A liturgia do II Domingo do Tempo Comum sempre propõe um texto
joanino, independente do evangelista do ano. Neste ano, o texto proposto é João
1,29-34, a continuação do testemunho de João Batista sobre Jesus,
apresentando-o como Cordeiro e Filho de Deus. Trata-se de um texto denso, como
é todo o Evangelho de João.
Para uma compreensão mais adequada do texto é necessário fazer uma
pequena observação ou correção na versão litúrgica: ao invés da genérica e
desnecessária expressão ‘Naquele tempo’, o texto original possui uma
delimitação temporal específica, infelizmente, omitida pela liturgia. De fato,
o versículo 29 é introduzido pela expressão “No dia seguinte”; pode parecer
apenas um detalhe, porém é muito importante.
Eis, portanto, a forma correta: “No dia seguinte, João viu Jesus
aproximar-se dele e disse: ‘Eis o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do
mundo’” (v 29). Ora, o Quarto Evangelho apresenta a famosa ‘semana inaugural’
da vida pública de Jesus, e a expressão omitida pela liturgia, ‘No dia
seguinte’, nos distancia do contexto daquela semana.
O primeiro dia foi marcado pela comitiva enviada pelas autoridades
religiosas de Jerusalém para interrogar João sobre sua identidade (cf. Jo 1,19-28),
e o último ou sétimo foi o dia das bodas de Caná (cf. Jo 2,1), o qual é
introduzido pela expressão grega th/| h`me,ra|
th/| tri,th| - ‘té hémera té
tríte’, que significa “o terceiro dia”, mas em relação aos quatro dias
anteriores e, portanto, é o sétimo da primeira semana.
Essa observação é interessante porque nos faz perceber que o
evangelista João apresenta o início do ministério de Jesus evocando a criação,
também ritmada pela estrutura de uma semana (cf. Gn 1,1 – 2,4). O Evangelho de
hoje, portanto, apresenta o segundo dia da nova criação, ou seja, do novo tempo
que o autor do Quarto Evangelho quer apresentar.
Um dia após ter sido interrogado pelos comissários de Jerusalém,
“João viu Jesus aproximar-se dele” (v. 29a). É necessário perceber a
importância da ação de Jesus: vir, aproximar-se, caminhar em direção a alguém,
no caso, João Batista. Uma nova ordem na história da salvação está sendo
inaugurada, e João a contempla como testemunha privilegiada: é Deus quem vem ao
encontro dos homens e mulheres, ou seja, ao encontro da humanidade. À humanidade,
cabe o papel de reconhecer, acolher e testemunhar, como soube fazer o Batista.
Quanta alegria para quem era considerado incapaz de ir até Deus (os
pecadores), e quanta tristeza para quem tinha ‘aprisionado’ Deus em um conjunto
de ritos e um edifício (judaísmo oficial da época)! De agora em diante, a crise
será inevitável, pois duas ordens entram em choque: a religião oficial e o novo
jeito de manifestar-se de Deus, em Jesus.
A reação de João Batista diante do que estava contemplando foi
decisiva e corajosa. Na verdade, com a afirmação “Eis o Cordeiro de Deus, que
tira o pecado do mundo!” (v. 29b), o Batista desmascarou de vez toda a elite
religiosa e política do seu tempo; não apenas colocou em xeque as autoridades
da época, mas decretou a completa falência delas.
Para a expressão “Cordeiro de Deus”, em grego o` avmno.j tou/ qeou/ - hó
amnós tu Theú, muitas possibilidades de interpretação foram sugeridas ao longo
da história, umas convincentes e outras não, umas condizentes com a lógica do
Quarto Evangelho e outras não. Portanto, diversas perspectivas podem ser
apresentadas.
Uma primeira perspectiva para a compreensão dessa afirmação é a
messiânica. Ora, estava consolidada no imaginário do judaísmo da época, a
imagem de um messias valente, guerreiro, rei forte e potente; com a imagem do
cordeiro, João desconstrói completamente essa imagem, pois o cordeiro era
símbolo da mansidão, o oposto das expectativas do povo. Com isso, o evangelista
quer dizer que o messias autêntico não é um guerreiro lutador, mas homem manso e
não violento. Porém, mansidão não quer dizer resignação, como Jesus vai mostrar
ao longo de sua vida pública. Lutou incessantemente pela ruptura total dos
costumes e tradições, mas sem jamais empunhar as armas da violência.
A imagem do cordeiro representa a primeira dimensão da identidade
de Jesus; a segunda, será apresentada no final do texto: a filiação divina (v.
