Na liturgia
deste domingo – o vigésimo sexto do tempo comum – o evangelho continua sendo
tirado do capítulo dezesseis de Lucas, a exemplo do domingo passado. O tema predominante
desse capítulo é o uso das riquezas e dos bens materiais em geral, que é um dos
temas mais importantes de toda a obra lucana. O evangelista evidencia esse tema
como forma de denúncia às injustiças e como advertência à sua comunidade e aos
leitores de todos os tempos, ao mesmo tempo em que deixa cada vez mais
explícita a opção preferencial de Jesus pelos pobres e por todas as categorias
de pessoas marginalizadas. O texto lido hoje é a parábola do rico indiferente e
o pobre Lázaro – Lc 16,19-31. Estudos recentes colocam essa parábola como a
terceira mais conhecida de todo o Novo Testamento, ficando atrás apenas daquela
do “pai misericordioso e os dois filhos” ou do “filho pródigo” – 15,11-32 (a
primeira), e daquela do “bom samaritano” – 10,25-37 (a segunda). Todas três,
por sinal, são exclusivas do Evangelho de Lucas e estão localizadas na seção do
caminho de Jesus para Jerusalém (Lc 9,51– 9,36). Como temos enfatizado no
decorrer dos últimos domingos, mais do que um percurso físico-geográfico, esse
caminho é um itinerário catequético, teológico e espiritual. Trata-se de um
verdadeiro programa formativo para o discipulado de Jesus. Como refinado
escritor e bom catequista, Lucas reuniu os principais ensinamentos de Jesus e
os distribuiu nesse itinerário, antecipando a imagem de Igreja que será apresentada
no segundo volume de sua obra – o livro dos Atos dos Apóstolos: uma Igreja, peregrina
e missionária, profética e livre, cuja confiança é toda depositada no Espírito
Santo, a força motriz da evangelização.
Os
destinatários principais dos ensinamentos ao longo do caminho são sempre os
discípulos, mesmo quando os interlocutores diretos de Jesus são outros
personagens; inclusive, neste capítulo dezesseis há dois grupos de
interlocutores: os discípulos, conforme iniciava o texto do domingo
passado: «Jesus dizia aos discípulos...» (Lc 16,1a), e os
fariseus, a quem é dirigida de maneira mais direta a parábola de hoje. Ora, a
parábola do “administrador acusado de desonestidade” (vv. 1-8), lida no domingo
passado, é seguida de algumas sentenças proverbiais (vv. 9-13), sendo esta a
última: «não podeis servir a Deus e ao dinheiro» (v. 13). Logo
depois dessa última afirmação, na qual o dinheiro é colocado como opositor de
Deus, o evangelista diz que «os fariseus, amigos do dinheiro, ouviam
tudo isso e zombavam de Jesus» (16,14). As reações negativas dos
fariseus aos ensinamentos de Jesus são muito comuns, em todos os evangelhos; em
Lucas, particularmente, eles reagiam com murmúrio (Lc 5,9; 15,2), com perguntas
(Lc 6,2) e até com perseguição (Lc 11,53). Porém, como a catequese de Jesus
sobre o uso do dinheiro e das riquezas estava sendo muito radical, dessa vez os
fariseus reagiram zombando, ou seja, ridicularizando-o. Foi, portanto, da
reação sarcástica dos fariseus a Jesus que nasceu a parábola de hoje. Logo,
essa parábola se torna uma advertência a todos os “amigos do dinheiro” como
eram os fariseus.
Feitas as
devidas observações a nível de contexto, iniciamos o estudo do texto, que
começa desta maneira: «Havia um homem rico, que se vestia com roupas
finas e elegantes e fazia festas esplêndidas todos os dias» (v. 19). É
muito típico de Lucas introduzir episódios e parábolas com descrições detalhadas
dos personagens principais, como ele faz aqui. E a descrição do rico chega a
ser impressionante: um homem que se vestia elegantemente e festejava todos os
dias. Embora a tradução litúrgica empregue a expressão genérica «se
vestia com roupas finas e elegantes», para descrever o luxo do homem rico
no vestir, o texto na língua original descreve de modo mais específico, indicado
a qualidade dos tecidos, afirmando que ele «se vestia de púrpura e linho
fino». Esses tipos de tecido indicavam luxo e riqueza em excesso; eram
usados nas vestes reais e também para a confecção das indumentárias sacerdotais
em Israel (Ex 28,5). Com isso, se pode dizer que também a classe sacerdotal de
Jerusalém se torna alvo da crítica e denúncia de Jesus, com essa parábola. Além
do vestir, o excesso de luxo do rico é reforçado pelo seu banquetear-se todos
os dias. Ora, numa sociedade em que a maioria da população era pobre e
explorada, como era a Palestina no tempo de Jesus, essa descrição foi
impactante, e o objetivo do autor era mesmo causar impacto nos
ouvintes/leitores.
