Ao longo de quase vinte domingos, do décimo segundo ao trigésimo
primeiro do ano litúrgico em curso, acompanhamos o grande itinerário
catequético, teológico e espiritual de Jesus, através do longo caminho para
Jerusalém, apresentado pelo evangelista Lucas em dez capítulos (9 – 19). Eis
que a meta foi alcançada e, no Evangelho de hoje (Lc 21,5-19), contemplamos uma
importante etapa do curto ministério de Jesus em Jerusalém, mais precisamente
nas dependências do imponente templo.
Trata-se de um texto longo e complexo devido, principalmente, ao
uso do gênero literário apocalíptico, tão incompreendido e distorcido ao longo
da história. É comum nos evangelhos, sobretudo nas partes finais, o uso desse
gênero literário que não é indicativo de catástrofe, como tem sido
equivocadamente concebido, mas quer dizer revelação, ‘tirar o véu’ de algo para
torná-lo conhecido e, portanto, muito usado quando se fala das realidades
últimas. Logo, se trata de um texto muito passível de distorções na
interpretação, uma vez que faz parte do discurso escatológico do Evangelho de
Lucas.
Inegavelmente, a mensagem desse texto de hoje está voltada para o
fim; mas um fim como finalidade e não como extermínio. Infelizmente, a maioria
das interpretações têm estimulado uma concepção de fim como extermínio, marcado
por uma sequência de catástrofes, inculcando medo nas pessoas e levando-as a um
fundamentalismo extremo. Na verdade, Jesus está anunciando a transição entre
dois reinos: o reino dos homens e o reino de Deus. Obviamente, pelos contrastes
entre um e outro reino, essa transição deverá ser marcada por conflitos
inevitáveis, tendo em vista que o advento do Reino de Deus pressupõe a
superação de tudo o que diz respeito ao reino dos homens. Por isso, Jesus
previne e encoraja os seus discípulos para a inevitável tensão no período de
transição e os consequentes perigos.
Voltemos, pois, a atenção para o complexo texto que nos é proposto.
A cena transcorre nas dependências do templo, ambiente de decepção para Jesus,
considerando que, de ‘casa de oração’, foi transformado em ‘covil de ladrões’,
conforme ele denunciou anteriormente (cf. Lc 19,45-46). Para Ele, era muito
doloroso contemplar todas as arbitrariedades que faziam naquele ambiente, em
nome de seu Amado Pai! Na cena anterior ao episódio de hoje, ele tinha
lamentado pela pobre viúva explorada (cf. Lc 21,1-4). Ele já estava bastante
revoltado com tudo o que tinha visto ali; por isso, foi muito duro ao escutar
elogios àquela construção (v. 5), que ao invés de revelar, escondia o verdadeiro
rosto de Deus, o seu Pai; por isso, foi curto e grosso: “não restará pedra
sobre pedra” (v. 6b). Com essa expressão, Ele externa seu total
descontentamento com aquela instituição, dizendo que não há nada a se
aproveitar dela: deve ser exterminada o quanto antes!
Considerando que o famoso templo de Jerusalém era uma das grandes
maravilhas do mundo na época, pela sua imponência e beleza de seus adornos, uma
previsão de sua destruição despertava muitas curiosidades e perguntas como, de
fato, são feitas: “Quando acontecerá isso? Qual o sinal de que estas coisas
estão para acontecer?” (v. 7). À perguntas desse gênero, Jesus responde com
muita cautela e precisão, embora não diga quando, pois não é competência sua,
nem se trata de algo relevante. Ele pede, na verdade, para que os discípulos
não se apavorem com os acontecimentos que refletem os antigos sinais de fim dos
tempos, preditos ao longo da história de Israel pelos antigos profetas:
guerras, revoluções e fenômenos naturais como terremotos e pestes (vv. 9, 10,
11). A estes fenômenos e acontecimentos, ele aponta outro perigo: a manipulação
de seu nome por falsos pregadores e espertalhões que predizem, sem
fundamentação alguma, o final dos tempos e apresentam-se como sabedores das realidades
futuras (v. 8b). Ele pede para não nos deixarmos enganar por esse tipo de gente
(v. 8a), presente muitas vezes nas comunidades cristãs, infelizmente.
