sexta-feira, agosto 15, 2025

REFLEXÃO PARA A SOLENIDADE DA ASSUNÇÃO DE MARIA (LUCAS 1,39-56)



Neste ano, a liturgia do vigésimo domingo do tempo comum é substituída pela solenidade da Assunção de Maria, repetindo o que aconteceu no ano passado. Como se sabe, independentemente do ano litúrgico em curso, o evangelho desta festa é sempre o mesmo: Lc 1,39-56. Trata-se de um dos textos mais conhecidos do Evangelho de Lucas, que compreende a visitação de Maria à sua parenta Isabel, e o famoso cântico do Magnificat. Embora a assunção só tenha se tornado dogma em 1950, pelo papa Pio XII, as tradições relativas à festa em si são muito antigas. Inicialmente, celebrava-se essa festa com a denominação de “dormição de Nossa Senhora”, título que as igrejas do Oriente preservam até hoje. O sentido desta festa e do próprio dogma é fornecido pelo prefácio da missa: “Hoje, a virgem Maria, mãe de Deus, foi elevada à glória do céu. Aurora e esplendor da Igreja triunfante, ela é consolo e esperança para o povo ainda em caminho, pois preservastes da corrupção da morte aquela que gerou de modo inefável, vosso próprio Filho feito homem, autor da vida” (Prefácio da Assunção de Nossa Senhora). Trata-se, portanto, de uma festa que imprime muita esperança à Igreja e à humanidade inteira, pois expressa o cumprimento do amor de Deus pelo ser humano, levando-o ao seu verdadeiro destino, que é a participação na mesma glória de Jesus Cristo, seu Filho e nosso irmão. E Maria foi a primeira a gozar plenamente deste privilégio.

Como sempre, concentramos a nossa reflexão exclusivamente a partir do texto do evangelho proposto, o qual possui grande importância para o conjunto da obra de Lucas. E é importante começar considerando o contexto narrativo, que é o chamado “Evangelho da Infância”, formado pelos dois primeiros capítulos do Evangelho (Lc 1–2), que funcionam como introdução literária e síntese teológica de toda a obra. De fato, é praticamente unanimidade entre os estudiosos que, no “Evangelho da Infância”, Lucas antecipa as principais linhas teológicas da sua grande obra, composta também pelo livro de Atos dos Apóstolos, ao mesmo tempo em que sintetiza praticamente todo o Antigo Testamento e a história de Israel, construídos a partir do binômio “promessa-cumprimento”. E o trecho lido hoje é uma boa demonstração disso. De fato, os principais temas da obra lucana, como o protagonismo das mulheres, a opção pelos pobres, a força transformadora do Espírito Santo, a misericórdia de Deus e a natureza missionária da Igreja estão bem presentes no evangelho de hoje. Igualmente estão presentes as temáticas da fidelidade de Deus às suas promessas, ao longo da história, assim como o seu favorecimento aos pequenos e marginalizados, traços bem característicos do Antigo Testamento.

E o primeiro tema evidenciado no evangelho de hoje é exatamente o protagonismo feminino: a cena é dominada pelo encontro de duas mulheres que, em diálogo, expressam suas impressões sobre os últimos acontecimentos, reconhecendo neles o agir de Deus, e apontando um futuro novo. Ao longo de toda a Bíblia, são raras as cenas dessa natureza. Com isso, o evangelista preconiza o início de uma nova história para a humanidade, com novas perspectivas e esperanças; trata-se de uma história construída e escrita a partir dos pobres, desprezados e marginalizados da sociedade, como eram as mulheres na época em que Evangelho foi escrito. O que Deus sempre propôs à humanidade, começa a cumprir-se e a realizar-se definitivamente a partir do sim de Maria. Como pessoas simples e humildes, Maria e Isabel, protagonistas do episódio, são uma prova de que o Deus de Israel tem um lado na história: o lado dos pobres, humildes e marginalizados, a quem ele dirige o seu olhar misericordioso (v. 48). Na figura dessas duas mulheres, Lucas ilustra o encontro das duas alianças, dos dois testamentos, reforçando a presença de Deus como artífice e condutor da história.

Certamente admirada com tudo o que estava acontecendo consigo e com Isabel, pois o anjo lhe informara (Lc 1,36), Maria tomou a firme decisão de ir visitar sua parenta. Assim diz o texto: «Naqueles dias, Maria partiu para a região montanhosa, dirigindo-se, apressadamente, a uma cidade da Judeia» (v. 39). Embora a maioria das interpretações apontem o desejo de servir a Isabel como o motivo da partida apressada de Maria, o texto não fornece nenhum indício a respeito disso. Sem dúvidas, o serviço ao próximo sempre fez parte do estilo de vida de Maria, sobretudo após o seu decisivo sim a Deus. Inclusive, ao dar o sim ao projeto de Deus, ela se apresentou como verdadeira servidora (Lc 1,38). Mas aqui se pode ver algo além disso. Ora, quando Maria questionou o anjo no momento do anúncio, sobre como poderia engravidar se não tinha relação com homem algum (Lc 1,34), o anjo disse que tudo seria obra do Espírito Santo, e ainda deu um exemplo concreto como sinal e prova de que nada é impossível para Deus: Isabel, uma anciã estéril, estava grávida (Lc 1,36). A gravidez de uma anciã estéril seria tão surpreendente quanto a de uma jovem virgem. É, portanto, normal e compreensível que Maria tenha procurado Isabel para confirmar se o que anjo lhe dissera era verdade, afinal, ela era muito jovem para compreender temas dessa natureza, ainda mais por integrar uma sociedade marcada por inúmeros tabus, sobretudo para as mulheres. Também é normal que tenha procurado sua parenta para partilhar a alegria do que estava acontecendo com ambas, como sinal da fidelidade de Deus ao seu povo, Israel, de quem as duas são imagens.

Ao conceder tanto espaço a Maria no início do seu Evangelho, Lucas está criando o modelo ideal de discípulo e discípula para Jesus. Por isso, é importante apresentá-la em movimento, disposta a proclamar, até nos lugares mais distantes, as maravilhas de Deus e a certeza de que ele está construindo uma nova história, a partir das pessoas humildes e marginalizadas. A partida de uma jovem grávida de Nazaré, na Galileia, para a Judeia antecipa os desafios da missão e a necessidade dos discípulos de todos os tempos estarem sempre em estado de saída. Mesmo que a distância não fosse tão grande, as circunstâncias eram muito adversas para uma jovem mulher. É típico da obra lucana o movimento, o sair de si. Essa partida imediata de Maria faz dela um modelo de discípula e, ao mesmo tempo, inaugura o primeiro movimento de Jesus: ainda no ventre, Ele já estava inquieto e pronto a romper qualquer situação de estabilidade e tranquilidade, mesmo enfrentando adversidades e perigos, como Maria teria enfrentado no caminho, indo sozinha para uma região montanhosa e de difícil acesso.

O evangelista diz que, chegando ao destino, Maria «Entrou na casa de Zacarias e cumprimentou Isabel» (v. 40). Muito mais do que cumprimentar, o verbo “saudar” seria mais apropriado na tradução do texto. A expressão hebraica para a saudação é o desejo de paz – o hebraico shalom. Mais tarde, ao enviar seus discípulos em missão, Jesus ordenou que eles desejassem a paz em cada casa que entrassem (Lc 10,5). Isso mostra que, aqui, mais uma vez, Maria antecipa a atitude de cada discípulo e discípula de Jesus: ser portador(a) da paz! Maria é mesmo a imagem ideal de todo discípulo e discípula de Jesus. E a paz que Jesus comunica é sempre inquieta; não é tranquilidade nem resignação; é o acesso aos bens messiânicos, como a libertação de todas as cadeias de morte impostas pelos sistemas dominantes, é a conquista de um mundo com igualdade e bem-estar para todos. E o evangelista sempre apresenta Maria quebrando paradigmas: como mulher inovadora e corajosa, ela ignora a tradição patriarcal e saúda a mulher ao invés do homem, ao entrar na casa (v. 40). Assim, ela provoca uma verdadeira revolução e inversão de valores nas relações sociais, como aprofundará mais adiante, no seu hino, o Magnificat. Na sociedade do seu tempo, quem deveria ser saudado era o dono da casa; saudando a mulher, ela afirma que um tempo novo está surgindo, com novas relações e uma nova ordem. Percebe-se que, apesar de poucos, cada gesto de Maria antecipa o futuro agir libertador Jesus. O mesmo pode ser constatado com suas palavras que, embora também sejam poucas, antecipam toda a mensagem de Jesus. Isso quer dizer que, ao mesmo tempo em que Lucas a apresenta como modelo de discípula, ele reconhece que, na condição de mãe, ela foi também mestra de Jesus.

