segunda-feira, junho 23, 2025

REFLEXÃO PARA A SOLENIDADE DA NATIVIDADE DE SÃO JOÃO BATISTA - LUCAS 1,57-66.80

 


A liturgia deste dia contempla a Solenidade da natividade de São João Batista. O texto evangélico proposto é Lc 1,57-66.80, relato que contempla o nascimento, a circuncisão e a imposição do nome do santo precursor de Jesus Cristo. Depois de Jesus, João Batista é o personagem com mais dados biográficos oferecidos pelo Novo Testamento, o que evidencia a importância e a grandeza da sua missão. Quem mais contribuiu para isso foi o evangelista Lucas, como percebemos no Evangelho de hoje. Até mesmo quando os apóstolos consolidaram a pregação sobre Jesus, fizeram questão de recordar o Batista, como recorda o próprio Lucas, no segundo volume de sua obra: «Jesus de Nazaré, começando pela Galileia, depois do batismo proclamado por João» (At. 10,37). Trata-se, portanto, de um personagem relevante da história da salvação, sendo necessário passar por ele para compreender e anunciar a missão do próprio Jesus.

De fato, a figura de João é central na história da salvação, sendo ele apresentado como o elemento de transição da primeira para a segunda aliança pelo próprio Jesus, ao declarar: «A lei e os profetas até João. Daí em diante, é anunciado o Evangelho do Reino de Deus» (Lc 16,16). Em outra ocasião, também Jesus o proclamou como o maior entre os nascidos de mulher (Mt 11,11; Lc 7,28). Portanto, se trata de um personagem que não poderia passar despercebido. E, liturgicamente, a Igreja compreendeu bem isso, reservando-lhe duas datas no calendário: a sua natividade, celebrada hoje (24 de junho), e o seu martírio, celebrado em 29 de agosto. Chama a atenção que o primeiro evento narrado por Lucas em seu evangelho é o anúncio do nascimento de João (1,5-23), apresentando-o desde o início com as características de profeta e como um prodígio de Deus para a humanidade, recordando que seus pais, Zacarias e Isabel, eram anciãos e estéreis, já inaptos à procriação. Nesse casal, descrito como justo (Lc 1,6) o evangelista viu a situação de Israel: mesmo observando minuciosamente os preceitos da lei, faltava alegria e sinal de vida neles!

Aquela esterilidade significava a decadência da Lei e da religião por eles observada, o judaísmo do segundo templo. Por mais que se esforçassem, os condicionamentos sociais, culturais e religiosos não permitiam que vida nova brotasse daquela situação. Somente uma intervenção de Deus poderia mudar o rumo daquela história. Fiel às suas promessas, Deus intervém, inaugurando uma nova fase na história da salvação, fazendo surgir um «profeta do altíssimo» (cf. 1,76).  Assim como os profetas do Antigo Testamento previam um “resto de Israel” fiel e justo, o evangelista Lucas identificou esse resto nos personagens que ilustram o seu chamado “evangelho da infância” (capítulos 1 e 2 de Lucas): Zacarias e Isabel, Maria e José, Simeão e Ana. Neles, as promessas de Deus, desde os patriarcas, chegam ao cumprimento. Por mais que Israel estivesse esgotado e estéril, era dele que a salvação brotaria. Lucas compôs a sua dupla obra (Evangelho e Atos dos Apóstolos) segundo a dinâmica promessa-cumprimento. O nascimento de João é, portanto, o início do cumprimento.

Olhemos, pois, para o texto: «Completou-se o tempo da gravidez de Isabel, e ela deu à luz um filho» (v. 57). Com a clássica e conhecida expressão bíblica “completou-se o tempo”, o evangelista associa o nascimento de João às promessas de Deus. Não se trata apenas de uma gravidez concluída e uma criança a mais no mundo; significa a conclusão de uma etapa na história da salvação e a abertura de uma nova. Israel passou séculos gerando profetas e agora chegou o profeta que, finalmente, contempla o Messias. Por isso, a gravidez de Isabel significa muito mais do que a gestação de uma criança; é a geração de um tempo novo, de uma nova história. Daí que o nascimento de João comporta uma dimensão comunitária, pública; por isso, «os vizinhos e parentes ouviram dizer como o Senhor tinha sido misericordioso para com Isabel, e alegraram-se com ela» (v. 58). Aqui, o evangelista introduz dois temas centrais da sua grande obra (Evangelho e Atos): a misericórdia e a alegria, duas dimensões e características indispensáveis na comunidade cristã. Os parentes e amigos representam a abertura da salvação que, aos poucos, Lucas vai mostrando. Isso mostra que o nascimento de João é recebido como uma ação favorável de Deus a um povo, a uma comunidade, e não apenas a um clã.

Sendo Isabel e Zacarias, «justos e irrepreensíveis observantes da Lei» (1,6), ou seja, pessoas de comportamento reto, que observavam a Lei e cumpriam boas obras em favor do próximo, atentas aos mandamentos da religião que praticavam. Pessoas justas, segundo a mentalidade bíblica, eram aquelas que ajudavam o próximo, que refletiam com a vida a misericórdia de Deus, e a misericórdia é, acima de tudo, um agir favorável em prol dos mais necessitados; ser observantes da Lei significa a fidelidade a Deus e aos seus mandamentos. Por isso, «no oitavo dia, foram circuncidar o menino, e queriam dar-lhe o nome de seu pai, Zacarias» (v. 59)Querendo simplificar a história, o evangelista faz uma pequena confusão: o nome da criança era dado logo no nascimento, e não no momento da circuncisão, ao oitavo dia. Também não era costume dar o nome do pai, e sim o nome do avô da criança. Mais uma vez, o evangelista ressalta a dimensão comunitária do nascimento de João: a comunidade – parentes e amigos – participa da sua vida, assim como o seu ministério profético estará a serviço de todo o povo.

Dar o nome à criança era atributo exclusivo do pai, de acordo com a tradição bíblica e com as tradições de outros povos da antiguidade. É importante perceber neste o papel inovador da mãe, ressaltado por Lucas: «A mãe, porém, disse: ‘Não! Ele vai chamar-se João!» (v. 60). Desde o início do seu evangelho, Lucas pensa a mulher como sujeito com voz e poder de decisão, rompendo com as tradições e condicionamentos da época. Esse “não!” de Isabel representa uma verdadeira revolução na tradição bíblica. É uma inovação sem precedentes na história. Até então, não se tinha visto uma decisão que representasse um empoderamento tão forte da mulher. E isso causou perplexidade, obviamente, como observa o evangelista: «Os outros disseram: ‘Não existe nenhum parente teu com esse nome!’» (v. 61). Os outros aqui, são os parentes e vizinhos; apegados à Lei, não aceitam a novidade que começa a se configurar; querem que as coisas permaneçam como sempre, com a mulher continuando sem direito de opinar e de tomar decisões. É o Israel necessitado de conversão, a quem João se dirigirá em seu ministério e, posteriormente, Jesus. Nesse sentido, Isabel é pioneira na desconstrução da mentalidade patriarcal. A imposição do nome João já tinha sido indicada pelo anjo no anúncio a Zacarias (Lc 1,13), e isso mostra a sintonia de Isabel aos propósitos de Deus: ela não necessitou ouvir de um anjo para acolher e cumprir a sua vontade; os próprios acontecimentos da vida lhe ensinaram a interpretar e cumprir a vontade de Deus. João é um nome hebraico que significa “Deus é favorável” (significados correlatos: Deus é clemente; Deus é misericordioso; agraciado por Deus).

