sábado, janeiro 14, 2017

REFLEXÃO PARA O II DOMINGO DO TEMPO COMUM – JOÃO 1,29-34 (ANO A)


A liturgia do II Domingo do Tempo Comum sempre propõe um texto joanino, independente do evangelista do ano. Neste ano, o texto proposto é João 1,29-34, a continuação do testemunho de João Batista sobre Jesus, apresentando-o como Cordeiro e Filho de Deus. Trata-se de um texto denso, como é todo o Evangelho de João.

Para uma compreensão mais adequada do texto é necessário fazer uma pequena observação ou correção na versão litúrgica: ao invés da genérica e desnecessária expressão ‘Naquele tempo’, o texto original possui uma delimitação temporal específica, infelizmente, omitida pela liturgia. De fato, o versículo 29 é introduzido pela expressão “No dia seguinte”; pode parecer apenas um detalhe, porém é muito importante.

Eis, portanto, a forma correta: “No dia seguinte, João viu Jesus aproximar-se dele e disse: ‘Eis o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo’” (v 29). Ora, o Quarto Evangelho apresenta a famosa ‘semana inaugural’ da vida pública de Jesus, e a expressão omitida pela liturgia, ‘No dia seguinte’, nos distancia do contexto daquela semana.

O primeiro dia foi marcado pela comitiva enviada pelas autoridades religiosas de Jerusalém para interrogar João sobre sua identidade (cf. Jo 1,19-28), e o último ou sétimo foi o dia das bodas de Caná (cf. Jo 2,1), o qual é introduzido pela expressão grega th/| h`me,ra| th/| tri,th| - ‘té hémera té tríte’, que significa “o terceiro dia”, mas em relação aos quatro dias anteriores e, portanto, é o sétimo da primeira semana.

Essa observação é interessante porque nos faz perceber que o evangelista João apresenta o início do ministério de Jesus evocando a criação, também ritmada pela estrutura de uma semana (cf. Gn 1,1 – 2,4). O Evangelho de hoje, portanto, apresenta o segundo dia da nova criação, ou seja, do novo tempo que o autor do Quarto Evangelho quer apresentar.

Um dia após ter sido interrogado pelos comissários de Jerusalém, “João viu Jesus aproximar-se dele” (v. 29a). É necessário perceber a importância da ação de Jesus: vir, aproximar-se, caminhar em direção a alguém, no caso, João Batista. Uma nova ordem na história da salvação está sendo inaugurada, e João a contempla como testemunha privilegiada: é Deus quem vem ao encontro dos homens e mulheres, ou seja, ao encontro da humanidade. À humanidade, cabe o papel de reconhecer, acolher e testemunhar, como soube fazer o Batista.

Quanta alegria para quem era considerado incapaz de ir até Deus (os pecadores), e quanta tristeza para quem tinha ‘aprisionado’ Deus em um conjunto de ritos e um edifício (judaísmo oficial da época)! De agora em diante, a crise será inevitável, pois duas ordens entram em choque: a religião oficial e o novo jeito de manifestar-se de Deus, em Jesus.

A reação de João Batista diante do que estava contemplando foi decisiva e corajosa. Na verdade, com a afirmação “Eis o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo!” (v. 29b), o Batista desmascarou de vez toda a elite religiosa e política do seu tempo; não apenas colocou em xeque as autoridades da época, mas decretou a completa falência delas.

Para a expressão “Cordeiro de Deus”, em grego o` avmno.j tou/ qeou/ - hó amnós tu Theú, muitas possibilidades de interpretação foram sugeridas ao longo da história, umas convincentes e outras não, umas condizentes com a lógica do Quarto Evangelho e outras não. Portanto, diversas perspectivas podem ser apresentadas.

Uma primeira perspectiva para a compreensão dessa afirmação é a messiânica. Ora, estava consolidada no imaginário do judaísmo da época, a imagem de um messias valente, guerreiro, rei forte e potente; com a imagem do cordeiro, João desconstrói completamente essa imagem, pois o cordeiro era símbolo da mansidão, o oposto das expectativas do povo. Com isso, o evangelista quer dizer que o messias autêntico não é um guerreiro lutador, mas homem manso e não violento. Porém, mansidão não quer dizer resignação, como Jesus vai mostrar ao longo de sua vida pública. Lutou incessantemente pela ruptura total dos costumes e tradições, mas sem jamais empunhar as armas da violência.