A saudação de Maria irradia paz no ambiente, a ponto de fazer até mesmo a criança, ainda no ventre, agitar-se (v. 41a), o que confirma que a paz de Jesus, que ela antecipa, não combina com tranquilidade, mas provoca inquietude. Isso porque Isabel também ficou «cheia do Espírito Santo» (v. 41b), como Maria já estava. Trata-se do mesmo Espírito prometido pelo anjo a Maria no momento do anúncio: «O Espírito Santo descerá sobre ti» (Lc 1,35a). Como força vital, o Espírito Santo é luz irradiante e interpelante, que pode ser sentido quando transmitido por pessoas cheias dele, como Maria. Quem recebe o Espírito Santo, o irradia por onde passa e onde chega, como um contágio. A atitude de Isabel não poderia ser outra, senão exclamar, gritando: «Bendita és tu entre as mulheres e bendito é o fruto do teu ventre!» (v. 42). É a palavra profética que nela se atualiza. Sabendo que Maria carregava dentro de si o Messias, isso fazia dela a mais “bendita” entre todas as mulheres. Assim, Isabel torna-se a primeira a proclamar as “bem-aventuranças” no Evangelho de Lucas. Ora, gerar filhos na mentalidade bíblica, era sinal de bem-aventurança e bênção; uma confirmação de que se tinha Deus a seu favor. Logo, gerar o Messias tão esperado seria prova de uma dignidade inigualável.

Tendo composto seu Evangelho com muita atenção para a Escritura hebraica, o Antigo Testamento, Lucas procura atualizá-la no “evento Cristo”. Assim, na continuação da exclamação de Isabel, o evangelista desenha Maria como a nova “Arca da Aliança”. Como sabemos, na arca da aliança eram guardadas as tábuas da lei, sinal máximo da presença de Deus no meio do seu povo, conforme a fé do povo de Israel. Com esta exclamação de Isabel: «Como posso merecer que a mãe do meu Senhor me venha visitar?» (v. 43), Lucas relembra e atualiza as palavras de Davi quando estava para receber a Arca em sua casa: «Como virá a Arca de Iahweh para minha casa?» (2 Sm 6,9). Portanto, Lucas percebe em Maria a arca da nova da aliança, não mais portadora da Lei escrita em tábuas de pedra, e sim portadora do amor e da misericórdia de Deus, conforme Jesus veio manifestar ao mundo. E a Lei que Maria carrega em si é o próprio Jesus, com seu Evangelho libertador e o Espírito Santo, do qual ela estava cheia e, por isso, o irradiava, sendo a primeira a viver a experiência de Pentecostes, enquanto envio do Espírito Santo ao mundo. Convém recordar que Lucas compara os eventos do Antigo Testamento com os do Novo para mostrar a superioridade do Novo. Assim, enquanto diante da arca, Davi exclamou com medo (2 Sm 6,10), diante de Maria, Isabel exclamou de alegria, o que mostra que a Lei escraviza, enquanto o Espírito, que é amor, liberta, transforma, humaniza.

E, mais uma vez, Lucas faz Maria ser reconhecida como bem-aventurada: «Bem-aventurada aquela que acreditou, porque será cumprido o que o Senhor lhe prometeu» (v. 45). O motivo do reconhecimento, desta vez, é a fé: ela é bem-aventurada porque acreditou. Além de exaltar a fé de Maria, as palavras de Isabel funcionam também como uma repreensão ao seu esposo Zacarias, o qual, ao contrário de Maria, não acreditou no anúncio do anjo (Lc 1,20), por isso ficou mudo até que o menino nascesse. Assim, Isabel combate a incredulidade do marido e reforça a sua fé renovada pela presença de Maria, como ela confessou: «Será cumprido o que o Senhor lhe prometeu» (v. 45b). Ao repreender a incredulidade do esposo Zacarias, um sacerdote, Isabel proclama a decadência da antiga religião oficial do templo, demonstrando que somente os pobres, simples e humildes são capazes de acolher as intuições do Espírito Santo, como fez Maria. Assim, a religião do rigor e da Lei estava superada, pois não capacitava o ser humano para perceber o agir de Deus na vida e na história. Isso quer dizer que, para o evangelista, o exemplo de fé não está nas autoridades religiosas, mas nas pessoas simples e humildes.

Na sequência do texto, finalmente, Maria toma a palavra, pois somente Isabel tinha falado até aqui. As entrelinhas apontam para um provável constrangimento de Maria, diante de tantos elogios. Por isso, o evangelista mostra ela praticamente interrompendo Isabel, para expressar a sua alegria e o louvor a Deus, com o seu magnífico cântico (vv. 46-54). Isto reflete, certamente, a preocupação do evangelista com a construção futura da imagem de Maria na Igreja: não é ela que deve ser louvada, mas o Deus que agiu nela. O centro do culto e da vida cristã é sempre Deus, pois é ele o autor das maravilhas operadas e, portanto, é a ele que o reconhecimento e o louvor devem ser dirigidos. O Magnificat é o primeiro dos cânticos que Lucas apresenta em seu Evangelho. Trata-se de uma composição que sintetiza todo o Antigo Testamento e, ao mesmo tempo, antecipa a missão de Jesus. Lucas faz uma construção nova com pedras antigas, pois o texto é um verdadeiro mosaico de citações do Antigo Testamento. A estrutura básica é tomada do cântico de Ana (1Sm 2,1-10), o que se explica pela semelhança das duas situações, uma vez que, assim como Isabel, também Ana era considerada estéril e concebeu um profeta, Samuel, como Isabel concebeu João Batista. Se Isabel estava maravilhada por contemplar grandes coisas (vv. 42-45), Maria lhe ajuda a compreender melhor tal situação, convidando-a a olhar para a história e perceber que, na verdade, esse Deus de Israel nunca esqueceu o seu povo, sempre fez grandes coisas em seu favor e, portanto, é a Ele que o louvor deve ser dirigido. Tudo o que estava acontecendo era dom de Deus e prova da sua fidelidade.

Em seu cântico, Maria personifica Israel e resume os grandes feitos de Deus na história, destacando, sobretudo, a sua predileção pelos pobres, humildes e humilhados. Quando reconhece que «o Todo-Poderoso fez e faz grandes coisas» (v. 49), também se afirma que não há outros poderosos, exatamente porque devem ser derrubados de seus falsos tronos (v. 52). E essa é a primeira condição para o início da edificação do Reino de Deus: a queda dos poderosos, ou seja, de todos os detentores de poder que oprime e mata. Um só é o Poderoso, Deus, e este destina seu poder em favor da libertação dos pequenos. Temos, então, o início do cumprimento das antigas promessas, agora sob a responsabilidade de Jesus e da comunidade dos seus discípulos, da qual Maria é modelo. Aqui, mais uma vez, Lucas faz Maria antecipar o programa messiânico de Jesus, que será anunciado na sinagoga de Nazaré (Lc 4,16-18) e confirmado no sermão da planície. De fato, a expressão «Encheu de bens os famintos» (v. 53a), antecipa as bem-aventuranças dirigidas aos pobres (Lc 6,20-21); já a expressão «Despediu os ricos de mãos vazias» (v. 53b) antecipa as maldições lançadas contra os ricos – “ai de vós” (Lc 6,24-25). O Magnificat é, sem dúvidas, a síntese da oração de Israel que deverá ser continuada pela comunidade dos discípulos de Jesus, a comunidade cristã. É clara, portanto, a intenção de Lucas de antecipar a missão de Jesus. Isso mostra também que ele é o evangelista que mais retoma a mensagem profética de denúncia às injustiças sociais. A predileção de Deus pelos pequenos, tão clara no ministério de Jesus, é central na mensagem dos profetas do Antigo Testamento. E o Magnificat evidencia bem essa continuidade.

