Neste XXVI Domingo do Tempo Comum, a liturgia continua a nos situar
no longo caminho de Jesus rumo a Jerusalém. O texto evangélico oferecido é a
famosa parábola do rico avarento e o pobre Lázaro (Lc 16,19-31). Trata-se de
uma parábola exclusiva de Lucas, a segunda do décimo sexto capítulo; a primeira,
também exclusiva de Lucas, do chamado administrador astuto (Lc 16,1-8), seguida
de algumas máximas (16,9-13), fora objeto de nossa reflexão no último domingo
(XXV). O tema de todo o capítulo diz respeito ao uso dos bens materiais e à
relação do homem com os mesmos. Por sinal, um tema muito importante para a
catequese de Jesus aos seus discípulos.
Assim, podemos dizer que a reflexão de hoje se coloca em perfeita
continuidade com aquela apresentada há uma semana atrás. No entanto, embora o
tema seja praticamente o mesmo, é importante percebermos alguns detalhes
importantes a respeito do contexto, para uma compreensão mais ampla.
O primeiro dos detalhes observado diz respeito aos destinatários. Na
primeira parábola, conforme lemos no domingo passado, os destinatários diretos
eram os discípulos, conforme o primeiro versículo dizia: “Disse Jesus aos seus
discípulos: Um homem rico tinha um administrador que foi acusado de esbanjar os
seus bens” (cf. Lc 16,1). Para elucidar o enigmático conteúdo da parábola, Ele
proferiu algumas máximas em estilo proverbial. Embora fossem os discípulos os
destinatários, também os fariseus escutaram e, obviamente, reagiram
negativamente.
Reações negativas dos fariseus aos ensinamentos de Jesus são muito
comuns em todo o evangelho. Reagiam com murmúrio (cf. Lc 5,30), com perguntas
(cf. Lc 6,2), com perseguição (cf. Lc 11,53). Mas dessa vez reagiram de outro modo.
Como a catequese de Jesus sobre o dinheiro e riqueza foi muito radical, os
fariseus zombavam: “Os fariseus amigos do dinheiro ouviam tudo isso e zombavam
dele” (Lc 16,14). É, portanto, dessa reação sarcástica dos fariseus que nasceu
a parábola de hoje, tendo sido precedida também por algumas máximas. Os
destinatários diretos dela são os fariseus e todos os “amigos do dinheiro”,
como eles.
A parábola é iniciada com um indicativo muito importante, típico de
Lucas: “Havia um homem rico” (v. 19a). É a terceira vez que essa fórmula
aparece no evangelho de Lucas e sempre de modo negativo; a primeira vez
apareceu na parábola do rico insensato que mandou derrubar seus celeiros e
construir outros maiores para armazenar toda a sua produção, a ponto de ser
chamado de ‘louco’ (cf. Lc 12,16-20), a segunda vez foi na parábola refletida
domingo passado (cf. Lc 16,1-8). Hoje, na terceira vez, a perspectiva é ainda
mais negativa, uma vez que apresenta a riqueza como motivo da degeneração completa
e condenação perpétua, embora o objetivo da parábola não seja apresentar o
destino final das pessoas, nem tampouco descrever as realidades futuras.
É muito significativa a forma como a parábola é introduzida,
descrevendo dois personagens completamente diferentes: um rico elegantemente
vestido e festivo (v. 19) e um pobre ferido e mendigo, um miserável (v. 20). Se
trata de um verdadeiro paradoxo, técnica literária muito apreciada por Lucas,
sobretudo quando desenvolve um dos seus temas mais caros, o uso das riquezas e
a predileção pelos pobres, desde o cântico de Maria (cf. 1,52-53), passando
pelas bem-aventuranças e maldições (cf. 6,20.25), até a parábola de hoje. É um
modo de chamar a atenção do leitor.
O primeiro detalhe para evidenciar as
diferenças entre os dois personagens é o fato de que apenas um deles ter nome,
o pobre. Esse é um detalhe muito importante, pois o nome na bíblia significa a
identidade e ao mesmo tempo a dignidade da pessoa; quem dá o nome é Deus, pois
é Ele o Senhor, pai e artífice do universo. Aquele que tem nome é, portanto,
conhecido por Deus, contado entre os seus. E, se ter um nome já significativo,
mais ainda é o significado do nome do personagem da parábola: Lázaro, nome que
tem sua origem no hebraico rz"ß['l.a, - El’azar – cujo
significado é “Deus ajuda” ou “ajuda de Deus”. Outro dado significativo é que
essa é a única parábola em que Jesus dá nome a um personagem; em todas as
demais, os personagens são anônimos, como o rico desta.
A parábola apresenta,
então, dois homens que, embora fisicamente vizinhos, viviam em mundos
completamente diferentes; separados fisicamente apenas pela porta da casa do
rico (v. 20), e por um grande abismo de mentalidade construído pela indiferença
do homem rico. É interessante perceber que a parábola não descreve o caráter de
nenhum dos personagens, não fala da conduta ética e moral deles. Apenas descreve
as condições de cada um: um era muito rico e o outro muito pobre. Não diz se o
rico era uma má pessoa, diz apenas que era rico e levava uma vida luxuosa. Do pobre,
não se diz se era justo, bom ou trabalhador; se diz apenas que muito pobre,
mendigo. Certamente, esses detalhes devem ser considerados, sobretudo na
perspectiva da teologia lucana.
