O texto
evangélico que a liturgia deste XIX Domingo nos oferece, continua a nos situar
no caminho de Jesus para Jerusalém e, portanto, nos impele a refletir na
condição de discípulos e discípulas, uma vez que esse caminho é uma profunda
catequese para o ontem e o hoje da Igreja. Trata-se do programa formativo de Jesus para o seu discipulado.
Diversos temas são tratados nesse contexto, ambos conexos entre si.
O texto de
hoje, Lc 12,32-48, apresenta o tema da vigilância e da responsabilidade, como
exigências para a comunidade herdeira do Reino, a qual é chamada ao
encorajamento diante das dificuldades enfrentadas ao longo do “caminho”.
Podemos dizer que esse caminho, aqui, é a própria história no seu
desenrolar-se. Ou seja, o que Jesus ensinou aos seus discípulos, continua
válido para os cristãos e cristãs de todos os tempos e lugares.
Para uma melhor
compreensão, uma vez que é bastante longo, podemos dividir o texto em duas
partes: uma introdutiva (vv. 32-34), e uma segunda,
composta de três pequenas parábolas (vv. 35-48) que visam apenas ilustrar com imagens o tema apresentado na
introdução. Trata-se de um texto
longo, mas bastante compreensível, desde que esteja claro o seu contexto, que é
o caminho formativo da comunidade.
O primeiro
versículo é a grande chave de leitura para todo o texto: “Não tenhais medo,
pequenino rebanho, pois foi do agrado do Pai dar a vós o reino” (v. 32). O pedido de
encorajamento (v. 32a) é sinal de que a proposta de Jesus não é de fácil
assimilação. As exigências e responsabilidades para segui-lo são muitas, por
isso havia tendência à desistência entre os discípulos. À medida que caminhava
com seus discípulos e discípulas, pois havia também mulheres no grupo (cf. Lc
8,1-3), aumentavam as hostilidades ao projeto revolucionário de Jesus,
principalmente da parte da hierarquia religiosa judaica, responsável pelo
confronto final em Jerusalém . Aumentavam também os conflitos internos no
grupo, tanto por rivalidade entre os discípulos, quanto por medo e desilusão
com as exigências que só aumentavam. Começavam a perceber que Jesus não
apresentava nenhum traço do messias ideal, esperado há séculos. Ao invés de
messias triunfante, como esperavam os judeus, Jesus parecia um louco
fracassado, fadado a terminar sozinho. Por isso, Ele insistia pedindo coragem e
perseverança.
Precisavam de
muita coragem e perseverança, exatamente porque se tratava de um “pequenino
rebanho” (v. 32b), praticamente invisível e sem importância diante das grandes
estruturas religiosa e política da época: o judaísmo oficial e o império
romano, respectivamente. Paradoxalmente, o pequeno rebanho tem um grande valor,
pois “foi do agrado do Pai dar-lhes o reino” (v. 32b). Realmente, trata-se de algo
maravilhoso e até surpreendente, mas inconcebível para as pretensões
triunfalistas vigentes naquele tempo. O reino proposto por Jesus, confiado pelo
Pai à pequena comunidade, não contém os elementos esperados, tais como poder,
riqueza, vaidade, concorrência, grandeza e tantos outros. A proposta de Jesus
contempla uma verdadeira inversão de valores e, certamente, a comunidade dos
discípulos não estava ainda pronta para absolver essa virada radical. Por isso,
a insistência de Jesus ao pedir coragem e perseverança.
Na sequência do
texto (v. 33), são apresentadas algumas das exigências para continuar ou não
como membros do “pequeno rebanho”: “vendei vossos bens e dai esmola” (v. 33a).
Com certeza, no grupo dos discípulos ainda havia alguns fazendo média com
Jesus, aderindo pela metade, ou seja, aparentemente despojados, mas com algumas
reservas escondidas, como Ananias e Safira nos Atos dos Apóstolos (cf. At 5,1-11).
Percebendo isso, Jesus pede um desprendimento total. Parece que a parábola do
rico insensato, refletida no domingo passado (cf. Lc 12,13-21) , ainda não fora
suficiente para esclarecer aos discípulos sobre a incompatibilidade entre o
apego aos bens materiais e os valores do Reino. Não basta vender os bens, é
necessário aplicar bem o valor destes para que realmente, um tesouro seja
adquirido. Mas, como? Partilhando, dando aos pobres. Alguns vendiam e ficavam
para si com parte dos valores, como já citamos o caso de Ananias e Safira.
A continuação
do versículo mostra o que deve ser o alvo do discípulo: possuir “um tesouro no
céu” (v. 33b), ou seja, buscar coisas que não se acabam, mas que permanecem
para toda a vida. Os discípulos ainda não tinham assimilado o ensinamento do
homem rico da parábola (cf. 12,13-21), ou seja, não tinham compreendido a
necessidade de que é necessário perder aos olhos do mundo, para ganhar aos
olhos de Deus. Jesus pede para os discípulos buscarem o que é eterno, o que
realmente tem valor no Reino que o Pai lhes confiou. E esse é um tema muito caro
para Lucas (cf. Lc 11,41; 16,9; 19,8).