A conclusão do texto reafirma a imagem de Maria como nova arca da nova aliança, mas com uma dimensão completamente nova. Diz o evangelista que «Maria ficou três meses com Isabel; depois voltou para casa» (v. 56). No Antigo Testamento há uma expressão muito parecida com essa, em 2Sm 6,11, e certamente Lucas pensou nela, ao falar da permanência de Maria na casa de Isabel: «A Arca de Iahweh ficou três meses na casa de Obed-Edom de Gat, e Iahweh abençoou a Obed-Edom e a toda a sua família». A presença de Maria na casa de Isabel foi, com certeza, a confirmação da bênção de Deus sobre ela, seu esposo Zacarias e o filho esperado, João. Mas a bênção que a presença de Maria inaugura é infinitamente superior a tudo o que até então se tinha experimentado, pois é o início da plenitude da presença de Deus em meio ao seu povo. Na arca da nova aliança já não há tábuas de pedra com a Lei inscrita, não há mais norma nem preceito; há o Espírito Santo e Jesus, expressão máxima do amor e da misericórdia de Deus para com toda a humanidade. O tempo de permanência de quem irradia o Espírito Santo e a alegria do Evangelho, como fez Maria e assim devem fazer os discípulos de todas as épocas, é o suficiente para ressignificar a vida e ler os acontecimentos do presente à luz de tudo o que Deus tem realizado ao longo da história, como cantado no Magnificat.

Mais do que um reforço à devoção, o evangelho deste dia é um convite e advertência à comunidade cristã a reencontrar-se com suas origens, com sua identidade missionária e sinodal, assumindo seu compromisso de ser presença do Reino, promovendo igualdade e fraternidade. Para isso, é necessário renovar a confiança no Espírito Santo, que é aquele que dá impulso à força transformadora dos pequenos e humildes. Um trecho do evangelho tão significativo como este, no qual apenas duas mulheres falam, discutindo um novo rumo para a humanidade, não pode deixar de ser visto também como um sinal de que a voz feminina precisa ser mais ouvida e valorizada na Igreja.

Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

sábado, agosto 09, 2025

REFLEXÃO PARA O 19º DOMINGO DO TEMPO COMUM – LUCAS 12,32-48 (ANO C)

 


A liturgia deste décimo nono domingo do tempo comum continua a nos situar no caminho de Jesus para Jerusalém. Com isso, somos chamados a continuar refletindo sobre a condição de discípulos e discípulas, uma vez que esse caminho é a mais genuína e profunda catequese de Jesus para o seu discipulado de ontem e de hoje. Como tem sido afirmado nos últimos domingos, o caminho de Jesus no Evangelho de Lucas é um programa formativo, constituído de dez capítulos (Lc 9–19), nos quais são tratados diversos temas, e todos conexos entre si. O texto de hoje – Lc 12,32-48 – apresenta o tema da vigilância e da responsabilidade como exigências para a comunidade herdeira do Reino, a qual é chamada ao encorajamento diante das dificuldades enfrentadas ao longo do “caminho”. Pode-se dizer que esse caminho, aqui, é a própria história no seu desenrolar-se e, portanto, o que Jesus ensinou aos seus discípulos de primeira hora, continua válido para os cristãos e cristãs de todos os tempos e lugares. Para uma melhor compreensão do texto, que é bastante longo, podemos dividi-lo em duas partes: uma primeira, introdutiva (vv. 32-34), e uma segunda, composta de três pequenas parábolas (vv. 35-48) que visam ilustrar com imagens o tema apresentado na introdução. É um texto longo, mas bastante compreensível, desde que esteja claro o seu contexto, que é o caminho formativo da comunidade.

O primeiro versículo é a grande chave de leitura para todo o texto: «Não tenhais medo, pequenino rebanho, pois foi do agrado do Pai dar a vós o reino» (v. 32). O pedido de encorajamento (v. 32a) é sinal de que a proposta de Jesus não é de fácil assimilação, sobretudo em seus desdobramentos práticos. Na verdade, era uma proposta arriscada e até perigosa, conforme a mentalidade vigente na época, e continua sendo também nos dias de hoje. As exigências e responsabilidades para segui-lo eram muitas, por isso havia tendência à desistência entre os discípulos. De fato, à medida em que avançava no caminho, Jesus sentia que as hostilidades e obstáculos ao seu revolucionário projeto só aumentavam, tanto por fatores externos quanto internos. Com o aumento das exigências, os discípulos começavam a perceber que Jesus não apresentava nenhum traço do messias ideal, esperado há séculos. Ao invés de messias triunfante, como esperavam os judeus, um restaurador do reino davídico-salomônico, Jesus parecia um fracassado, mostrando que suas pretensões não passavam da constituição de um «pequeno rebanho» (em grego: μικρὸν ποίμνιον – mícron poímnion). Ora, os discípulos esperavam um líder comandante de um exército, de repente Jesus se apresenta apenas como um simples pastor de um pequeno rebanho. Diante disso, ele insistia pedindo coragem e perseverança, ao ver que seus discípulos davam demonstração de desânimo e vontade de desistir.

Com efeito, os discípulos precisavam de muita coragem e perseverança, exatamente porque a comunidade de Jesus, núcleo embrionário do Reino de Deus, não passava de um «pequenino rebanho» (v. 32a), praticamente invisível e sem importância, diante das grandes estruturas religiosa e política da época: o judaísmo oficial e o império romano, respectivamente. Paradoxalmente, o pequeno rebanho tem um grande valor, pois «foi do agrado do Pai dar-lhes o Reino» (v. 32b). Realmente, trata-se de algo maravilhoso e até surpreendente, mas inconcebível para as pretensões triunfalistas vigentes naquele tempo, com as quais os discípulos de Jesus comungavam. O Reino proposto por Jesus, confiado pelo Pai à pequena comunidade, não contém os elementos esperados na época, tais como poder, riqueza, vaidade, concorrência e grandeza. A proposta de Jesus contempla uma verdadeira inversão de valores e, certamente, a comunidade dos discípulos não estava ainda pronta para absorver essa virada radical. Por isso, a insistência de Jesus ao pedir coragem e perseverança.

Na sequência do texto (v. 33), são apresentadas algumas das exigências para os discípulos decidirem continuar ou não como membros do pequeno rebanho: «vendei vossos bens e dai esmola» (v. 33a). Com certeza, no grupo dos discípulos ainda havia alguns fazendo média com Jesus, aderindo pela metade, ou seja, aparentemente despojados, mas com algumas reservas escondidas, como Ananias e Safira, em Atos dos Apóstolos (At 5,1-11). Por sinal, é importante recordar que o contexto do texto reflete mais a situação das comunidades na época da redação do Evangelho – anos 80 do primeiro século – do que mesmo o grupo dos primeiros discípulos diretamente chamados por Jesus. Ao narrar os eventos do caminho de Jesus, Lucas pensa nas comunidades do seu tempo, que se sentiam pressionadas pelo judaísmo oficial e perseguidas pelo império romano. Inclusive, tinham dificuldade em aceitar a pequenez que representavam diante de outras estruturas, como a da própria religião judaica, com uma grande rede de sinagogas espalhadas por todo o império romano, apesar de não contar mais com o magnífico templo de Jerusalém, destruído no início dos anos setenta. Diante disso, o evangelista recorda que foi o próprio Jesus quem admitiu a pequenez da comunidade que, paradoxalmente, é embrião do Reino de Deus.

E um dos entraves para o Reino tornar-se cada vez mais manifesto nas comunidades era o apego aos bens materiais por parte de seus membros, ou seja, pelos próprios discípulos. Percebendo isso, Jesus pede um desprendimento total. Parece que aquela parábola do rico insensato, refletida no domingo passado (Lc 12,13-21), ainda tinha suficiente para esclarecer aos discípulos sobre a incompatibilidade entre o apego aos bens materiais e os valores do Reino. De fato, a insistência de Jesus com um mesmo ensinamento reflete a dificuldade de assimilação pelos seus discípulos. Não à toa, o tema do desapego aos bens ocupa bastante espaço na seção do caminho. Além de várias parábolas que versam sobe este tema, há diversos ensinamentos diretos de Jesus a respeito disso, sempre com frases no imperativo. E não basta vender os bens, é necessário aplicar bem o valor destes para que, realmente, um tesouro no céu seja adquirido, isto é, partilhando com os pobres. «Dar esmola» na mentalidade semítica significa fazer justiça. Ora, as pessoas ficam empobrecidas à medida em que são injustiçadas, por isso, os pobres são, acima de tudo, necessitados de justiça. Logo, são, por excelência, os destinatários das esmolas, na Bíblia. Sempre que Jesus solicita que alguém se desfaça de bens materiais ele recomenda que dê aos pobres. Com efeito, na linguagem bíblica, a esmola é sempre expressão de justiça e compaixão. Inclusive, na língua original do evangelho, esmola (em grego: ἐλεημοσύνη – eleemossyne) possui a mesma raiz do verbo empregado na liturgia para invocar a misericórdia de Deus, adaptado ao português como “eleyson”.