A imagem do cordeiro representa a primeira dimensão da identidade de Jesus; a segunda, será apresentada no final do texto: a filiação divina (v. 34). A função salvífica do ‘Cordeiro’ também é desanimadora para as aspirações religiosas nacionalistas da época: tirar o pecado do mundo! Ora, esperava-se um messias potente e guerreiro como libertador único e exclusivo de Israel e que viesse para exterminar os pecadores; e João anuncia um messias manso como um cordeiro e de alcance salvífico universal... que loucura!

Ao mesmo tempo que contradiz as expectativas messiânicas, a imagem do cordeiro também desmascara o culto: já não há mais necessidade de cordeiros e touros serem imolados no templo, pois um só é o autêntico ‘Cordeiro’; esse, não ‘expia’ pecados, mas elimina definitivamente o pecado do mundo; a eliminação do pecado do mundo representa a falência total do templo: não há mais necessidade de comprar animais para oferecer em sacrifício, uma vez que Deus veio ao encontro da humanidade, em Jesus Cristo.

Jesus não veio para expiar os pecados, mas para abolir o pecado e, não apenas de Israel, mas da humanidade inteira, ou seja, ‘o pecado do mundo’, tradução da expressão grega a`marti,an tou/ ko,smou – ‘hamartían tu kosmú’. Tirar o pecado do mundo significa restabelecer na humanidade a sua capacidade de comunicação com Deus. A visão de pecado do Quarto Evangelho é completamente diferente daquela que a religião impôs; não é a síngula transgressão de regras criadas pela própria religião, mas a falta de comunicação com Deus. E, quem tinha distanciado Deus da humanidade e, portanto, impossibilitado essa comunicação, tinha sido a própria religião.

O Evangelho de Jesus é um projeto de vida plena, marcado pela igualdade, fraternidade, justiça, solidariedade e amor; é nesse projeto que Deus se revela e, portanto, faz desaparecer o pecado. Logo, os sistemas cultuais expiatórios perdem seu sentido e seu valor. Para quem vivia “às custas do pecado” do povo, como o templo de Jerusalém, essa nova ordem é altamente prejudicial; na verdade, é destruidora.

O testemunho do Batista é importante porque reconhece a necessidade de vir depois dele, alguém que já existia antes dele (v. 30), ou seja, reconhece o quanto são maravilhosos os desígnios de Deus: a humanidade não poderia permanecer nem perecer daquela forma e naquele estágio; o que preexistia, deveria se manifestar, e João teve a graça de testemunhar essa manifestação que marcou o início de uma nova humanidade ou nova criação.

João tinha consciência de que, embora a salvação agora contemplada, tivesse um alcance universal, seria manifestada primeiro a Israel, através do sinal exterior do seu batismo com água (v. 31). Portanto, no momento da eleição, por privilégio, no tempo de João, por necessidade, Israel não poderia deixar de ser o primeiro campo de manifestação dessa nova ordem ou etapa da história da salvação.

A continuidade do testemunho de João atesta sua autenticidade: ele mesmo fez a experiência e viu “O Espírito descer como uma pomba, do céu e permanecer sobre ele” (v. 32). Com essa imagem, João atesta a provisoriedade do seu batismo e da religião: o Espírito desceu do céu e permaneceu em Jesus; a morada da divindade na terra não é mais o templo... Posteriormente, após a ressurreição, esse mesmo Espírito será enviado a toda a humanidade.

João proclama que Jesus é a morada do Espírito e, assim, a humanidade é transformada e reordenada. É a contemplação da descida e permanência do Espírito em Jesus (v. 33) que dá a João a certeza de que Ele é, inclusive, mais que Cordeiro: é o Filho de Deus (v. 34).

Sendo Filho de Deus, Jesus é ‘igual’ ao Pai e, portanto, herdeiro; por ter em si o Espírito, somente Ele poderá doá-lo, transmitindo-o a toda a humanidade, como fará após a ressurreição. Assim, acolhendo, todos podem tornar-se também filhos de Deus (cf. Jo 1,12). De fato, o reconhecimento de Jesus como Filho de Deus é o objetivo de todo o Quarto Evangelho, como vem afirmado na primeira conclusão: “Esses sinais foram escritos para crerdes que Jesus é o Filho de Deus” (Jo 20,31a). Por isso, logo no início apresenta uma testemunha privilegiada, João Batista (cf. Jo 1,6-8.19.29.32.34), e no final, toda a comunidade dos discípulos e discípulas (cf. Jo 20,1-31).

Esperava-se um Messias valente para exterminar os pecadores... Deus enviou um, manso como um cordeiro, para tirar o pecado do mundo, através de uma proposta nova de vida para todos, principalmente os pecadores!


Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues

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