A conclusão da
primeira parte é feita com um provérbio: “onde está o vosso tesouro, aí estará
também o vosso coração” (v. 34). Vale a pena recordar a importância do uso da
imagem do “tesouro” na Bíblia. O primeiro sentido é a reunião de coisas
preciosas acumuladas para serem conservadas como sinal de segurança, por isso,
deveria ficar escondido, pois se revelado, logo seria alvo de cobiça e estaria
sujeito a assaltos. Como significa algo muito precioso, o termo passou a ser
usado como imagem de realidades espirituais, em contraposição a bens materiais,
principalmente na literatura sapiencial (cf. Pr 2,4; Sb 7,14; Eclo 1,25). Assim,
independentemente do valor, cada judeu tinha um tesouro, porque tinha algo
central em sua vida. Jesus se apropria desse uso para ilustrar a sua descrição
do Reino de Deus em diversas ocasiões, como no texto de hoje. Como o coração para
a mentalidade hebraica significava o pensamento e a consciência do homem,
portanto, o centro da vida, Jesus quer dizer que é para o tesouro que a vida do
homem se volta. Por isso, exige que seus discípulos acumulem tesouro apenas no
céu, pois é para lá que devem estar direcionadas as suas vidas. Daí o sentido
do provérbio por Ele usado.
Continuando sua
catequese, Jesus apresenta três pequenas parábolas com o intuito de reforçar o
ensinamento proposto. Se durante a sua presença física, Ele já via sinais de
desânimo entre os discípulos, muito mais seria quando já não estivesse mais
fisicamente entre eles. Por isso, as parábolas insistem no tema da vigilância e
da responsabilidade, sendo, ao mesmo tempo uma chamada de atenção nos discípulos e uma crítica à hierarquia religiosa
judaica.
A primeira
parábola apresenta a imagem de um senhor que viaja para uma festa e deixa tudo
aos cuidados dos seus servos (vv. 35-38). É introduzida com um imperativo: “Que
vossos rins estejam cingidos e as lâmpadas acesas” (v. 35). Parece uma imagem
sem sentido para os dias atuais, mas muito significativa no seu contexto. É a
imagem de que está em atitude de serviço. A vestimenta básica da época era a
túnica; essa não facilitava o serviço, pois atrapalhava o movimento.
A expressão “os
rins cingidos”, significa a túnica levantada até a cintura, posição dos rins,
presa ao cinto. Com isso, facilitava-se o movimento. Era assim que ficavam
enquanto trabalhavam ou viajavam. Jesus pede uma postura vigilante, mas ao mesmo
tempo serviçal; seus discípulos devem vigiar sim, eis o sentido das “lâmpadas
acesas”; mas, enquanto vigiam colocam-se em prontidão para o serviço. Foi “cingido” que Jesus lavou os pés dos
discípulos na última ceia (cf. Jo 13,4-5). Também os hebreus celebraram a
primeira páscoa assim: “E comereis assim: com a cintura cingida, as sandálias nos pés”
(cf. Ex 12,11a). Há uma clara intenção da parte de Lucas de incentivar a
comunidade a manter-se constantemente em clima pascal. Isso se confirma pela
continuação da parábola, na qual se diz que quando o senhor voltar da festa
fará os servos sentarem-se à mesa, e os servirá (v. 37). Uma atitude
surpreendente para quem é senhor. Somente Jesus, sendo senhor, fez-se servo
(cf. Lc 22,27).
A segunda
parábola (vv. 39 e 40) apenas reforça a necessidade da vigilância,
através da imagem do ladrão que não avisa a hora do assalto, mas procura
exatamente surpreender o dono da casa. É necessário que a comunidade não seja surpreendida.
A terceira
parábola (vv. 42-48) é uma resposta implícita à pergunta de Pedro: “Senhor, tu
contas essa parábola para nós ou para todos? ” (v. 41). Está claro que os
discípulos não eram os únicos ouvintes de Jesus no momento. Essa pergunta
reflete o medo da responsabilidade que afligia os discípulos. De fato, para um
rebanho tão pequeno, era muita responsabilidade herdar o reino e assumir suas
consequências. Jesus não responde diretamente, mas com a parábola (vv.
42-48). Nessa Ele faz uma crítica explícita à hierarquia religiosa judaica,
acusada de relaxamento e mau exemplo desde os tempos do profeta Ezequiel,
através da imagem dos “maus pastores” (cf. Ez 34,1-10), e ao mesmo tempo alerta
a comunidade dos discípulos a perseverar como guardiã do Reino. O uso do termo
administrador no singular - oivkono,moj (oikónomos) em grego, exclusivo de Lucas – contrapõe-se aos homens da primeira parábola,
no plural. Portanto, provocado pela pergunta de Pedro, e percebendo sua
insegurança, Jesus direciona o ensinamento para os discípulos. É deles que
serão feitas exigências maiores, exatamente porque a eles foi confiado o Reino.
Claro que essas exigências se estendem aos discípulos e discípulas de todos os
tempos.
Percebemos, então,
com o longo texto evangélico de hoje, o convite de Jesus à comunidade-Igreja
para abraçar com humildade (pequeno rebanho, v. 32) a responsabilidade de
herdeira do Reino, tendo a missão de fazer esse Reino crescer. Toda a
comunidade é convidada a empenhar-se nesse projeto, pois ela toda é herdeira. Porém,
há uma exigência maior para aqueles que assumem responsabilidades maiores. Para
isso, é necessária a vigilância constante. E para Jesus, a verdadeira
vigilância consiste no serviço ao próximo.
Pe. Francisco Cornelio Freire Rodrigues
Nenhum comentário:
Postar um comentário