A continuação do versículo mostra o que deve ser o verdadeiro objetivo dos discípulos de Jesus: possuir «um tesouro no céu» (v. 33b), ou seja, buscar coisas que não se acabam, mas que permanecem para toda a vida. Ora, os discípulos ainda não tinham assimilado o ensinamento da parábola do rico insensato (Lc 12,13-21), ou seja, não tinham compreendido a necessidade de que é necessário perder aos olhos do mundo, para ganhar aos olhos de Deus. Jesus pede para que eles busquem o que é eterno, o que realmente tem valor no Reino que o Pai lhes confiou. E esse é um tema muito caro para Lucas (Lc 11,41; 16,9; 19,8). Ao longo de toda a sua obra, ele aborda essa temática, e sempre de modo bastante interpelante, seja com parábolas, seja por meio de relatos do cotidiano da própria comunidade (At 2,41-47; 4,32-37). Os bens deste mundo são todos perecíveis, por isso, não se pode depositar segurança neles. Além disso, costumam ser motivo de discórdia, tanto entre países, entre regiões de um mesmo país quanto entre irmãos, membros da mesma família, como se via no evangelho do domingo passado, quando Jesus foi interpelado a intervir numa contenda familiar sobre herança. Por isso, a partilha, motivada pelo amor, é tão essencial para o seguimento de Jesus.

A conclusão da primeira parte do texto é feita com um provérbio: «Onde está o vosso tesouro, aí estará também o vosso coração» (v. 34). Vale a pena recordar a importância do uso da imagem do “tesouro” na Bíblia. O primeiro sentido é a reunião de coisas preciosas acumuladas para serem conservadas como sinal de segurança, por isso, deveria ficar escondido, pois, se revelado, logo seria alvo de cobiça e estaria sujeito a assaltos. Como significa algo muito precioso, o termo passou a ser usado como imagem de realidades espirituais, em contraposição a bens materiais, principalmente na literatura sapiencial (Pr 2,4; Sb 7,14; Eclo 1,25). Todo judeu possuía um tesouro, independentemente do valor, porque tinha algo central em sua vida. O que o ser humano considerava mais importante na sua vida era o seu tesouro. Jesus se apropria desse uso para ilustrar a sua descrição do Reino de Deus em diversas ocasiões, como no texto de hoje. Como o coração para a mentalidade hebraica significava a sede do pensamento e da consciência do ser humano, ou seja, o centro da vida, Jesus quer dizer que é para o tesouro que a vida do homem se volta. Por isso, é necessário escolher bem o tesouro no qual se vai depositar toda a segurança, o que corresponde ao sentido da vida.

Na continuidade da catequese, Jesus apresenta três pequenas parábolas com o intuito de reforçar o ensinamento proposto. Ora, se durante a sua presença física, Ele já via sinais de desânimo entre os discípulos, muito mais seria quando já não estivesse mais fisicamente entre eles. Por isso, as parábolas insistem no tema da vigilância e da responsabilidade, preparando a comunidade para a continuidade da missão após sua morte. Estas parábolas são, ao mesmo tempo uma chamada de atenção aos discípulos e uma crítica à hierarquia religiosa judaica. A localização destas parábolas ainda no início do caminho é sinal da importância que o tema da vigilância possui para Lucas, pois se trata de um tema escatológico, mais apropriado para a fase final do ministério de Jesus em Jerusalém, próximo à sua morte, como fazem Marcos e Mateus, inserindo parábolas semelhantes (Mc 13,32-37; Mt 24,42-51). Ao colocá-las logo na etapa do caminho, o evangelista Lucas indica a importância do tema e a necessidade de mantê-lo em evidência no dia-a-dia da comunidade, ensinando que a vigilância não é uma atitude a se tomar no final da vida, e sim durante toda a existência.

A primeira parábola apresenta a imagem de um senhor que viaja para uma festa e deixa tudo aos cuidados dos seus servos (vv. 35-38). É introduzida com um imperativo: «Que vossos rins estejam cingidos e as lâmpadas acesas» (v. 35). Parece uma imagem sem sentido para os dias atuais, mas muito significativa no seu contexto. É a imagem de quem está em atitude de serviço. A vestimenta básica da época era a túnica; essa não facilitava o serviço, pois atrapalhava o movimento. A expressão «os rins cingidos» quer dizer estar com a túnica levantada até a cintura, posição dos rins, presa ao cinto. Com isso, facilitava-se o movimento. Era assim que ficavam as pessoas enquanto trabalhavam ou viajavam. Significa estar pronto para caminhar e servir. Jesus pede uma postura vigilante, mas ao mesmo tempo serviçal. Seus discípulos devem vigiar sim, eis o sentido das «lâmpadas acesas»; mas, enquanto vigiam colocam-se em prontidão para o serviço. Foi “cingido” que Jesus lavou os pés dos discípulos na última ceia (Jo 13,4-5). Também os hebreus celebraram a primeira Páscoa assim: «E comereis assim: com a cintura cingida, as sandálias nos pés» (Ex 12,11a). Há uma clara intenção da parte de Lucas de incentivar a comunidade a manter-se constantemente em espiritualidade pascal. Isso se confirma pela continuação da parábola, na qual se diz que, quando o senhor voltar da festa, fará os servos sentarem-se à mesa, e os servirá (v. 37). Uma atitude surpreendente para quem é senhor. Essa é uma das mais belas imagens que Jesus aplica a Deus e a si mesmo: um senhor, grande proprietário que, ao invés de exigir serviço dos seus servos, abaixa-se para servi-los. Somente Jesus, sendo Senhor, fez-se servo (Lc 22,27).

A segunda parábola (vv. 39-40) apenas reforça a necessidade da vigilância, através da imagem do ladrão que não avisa a hora do assalto, mas procura exatamente surpreender o dono da casa. É necessário que a comunidade não seja surpreendida. Essa é a única vez, em toda a Bíblia, que Deus é apresentado como um ladrão, embora o “Dia do Senhor” seja apresentado com essa mesma imagem (1Ts 5,2; 1Pd 3,10; Ap 3,3). A falta de conhecimento do dia e da hora da vinda do Senhor deve ser motivo para a comunidade não desviar o foco por um único instante; isso quer dizer que os discípulos não podem, em momento algum, deixar de viver o programa de Jesus, ou seja, o Evangelho do Reino.

A terceira parábola (vv. 42-48) é uma resposta direta à pergunta de Pedro: «Senhor, tu contas essa parábola para nós ou para todos?» (v. 41). Está claro que os discípulos não eram os únicos ouvintes de Jesus quando ele profere estes ensinamentos. Essa pergunta de Pedro reflete o medo da responsabilidade que afligia os discípulos. De fato, para um rebanho tão pequeno, era muita responsabilidade herdar o Reino e assumir as suas consequências. Jesus não responde diretamente a Pedro, mas com a parábola (vv. 42-48), como faz com outros interlocutores. Dessa vez, ele faz uma crítica explícita à hierarquia religiosa judaica, acusada de relaxamento e mau exemplo desde os tempos do profeta Ezequiel, através da imagem dos «maus pastores» (Ez 34,1-10), e ao mesmo tempo alerta a comunidade dos discípulos a perseverar como guardiã do Reino, consciente da responsabilidade. Provocado pela pergunta de Pedro, e percebendo a sua insegurança, Jesus direciona o ensinamento a todos os discípulos. É deles que serão feitas exigências maiores, exatamente porque a eles foi confiado o Reino. E essas exigências se estendem aos discípulos e discípulas de todos os tempos. Por isso, ele ilustra com a contraposição de comportamentos de dois servos. O primeiro age com prudência, fidelidade e comportamento exemplar, e tem como recompensa um crescimento na confiança do seu senhor (vv. 42-44). O segundo, pelo contrário, relaxa nas comodidades da vida e no abuso do poder (vv. 45-46).