Com a mentalidade ainda fechada e sem aceitar a novidade representada pelo não de Isabel, os parentes e vizinhos recorrem à autoridade masculina, rejeitando o protagonismo da mulher, como mostra o evangelista: «Então fizeram sinais ao pai, perguntando como queria que o menino se chamasse. Zacarias pediu uma tabuinha, e escreveu: ‘João é o seu nome’. E todos ficaram admirados» (vv. 62-63). Zacarias tinha ficado sem poder falar, por não crer no anúncio do anjo (Lc 1,20), por isso se comunicava por meio de sinais. Ao escrever como o menino seria chamado, ele ratifica a decisão de Isabel, e ambos confirmam a promessa de Deus através do anjo. Todos ficaram admirados por contemplar Deus agindo na história, cumprindo as antigas promessas, porém, de um jeito completamente novo, e com novos sujeitos. Embora Zacarias fosse sacerdote, não pertencia às classes abastadas da hierarquia social de Israel; servia no templo por no máximo duas semanas ao ano, com uma função meramente litúrgica, sem influência política nem ideológica, ao contrário dos sumos sacerdotes que eram os verdadeiros detentores de poder em Israel, tanto na política quanto na economia.

Como o anjo tinha afirmado que Zacarias só voltaria a falar quando o menino nascesse, a promessa foi cumprida e, «no mesmo instante, a boca de Zacarias se abriu, sua língua se soltou, e ele começou a louvar a Deus» (v. 64). O ápice do louvor a Deus proclamado por Zacarias é o seu cântico, o Benedictus, o qual a liturgia de hoje omite, mas é bastante conhecido. A transformação de Zacarias, da incredulidade e mudez ao louvor a Deus, é a passagem que, inicialmente, Israel e depois a humanidade inteira, devem fazer: reconhecer e aceitar a ação misericordiosa de Deus em seu favor e abrir-se à conversão. Zacarias se torna, assim, o primeiro convertido pela missão do Batista de endireitar os caminhos do Senhor. Diante de tudo isso, a reação dos vizinhos não poderia ser outra, senão de espanto: «E todos os vizinhos ficaram com medo, e a notícia espalhou-se por toda a região montanhosa da Judeia» (v. 65). Aqui, a tradução litúrgica traz um equívoco, ao optar pela palavra medo ao invés de temor. Na verdade, a reação de quem contempla uma intervenção de Deus é de temor, o que significa mais admiração e respeito do que medo, propriamente. E Lucas não perde a oportunidade de mostrar a publicidade e difusão da ação de Deus na história; por isso, diz que a notícia do nascimento de João «espalhou-se por toda a região montanhosa». Faz parte de suas estratégias literárias e teológicas mostrar a repercussão dos eventos narrados. Aqui ele já antecipa o propósito de suas duas obras (Evangelho e Atos): apresentar a salvação rompendo limites e barreiras para, um dia, atingir até os confins da terra.

Além de mencionar o espalhar-se da notícia, como antecipação da “Boa-Notícia” por excelência, que é a pessoa de Jesus, o evangelista destaca o seu efeito: «E todos os que ouviam a notícia, ficavam pensando: ‘O que virá a ser este menino?’ De fato, a mão do Senhor estava com ele» (v. 66). As notícias das maravilhas de Deus geram repercussão em quem escuta, não são notícias vagas; causam efeitos porque carregam em si a força inerente à Palavra, que é uma Palavra performativa. O questionamento sobre o futuro do menino reforça o superdimensionamento da sua missão. Se seus pais, anciãos e estéreis, desejavam um filho simplesmente para «deixarem de passar vergonha perante os homens» (Lc 1,25), pois a esterilidade era sinal de humilhação para um casal, inclusive, era considerada um castigo divino. E Deus fez muito mais por aquele casal, dando-lhe não apenas um filho, mas um profeta, com uma missão especial de testemunhar o Messias e preparar o seu caminho. Na verdade, o menino recém-nascido tinha pela frente uma missão inconfundível na história, a ponto de ser difícil de catalogá-la. Até mesmo no auge da sua pregação, era difícil saber quem era João Batista; até com o messias ele foi confundido (Lc 3,15), devido à sua fidelidade a Deus e a radicalidade com que vivia a sua missão. Com a expressão «a mão do Senhor estava com ele», o evangelista reforça a escolha e origem divina de sua futura missão de profeta.

Na conclusão do texto, é apresentada uma síntese da vida de João, da infância ao início da sua vida pública: «E o menino crescia e se fortalecia em espírito. Ele vivia nos lugares desertos, até o dia em que se apresentou publicamente a Israel» (v. 80). Aqui está a prova de que a mão do Senhor estava realmente com ele. O evangelista está preparando o leitor para apresentar, posteriormente, o seu ministério de precursor do Messias. Paralelo ao crescimento físico, ele se preparava para a missão. A vida no deserto, embora marcada pelas dificuldades, é ideal para a relação com Deus. Seu pai era sacerdote do templo e, por isso, o ambiente familiar não seria favorável a uma educação ascética e crítica em relação às instituições de Israel. O deserto significa o lugar da obediência a Deus, do diálogo, da oração; enfim, viver no deserto é ser educado por Deus, resgatando o verdadeiro sentido da lei: instrução para o povo. No ambiente sacerdotal ligado ao templo ele receberia uma educação reprodutora para, no futuro, apenas substituir o pai nas funções litúrgicas, o que seria a negação da sua identidade profética. Viver nos lugares desertos, portanto, significa a necessária ruptura com as estruturas da época, para acolher a novidade de Deus.

Mais do que recordar um grande personagem, o evangelho de hoje constitui um verdadeiro convite para retornar ao que, de fato, é essencial na vivência da fé, procurando compreender os sinais de Deus na história e a necessidade de aderir aos seus propósitos. A fidelidade a Jesus e seu Evangelho implica aceitar os seus valores, acolher a sua misericórdia e a coragem de romper com todos os possíveis entraves à difusão do seu amor. A ousadia de Isabel, apresentada por Lucas, junto com a vida e o ministério do Batista, são sinais autênticos da necessidade contínua de conversão para acolher o Evangelho com suas exigências. Se a missão do Batista foi preparar os caminhos do Senhor, só tem sentido celebrá-lo com disposição para seguir esses caminhos!

Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

sábado, junho 21, 2025

REFLEXÃO PARA O 12º DOMINGO DO TEMPO COMUM – LUCAS 9,18-24 (ANO C)

 


Com a retomada do tempo comum, retoma-se também a leitura semi-contínua do Evangelho de Lucas, como prescreve a liturgia dominical do Ano C. Por tratar-se já do décimo segundo domingo, a leitura do referido Evangelho está bastante avançada. O texto lido hoje – Lc 9,18-24 – encontra-se já no final da primeira grande seção narrativa da obra, que corresponde ao ministério de Jesus na Galileia (Lc 4,14–9,50). É importante considerar este dado para compreender adequadamente o episódio de hoje que, embora curto, possui uma riqueza extraordinária, pois concentra elementos importantes para a compreensão da identidade e missão de Jesus, bem como do seu discipulado em todos os tempos. Trata-se de um episódio comum aos três evangelhos sinóticos (Mt, Mc e Lc), embora cada um deles o apresente com características próprias, que correspondem às respectivas intenções teológicas e ao plano literário de cada obra. Hoje, particularmente, nos interessa o contexto do episódio na obra de Lucas, como mostraremos a seguir.

O nono capítulo do Evangelho de Lucas possui uma importância singular, pois marca a transição entre as duas grandes seções narrativas da obra, que são, respectivamente, o ministério de Jesus na Galileia (Lc 4,14–9,50) e o longo caminho em direção a Jerusalém (Lc 9,51–19,44). Este capítulo é iniciado com o envio missionário dos Doze, de povoado em povoado para proclamar o Reino de Deus e libertar (curar) as pessoas (9,1-6). A repercussão da missão dos Doze foi tanta que chegou aos ouvidos de Herodes, deixando-o confuso e também curioso sobre a identidade de Jesus (9,7-9). O retorno dos discípulos foi marcado pelo entusiasmo, fazendo aumentar ainda mais a multidão que acompanhava Jesus, culminando com o episódio da partilha dos pães (9,10-17). O entusiasmo forte, tanto dos discípulos, pelo que tinham feito na missão (cf. Lc 9,10), quando do povo que estava se beneficiado dos milagres, foi um alerta para Jesus. Em todos os três sinóticos, este episódio de hoje está relacionado à partilha dos pães, mas somente em Lucas possui relação direta também com a missão dos doze. O texto pode ser dividido em três pequenas unidades temáticas distintas, embora interligadas: a) a pergunta de Jesus sobre a sua própria identidade, cuja resposta mais completa é a confissão de Pedro (vv. 18-21); b) o primeiro anúncio da paixão (v. 22); as exigências para o discipulado, que se tornam profecia da identidade cristã no mundo (vv. 23-24).

A situação criada desde envio dos Doze até a partilha dos pães levou Jesus à reflexão. E os momentos de reflexão de Jesus, no Evangelho de Lucas, são sempre marcados pela oração, quando ele expressa a sua intimidade e confiança no Pai. Por isso, para o autor do Terceiro Evangelho, todos os momentos marcantes da vida de Jesus são precedidos pela oração (6,12; 9,28; 11,1-2; 22,40ss). A primeira afirmação do texto de hoje, portanto, é um indicativo da importância que este episódio possui, pois assim começa: «Jesus estava rezando num lugar retirado, e os discípulos estavam com ele. Então Jesus perguntou-lhes: “Quem diz o povo que eu sou?”»  (v. 18). De início, é importante recordar uma primeira particularidade deste episódio em Lucas, além da oração: ele não localiza precisamente o acontecimento, como fazem Marcos e Mateus, que identificam a cena na região de Cesareia de Filipe. Mais importante do que o lugar geográfico, para Lucas, é que a situação favoreça o clima de oração. Como se sabe, a oração é o meio para cultivar a intimidade com o Pai, por isso, é instrumento de humanização, pois, quanto mais próximo de Deus estiver a pessoa, mais humana se torna. Isso torna a atitude orante de Jesus paradigmática, expressando uma necessidade concreta para a vida de seus discípulos em todos os tempos. De fato, para Jesus, as relações com Deus e com o próximo são inseparáveis. Por isso, da oração, que é intimidade com o Pai, Ele passa a um diálogo confidencial, sincero e transparente com os discípulos, seus amigos.

Como tinham sido enviados há pouco tempo para anunciar o Reino de Deus – o projeto de vida de Jesus –, os discípulos também ouviram as impressões do povo a seu respeito. Por isso, Jesus quis saber qual a imagem que o povo tinha dele até então. É claro que a preocupação de Jesus não era com sua popularidade, mas com a compreensão da sua mensagem, a assimilação do seu projeto. Ora, até aquela ocasião, Jesus já tinha feito muita coisa, tendo andado bastante pelas cidades e povoados da Galileia, anunciando o Reino de Deus com palavras e gestos de libertação, humanizando tantas pessoas e situações, mediante o seu amor. Era justo que ele quisesse saber como estava sendo acolhido e compreendido. E as respostas não demonstram fracasso, mas são insuficientes: «Eles responderam: “Uns dizem que és João Batista; outros que és Elias; mas outros acham que és algum dos antigos profetas que ressuscitou”» (v. 19). Como se vê, essa resposta mostra que, em geral, o povo tinha uma boa impressão sobre Jesus; o considerava um grande profeta, e os profetas constituíam o que tinha surgido de mais autêntico na história religiosa de Israel, dentre todas as figuras de mediação. Porém, aplicada a Jesus, a imagem do profeta é insuficiente e até equivocada, pois ele é muito mais do que profeta. Ora, tanto João Batista quanto Elias foram profetas reformadores. João Batista, com a sua austeridade, preferiu isolar-se no deserto, ao invés de enfrentar diretamente as estruturas do seu tempo; inclusive, acreditava que apenas a passagem pelo rito do batismo já era suficiente para uma verdadeira conversão. Elias era muito zeloso, mas fanático e intolerante, pregava a violência e o extermínio dos adversários (1Rs 18,40; 19,1). Colocar Jesus nessa linha é um grande equívoco, inclusive, porque ele não veio propor reformas, mas uma mudança radical de mentalidades e de estruturas, na sociedade, começando pela religião.