No quadro das
bem-aventuranças e maldições no Evangelho de Lucas (5,20-26), a primeira
bem-aventurança é dirigida aos pobres, afirmando ser deles o Reino de Deus (cf.
Lc 5,20). Lá, não se diz que são felizes os pobres de bom coração, os pobres em
espírito, os pobres justos... nada disso! Se diz que são bem-aventurados por
serem pobres. No elenco das maldições, Jesus utiliza a fórmula de denúncia
profética “ai de vós” dirigindo-se aos ricos por serem ricos, sem qualifica-los
(cf. Lc 5,24). Portanto, em Lucas os pobres são ‘benditos’ por Jesus por serem
pobres e os ricos são malditos por serem ricos. É claro que há muitas tendências
de interpretação que visam amenizar o impacto destas afirmações, embora desde o
início do evangelho essa perspectiva esteja muito clara.
O pobre Lázaro não queria
muita coisa: “Ele queria matar a fome com as sobras que caíam da mesa do rico”
(v. 21a). Vivia em estado de impureza legal, uma vez que suas feridas eram
expostas a ponto de atrair a atenção dos cachorros, animais impuros, que vinham
lambê-las (v. 21b). Portanto, tinha todas características de uma pessoa
amaldiçoada por Deus, segundo ‘teologia da prosperidade’ tão comum nos ambientes
farisaicos; de fato, imaginava-se que quanto mais riquezas o homem conseguisse
acumular, mais seria abençoado por Deus, assim como quanto mais pobre fosse,
mais seria amaldiçoado. Era essa a visão dos fariseus amigos do dinheiro que
zombaram de Jesus (cf. Lc 16,14). Com a parábola, Jesus quer desconstruir essa
falsa teologia, apresentando exatamente o contrário: quando mais rico, mais
distante dos desígnios de Deus e, portanto, de seu Reino.
Como a parábola tem uma
função didática muito forte, Jesus acaba usando uma linguagem até apocalíptica,
ao aplicar as imagens do destino final dos dois personagens, embora não seja
sua intenção descrever as realidades futuras, ou seja, mostrar o céu e o
inferno, como muitos pregadores têm, equivocadamente, interpretado. Ao dirigir-se
aos fariseus, Jesus usa uma linguagem acessível a eles, como de fato
acreditavam em categorias como prêmio para os bons e castigos para os maus. Realmente,
era muito comum nas pregações dos fariseus a advertência com estas categorias.
Jesus aplica-as, mas de modo inverso, contradizendo-os, ao apresentar os pobres
como beneficiários das consolações eternas.
Fala-se, pois da morte dos
dois homens. Interessante perceber a religiosidade do homem rico: “Pai Abraão”
(vv. 24.27). Ele era, portanto, um bom fariseu, reconhecia, como todo bom judeu
da época, a paternidade de Abraão, o pai na fé de todo o povo eleito. As respostas
de Abraão reforçam as consequências do abismo construído pela indiferença do
rico ainda em vida. Ao dar a sua causa por perdida, o homem pensa, embora
tarde, nos seus familiares (vv. 27-28). Mais uma vez, só reforça sua
mentalidade mesquinha e egoísta, pois pensa em si e no máximo, em seus
familiares. Não pensa nos outros, na coletividade, mas apenas no seu pequeno
mundo, naqueles que com ele se banqueteavam. E, recordamos que Jesus já tinha,
outra parábola, advertido sobre os critérios utilizados para a escolha dos
convidados nos banquetes (cf. Lc 14,12-14).
A resposta de Abraão às
súplicas do rico é muito clara: eles têm Moisés e os profetas (vv. 29.31). Com
essa expressão, diz-se que eles têm a Escritura. De fato, desde Moisés (cf. Ex
5,6; 23,10; Lv 19,10) até os profetas cf. Am 4,1; 6; 8,4), a palavra de Deus
adverte para a necessidade do cuidado com os pobres, mostrando claramente sua
opção por eles. Portanto, negligenciar o cuidado para com os pobres é
negligenciar o próprio Deus. Por fim, o homem pede, em súplica, um fenômeno
sobrenatural para advertir seus familiares, pedindo que Abraão libere Lázaro para
que vá até a terra e apareça-lhes. Ou seja, diz que, recebendo uma ‘visão’,
eles se converteriam. Como resposta, mais uma vez a Escritura é apresentada
como única base e fundamento para a fé. É em vão fundamentar a fé em visões,
aparições e sonhos. A fé autêntica e comprometida se fundamenta unicamente na Palavra
de Deus. E a Palavra nos adverte para o cuidado com os mais necessitados,
porque essa é a opção do próprio Deus.
Fazer opção pelos pobres,
portanto, não é comunismo nem oportunismo; é apenas compreender e fazer a mesma opção de
Deus, revelada na Sagrada Escritura!
Pe. Francisco Cornelio F.
Rodrigues
muito bom
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