Como se sabe,
é típico de Lucas apresentar personagens com características opostas em
paralelo numa mesma história, mediante a técnica retórica do paradoxo, como ele
faz nesta parábola em tantas outras, como a do fariseu e o publicano (18,9-140),
por exemplo. Por isso, a descrição do segundo personagem desta parábola também
é impressionante, sendo que suas características são completamente opostas às
do rico: «Um pobre chamado Lázaro, cheio de feridas, estava no chão, à porta
do rico. Ele queria matar a fome com as sobras que caíam da mesa do rico. E,
além disso, vinham os cachorros lamber suas feridas» (vv. 21-22). Como
se vê, o autor não se contenta em dizer que havia um homem rico de um lado e um
pobre do outro, mas faz questão de enfatizar as diferenças extremas entre os
dois personagens: um é rico demais, e o outro é pobre demais. É interessante
perceber que o autor faz uma descrição minuciosa dos personagens, mas não faz
referência à conduta ética de nenhum deles: não diz se o rico era bom ou mau,
justo ou injusto, mas apenas diz que era rico; o mesmo acontece com Lázaro: não
se diz se era uma pessoa de boa ou má conduta, simplesmente diz que era
extremamente pobre e vivia em condições sub-humanas. O forte contraste entre os
dois visa motivar o ouvinte/leitor a tomar partido por um dos lados e,
consequentemente, rever seu próprio estilo de vida.
Embora seja
típico de Lucas, como já afirmamos, apresentar personagens com características
opostas em paralelo, em nenhuma outra ocasião ele fez isso com tanto exagero
quanto nesta parábola. Recordemos as diferenças de atitude entre Zacarias e
Maria, ao receberem os respectivos anúncios (Lc 1,5-38), entre Marta e Maria
(Lc 10,38-42), entre os dois filhos da parábola do pai misericordioso (Lc
15,11-32) e entre o fariseu e o publicano (Lc 18,9-14); em nenhuma dessas
ocasiões as diferenças entre os personagens contrapostos chegam a ser tão
abissais quanto entre o rico e Lázaro desta parábola. Embora próximos
fisicamente, pois o pobre permanecia à porta do rico, havia um verdadeiro
abismo entre os dois. A primeira e talvez a mais significativa das diferenças é
o nome: somente o pobre tem nome e, por sinal, é um nome carregado de
esperança: Lázaro significa “Deus ajuda”. Por sinal, esse é o único personagem
de uma parábola a receber um nome próprio; e o nome, na Bíblia, indica a
identidade e a dignidade da pessoa. Contrastando com as roupas finas do rico, o
corpo de Lázaro era coberto de feridas; isso significa que, além da exclusão
social, ele era excluído também da vida religiosa, já que uma pessoa com
feridas expostas era considerada impura; além disso, como os cachorros eram
animais impuros para os judeus, isso aumentava ainda mais a marginalização de
Lázaro, uma vez que os cachorros lambiam suas feridas. Aos banquetes do rico,
contrapõem-se as migalhas que caíam no chão, com as quais Lázaro queria matar a
fome e, mesmo assim, não tinha acesso.
Das descrições
iniciais que evidenciam o abismo entre os dois personagens, o autor passa a um
dado comum e igual para todos os seres humanos, a morte. Inevitavelmente, todos
morrem. Por isso, é tão importante dar sentido à existência enquanto se vive. Daí,
ele se diz que «Quando o pobre morreu, os anjos levaram-no para junto
de Abraão. Morreu também o rico e foi enterrado» (v. 22). Como se
sabe, e temos reforçado, a morte é inevitável; ricos e pobres passam por ela,
indistintamente. Como a parábola tem uma função didática muito forte, Jesus
acaba usando uma linguagem até apocalíptica, ao aplicar as imagens do destino
final dos dois personagens, embora não seja sua intenção descrever as
realidades futuras, ou seja, céu, inferno ou purgatório, como a parábola tem
sido equivocadamente interpretada. Fica claro, no entanto, que há uma inversão
de destinos, após a morte de cada um: «Quando o pobre morreu, os anjos
levaram-no para junto de Abraão. Morreu também o rico e foi enterrado. Na
região dos mortos, no meio dos tormentos, o rico levantou os olhos e viu de
longe a Abraão, com Lázaro ao seu lado» (vv. 22-23). Ao descrever o
destino de Lázaro, o evangelista emprega um termo muito importante, que foi
ignorado pela tradução litúrgica: seio ou colo (em grego: κόλπος – kólpos).
Portanto, ao invés de dizer que Lázaro foi para junto de Abraão, diz o
evangelista que ele foi para o “seio de Abraão”, o destino dos justos. Contudo,
não temos aqui uma descrição das realidades futuras, mas um alerta para que o
ser humano procure dar sentido à sua existência enquanto há tempo. Se o sentido
da parábola fosse escatológico, ela estaria localizada na seção do ministério
de Jesus em Jerusalém, já no final do Evangelho, onde está o ensinamento nesse
gênero. Aqui, o evangelista quer mostrar que o fechamento em si, o egoísmo
desenfreado, não é causa de condenação, mas já é a condenação em si mesma. Os
abismos entre as pessoas só podem ser superados durante a vida terrena. A
situação pós-morte descrita na parábola mostra apenas a perpetuação dos
abismos, quando não há empenho para superá-los enquanto é possível, ou seja,
enquanto se vive neste mundo (v. 26).
Percebendo as
consequências desastrosas de suas escolhas em vida, o rico inicia um diálogo
com Abraão, a quem chama de “pai”. Com isso, o autor revela que se trata de uma
pessoa religiosa, um judeu devoto: «Então gritou: “Pai Abraão, tem
piedade de mim! Manda Lázaro molhar a ponta do dedo para me refrescar a língua,
porque sofro muito nestas chamas”. Mas Abraão respondeu: “Filho, lembra-te que
tu recebeste teus bens durante a vida e Lázaro, por sua vez, os males. Agora,
porém, ele encontra aqui consolo e tu és atormentado”» (vv. 24-25). O reconhecimento
de Abraão como pai era um traço característico de todo bom judeu. Porém, esse
homem devoto viveu uma fé equivocada, pois não soube traduzi-la em frutos de
justiça em favor do pobre que sofria à sua porta. É interessante notar que o texto
não fala de inferno como destino do rico, apenas diz que ele foi enterrado,
ocupando a região dos mortos. E, de lá, gritou a Abraão, cuja resposta reforça
as consequências do abismo intransponível construído pela indiferença do rico
ainda em vida. Ao dar a sua causa por perdida e de certo modo contentar com tal
realidade, o rico pensa, embora tarde, nos seus familiares: «O rico
insistiu: “Pai, eu te suplico, manda Lázaro à casa do meu pai, porque eu tenho
cinco irmãos. Manda preveni-los, para que não venham eles para este lugar de
tormento”» (vv. 27-28). Com esse pedido, o rico só reforça a sua
mentalidade egoísta e mesquinha, pois pensa somente nos seus; não pensa na
humanidade, mas apenas no seu pequeno mundo: os seus irmãos, que provavelmente
eram aqueles que se banqueteavam com ele todos os dias. É interessante notar o
número dos componentes da família: seis irmãos; cinco vivos e um já morto. Como
se sabe, na Bíblia o número seis evoca imperfeição, incompletude, enquanto o
número sete significa perfeição e plenitude. Se os seis tivessem acolhido
Lázaro como irmão, aquela família teria se tornado completa, perfeita, plena. A
indiferença com Lázaro foi a causa de ruína para todos eles. Embora o texto não
afirme, tudo indica que os outros cinco terão o mesmo destino do primeiro deles
que morreu.
A resposta de
Abraão às novas súplicas do rico é muito clara: «Mas Abraão respondeu: “Eles
têm Moisés e os Profetas, que os escutem!”» (v. 29). A expressão
“Moisés e os Profetas” significa as Sagradas Escrituras, a Bíblia, o que para
os judeus corresponde ao que a tradição cristã denominou de Antigo Testamento.
E desde Moisés – a Lei (Ex 5,6; 23,10; Lv 19,10) até os profetas (Am 4,1; 8,4) –,
a Palavra de Deus adverte para a necessidade do cuidado com os pobres,
mostrando a predileção de Deus por eles. Negligenciar os pobres, portanto, é
negligenciar o próprio Deus. Com essa mesma expressão, o evangelista também
chama a atenção da sua comunidade para a eficácia da Palavra e que, diante
dessa, não há necessidade de fenômenos sobrenaturais como milagres, visões e
aparições. Assim, o evangelista ensina que uma fé autêntica e comprometida se
fundamenta na Palavra de Deus. A Lei e os Profetas são suficientes para indicar
o caminho a ser percorrido, qual o estilo de vida a ser adotado e como corresponder
à vontade de Deus. Para viver autenticamente a fé, a necessidade básica é a
atenção à Palavra de Deus e a adesão às exigências que essa contém, sobretudo a
atenção especial aos mais necessitados. Quem tem “Moisés e os Profetas”, ou
seja, o conjunto das Sagradas Escrituras (v. 31), mais o que chamamos de Novo
Testamento, o texto cristão por excelência, tem tudo o que é necessário para
viver e dar sentido à vida. Por isso, ler Moisés e os Profetas, ou seja, a
Sagrada Escritura, e não lutar para que os abismos criados entre as pessoas e
as desigualdades sociais sejam abolidas é simplesmente ignorar os apelos de
Deus.
Para concluir,
recordamos que alguns estudiosos acreditam que, seja por Lucas ou pelo próprio
Jesus, a construção desta parábola foi inspirada em Amós, o profeta da justiça,
por excelência. Seguindo essa linha, o rico é imagem da elite luxuosa de
Israel, que esbanjava riqueza às custas da exploração dos pobres, e Lázaro é
imagem dos pobres explorados, por quem Amós tomou partido, em nome de Deus. Não
esqueçamos que o final trágico do rico foi consequência da sua indiferença ao
sofrimento do pobre e por falta de atenção à Palavra de Deus. Que o olhar
atento à parábola, bem como ao conjunto da Palavra de Deus e da realidade do
mundo, nos motive a tomar partido e assumir o lado certo da história, como
fizeram Amós e Jesus.
Pe. Francisco
Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN
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