Como os discípulos já tinham feito um longo percurso com Ele, é de se esperar que tivessem uma visão mais aprofundada do que o povo a seu respeito. Por isso, «Jesus perguntou: “E vós, quem dizeis que eu sou?” Pedro respondeu: “O Cristo de Deus”» (v. 20). Da resposta dos discípulos, Jesus saberia como tinha sido o anúncio deles, enquanto estiveram em missão. Isso torna a questão ainda mais relevante. Pedro responde em nome de todo o grupo; a sua resposta é coletiva, sintetiza a opinião e a fé da comunidade. Que o povo conhecesse Jesus apenas superficialmente, seria compreensível, mas dos discípulos esperava-se que o conhecessem mais verdadeiramente, ou seja, de modo mais profundo. Formalmente, a resposta de Pedro é correta, mas é suficiente também; Jesus é, de fato, o Cristo, e veio de Deus; confessá-lo assim é reconhecê-lo como o messias esperado. Ele é o messias sim, mas não conforme as expectativas do seu povo. O messias esperado pelos judeus era um personagem glorioso, um guerreiro nacionalista, alguém que iria restaurar o reino davídico-salomônico com o uso da força, do poder e da violência. E Jesus não veio para restaurar a realeza em Israel, mas para instaurar o Reino de Deus. Sua mensagem não é direcionada a um povo apenas, mas a toda a humanidade. Contudo, é compreensível que Pedro e os demais discípulos ainda estivessem condicionados à mentalidade antiga do seu povo. A mudança de mentalidade, indispensável para compreender e acolher a mensagem de Jesus, é um processo, aliás, um caminho. E ainda faltava muito a ser percorrido.

Conhecendo a mentalidade dos discípulos, «Jesus proibiu-lhes severamente que contassem isso a alguém» (v. 21). É importante reconhecer a relevância dessa “proibição” para o discipulado de outrora e de hoje. Jesus não manda somente anunciar, mas manda também calar. A comunidade deve procurar todos os meios eficientes para o anúncio do Reino chegar a todas as pessoas e em todos os lugares; mais tarde, Jesus vai ordenar que os discípulos deverão pregar até sobre os telhados (Lc 12,3), mas quando o anúncio é distorcido, quando há proselitismo, quando há pretensões de glória e poder, é necessário calar. O desejo de glória e poder estava implícito na resposta de Pedro. Por isso, Jesus o proibiu de anunciá-lo daquela forma. A urgência da evangelização, em qualquer época, não pode levar a comunidade a anunciar o Evangelho de qualquer forma, sem antes conhecê-lo em profundidade, sem criar a devida intimidade com ele. Anunciar Jesus distorcendo ou omitindo a essência libertadora da sua mensagem é mais danoso do que mesmo o silêncio. Talvez, essa consciência seja um dos elementos de mais urgência que o evangelho de hoje evidencia e, infelizmente, passa quase despercebida. Os instrumentos para o anúncio têm se multiplicado cada vez mais, com o avanço da tecnologia e o advento de novas demandas. Contudo, o mais importante no anúncio é a convicção e o conhecimento da verdadeira identidade de Jesus de Nazaré. São muitos os riscos de instrumentalização e distorção da sua mensagem. Muitas vezes, a imagem de Jesus que é anunciada não corresponde à do Nazareno que morreu de tanto amar. E amou lutando, humanizando, libertando.

Diante da compreensão ainda não muito clara que os discípulos tinham da sua identidade messiânica, Jesus acrescentou, a modo de esclarecimento: «O Filho do Homem deve sofrer muito, ser rejeitado pelos anciãos, pelos sumos sacerdotes e doutores da Lei, deve ser morto e ressuscitar no terceiro dia» (v. 22). Temos aqui uma espécie de complemento e correção à resposta de Pedro. Com essa afirmação, Jesus faz a sua primeira grande autorrevelação, deixando clara a especificidade da sua messianidade. Com isso, Ele antecipa o seu destino dramático, fazendo o primeiro dos três anúncios da paixão (9,22; 9,43-45; 18,31-34). Esses anúncios são formas de dizer que Ele não é um Messias conforme as expectativas do povo e da própria religião, que era quem controlava a mentalidade do povo. Um messias sofredor era inadmissível para a tradição. Por isso, Ele irá repetir bastante este anúncio, pois não era fácil de ser assimilado. Ele deverá ser morto porque levará a cumprimento o projeto do Pai. Obviamente, não era a vontade do Pai que seu Filho fosse assassinado tão cruelmente como foi. Mas, a vontade de Deus é que seu Reino se instaure na terra, mesmo que isso custe o sangue do seu Filho. A morte de Jesus na cruz, portanto, não é predestinação, mas consequência de suas opções, marcadas sempre pela fidelidade aos desígnios do Pai que o enviou; é fruto da cobiça e da maldade humana, sobretudo das lideranças religiosas, que não aceitavam um messias tão cheio de amor e próximo das pessoas, sobretudo das mais necessitadas. Mas o Pai reverte essa situação em salvação para a humanidade, com a ressurreição. Para Lucas, os responsáveis pela morte de Jesus são as autoridades religiosas. Inclusive, os autores da violência que ele sofrerá na paixão são claramente mencionados, são os grupos componentes do sinédrio, o máximo órgão jurídico de Israel: anciãos, sacerdotes e doutores da Lei. Essas categorias simbolizam o ter, o poder e o saber, tudo aquilo que foi prometido por satanás no episódio das tentações, mas Jesus rejeitou (Lc 4,1-13).

Tendo esclarecido que não é um messias conforme as expectativas do povo e nem mesmo dos seus discípulos, Jesus também esclarece quais são as exigências básicas para o seu seguimento. Ora, Ele está terminando o seu ministério na Galileia; em pouco tempo irá iniciar o caminho para Jerusalém, onde viverá o drama da paixão. Para continuarem no seu seguimento, é necessário que os discípulos tenham clareza do destino e dos riscos que estão correndo, como seguidores de um messias ao revés. De fato, a messianidade revelada por Jesus é todo contrário do que esperavam. Por isso, o esclarecimento: «Então chamou a multidão com seus discípulos e disse: “Depois Jesus disse a todos: “Se alguém me quer seguir, renuncie a si mesmo, tome sua cruz a cada dia, e siga-me”» (v. 23). Antes de tudo, Jesus deixa claro que o discipulado é uma adesão pessoal e livre: «se alguém me quer seguir»; Ele não obriga e nem impõe; apenas propõe. E o seguimento exige rupturas. E a primeira ruptura é com a própria pessoa. Renunciar a si mesmo não significa odiar-se, mas é deixar de lado o egoísmo e todas as convicções pessoais que não estejam em sintonia com a mensagem libertadora do Evangelho; pretensões de poder, conquista e bem-estar pessoal, devem ser deixadas de lado. A cruz de cada dia corresponde às consequências de tal escolha. A cruz, como a mais temida das penas na época, era sinal de perigo; era a pena reservada aos considerados desordeiros, subversivos; com isso, Jesus deixa claro que os seus discípulos, à medida em que viverem o Evangelho com fidelidade, estarão em perigo constante, pois as opções do Evangelho contradizem os pretensões dos detentores de poder deste mundo, o que torna, inevitavelmente, os seus autênticos discípulos em subversivos, pessoas consideradas perigosas para o sistema. Também quanto ao tomar a cruz, o de Lucas se destaca em relação aos demais evangelhos: somente nele se diz que a cruz deve ser tomada a cada dia, ou seja, é uma realidade do cotidiano, não um evento e muito menos um adorno; é a situação cotidiana de quem assume com seriedade o seguimento de Jesus.