Comer e beber em demasia, até embriagar-se, era sinal de felicidade, numa sociedade e religião que pregavam a prosperidade como bênção de Deus, assim como maltratar os criados e criadas não passava de uma demonstração de autoridade. Jesus reprova tais atitudes, pois ferem a dignidade humana e distraem o ser humano do essencial, que é cultivar tesouros no céu e não se deixar dominar pelas coisas passageiras como comida e bebida. A punição anunciada – “partir ao meio” (em grego: διχοτομήσει – dikotomêssei) – era a máxima execução aplicada na Pérsia, mais cruel até que a crucifixão no império romano. No mundo judaico, expressava a pena destinada a quem transgredia a aliança com Deus, embora não se tenha notícia de ter sido realmente aplicada. Não se trata propriamente de um anúncio de castigo, mas de um alerta à perda de sentido da vida. Partido ao meio, o ser humano estava impedido de participar da ressurreição no último dia, como acreditavam os judeus. Portanto, estavam destinados ao sofrimento eterno. Essa é a imagem de uma vida sem sentido. Os versículos conclusivos (vv. 47-48) refletem uma particularidade do direito judaico: a responsabilidade e a culpa têm uma proporção gradual segundo o nível do conhecimento. As penas eram aplicadas de acordo com o nível de conhecimento da lei. Quem conhece a vontade de Deus, expressa sobretudo nas Sagradas Escrituras, tem o dever de pô-la em prática primeiro, bem como quem detém dons e carismas na comunidade. E é esse o objetivo do evangelista: chamar a atenção das lideranças da comunidade que, além dos processos de institucionalização e hierarquização, davam sinais de comodismo e relaxamento em relação às exigências do Evangelho.

Percebemos, então, com evangelho de hoje, o convite de Jesus à comunidade-Igreja para abraçar com humildade a responsabilidade de herdeira do Reino, tendo a missão de fazer esse Reino crescer. É preciso conscientizar-se da condição de pequeno rebanho, renunciando a qualquer mentalidade triunfalista e pretensões de poder. Toda a comunidade é convidada a empenhar-se nesse projeto, pois ela toda é herdeira. Porém, há uma exigência maior para aqueles que assumem responsabilidades maiores. Para isso, é necessária a vigilância constante. E o sentido da vigilância não é provocar medo, mas tornar as pessoas atentas, sensíveis e disponíveis à vontade de Deus e às necessidades do próximo.

Pe. Francisco Cornelio Freire Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

sábado, agosto 02, 2025

REFLEXÃO PARA O 18º DOMINGO DO TEMPO COMUM – LUCAS 12,13-21 (ANO C)



O evangelho deste décimo oitavo domingo do tempo comum – Lc 12,13-21 – continua ambientado no contexto do longo caminho de Jesus com seus discípulos para Jerusalém, onde viverá a consumação da sua missão, com os eventos da paixão, morte e ressurreição. Como tem sido enfatizado há alguns domingos, esse caminho constitui a seção narrativa mais longa e mais original de todo o Evangelho segundo Lucas, totalizando dez capítulos (Lc 9 –19). Por consequência, é também a seção que fornece mais textos para a liturgia dominical do ano C. De fato, do décimo terceiro ao trigésimo primeiro domingo do tempo comum, no respectivo ano litúrgico, o evangelho compreende uma passagem do caminho, embora nem todos sejam vivenciados, devido a algumas solenidades celebradas nesse intervalo. Como sempre, é importante recordar que, mais do que um percurso físico/geográfico, esse caminho é, acima de tudo, um itinerário formativo, teológico e catequético, no qual Jesus apresenta os principais elementos do seu ensinamento aos discípulos e Lucas os transmite com tanta habilidade aos leitores da sua obra em todos os tempos.

Podemos dizer que Lucas juntou os principais ensinamentos de toda a vida de Jesus e distribui-os na seção do caminho, mesclando textos exclusivos seus com outros comuns aos demais evangelhos sinóticos (Mateus e Marcos). Enquanto caminha, Jesus entra em contato com as pessoas, deixando-se interpelar, interagindo. Enquanto faz isso, ele promove seu programa, que comporta uma verdadeira proposta de humanização para o mundo. Vale salientar que, mesmo quando interage com outros personagens durante o caminho, como acontece no evangelho de hoje, os destinatários principais da mensagem são sempre os discípulos. Assim, neste itinerário são abordados os temas fundamentais para a formação do discipulado de todos os tempos: a partilha, a importância da oração, o universalismo da salvação e da missão, a misericórdia, a necessidade de fazer renúncias e o perigo do apego aos bens materiais, tema do evangelho de hoje. Uma vez contextualizados, olhemos para o evangelho de hoje. Esse texto, que é exclusivo de Lucas, compreende um pedido de intervenção de Jesus por um homem desconhecido (v. 13), cuja resposta (vv. 14-15) é seguida de uma parábola que denuncia o perigo do apego aos bens e a confiança nas riquezas (vv. 16-21). Essa parábola ficou conhecida como a parábola do rico insensato.

Eis o texto: «Alguém, do meio da multidão, disse a Jesus: “Mestre, dize ao meu irmão que reparta a herança comigo”» (v. 13). Esse pedido reflete uma situação bem frequente. Provavelmente, Jesus estava passando por um povoado, onde as opiniões dos rabinos – como Jesus era considerado – eram bastante requisitadas, sobretudo para ajudar a resolver questões que envolvessem a interpretação da Lei, como casos de herança, por exemplo. Inclusive, os rabinos eram muito interessados por questões desse tipo e se sentiam honrados quando solicitados, pois, além de ser uma oportunidade para exibir conhecimento, ainda recebiam uma recompensa financeira quando conseguiam promover o acordo. A questão das heranças era bem problemática em Israel, causando muitos conflitos familiares. Provavelmente, o homem que pede a intervenção de Jesus era um filho mais novo, já que era o filho mais velho quem tinha controle sobre toda a herança da família, de acordo com a Lei. Ora, enquanto o primogênito tinha direito a dois terços da herança, o outro terço era distribuído com os demais filhos (Dt 21,16-17). Em compensação, o primogênito tinha também o dever de cuidar da mãe viúva e das irmãs solteiras. De todo modo, a Lei permanecia ambígua e até injusta, em termos de equidade. Com efeito, era muito comum o filho primogênito manter o controle de toda a herança, negando-se a repartir com os outros a parte devida a cada um.

Geralmente, quando um filho mais novo pedia a divisão dos bens havia conflitos. Com frequência, levava-se a questão para ser resolvida nos tribunais, o que tornava a situação constrangedora para todos os envolvidos, devido à exposição pública. Nas famílias mais religiosas, a fim de evitar exposições, quando não se conseguia resolver internamente, buscava-se a intervenção de um rabino ou um mestre da Lei, os quais exerciam papel de advogado e juiz, sobretudo, nos pequenos povoados, onde quase ninguém conhecia a Lei em profundidade e nem havia um órgão jurídico funcionando permanentemente. Por isso, na passagem de um rabino por um povoado, era comum aparecer questões desse tipo. Ao pedido de intervenção, «Jesus respondeu: “Homem, quem me encarregou de julgar ou de dividir vossos bens?”» (v. 14). Antes de tudo, Jesus se nega a agir como os rabinos do seu tempo, e se recusa a arbitrar em questões desse tipo. A princípio, parece estranha a recusa, uma vez que, ao que tudo indica, alguém estava sendo injustiçado naquele caso, pois um irmão estava se negando a repartir a herança com o outro, ou seja, estava usurpando um direito. E, como promotor da fraternidade e da justiça, é claro que Jesus tinha interesse na resolução de conflitos entre irmãos. Mas, ao recusar a julgar a questão, Jesus não estava lavando as mãos, como aparenta. É claro que o mais lógico seria que ele interviesse e ajudasse na resolução do problema, chamando o outro irmão para conversar até convencê-lo a repartir a herança como determinava a Lei.

