro de Jerusalém, onde se localizava um grande reservatório de água, conhecido na Bíblia como “piscina de Siloé”; como era uma zona estratégica para a cidade, é quase certa a construção de uma ou mais torres nessa área. Ao negar a relação entre o acontecimento trágico e o pecado dos envolvidos, Jesus denuncia, de novo, a instrumentalização da religião para inculcar medo nas pessoas, o que continua acontecendo nos dias atuais, em muitas vertentes do cristianismo.
Nem a crueldade de Pilatos, nem o desabamento da torre, bem como nenhuma outra fatalidade na história, são castigos de Deus para punir os pecadores. Existem governantes cruéis, como Pilatos, acontecem acidentes das mais variadas formas, advém catástrofes naturais, mas nada disso deve ser interpretado como castigo de Deus. Quem disser que tais eventos correspondem à vontade de Deus, não está anunciando o Deus de Jesus. Porém, sabendo que estamos imersos no mundo e na história, estamos sujeitos a tais acontecimentos, daí a importância de levar a sério o convite de Jesus à conversão. Após falar de cada um dos dois acontecimentos recordados, Jesus conclui com uma advertência: «...se não vos converterdes...». Conversão (em grego: μετάνοια – metánoia) não significa uma simples melhora no comportamento ou um avivamento nas devoções, mas uma mudança radical de mentalidade, culminando, obviamente em uma mudança também de comportamento. Na perspectiva do Evangelho, conversão significa assimilar e viver os ensinamentos de Jesus, compreendendo toda a sua radicalidade, para o Reino de Deus se tornar realidade. A necessidade de conversão, portanto, não é para evitar castigos, mas para dar sentido à vida enquanto há tempo. Todos morrem, de modo trágico ou natural, essa é uma verdade incontestável. Porém, como tudo é imprevisível, a conversão não pode ser adiada, uma vez que dela depende o sentido da vida.
Como conclusão, diz Lucas que Jesus contou uma pequena parábola para ilustrar o que estava ensinando e, ao mesmo tempo, provocar os seus interlocutores. O evangelista faz essa recordação também para tranquilizar a sua comunidade, mostrando a paciência de Deus diante da resistência do ser humano no processo lento de mudança de mentalidade, ou seja, de conversão, bem como como advertência diante das frequentes distorções da imagem de Deus e do risco de esterilidade na comunidade. Eis a parábola: «Certo homem tinha uma figueira plantada na sua vinha. Foi até ela procurar figos e não encontrou. Então disse ao vinhateiro: “Já faz três anos que venho procurando figos nesta figueira e nada encontro. Corta-a! Porque está inutilizando a terra?”» (vv. 6-7). A imagem da figueira é clássica na cultura bíblica; inclusive, é a primeira árvore identificada pelo nome na Bíblia: segundo Gn 3,7, «Quando Adão e Eva perceberam que estavam nus, se cobriram com folhas de figueira». Junto com a videira e a oliveira, a figueira está entre as árvores mais apreciadas em Israel, devido à importância de seus frutos para a cultura e a economia da região. Por isso, são frequentemente usadas na Bíblia como imagens do povo e das instituições religiosas. Na literatura profética, prioriza-se mais a videira e a figueira (Os 2,14; Jer 5,17; Mq 7,1), enquanto a literatura sapiencial emprega mais a imagem da oliveira. Lucas, bom conhecedor das tradições proféticas de Israel, utiliza duas imagens ao mesmo tempo, nesta pequena parábola: a figueira está plantada dentro de uma vinha. Ao falar de uma figueira estéril, Jesus denuncia a situação de esterilidade da religião judaica na sua época, e Lucas adverte a sua comunidade e seus leitores de todos tempos a não reproduzirem aquele modelo de religião.
Como são poucos, os personagens da parábola são facilmente identificáveis: o dono da vinha onde a figueira está plantada é Deus, e o vinhateiro é o próprio Jesus. Num primeiro momento, Jesus apresenta o proprietário com as características do Deus que o judaísmo do seu tempo anunciava: alguém que vem para acertar as contas, disposto a castigar quem não correspondesse aos seus planos, cortando a figueira. Mas Jesus faz isso por ironia, denunciando que se Deus fosse mesmo como a religião pregava, todos já teriam perecido, pois eram completamente estéreis. No segundo momento, Jesus mostra a intercessão do vinhateiro junto ao proprietário e, assim, a verdadeira face de Deus e Pai, um Deus que escuta: «Ele, porém, respondeu: “Senhor, deixa a figueira ainda este ano. Vou cavar em volto dela e colocar adubo. Pode ser que venha a dar fruto. Se não der, então tu a cortarás”» (vv. 8-9). O pedido para a figueira ficar mais um ano é a oportunidade dada à humanidade de ouvir a Boa-Nova de Jesus. Com isso, o evangelista remete ao início da missão de Jesus, quando disse que ele veio anunciar «um ano da graça do Senhor» (Lc 4,19); não se trata de um ano cronológico, mas de um tempo favorável e propício para a libertação e humanização de todo o mundo, e sempre disponível. Todo dia é um ano a mais que o Senhor proporciona a cada pessoa, como oportunidade de encontro com o seu amor. E é a acolhida desse amor que gera a verdadeira conversão.
Com essa parábola, Jesus se opõe ainda mais à teologia tradicional vigente na sua época, se distanciando, inclusive da pregação de João Batista, o seu mentor. Ora, a paciência com a figueira estéril contrasta com a pregação de João, o qual tinha dito que, com a chegada do messias, «toda árvore que não produzir fruto será cortada e queimada» (Lc 3,9). Jesus mostra o contrário: não veio para cortar árvores infrutíferas, mas para adubá-las e fazê-las produzir frutos. Embora denunciador, o evangelho de hoje é, muito mais, portador de esperança. O ser humano tem sempre diante de si “mais um ano”, porque Deus não desiste dele. Porém, sabendo dos riscos das fatalidades da vida, os dois casos citados no início são uma prova e servem de alerta, fica claro que a conversão é uma necessidade urgente e inadiável, pois dela depende a construção do Reino. Deus dá todo o tempo, mas o ser humano não conhece a durabilidade desse tempo. Por isso, é urgente aproveitar esse “ano a mais” e passar a produzir frutos, especialmente de amor e justiça, os sinais mais evidentes de conversão.
A parábola não tem conclusão: ninguém sabe se a figueira produziu figos ou se continuou estéril. A conclusão, na verdade, deve ser a vida de cada um e cada uma, entre ouvintes de Jesus e leitores do Evangelho de Lucas. O objetivo de Jesus e do evangelista foi provocar a reflexão em cada pessoa sobre si mesma. Cada um e cada uma sabe e conhece seus frutos, bem como a necessidade de ser “adubado”(a) pelo Evangelho. Havia entre os interlocutores de Jesus, e também na comunidade de Lucas, a tendência de separar os “bons” e os “maus”, reforçando a errônea concepção de um Deus que premia ou castiga. Com o exemplo do vinhateiro, Jesus anuncia a misericórdia desse Deus, mas reforça a necessidade de conversão: o “ano a mais” é a oportunidade que o ser humano tem a cada dia de dar sentido à sua vida, assimilando os ensinamentos do Evangelho, pautando a sua vida no amor, na justiça e na solidariedade; são esses os frutos que ele espera de cada um e cada uma, e o que é necessário para a construção do Reino de Deus.
Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN