Não são raras as ocasiões em que Jesus nos surpreende com o seu
ensinamento. E, o texto que a liturgia deste XXV Domingo do Tempo Comum nos
apresenta parece conter uma das maiores surpresas desse ensinamento, pois Ele
apresenta um homem desonesto como modelo a ser imitado, pelo menos
aparentemente. Trata-se da chamada “parábola do administrador desonesto”, a
primeira do capítulo dezesseis (vv. 1-8), seguida de algumas máximas de
caráter proverbial (vv. 9-13).
É importante destacar que o texto compõe o amplo conjunto do
caminho catequético apresentado por Jesus em sua viagem para Jerusalém. No capítulo
em questão, o décimo sexto do terceiro evangelho, o tema central é exatamente o
uso dos bens materiais, ou melhor, da riqueza, especificamente. Esse tema é
ilustrado por duas parábolas: a do administrador “desonesto” (vv. 1-8) e aquela
do pobre Lázaro e o rico avarento (vv. 19-31), intercaladas por algumas máximas
de efeito prático-exortativo em estilo proverbial, que funcionam como
interpretação da primeira parábola, a de hoje, e preparação para a segunda. É importante
também recordar que as duas parábolas são exclusivas de Lucas, o evangelista
que mais combate a concentração de riquezas, propondo a partilha e a
solidariedade.
Assim, tendo já identificado o contexto da parábola, a catequese
sobre o uso dos bens e riquezas, podemos, logo de início, identificar os destinatários
da mesma: os discípulos, como vem afirmado logo no início: “Jesus dizia aos
discípulos” (v. 1a). Quando o evangelho diz que Jesus ensina diretamente aos
seus discípulos, quer dizer que se trata de algo urgente e, portanto,
inadiável. Quando Ele insiste com um mesmo tema, significa que se trata de algo
muito importante e, ao mesmo tempo, que os discípulos estão sendo lentos demais
na compreensão, a ponto de ser necessário repetir diversas vezes e de
diferentes modos. Tudo isso se verifica quando se trata do cuidado com o uso
dos bens e das riquezas.
Recordemos algumas ocasiões, ao longo do ‘caminho’, em que os
discípulos foram advertidos sobre o uso dos bens materiais: no Pai Nosso, ao
recomendar que se peça apenas o necessário para cada dia (cf. Lc 11,3), quando
negou-se a interferir em questões relacionadas à divisão de herança, contando a
parábola do homem rico insensato (cf. Lc 12,16-21), na apresentação das
exigências para o seu seguimento, ao colocar a renúncia de todos os bens como condição
para ser seu discípulo (cf. Lc 14,33). Como se vê, há uma insistência de Jesus
ao apresentar o tema do uso da riqueza, e isso se deve à resistência dos
discípulos, ou seja, faziam pouco caso com uma questão fundamental, a ponto de
Jesus, por necessidade, tornar-se repetitivo.
Feitas as devidas considerações introdutórias, entramos diretamente
no conteúdo da parábola, recordando a sua trama, como é sinteticamente
apresentada logo no primeiro versículo: “Um homem rico tinha um administrador
que foi acusado de esbanjar os seus bens” (v. 1b). É interessante que a
parábola não diz como o administrador esbanjava os bens do seu patrão. Isso poderia
acontecer de diversas maneiras, inclusive ajudando aos mais necessitados, o que
na ótica da economia, ao contrário do Reino, seria um modo de esbanjar. Recordemos
que Lucas é o único evangelista que usa o termo administrador, em grego oivkono,moj
(oikonomos), cujo significado
literal é “aquele que cuida dos bens da casa” como um supervisor, tendo total
liberdade na gerência dos negócios do patrão.
Diante da acusação de esbanjar os bens que não
lhe pertenciam, o destino do administrador não poderia ser outro, senão a
demissão ao ser chamado pelo patrão (v. 2). Parece que o próprio administrador
aceita ser tratado como desonesto, pois nem sequer pediu perdão ou desculpas ao
patrão; na iminência da demissão, o que lhe vem em mente é a preocupação com o
futuro. Isso o leva a uma profunda reflexão (v. 3-4). Trata-se de uma reflexão
bem calculista, própria do ‘ecônomo’. Em outras ocasiões, Jesus tinha convidado
seus discípulos também à reflexão até de modo calculista (cf. Lc 14,25-33),
como refletimos no XXIII Domingo. A reflexão leva o administrador a tomar uma
atitude, por sinal, bastante prudente, como fruto dos cuidadosos cálculos.
O medo do trabalho braçal e a vergonha de
mendigar (v. 3) levo-o a uma decisão firme e corajosa (vv. 5-7), própria de
quem fez uma ampla reflexão. Não sabemos se as medidas tomadas trouxeram ainda
mais prejuízos para o patrão, mas parece que não, pois o próprio patrão o
elogiará posteriormente (v. 8), por ter agido com “esperteza”. Na verdade, bem
mais que esperteza, o termo que Lucas utiliza é froni,mwj (fronimos), que designa ‘aquele que está em pleno uso da razão’, o
que é sábio, inteligente, prudente e sagaz, como deve ser a atitude do
discípulo de Jesus.
O coração da parábola está nos vv. 5-7. O sistema
tributário da época era bastante arbitrário, contrariando, inclusive, as leis
do Antigo Testamento que proibiam a usura, ou seja, o empréstimo por juros (cf.
Ex 22,19; 25,36-37; etc.). A reflexão do administrador parte de um dilema: agradar
ao patrão ou aos devedores? Pensando no futuro, prefere a segunda opção e
convida os devedores a uma revisão nas contas, por isso “chamou cada um dos que
estavam devendo ao seu patrão” (v. 5). Embora a parábola apresente apenas dois
devedores, supõe-se que havia um número muito grande, devido as proporções e
consequências do caso, a ponto de causar a sua demissão. Os dois casos
descritos, um devedor de azeite e outro de trigo, ajudam a compreender que,
mesmo tratando-se de quantias exorbitantes, se trata de produtos de subsistência,
embora de grande valor, mas eram necessidades primárias para a alimentação no
dia-a-dia, o que vem a supor que os devedores eram pobres.
A revisão nas contas prova que o administrador
fez uma opção clara: escolheu o lado dos mais fracos, os endividados,
tornando-se amigo deles (v. 9), pois somente os fracos e pobres tem
generosidade para partilhar o pouco que tem, dando acolhida ao próximo (v. 4),
como visava o administrador. Muitos intérpretes, sem base alguma nas linhas e entrelinhas
da parábola, dizem que o administrador com os supostos descontos de cinquenta
por cento para um e vinte para o outro, estava apenas abrindo mão da sua
desonesta comissão. Mas não há fundamentos claros nem na parábola nem nos
versículos explicativos que a seguem (vv. 9-13).
Juntemos, mais uma vez, algumas peças na
montagem do ‘quadro’ pintado por Lucas: o administrador foi “acusado de
esbanjar os bens do patrão” (v. 1b) e chamado de desonesto somente pelo próprio
patrão (v. 8a). Esse dado é muito importante para compreendermos a diferença
dos pontos de vista. A visão do patrão era meramente acumulativa, pensava
somente em lucros e, à medida que o administrador diminuísse seus lucros no
repasse dos bens administrados, não poderia ser acusado de outra coisa senão de
desonestidade. Mas, a lógica do patrão é exatamente o contrário da lógica do
Reino. O projeto do Reino de Deus é antítese à ideologia do mercado. Enquanto o
mercado incentiva o acúmulo, o Reino convida à partilha e à solidariedade.
O administrador foi solidário com os
endividados, usando o dinheiro injusto para fazer amigos (v. 9), ou seja,
preferiu bens que não passam, e a amizade é um destes bens eternos, ao aumento
dos lucros do seu patrão. De fato, o dinheiro acumulado será sempre injusto,
porque foi sugado de alguém, dos pobres. Estar em dia com as leis deste mundo
não equivale a estar em dia com o Reino. Dos discípulos, Jesus pede fidelidade
ao Reino, e por isso, muitas vezes, é necessário negar-se ao cumprimento das
leis “deste mundo”, a maioria injustas.
Concluímos, então, com uma referência ao
último versículo (v. 13), o qual convida o discípulo a cada vez mais amadurecer
em suas opções, tendo clareza de que não se pode servir a dois senhores, ou
seja, a Deus e ao dinheiro. Por incrível que pareça, o administrador,
aparentemente, desonesto, acaba sendo o exemplo de quem levou a sério esse
ensinamento e escolheu um único senhor, diante das duas opções: ajudando seu
patrão no acúmulo, estaria servindo ao dinheiro; como preferiu ajudar aos
pobres endividados, escolheu servir a Deus. Ele fez uma opção clara, típica de
quem está em pleno estado de lucidez (v. 8) para perceber qual é o lado de
Deus.
Pe. Francisco Cornelio F.
Rodrigues
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