Na sequência, Jesus chama ainda mais a atenção dos seus discípulos
para as consequências da fidelidade ao seu projeto de construção de um mundo
novo: uma sociedade alternativa baseada em novos valores e princípios. Obviamente,
o advento de um mundo novo requer a superação de um mundo antigo, o que exige a
substituição dos valores tradicionais cultivados pela sociedade e religião do
tempo de Jesus, pelos valores que compõem o seu Evangelho. Eis porque os
conflitos se tornam inevitáveis: quem aceitar o Evangelho com seus valores,
rejeitará os princípios da antiga ordem estabelecida, mantida pela aparelhagem
ideológica da religião e do estado. Tais consequências culminam com as
perseguições nos mais diversos âmbitos: religioso, político e familiar.
Quanto às perseguições, que muitos viam como fim dos tempos, Jesus as
apresenta como meios que conduzirão o mundo ao seu verdadeiro fim: são sinais
de que o Reino de Deus se aproxima. De fato, a fidelidade de seus discípulos
será medida pela reação de três instituições a eles: a religião, o estado e a
família tradicional. Por isso, Jesus diz que os seguidores do seu Evangelho
serão perseguidos e entregues às sinagogas (v. 12), prova de que sua mensagem
desmascarava a religião institucional de seu tempo; serão conduzidos diante de
reis e governadores (v. 12), sinal da oposição radical entre o Reino de Deus e
os reinos dos homens, o estado; e serão entregues e mortos até mesmo pelos
próprios familiares (v. 16), o sinal de que até mesmo a instituição familiar é
abalada pela mensagem renovadora e libertadora de Jesus.
Diante de uma proposta tão exigente e ousada, Jesus faz um forte
apelo à fidelidade e perseverança dos seus discípulos, encorajando-os a não
desanimarem diante das adversidades. Antes de tudo, Ele garante que quando
estas coisas começarem a acontecer, os discípulos terão a oportunidade de dar
testemunho da fé nEle (v. 13). Ora, testemunho, em grego martu,rion – martyrion, significa testemunhar e assumir as consequências desse
testemunho, dando a vida se for preciso, como Jesus mesmo prevê (v. 16b).
Aconselha-os também a confiarem plenamente nEle, sem preocupações com o que
dizer e o jeito de se defenderem diante das acusações e calúnias (vv. 14-15).
Basta confiar e testemunhar.
É inevitável que, testemunhando Jesus, os
discípulos estarão alimentando o ódio daqueles que querem permanecer ligados às
antigas instituições e fechados à novidade do Evangelho. Porém, Jesus garante
que o mais importante, a vida, será preservada em sua integridade: “não
perdereis um só fio de cabelo de vossa cabeça” (v. 18). Ora, o fio de cabelo
significava a menor parte da vida de uma pessoa na mentalidade hebraica; assim,
Jesus diz que a vida do discípulo e discípula que perseverar no testemunho
corajoso do seu Evangelho, será ganha em sua totalidade e abundância (v. 19).
É, portanto, urgente e necessário conceber a
adesão ao ensinamento de Jesus como ruptura total com todas as estruturas e
instituições tradicionais para, de fato, testemunhar, de modo livre e novo, os
valores presentes em seu Evangelho. É urgente que abracemos um mundo novo,
caracterizado por novas relações em todos os âmbitos da vida, motivadas única e
exclusivamente pelo amor, deixando para trás todas as experiências
ultrapassadas, mesmo que usem o nome de Deus, como usava o esplêndido templo de
Jerusalém, o qual não merecia outro destino, senão a destruição completa. Por isso,
temos a certeza de que Jesus pregava o fim de um mundo antigo insustentável,
tendo como finalidade a construção de um mundo novo baseado nos valores do seus
Evangelho.
Pe. Francisco Cornelio F.
Rodrigues
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