O último versículo é uma profecia em forma de provérbio, na qual são reforçadas as exigências para o discipulado, com suas consequências: «Pois quem quiser salvar a sua vida, vai perdê-la; e quem perder a sua vida por causa de mim, esse a salvará» (v. 24). Há aqui um jogo de palavras, recurso retórico bastante usado por pregadores itinerantes, e neste, especificamente, são contrapostos os verbos salvar e perder à luz da lógica reversa da messianidade de Jesus. Já na época da redação do Evangelho de Lucas, os cristãos eram considerados pessoas que tinham perdido a vida, conforme a lógica do sistema vigente, devido às renúncias que tinham feito e à disposição de abraçar a cruz como consequência das opções assumidas. Abrir mão de uma mentalidade individualista, deixando de lado projetos e ambições pessoais para viver a utopia do Reino, ou seja, aderir a um projeto igualitário, com relações gratuitas e movidas pelo amor, era visto como perda e loucura. Para Jesus, contudo, quem faz isso salva a sua vida, quer dizer, dá sentido à existência. A salvação não é simplesmente a preservação ou repouso eterno da alma, mas a vida e a mensagem libertadora de Jesus, o salvador. Se salva, portanto, quem assimila essa mensagem e faz dela vida, deixando-se humanizar por meio dela.

Somos convidados hoje, de modo especial, a procurar conhecer cada vez mais a identidade autêntica de Jesus, para poder continuar no seu seguimento. Segui-lo é confrontar-se com as estruturas do mundo que impedem a realização, desde já, do Reino de Deus. O seguimento e o anúncio devem ser frutos de uma relação de intimidade com Ele e com o Pai. Sem convicção e conhecimento da sua pessoa, o anúncio tende a ser distorcido.

 Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

sábado, junho 14, 2025

REFLEXÃO PARA A SOLENIDADE DA SANTÍSSIMA TRINDADE – JOÃO 16,12-15 (ANO C)



No primeiro domingo depois de Pentecostes, a Igreja celebra a solenidade da Santíssima Trindade. Os textos bíblicos empregados nesta solenidade se alternam conforme a dinâmica do ciclo litúrgico. Neste ano, por ocasião do ciclo litúrgico C, é Jo 16,12-15. Ao contrário das solenidades pascais, instituídas desde os primeiros séculos do cristianismo, essa festa já foi introduzida no calendário litúrgico em um período mais tardio. Em alguns países, começou a ser celebrada ainda por volta do séc. oitavo, mas só foi instituída oficialmente como festa universal pelo papa João XII, já no ano de 1334, como resposta a alguns movimentos heréticos que negavam a divindade de Jesus e/ou do Espírito Santo. Nela, recordamos o mistério da comunhão de amor que une o Pai, o Filho e o Espírito Santo, a Trindade Santa, em cujo nome somos batizados, batizadas e, consequentemente, salvos e salvas. É muito significativo que esta solenidade seja celebrada logo no primeiro domingo após Pentecostes. Como se sabe, em Pentecostes acontece o verdadeiro nascimento da Igreja. Desse modo, a Solenidade da Santíssima Trindade vem indicar que toda a ação da Igreja é trinitária, a começar pelo batismo, que se celebra em nome do Pai, e do Filho e do Espírito Santo. Portanto, é em nome da Santíssima Trindade que ingressamos e participamos da comunidade cristã. Isso faz da comunidade o lugar privilegiado de comunhão com o Deus que é também comunidade. Como sempre, a nossa reflexão será pautada exclusivamente a partir do evangelho, sem levar em consideração as afirmações dogmáticas a respeito da Santíssima Trindade.

O contexto do Evangelho de hoje ainda é o da última ceia, ambientada no cenáculo em Jerusalém, e vivenciada por Jesus com seus discípulos, às vésperas da Páscoa. Como já afirmamos em outras ocasiões, pois durante quase todo o tempo pascal o evangelho dos domingos foi tirado desse mesmo contexto, a ceia no Quarto Evangelho não significa apenas o consumo de alimentos, nem a vivência de um rito, tampouco uma mera confraternização. Para a comunidade joanina a ceia é autorrevelação de Jesus, sendo o momento mais forte da sua catequese. Por isso, conforme o respectivo evangelho, foi na ceia que Jesus apresentou o seu “testamento”, como é convencionalmente chamado o seu longo discurso de despedida, do qual faz parte o evangelho de hoje. A centralidade da ceia em João já é evidenciada pelo amplo espaço narrativo que ocupa: são cinco capítulos (Jo 13 –17), totalizando cento e cinquenta e cinco versículos, o que corresponde a um quarto de todo o Evangelho. Esse momento foi iniciado com o lava-pés (13,1-15), e continuado pelo discurso de Jesus, com algumas interrupções dos discípulos (13,36-38; 14,5.8.22). Jesus sabia do que estava para acontecer: em pouco tempo, seria condenado à morte; os discípulos também imaginavam o que estava para acontecer, embora não tivessem ainda tanta clareza. Havia um clima de tensão e medo entre os discípulos, o que era inevitável para as circunstâncias. Por isso Jesus procurou tranquilizá-los em diversos momentos (14,1.27; 16,6.22). Por cinco vezes, durante o discurso, Jesus prometeu enviar o Espírito Santo quando retornasse para o mundo do Pai (14,16-17.26; 15,26; 16,7-8.13), de modo que os discípulos não permaneceriam sozinhos, pois através do Espírito, a presença de Jesus se eternizaria no meio deles. O Evangelho de hoje contém a quinta e última promessa do Espírito Santo.

Durante o seu ministério, Jesus apresentou todo o seu programa aos discípulos, ou seja, o seu “Evangelho”, compreendendo palavras e sinais; não escondeu nada, conforme Ele disse nesse mesmo discurso: «já não vos chamo servos, porque o servo não sabe o que faz o seu Senhor, mas vos chamo de amigos, porque tudo o que ouvi de meu Pai vos dei a conhecer» (Jo 15,15). Ser discípulo(a) de Jesus é entrar no seu círculo de profunda intimidade, é ser contado entre os seus amigos. E dos amigos, ele nada esconde. A princípio, o primeiro versículo do evangelho de hoje parece contradizer a afirmação acima, que ele já disse tudo, pois, de repente, ele diz: «Tenho ainda muitas coisas a dizer-vos, mas não sois capazes de as compreender agora» (v. 12). Ora, Jesus já disse tudo; não há novas coisas para dizer ou ensinar. Logo, aqui, ele não se refere a novos ensinamentos, mas à capacidade de compreensão dos discípulos, que não tinham assimilado tudo o que ouviram dele.