A primeira novidade deste episódio é a recusa de Jesus em atender o pedido de ajuda de uma pessoa aparentemente injustiçada. Na verdade, essa é única vez que ele se nega a ajudar alguém que lhe pede. Ora, com sua aparente omissão, Jesus ajudava a prolongar a discórdia entre os irmãos e, de certo modo, corroborando uma situação de injustiça. Mas Jesus conhecia as intenções daquele homem e a mentalidade vigente; sabia que sua reclamação não era motivada apenas por sentir-se injustiçado, mas pela ganância, ou seja, por ter depositado toda a confiança naquela herança. Se ajudasse a resolver aquele problema, conforme solicitado, Jesus estaria alimentando a ganância e o desejo de acúmulo, enquanto o problema era muito mais profundo. Resolvendo um caso a mais, não mudaria uma mentalidade tão impregnada naquela cultura. Por isso, ele prefere ir à raiz do problema. Ora, aquela herança um dia passaria por nova divisão, quando aquele homem morresse e a deixasse para seus filhos. Poderia ser causa de discórdia novamente. Jesus quer mostrar que no seu Reino as heranças não devem ser divididas, pois não devem existir, uma vez que tudo deve ser partilhado. Isso ele deixará claro com a parábola que segue. Ao invés de legalmente divididos, os bens devem ser partilhados conforme a necessidade de cada pessoa, e não de acordo com tradições e normas legais.

A parábola vai sendo preparada aos poucos. Do caso específico do homem que lhe pede intervenção, Jesus aproveita para chamar a atenção dos discípulos: «E disse-lhes: “Tomai cuidado contra todo tipo de ganância, porque, mesmo que alguém tenha muitas coisas, a vida do homem não consiste na abundância de bens”» (v. 15). A expressão “disse-lhes” sinaliza que não é mais a um indivíduo, mas aos discípulos e a todos os ouvintes e leitores do Evangelho que ele está direcionando o ensinamento. A palavra grega traduzida por ganância (πλεονεξίας – pleonexías) significa o desejo de ter sempre mais, o não contentamento com o necessário. Logo, aqui ele faz uma advertência muito séria. Certamente, ele sentia muita resistência nos seus seguidores no processo de assimilação de seus ensinamentos. Assim, ele vai de encontro a toda uma mentalidade hebraica que via no acúmulo de bens, ou seja, na riqueza, um sinal da bênção de Deus. Jesus contraria esse princípio e rompe definitivamente com a teologia da prosperidade. O acúmulo de bens é, na verdade, a prova maior da falta de sentido para a vida e, inclusive, causa de discórdias. Portanto, é urgente para seus seguidores e seguidoras libertarem-se dos bens que aprisionam e escravizam, colocando-os à disposição de todos, mediante a partilha. Provavelmente, seus discípulos ainda não tinham aprendido a rezar como ele e continuavam pedindo mais do que o pão necessário para cada dia, contrariando a oração que ele tinha ensinado há pouco tempo (Lc 11,2-4), como vimos no domingo passado.

Finalmente, chegamos na parábola. Recordamos que, em Lucas, especialmente, as parábolas não surgem do nada, são sempre contextualizadas, surgem como aprofundamento ou ilustração de um ensinamento já começado e visam responder a questões concretas da existência, como acontece neste episódio: «E contou-lhes uma parábola: “A terra de um homem rico deu uma grande colheita”» (v. 16). A expressão “contou-lhes” evidencia, mais uma vez, que o destinatário não é somente o homem anônimo que lhe pediu ajuda, mas todos os ouvintes, especialmente os discípulos. A parábola apresenta a figura de um homem rico, grande latifundiário, o qual fora surpreendido com uma grande colheita. A atitude e o pensamento do personagem da parábola com a colheita abundante são descritos a partir de um monólogo interior, no qual é revelado, sobretudo, o seu caráter: «Ele pensava consigo mesmo: “O que vou fazer? Não tenho onde guardar minha colheita”. Então resolveu: “Já sei o que fazer! Vou derrubar meus celeiros e construir maiores; neles vou guardar todo o meu trigo, junto com os meus bens. Então poderei dizer a mim mesmo: Meu caro, tu tens uma boa reserva para muitos anos. Descansa, come, bebe, aproveita!» (vv. 17-19). Convém mencionar que, como escritor refinado que é, Lucas é o único autor do Novo Testamento a empregar o recurso literário do monólogo interior. Por meio deste recurso, o autor revela o pensamento do personagem.

Como se vê, o personagem da parábola é um homem voltado somente para si. Na sua vida não havia espaço para o outro. Praticamente todas as suas falas são em primeira pessoa singular – vou fazer; vou derrubar; vou guardar; poderei –, além de um uso excessivo de pronomes possessivos – minha, meus –, o que revela um egoísmo profundo. Toda a sua confiança é depositada na abundância dos bens. Em seu pensamento não há espaço para Deus e nem para o próximo; ele pensa somente em si e nos bens que possui, e esse é o seu grande pecado. Esse homem representa o “anti-discípulo”: apegado aos bens, ganancioso, egocêntrico, autossuficiente e insensato. Quem apresenta tais características não tem condições de seguir o caminho de Jesus. Tudo o que os discípulos e discípulas de Jesus não podem ser, esse homem era. E, ao apresentar esse homem como contraexemplo, Jesus contesta a teologia tradicional, alimentada sobretudo pelos escritos sapienciais, que via o acúmulo de bens, ou seja, a prosperidade como sinal das bênçãos de Deus e sinônimo de vida exitosa. Inclusive, a última frase atribuída ao personagem da parábola sintetiza tal mentalidade: «descansa, come, bebe, aproveita!» (v. 19). Em certos círculos sapienciais comer e beber em abundância era visto como o objetivo principal do ser humano e, consequentemente, símbolos do sentido da vida (Ecl 8,15).

Para Jesus, a vida de uma pessoa perde o sentido quando não contempla Deus e o próximo. Por isso, na parábola ele mostra a intervenção divina, em forma de advertência e de protesto à mentalidade mesquinha e egoísta daquele homem: «Mas Deus lhe disse: “Louco! Ainda nesta noite, pedirão de volta a tua vida. E para quem ficará o que tu acumulaste?”» (v. 20). Aqui, não se trata de um ato vingativo de Deus, mas de um alerta, um convite à reflexão que é feito a cada pessoa, independentemente da quantidade dos bens acumulados. Quer dizer que é Deus a fonte da vida. É o sinal de contraposição à falsa segurança depositada, na riqueza, pelo homem da parábola (v. 19). Enquanto ele julgava ter vida longa pelo que havia acumulado, Deus entra na história para mostrar o que, de fato, tem valor. A pergunta final: “E para quem ficará o que tu acumulaste?” (v. 20b) é apenas uma ponte com o que gerou toda a discussão e a parábola: o pedido de intervenção daquele homem anônimo na divisão da herança. Ora, além de não garantir vida verdadeira, os bens acumulados ainda podem se tornar causa de discórdia, tirando a harmonia e a paz das pessoas. Por isso, a mentalidade egoísta e a ganância são tratados como loucura, insensatez. E o personagem da parábola é chamado de louco (em grego: ἄφρων – afron), de insensato, pois, ao pensar somente nos bens, tinha perdido a razão.

Com a frase final, Jesus completa o sentido da parábola e reforça a chamada de atenção aos discípulos: «Assim acontece com quem ajunta tesouros para si mesmo, mas não é rico diante de Deus» (v. 21). O acúmulo para si, como do personagem da parábola, torna o ser humano insensato, o leva a deixar de refletir sobre a vida e o seu sentido, tirando Deus e o próximo do seu horizonte. Isso é, consequentemente, empobrecer-se diante de Deus, pois priva a vida de sentido. Ser rico diante de Deus é, por outro lado, estar à disposição do seu projeto, cuja manifestação mais clara é a partilha e o serviço ao próximo. É isso que dá sentido à vida e torna a pessoa rica diante de Deus. Sendo a vida dom de Deus, essa só tem sentido quando o ser humano também se faz dom para o próximo. 

Jesus ensina, assim, a partir do pedido que o homem desconhecido lhe fez, aos seus discípulos a conscientizarem-se da incompatibilidade entre o seu seguimento e as riquezas deste mundo. Para isso, rompe, inclusive, com um princípio sagrado para o povo judeu, a herança. Se alguém deixou herança, foi porque acumulou. Se acumulou, foi porque não partilhou e, quem não partilha não está apto a fazer parte do Reino de Deus.

Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

sábado, julho 26, 2025

REFLEXÃO PARA O 17º DOMINGO DO TEMPO COMUM – LUCAS 11,1-13 (ANO C)



Neste décimo sétimo domingo do tempo comum, a liturgia prossegue com a leitura semi-contínua do Evangelho de Lucas, como é próprio do ano litúrgico C. E o texto proposto para este dia é a sequência imediata aquele do domingo passado, que correspondia ao episódio da visita de Jesus à casa das irmãs Marta e Maria (Lc 10,38-42). A passagem lida neste dia – Lc 11,1-13 – constitui-se uma verdadeira catequese sobre a oração, dentro do contexto do longo caminho de Jesus com seus discípulos para Jerusalém. Como tem sido afirmado nos últimos domingos, é sempre oportuno recordar a importância do caminho para as dinâmicas narrativa e teológica de Lucas: não se trata de um percurso físico-geográfico, simplesmente, mas de um itinerário formativo, catequético e espiritual, no qual Jesus apresenta o seu programa, com seus principais ensinamentos e as exigências básicas que o seu seguimento comporta. Na verdade, o caminho de Jesus na perspectiva de Lucas é metáfora da própria vida cristã. Logo, só pode ser cristão/cristã quem se dispõe a percorrer com ele esse caminho. E, enquanto caminha, Jesus se relaciona com Deus e com as outras pessoas: entra nas casas, responde perguntas, corrige os discípulos, faz advertências, conta histórias, participa de banquetes festivos e também encontra tempo para rezar, como mostra o evangelho de hoje.

Se no domingo passado o evangelho evidenciava a convivência de Jesus com as pessoas durante o caminho, ao relatar sua visita à casa das irmãs Marta e Maria, o de hoje destaca sua relação com Deus, o Pai, por meio da oração. Inclusive, convém recordar que Lucas é, por excelência, o evangelho da oração; ele faz referência a Jesus rezando/orando sete vezes, do batismo à paixão, o que corresponde exatamente à totalidade do seu ministério (Lc 3,21; 5,16; 6,12; 9,18; 9,28-29; 11,1; 22,41). De fato, Lucas mostra Jesus em oração do começo ao fim da sua missão. Atitude semelhante ele vai mostrar da Igreja, no segundo volume da sua obra, o livro de Atos dos Apóstolos. Obviamente, o evangelista quer mostrar que a oração foi o grande alimento de Jesus em sua vida pública. Foi pela força da oração que ele levou a cumprimento o projeto do Pai em sua vida. E o ponto alto do evangelho de hoje é a oração que Jesus ensina aos seus discípulos, preservada e transmitida pelas comunidades cristãs com o título de “Pai-nosso”. Se tem notícias de pelo menos três versões desta oração circulando nas primeiras comunidades: uma versão no Evangelho de Mateus (Mt 6,9-13), outra em Lucas, contida no evangelho deste domingo, e ainda outra na Didaquê, um texto do segundo século que é considerado o primeiro catecismo do cristianismo. Das três versões, a de Lucas é a mais abreviada e, por isso, considerada a mais próxima das palavras originais de Jesus, de acordo com a maioria dos estudiosos.

O texto começa com uma introdução típica de Lucas, que ajuda o leitor a perceber a ambientação e o contexto do episódio: «Jesus estava rezando num certo lugar» (v. 1a). Independentemente das circunstâncias, Jesus reservava sempre uma parte do seu tempo para a oração; era algo que integrava o seu cotidiano. Assim como tinha estado há pouco tempo numa casa, em diálogo claro e sincero com duas mulheres, Marta e Maria, agora ele se encontra em diálogo com Deus, o Pai. O ambiente é “um certo lugar”, provavelmente um espaço improvisado, de acordo com o contexto do caminho e das características itinerantes do seu movimento que, ao contrário do judaísmo oficial, não possuía estruturas fixas. Com isso, o evangelista quer recordar que ele não dependia das estruturas oferecidas pela religião oficial para cultivar sua intimidade com o Pai. Na sequência, encontramos informação impressionante: «Quando terminou, um de seus discípulos pediu-lhe: “Senhor, ensina-nos a rezar, como também João ensinou a seus discípulos”» (v. 1b). Certamente, era bonito o jeito de Jesus rezar, impressionava quem via, não pelo palavreado, mas pela intimidade com Deus que ele revelava. As entrelinhas do texto dão a entender que os discípulos estavam olhando ele rezar e ficaram admirados, tanto que não ousaram interrompê-lo, mas esperaram que ele terminasse. Impressionados, tiveram vontade de fazer o mesmo. Talvez, e muito provavelmente, estavam angustiados porque conviviam com ele já há um certo tempo e ainda não tinham aprendido muita coisa, nem mesmo a rezar como ele. E, o discípulo tem o dever de tornar-se parecido com o seu mestre, de fazer tudo à sua maneira, incluindo jeito de rezar.

Todo mestre ou rabino tinha um jeito próprio de conduzir o seu grupo, com seus ensinamentos, regras e fórmulas, inclusive, de oração. Geralmente, essas orações eram síntese da espiritualidade do grupo ou movimento. Parece que Jesus tinha deixado seu grupo muito à vontade, nesse sentido, não estabelecendo regras e fórmulas, o que poderia deixar seus discípulos muito livres, por um lado, mas também até inseguros, por outro. A regra de Jesus era apenas o seu jeito de viver. Em todos os evangelhos, essa é a única vez que os discípulos pedem que Jesus lhes ensine algo. Diante disso, seus discípulos usam o exemplo de João Batista, cujo movimento tinha características semelhantes ao de Jesus, até certo ponto, obviamente, entre os tantos existentes na época. Assim como outros mestres, João Batista tinha ensinado seus seguidores a rezar, embora não tenhamos conhecimento do seu conteúdo. Tem-se notícias de fórmulas de oração de outros movimentos e grupos contemporâneos. Tudo isso levava os discípulos de Jesus a sentirem necessidade de fórmulas também para eles. Contudo, a particularidade do jeito de Jesus exercer sua liderança era exclusivamente pelo exemplo, pelo seu jeito de viver. Por isso, não tinha preocupação de ensinar fórmulas para serem posteriormente repetidas.

Do jeito pessoal de Jesus rezar nasce a curiosidade e, da curiosidade, a necessidade nos seus discípulos. Por isso, pediram que lhes ensinasse. Ao pedido dos discípulos, Jesus responde. Mas, não dá uma fórmula, como faziam os rabinos do seu tempo. Pelo contrário, dá-lhes uma “anti-fórmula”, pois as primeiras palavras da sua oração sugerem exatamente uma quebra de protocolos e paradigmas. Os judeus, ao rezar, faziam longas introduções, exaltando a grandeza de Deus, antes de fazer as suas preces; utilizavam termos e expressões como “Altíssimo”, “Todo-Poderoso”, “Onipotente”, “Senhor”, “Santo dos Santos”, etc; essas expressões ajudam a reconhecer a grandeza de Deus, mas como alguém distante, em um grau infinitamente superior e alheio à realidade das pessoas. Jesus quer abolir essa mentalidade entre os seus seguidores. De fato, ele veio abolir o abismo estabelecido pela religião entre o humano e o divino. Por isso, introduz a sua oração ensinando a chamar a Deus de Pai, ou seja, como uma pessoa íntima e próxima de quem o invoca. Seu jeito de rezar causa impacto, sobretudo porque ele ensina na oração a chamar a Deus de Pai. Para nós, hoje, parece já não ser algo impactante. Mas, para a sua época foi altamente revolucionário. Ora, no Antigo Testamento, Deus é chamado de Pai poucas vezes, na maioria das vezes como metáfora ou como pai apenas de Israel enquanto povo, não na oração pessoal cotidiana. Em todo o Antigo Testamento, a palavra pai é atribuída a Deus somente quinze vezes. Enquanto isso, os evangelhos mostram Jesus chamando Deus de Pai cento e oitenta vezes, sem contar as inúmeras ocorrências nos demais livros do Novo Testamento. Tradicionalmente, a quem os judeus chamavam de pai era Abraão. Por isso a oração de Jesus é revolucionária e, mais ainda por ser um paradigma de relação com Deus e o próximo, muito mais do que uma fórmula.