34). A função salvífica do ‘Cordeiro’ também é desanimadora para as aspirações
religiosas nacionalistas da época: tirar o pecado do mundo! Ora, esperava-se um
messias potente e guerreiro como libertador único e exclusivo de Israel e que
viesse para exterminar os pecadores; e João anuncia um messias manso como um
cordeiro e de alcance salvífico universal... que loucura!
Ao mesmo tempo que contradiz as expectativas messiânicas, a imagem
do cordeiro também desmascara o culto: já não há mais necessidade de cordeiros
e touros serem imolados no templo, pois um só é o autêntico ‘Cordeiro’; esse,
não ‘expia’ pecados, mas elimina definitivamente o pecado do mundo; a
eliminação do pecado do mundo representa a falência total do templo: não há
mais necessidade de comprar animais para oferecer em sacrifício, uma vez que
Deus veio ao encontro da humanidade, em Jesus Cristo.
Jesus não veio para expiar os pecados, mas para abolir o pecado e,
não apenas de Israel, mas da humanidade inteira, ou seja, ‘o pecado do mundo’,
tradução da expressão grega a`marti,an tou/ ko,smou – ‘hamartían tu kosmú’. Tirar o pecado do
mundo significa restabelecer na humanidade a sua capacidade de comunicação com
Deus. A visão de pecado do Quarto Evangelho é completamente diferente daquela que a religião
impôs; não é a síngula transgressão de regras criadas pela própria religião,
mas a falta de comunicação com Deus. E, quem tinha distanciado Deus da
humanidade e, portanto, impossibilitado essa comunicação, tinha sido a própria
religião.
O Evangelho de Jesus é um projeto de vida plena, marcado pela
igualdade, fraternidade, justiça, solidariedade e amor; é nesse projeto que
Deus se revela e, portanto, faz desaparecer o pecado. Logo, os sistemas
cultuais expiatórios perdem seu sentido e seu valor. Para quem vivia “às custas
do pecado” do povo, como o templo de Jerusalém, essa nova ordem é altamente
prejudicial; na verdade, é destruidora.
O testemunho do Batista é importante porque reconhece a necessidade
de vir depois dele, alguém que já existia antes dele (v. 30), ou seja,
reconhece o quanto são maravilhosos os desígnios de Deus: a humanidade não
poderia permanecer nem perecer daquela forma e naquele estágio; o que
preexistia, deveria se manifestar, e João teve a graça de testemunhar essa
manifestação que marcou o início de uma nova humanidade ou nova criação.
João tinha consciência de que, embora a salvação agora contemplada,
tivesse um alcance universal, seria manifestada primeiro a Israel, através do
sinal exterior do seu batismo com água (v. 31). Portanto, no momento da eleição, por privilégio, no tempo de João, por
necessidade, Israel não poderia deixar de ser o primeiro campo de manifestação dessa
nova ordem ou etapa da história da salvação.
A continuidade do testemunho de João atesta sua autenticidade: ele
mesmo fez a experiência e viu “O Espírito descer como uma pomba, do céu e
permanecer sobre ele” (v. 32). Com essa imagem, João atesta a provisoriedade do
seu batismo e da religião: o Espírito desceu do céu e permaneceu em Jesus; a
morada da divindade na terra não é mais o templo... Posteriormente, após a
ressurreição, esse mesmo Espírito será enviado a toda a humanidade.
João proclama que Jesus é a morada do Espírito e, assim, a
humanidade é transformada e reordenada. É a contemplação da descida e
permanência do Espírito em Jesus (v. 33) que dá a João a certeza de que Ele é,
inclusive, mais que Cordeiro: é o Filho de Deus (v. 34).
Sendo Filho de Deus, Jesus é ‘igual’ ao Pai e, portanto, herdeiro;
por ter em si o Espírito, somente Ele poderá doá-lo, transmitindo-o a toda a
humanidade, como fará após a ressurreição. Assim, acolhendo, todos podem
tornar-se também filhos de Deus (cf. Jo 1,12). De fato, o reconhecimento de
Jesus como Filho de Deus é o objetivo de todo o Quarto Evangelho, como vem afirmado
na primeira conclusão: “Esses sinais foram escritos para crerdes que Jesus é o
Filho de Deus” (Jo 20,31a). Por isso, logo no início apresenta uma testemunha
privilegiada, João Batista (cf. Jo 1,6-8.19.29.32.34), e no final, toda a
comunidade dos discípulos e discípulas (cf. Jo 20,1-31).
Esperava-se um Messias valente para exterminar os pecadores... Deus
enviou um, manso como um cordeiro, para tirar o pecado do mundo, através de uma
proposta nova de vida para todos, principalmente os pecadores!
Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues
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