Muita coisa da vida e da mensagem de Jesus ainda não tinha sido assimilada pelos discípulos, porque a chave de interpretação da sua vida é a cruz e ressurreição. Na verdade, aqui o evangelista nem usa o verbo compreender, empregado equivocadamente pela tradução litúrgica, mas o verbo “suportar” (em grego: βαστάζω – bastázo); a tradução mais justa, portanto, seria: “não sois capazes de suportar agora”. Antes da experiência da ressurreição, e sem o dom maior do Ressuscitado, que é o Espírito Santo, os discípulos não teriam forças para suportar a sua mensagem de libertação e vida em plenitude, sobretudo porque essa mensagem compreende a passagem pela cruz, como consequência de um amor incondicional. Inclusive, alguns acontecimentos durante o processo de Jesus demonstram a incapacidade dos discípulos de suportar a sua mensagem com suas consequências; a traição de Judas e a tríplice negação de Pedro atestam isso.

Para compreender e suportar o peso da mensagem de Jesus, principalmente a cruz, os discípulos necessitam de uma força especial, de uma energia que os tire do medo e do comodismo. Por cruz não se compreende apenas a crucifixão sofrida uma vez no calvário, mas o conjunto da obra. Em toda a sua vida, Jesus viveu um crucificar-se contínuo. Cada atitude de rejeição sofrida, desde os primeiros momentos do seu ministério, já apontava para a cruz como desfecho. Diante disso, conhecendo seus discípulos, ele sabia que não estavam ainda preparados para suportar tudo o que ele estava suportando. Por isso, para que pudessem continuar sua missão com fidelidade, ele garante que receberão a força necessária, o Espírito Santo, para sustentá-los e conduzi-los: «Quando, porém, vier o Espírito da Verdade, ele vos conduzirá à plena verdade. Pois ele não falará por si mesmo, mas dirá tudo o que tiver ouvido; e até as coisas futuras vos anunciará» (v. 13). Ora, a Verdade é o próprio Jesus, como Ele mesmo se autointitulara antes: «Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida» (Jo 14,6). A “Verdade plena”, portanto, é o Cristo glorificado no mundo do Pai, tendo já passado pela cruz e ressurreição, realidade que só pode ser assimilada por quem se deixa conduzir pelo Espírito; significa o “conjunto da obra”: da preexistência do Verbo (Jo 1,1) à encarnação (Jo 1,14), passando pela cruz, até o retorno ao mundo do Pai.

A função do Espírito é manter a comunidade alinhada ao projeto de Jesus, que é a Verdade em pessoa. O Espírito não falará por si mesmo, será a voz do Pai e do Filho no coração das pessoas e na vida da Igreja. Transmitirá ao mundo a comunhão de amor que envolve o Pai e o Filho, como força de humanização para a humanidade inteira. E o Espírito é o próprio amor que une o Pai e o Filho; mediante seu sopro, esse amor irradia-se sobre o mundo, fecundando-o de vida , e vida em abundância. As “coisas futuras” que serão anunciadas não são novas revelações ou visões; significa a capacidade de ler os eventos futuros à luz da mensagem de Jesus. A comunidade cristã – a Igreja – sempre encontrará situações novas e surpreendentes ao longo da história, não previstas por Jesus e seu pequeno grupo de discípulos, durante os aproximados três anos de ministério. Ao longo da história, a comunidade cristã necessita do dom do Espírito Santo para discernir e aplicar o ensinamento de Jesus, que já disse tudo, mas preciso ser compreendido de modo novo, a cada dia, diante das novas realidades que surgem continuamente. Independentemente da época, a comunidade deverá interpretar tais situações à luz de tudo o que Jesus ensinou. E só é possível fazer isso deixando-se conduzir pelo Espírito da Verdade. Por isso, guiada pelo Espírito Santo, a comunidade mantém a atualidade da mensagem de Jesus em qualquer que seja a situação e a época histórica.

Continuando a explicação sobre os efeitos do Espírito Santo para a vida da comunidade, Jesus afirma: «Ele me glorificará, porque receberá do que é meu e vo-lo anunciará» (v. 14). Ora, o Espírito irá iluminar os discípulos para compreenderem e viverem o que Jesus já disse. Assim como Jesus glorificou o Pai fazendo a sua vontade, também o Espírito glorifica Jesus conduzindo a comunidade em conformidade com o Evangelho. Aqui, cabe destacar um aspecto importante da teologia do Quarto Evangelho. Ora, ao contrário dos sinóticos, que preveem uma vinda gloriosa de Jesus no final dos tempos, João segue outra perspectiva. Para o autor do Quarto Evangelho, a glória de Jesus é que Ele mesmo esteja permanentemente presente na comunidade através do Espírito. À medida em que a comunidade se deixa conduzir pelo Espírito Santo, ela põe em prática o programa de Jesus, cuja síntese é o novo mandamento do amor (Jo 13,34). Fazendo assim ela revela Jesus presente no mundo. Fazer isso é glorificá-lo. Portanto, o efeito “glorificante” do Espírito Santo em relação a Jesus confere séria responsabilidade à comunidade.

A promessa do Espírito é concluída com uma afirmação muito profunda que enfatiza a comunhão de Jesus com o Pai: «Tudo o que o Pai possui é meu. Por isso, disse que o que ele receberá e vos anunciará, é meu» (v. 15). O Pai é a fonte originária de tudo. O que Jesus tem a oferecer ao mundo, o amor ilimitado e incondicional, pertence ao Pai; mas como Ele e o Pai são Um (Jo 10,30), tudo o que é do Pai é também seu. Logo, o que o Espírito recebe de Jesus, recebe também do Pai. Aqui, nesse último versículo temos, de fato, um eco trinitário bastante evidente, pois revela a comunhão dos três: o Espírito comunica à comunidade tudo o que recebe de Jesus, e tudo o que Jesus concede ao Espírito recebeu do Pai. Por isso, pode-se dizer que os Três são Um. Acolhendo, o Espírito, a comunidade vive o que Jesus ensinou e, assim, revela ao mundo o rosto de um Pai que é todo amor.

Portanto, a presença perene de Jesus na comunidade, através do Espírito, é também presença do Pai. É essa relação que torna sempre novo e atual tudo o que Jesus viveu e ensinou. Deixar-se conduzir pelo Espírito Santo é entrar também nessa comunhão profunda com o Pai e o Filho. O resultado da acolhida a essa comunhão é a humanização do mundo.

Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

 

sexta-feira, junho 06, 2025

REFLEXÃO PARA A SOLENIDADE DE PENTECOSTES (I) – JOÃO 20,19-23

 


O evangelho da Solenidade de Pentecostes é sempre o mesmo, independentemente do ciclo litúrgico vigente:  Jo 20,19-23. Na verdade, a liturgia oferece também uma segunda opção de evangelho para este dia (Jo 15,26-27;16,12-15), mas tem sido pouco utilizado. O texto aqui tratado corresponde ao relato da primeira manifestação do Senhor Ressuscitado aos seus discípulos, ao anoitecer do primeiro dia da semana, ou seja, o domingo mesmo da ressurreição. Inclusive, esse texto já foi lido na liturgia dominical deste tempo pascal, como parte do evangelho do segundo domingo, como também acontece todos os anos. Naquela ocasião, no entanto, este trecho fora lido como parte de uma sequência maior –Jo 20,19-31 –, que compreende a manifestação do Ressuscitado também no domingo seguinte à ressurreição, ou seja, «oito dias depois» (Jo 19,26). Portanto, embora estejamos de fato há cinquenta dias da Páscoa, o evangelho de hoje nos remete ao dia mesmo da ressurreição.

Pentecostes era uma das três maiores festas do calendário litúrgico judaico, juntamente com as festas da Páscoa e das tendas. Era celebrada cinquenta dias após a Páscoa. Na Bíblia hebraica é chamada de “festa das semanas” (שָּׁבֻעוֹת – shavuot), pois contavam-se sete semanas após a Páscoa, mais um dia, totalizando cinquenta dias (7x7=49+1=50). Por isso, recebeu o nome de “Pentecostes” (em grego: πεντηκοστή – pentecostê) a partir da dominação grega, cujo significado é simplesmente quinquagésimo dia (Tb 2,1; 2Mc 12,32). O fato de ser o resultado numérico da operação 7x7 indica a ideia de plenitude que essa festa transmite: o número perfeito – sete – multiplicado por ele mesmo. Quer dizer que Pentecostes é a festa da plenitude da Páscoa, tanto para a mundo hebraico quando para a fé cristã. Como todas as festas judaicas, também Pentecostes tem suas origens ligadas à vida agrícola do povo: era a festa da colheita. Os peregrinos iam a Jerusalém agradecer pela colheita, levando os melhores grãos e frutos da terra como oferta, em gratidão a Deus.

Com o passar do tempo, essa festa perdeu sua relação com a agricultura, e foi ganhando um novo significado, com uma conotação mais religiosa e histórica. O motivo da celebração passou, então, a ser o agradecimento a Deus pelo dom da Lei ao seu povo. Na época de Jesus e dos apóstolos, esse novo sentido já estava consolidado: os judeus de todas as partes do mundo, conforme as condições econômicas, iam a Jerusalém, para agradecer a Deus pelo dom da Lei, transmitida através de Moisés. Lucas, autor dos Atos dos Apóstolos, se serve desse contexto e faz coincidir o envio do Espírito Santo com a festa judaica de Pentecostes, como artifício literário e teológico, para ensinar às suas comunidades que a nova lei é o Espírito Santo, o dom pascal por excelência. Com isso, ele ensina que, para permanecer fiel a Jesus e à sua mensagem, a comunidade cristã já não necessita das prescrições da Lei de Moisés; deve apenas estar sensível e aberta aos dons do Espírito Santo.

Por outro lado, o autor do Evangelho de João faz de tudo para que os referenciais da sua comunidade não coincidam com os esquemas litúrgicos judaicos. Para ele, as grandes festas dos judeus em Jerusalém sempre foram muito conflituosas para Jesus; eram momentos de confronto e ameaça (2,13ss; 5,1.18; 7,1ss; 10,31; 11,56), além de sinônimo de exploração e comércio. Por isso, ele situa a doação do Espírito Santo por Jesus aos discípulos no dia mesmo da ressurreição. Embora a Igreja tenha adotado o esquema cronológico de Lucas, a perspectiva joanina tem mais sentido e responde melhor às necessidades dos discípulos, como mostra o Evangelho de hoje: «Ao anoitecer daquele dia, o primeiro da semana, estando fechadas, por medo dos judeus, as portas do lugar onde os discípulos se encontravam, Jesus entrou e, pondo-se no meio deles, disse: A paz esteja convosco!» (v. 19). Ora, amedrontada, fechada em si e sem poder de ação, essa comunidade não teria condições de esperar cinquenta dias para receber o Espírito Santo. É somente pela força do Espírito Santo que as portas são abertas e os dons comunicados pelo Ressuscitado podem ser experimentados por todos.

No contexto do evangelho, a comunidade dos discípulos estava em crise, profundamente abalada. Até aquele momento, somente Maria Madalena e o Discípulo Amado tinham convicção da ressurreição (Jo 20,8.16-18). A morte de Jesus na cruz foi um alerta para os discípulos: quem continuasse propagando ideias como as dele, poderia terminar da mesma forma. Por isso, estavam as portas trancadas, devido ao medo. Por “medo dos judeus” entende-se o medo das autoridades que condenaram Jesus, e não de todo o povo; é típico de João usar o termo “judeus” referindo-se às autoridades de Jerusalém (Jo 9,22; 12,42; 16,16). Apesar do medo, o fato de estarem reunidos é um sinal de esperança; significava que não tinham perdido completamente as esperanças; o ideal que os unia não tinha ainda se apagado. Porém, não poderiam continuar naquela situação, ou seja, acuados pelo medo. Ora, o medo impede a missão, as portas fechadas bloqueiam o anúncio da Boa Nova. Enfim, o medo é falta de experiência com o Ressuscitado.

Ao medo dos discípulos, o Ressuscitado responde com o dom da sua paz. Aqui, a paz não significa simplesmente a saudação típica do povo judeu, o famoso “shalom” (שָׁלוֹם). Inclusive, a tradução correta da expressão não é “a paz esteja convosco”, como está no texto litúrgico, mas “paz a vós”, sem a forma verbal “esteja”. O Ressuscitado não transmite um desejo de paz, mas traz a paz efetivamente, ele faz a paz acontecer. E quem faz experiência com Ele já tem a paz dentro de si, embora seja uma paz inquieta, como aquela que ele mesmo viveu. E imediatamente os discípulos sentiram a paz neles e entre eles, pois passaram do medo à alegria (v. 20). A paz é plenitude de vida e equilíbrio, o bem-estar da pessoa em todas as suas dimensões, condição indispensável para a felicidade. Jesus comunica a sua paz estando no meio, quer dizer, no centro da comunidade. Para que os dons do Ressuscitado sejam realmente acolhidos, é necessário que a sua centralidade na comunidade seja respeitada; isso vale para todos os tempos e lugares. Para uma comunidade viver realmente os propósitos do Evangelho é necessário, antes de tudo, que no centro do seu existir esteja o Ressuscitado e somente Ele, pois é Ele o único ponto de referência e fator de unidade. Por isso, ao se manifestar, o Ressuscitado aparece sempre no meio.