Com o imperativo «Quando rezardes, dizei: Pai, santificado seja o teu nome» (v. 2), Jesus quer dizer, antes de tudo, que o primeiro elemento necessário para uma oração autêntica é ter clareza do seu destinatário. E é claro que é a Deus que deve ser direcionada toda oração cristã. Deus é um pai atento a todos os seus filhos e filhas que podem relacionar-se diretamente com ele, sem necessidade de intermediações. É um Deus que é, antes de tudo, um Pai! Logo, Jesus não inaugura uma nova fórmula de oração, mas propõe um novo jeito de se relacionar com Deus e com o próximo, como se verá na continuidade do texto. Dessa maneira nova de se relacionar com Deus, emerge a certeza de que ele está próximo de nós, como se fosse um amigo e, portanto, pode ser invocado a qualquer hora e em qualquer lugar. A «santificação do nome de Deus» (v. 2) e a “vinda do seu Reino” (v. 2) estão intrinsecamente relacionadas, a ponto de confundirem-se. Ora, o nome de Deus já é santificado, porque ele é, essencialmente, santo. O pedido diz respeito ao reconhecimento dessa santidade. E reconhecer a santidade de Deus é saber que ele é Pai, é aceitar a condição de filhos e filhas e, portanto, viver como irmãos e irmãs. Isso é permitir que o seu Reino seja instaurado entre nós. O Reino que já fora inaugurado por Jesus (Lc 4,16-22), precisa ser difundido pelos discípulos até chegar a todos os lugares e épocas. A construção do Reino é, pois, a constatação se o nome de Deus está sendo santificado ou não, ou seja, se ele está sendo reconhecido como realmente é:  um Pai. Logo de início já se percebe, portanto, o quanto é comprometedora a oração ensinada por Jesus, pois o seu primeiro fruto é a fraternidade, consequência imediata do reconhecimento de Deus como Pai. A invocação da vinda do Reino de Deus esclarece que não se trata de uma realidade para o futuro, não é uma promessa para o pós-morte, mas uma urgência para este mundo. O Reino de Deus pensado por Jesus é a alternativa de sociedade aos reinos deste mundo, sobretudo aos grandes impérios que dominaram Israel, como a Assíria, Babilônia, Pérsia, Grécia e Roma. Torna-se alternativa também a todos os projetos de poder que ferem a dignidade humana e a inteira criação. Por isso, continua urgente a sua instauração, cujo resultado será a vida em abundância, com o primado da fraternidade nas relações humanas e um mundo plenamente humanizado.

Na sequência da oração, Jesus vai recomendando o que é necessário pedir, ou seja, quais são as reais necessidades do ser humano. E a primeira petição corresponde à necessidade mais básica do ser humano: «Dá-nos a cada dia o pão de que precisamos» (v. 3). Na Palestina antiga, o pão era o principal alimento. Aqui, além do alimento concreto, significa tudo o que o que ser humano necessita para viver com dignidade, a começar pelo acesso diário às refeições. Com isso, Jesus compromete bastante os seus seguidores, associando a instauração do Reino de Deus ao compromisso concreto para que o pão cotidiano esteja sempre presente em todas as mesas. Invocar o Reino é comprometer-se na luta por uma vida digna para todas as pessoas. A falta de acesso ao alimento cotidiano denuncia que o Reino ainda não foi completamente instaurado e, portanto, recorda a necessidade de os seguidores de Jesus se empenharem cada vez mais nessa construção. Esta luta comporta um combate à cultura do acúmulo, ao egoísmo, por isso a invocação é pelo “pão de cada dia”, nem demais e nem de menos. Com isso, ele também recorda a condição existencial do ser humano: ele não pode ser autossuficiente por um dia sequer, mas em tudo depende de Deus, até mesmo no que é mais básico, como o alimento de cada dia. Um elemento indispensável para que uma comunidade viva efetivamente segundo as características do Reino é a confiança e a solidariedade. Obviamente, Jesus alude ao antigo maná (Ex 16) com essa petição. Há, aqui, um verdadeiro combate e denúncia à cultura do acúmulo, tema que será desenvolvido na sequência da viagem, principalmente com as parábolas do rico insensato (11,14-21) e do rico avarento com o pobre Lázaro (16,19-31).

A menção ao perdão não poderia faltar na oração que deve caracterizar a comunidade cristã, pois o perdão é essencial para a vivência da fraternidade plena. Por isso, Jesus recomenda este pedido na sua oração: «Perdoa-nos os nossos pecados, pois nós perdoamos também a todos os nossos devedores» (v. 4). O pedido de perdão a Deus era comum nas orações dos diversos movimentos religiosos, daquela época e de todos os tempos. Realmente, é somente Deus quem pode perdoar pecados. Assim como o pedido do pão cotidiano, também esse visa conscientizar o ser humano de sua necessidade diante de Deus. A grande novidade apresentada por Jesus nesta oração é a condição para se buscar o perdão de Deus: «nós também perdoamos aos nossos devedores» (v. 4). Com isso, Ele ensina que o perdão de Deus deve ser mediado pelo perdão fraterno; não porque a misericórdia de Deus esteja condicionada ao agir humano, mas porque a relação com Deus exige uma coerência de vida. A abertura total a Deus deve traduzir-se em uma relação nova com o próximo, tema tão caro a Lucas. Isso implica que, mais do que ser perdoado, é necessário viver reconciliado. Por isso, o perdão deve ser mútuo.

A última das petições da oração de Jesus é «não nos deixes cair em tentação» (v. 4). A palavra tentação (em grego:  πειρασμός – peirasmós), quando aplicada em relação aos discípulos, e aos cristãos em geral, significa desistir, abandonar. Assim, a comunidade é convidada a pedir ao Pai o dom da perseverança. Em outras palavras, é um pedido de coragem para levar adiante um projeto tão audacioso como o de Jesus. É necessária muita resistência para lutar pelo Reino, contentar-se apenas com o necessário para cada dia e perdoar aos devedores. Por isso, deve-se pedir constantemente para não abandonar essa proposta de vida tão revolucionária e desafiadora. Isso significa ainda que a nossa continuação no seguimento de Jesus não depende apenas da nossa força ou vontade, mas da graça de Deus, pois é Ele quem dá a força da perseverança. Na mentalidade hebraica, o filho é aquele que é parecido com o pai. Portanto, chamar a Deus de Pai era bastante comprometedor, pois exigia muitas implicações concretas. Era muito mais cômodo chamá-lo de Altíssimo, Onipotente ou Santíssimo, pois estas expressões evocam a alguém distante e inacessível, inalcançável, aquele que não está presente no cotidiano da comunidade para relacionar-se com ela. O Deus de Jesus, que é Pai, está presente. Os discípulos deveriam, assim como Jesus, viver como filhos. Diante das exigências, a tendência à desistência era muito comum. Por isso, Jesus pede que eles peçam, constantemente, a graça de não abandonarem o seu projeto.

Como explicação para o conteúdo da oração ensinada, Jesus conta duas pequenas parábolas: a do amigo importuno (vv. 5-8) e a do pai terreno (vv. 11-12). Ambas têm a função didática de explicitar a proximidade do Deus-Pai e a necessidade da perseverança da comunidade na oração. Esse Deus é muito mais disponível do que um amigo, e muito melhor do que um pai humano. Desse modo, ele ressalta que a qualquer momento se pode invocar esse Deus-Pai e, pedindo o que é justo, jamais ele deixará de atender. Um amigo e um pai terreno, por melhores que sejam, tem suas limitações, mas mesmo assim não deixam de atender a outro amigo ou a um filho quando recorrem. Deus pode ser comparado a eles, mas é muito superior, não apenas em poder, mas em bondade, acima de tudo. Por isso, dá o que tem de melhor: O Espírito Santo (v. 13). Ora, o Espírito Santo é o dom de Deus, por excelência, e a prova de que ele doa o que tem de melhor.

A comunidade que se deixa guiar pelo Espírito Santo, saberá discernir para pedir ao Pai o que é, de fato, essencial. E, pedindo o essencial, é claro que o Pai concederá, desde que em consonância com a sua vontade. E é da sua vontade que todas as pessoas tenham acesso aos bem e meios necessários para viver com dignidade e que possam todos viver como irmãos e irmãs. São estas, portanto, as causas de quem reza como Jesus ensinou, pois, mais do que uma fórmula, como já foi bastante enfatizado, o Pai-nosso é reflete um jeito de viver.

Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

REFLEXÃO PARA A SOLENIDADE DA ASSUNÇÃO DE MARIA (LUCAS 1,39-56)

Neste ano, a liturgia do vigésimo domingo do tempo comum é substituída pela solenidade da Assunção de Maria, repetindo o que aconteceu no ...