Na continuidade da experiência, diz o texto que Jesus «mostrou-lhes as mãos e o lado» (v. 20a). Ao mostrar as mãos e o lado, Jesus mostra a continuidade entre o Ressuscitado e o Crucificado; se trata da mesma pessoa. O Ressuscitado traz as marcas do Crucificado, porque cruz e glória não se separam. Nas mãos e no lado de Jesus está a identidade de quem viveu plenamente para servir e amar. As mãos são símbolo e recordação do serviço e de todo o bem que Jesus fez: são as mãos que tocaram em leprosos, mesmo sendo proibido (Mc 1,40), mãos que deram carinho a crianças (Lc 18,15-16; Mt 19,13-15), mãos que abriram olhos de cegos (Jo 9,6), mãos que curaram enfermos e expulsaram demônios (Lc 4,40; 13,13), mãos que lavaram os pés dos discípulos (Jo 13,1-12); enfim, são mãos que promoveram a vida e combateram o mal. São mãos humanizadoras.

As marcas da cruz não apagaram a força das mãos de Jesus. Mesmo feridas na cruz, essas mãos continuam à disposição da comunidade, e a comunidade, por sua vez, tem a missão de fazer no mundo o mesmo que aquelas mãos do Ressuscitado fizeram, ou seja, servir infinitamente e sem distinção. Também o lado, ou seja, o peito aberto, tem o mesmo significado de continuidade: é o mesmo coração com o qual Ele amou até o fim (Jo 13,1). Um coração que se abriu, se dilatou, tamanho o amor que contém. Na cruz, esse amor é representado pelo sangue e a água que jorraram. Estes dois sinais significam, naquela cena, o amor pleno, total, que não pode ser contido, por isso, faz dilatar o coração. E esse coração continua amando da mesma forma. As mãos e o lado de Jesus são, portanto, a síntese da sua vida, da sua mensagem e da sua práxis. Ele doa o Espírito Santo aos discípulos para que suas mãos e o seu coração continuem presentes no mundo servindo e amando de modo ainda mais eficaz. Por isso, «os discípulos se alegraram por verem o Senhor» (v. 20b). Como fruto da paz transmitida pelo Ressuscitado, a alegria deve ser também uma das características da comunidade que deve viver para amar e servir, sem medo de deixar o coração sangrar de amor.

A paz como bem-estar do ser humano é novamente oferecida: «novamente Jesus disse: A paz esteja convosco» (v. 21a). Novamente, não é um desejo, mas a afirmação de um dom já presente, já verificável. A passagem do medo à alegria poderia tornar-se uma simples euforia, por isso a paz é doada novamente para equilibrar a comunidade. Aqui, a paz não significa alívio ou tranquilidade, mas sinal de liberdade e vida plena; é a capacidade de assumir livremente as consequências das opções feitas. Tendo plenamente comunicado a paz como seu primeiro dom, o Ressuscitado os envia, como fora ele mesmo enviado pelo Pai: «Como o Pai me enviou, também eu vos envio» (v. 21b). É importante recordar que, embora cada evangelista narre as aparições do Ressuscitado à sua maneira, todos os quatro recordam um elemento comum: o envio missionário.  E trata-se de um elemento determinante para a construção da identidade da comunidade cristã, a Igreja. Não há seguimento de Jesus sem disposição para a missão. A Igreja nasceu para estar em saída. E a fonte da missão é o amor do Pai, manifestado plenamente pelo Filho, o que confere à comunidade cristã uma responsabilidade ímpar: fazer no mundo o mesmo que Jesus fez, pois ele está enviando seus discípulos de todos os tempos conforme fora enviado pelo Pai.

Como Jesus tinha prometido o Espírito Santo aos discípulos na última ceia (Jo 14,16.26; 15,26), eis que a promessa é cumprida: «E depois de ter dito isso, soprou sobre eles e disse: Recebei o Espírito Santo» (v. 22). Aqui, o evangelista usa o mesmo verbo empregado no relato da primeira criação do ser humano: «O Senhor modelou o ser humano com a argila do solo, soprou-lhe nas narinas um sopro de vida, e o ser humano tornou-se vivente» (Gn 2,7). Com isso, o evangelista quer dizer que está sendo realizada uma nova criação. O verbo soprar (em grego: έμφυσάω – emfysáo) significa doação de vida, um sopro vital. Assim, podemos dizer que Jesus recria a comunidade e, nessa, a humanidade inteira é recriada. Ao receber o Espírito, a comunidade se torna também comunicadora dessa força de vida. É o Espírito quem mantém a comunidade alinhada ao projeto de Jesus, porque é Ele quem faz a comunidade sentir, viver e prolongar a presença do Ressuscitado como seu único centro e fundamento, colocando à disposição da humanidade mãos e coração para servir e amar continuamente. O Espírito Santo é força dinâmica e vivificadora; é movimento. Logo, a Igreja não pode parar no tempo, não pode acomodar-se em suas sólidas estruturas.

Na sequência, o Ressuscitado recorda os efeitos principais do Espírito Santo na vida da comunidade, conferindo-lhe uma grande responsabilidade: «A quem perdoardes os pecados eles lhes serão perdoados; a quem não perdoardes, eles lhes serão retidos» (v. 23). Por muito tempo, esse versículo foi empregado simplesmente para fundamentar o sacramento da penitência ou confissão. No entanto, não é um sacramento o que Jesus está instituindo, tampouco conferindo um poder aos seus discípulos para determinar se um pecado pode ser perdoado ou não. O que perdoa mesmo os pecados é o amor infinito de Deus que Jesus revelou. Logo, ficam pecados sem perdão quando os discípulos e discípulas de Jesus deixam de comunicar esse amor. Em outras palavras, os pecados ficarão retidos quando houver omissão da comunidade, ou seja, quando essa deixar de produzir os frutos que Jesus pediu (Jo 15,1-17). Ora, Jesus envia os discípulos como Ele mesmo fora enviado pelo Pai (v. 21), confiando-lhes a continuidade da sua própria missão. E a missão de Jesus foi sintetizada pelo Batista como “tirar o pecado do mundo” (Jo 1,29). Tirar o pecado do mundo significa promover intensamente o bem até eliminar o mal pela raiz, o que só se faz através do amor, com ousadia profética. Antes de tudo, trata-se de uma missão humanizante. E agora, é Jesus quem confia à sua comunidade de discípulos essa responsabilidade. Logo, os pecados são perdoados à medida em que o amor de Jesus vai se espalhando pelo mundo, quando seus discípulos se deixam conduzir pelo Espírito Santo.

É na comunidade que o Ressuscitado se manifesta, fazendo essa perder o medo e insegurança. Somente uma comunidade que tem o Ressuscitado como centro, pode viver plenamente reconciliada, em paz, animada pelo Espírito e fonte de humanização para o mundo. São essas as condições para que a alegria do Evangelho seja, de fato, anunciada! Deixando-se conduzir pelo Espírito Santo, a comunidade atualiza e prolonga, no tempo e no espaço, a missão única do próprio Jesus de revelar o amor de Deus a todas as pessoas.

Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

 

REFLEXÃO PARA A SOLENIDADE DA NATIVIDADE DE SÃO JOÃO BATISTA - LUCAS 1,57-66.80

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