sábado, maio 13, 2017

REFLEXÃO PARA O V DOMINGO DA PÁSCOA – JOÃO 14,1-12


Neste Quinto Domingo da Páscoa, a liturgia nos oferece João 14,1-12 como texto do evangelho. Trata-se de um trecho do amplo discurso-testamento de Jesus na última ceia com seus discípulos, apresentado nos capítulos 13–17 do Quarto Evangelho. É importante recordar o que antecede o nosso texto para o compreendermos melhor. Em primeiro lugar, insistimos que, mais que uma simples degustação de comidas, a ceia é um momento de catequese, diálogo transparente, sincero e amável entre os participantes, no caso, Jesus e seus amigos.

Há quatro momentos importantes acontecidos na ceia que antecede o texto da liturgia de hoje: o lava pés ou o mandamento do serviço (cf. 13,1-15), o anúncio da traição de Judas (cf. 13,21-30), a entrega do mandamento do amor (cf. 13,31-35), e o anúncio da negação de Pedro (cf. 13,36-38). A isso, soma-se o fato de Jesus ter declarado que tinha chegado a sua hora de partir para o Pai (cf. 13,31-33), e os discípulos, lamentavelmente, compreendiam a sua partida como perda definitiva, como fim. Portanto, aquela ceia tinha perdido o seu clima festivo. Jesus tenta recuperá-lo com a continuidade do seu discurso, tenta tornar suportável para seus discípulos a realidade de sua despedida, de seu adeus.

Podemos compreender a inquietação e a incompreensão dos seguidores de Jesus narrada por João. Por acusa desse mal-estar, Jesus pede: “Não se perturbe o vosso coração” (v. 1a). A palavra coração, no grego (h` kardi,a – hé kardia), encontra-se no singular. Com isso, o evangelista evidencia a importância da unidade da fé; é o coração da comunidade que crê que deve estar tranquilo e não cada coração individualmente. Apesar dos conflitos internos, a comunidade não pode abrir mão de ter um só coração, ou seja, um mesmo amor e mandamento. Mais que um conforto intimista e individual, Jesus quer assegurar a unidade. Que esta estava abalada e suscetível de rivalidades e exclusões, já era sabido. Ele já havia confidenciado que havia entre eles um traidor, Judas, e um covarde, Pedro (cf. 13,21-30; 36-38), embora Judas já tivesse saído do ambiente da ceia, conforme relatado em 13,30.

O princípio da unidade na comunidade é a fé em Deus e no próprio Jesus; por isso, ele pede que os discípulos renovem a adesão naquele que acompanharam até o momento derradeiro: “Tende fé em Deus, tende fé em mim também” (v. 1b). O tema da fé é muito caro ao evangelho de João e aparece em todo o texto: o evangelista usa cinco vezes o verbo grego pisteu,w – pistêuô,  que significa confiar, acreditar ou ter fé (cf. vv. 1.11.12). O número cinco não é à toa; é o número da Torah. Não estaria João dizendo aos seus seguidores que a confiança deles deveria mudar de foco, que ele próprio é a Torah e que eles não precisavam mais das tábuas da Lei mas da Nova Lei (seu evangelho), inscrita em seus corações pelo Espírito? A fé da comunidade estava abalada: como confiar em um mestre que se fez escravo e lavou os pés de todos? (cf. 13,1-15). Para quem alimentava as esperanças messiânicas tradicionais, como Pedro, o gesto do lava-pés era inconcebível (cf. 13,6-9). Portanto, o que Jesus pede a eles é uma fé renovada e ressignificada, o que também é exigido de nós, discípulos de hoje.

Na continuação, Jesus reforça cada vez mais a importância da comunidade cristã, apresentando-a como a nova casa do Pai, uma vez que a antiga, o templo, fora transformada em casa de negócio (cf. Jo 2,16). Por isso, a afirmação categórica e firme: “Na casa do meu Pai há muitas moradas. Se assim não fosse, eu vos teria dito. Vou preparar um lugar para vós” (v. 2); essa é, sem dúvidas, uma das afirmações mais revolucionárias de todo o Quarto Evangelho, embora tenha sido muito mal compreendida ao longo dos séculos pela tradição cristã católica, principalmente. Ao contrário do que parece, Jesus não está se referindo ao céu enquanto morada eterna, nem o prometendo aos seus discípulos. Ele está, na verdade, fazendo uma mudança radical de paradigma: a nova casa do Pai é a comunidade cristã, na qual há espaço para todos e todas, compreendendo a diversidade de dons e carismas.

No templo de pedras, a antiga casa do Pai, havia uma única morada; as pessoas iam até lá para encontrar-se com Deus, mas somente Ele habitava lá. No diálogo com a Samaritana, Jesus já tinha antecipado que aquele modelo de religião estava com os dias contados, uma vez que chegaria o tempo de adorar em espírito e em verdade (cf. Jo 4,21-24); esse tempo novo instaura-se com a ressurreição, compreendida como a construção definitiva da morada de Deus na humanidade (cf. Jo 2,19-22), através da extensão do corpo do Ressuscitado que é a comunidade cristã. Ao invés de ir ao templo para encontrar-se com Deus, devemos acolhê-lo em nossa vida, uma vez que é Ele que vem ao nosso encontro, numa relação oposta ao que ensinava a antiga religião.

Jesus diz que “vai preparar” porque é a sua ressurreição que inaugura essa nova relação; por isso, garante: “voltarei e vos levarei comigo, afim de que onde eu estiver, estejais também vós” (v. 3). Mais uma vez, recordamos que Ele não está prometendo levá-los para o céu, mas dando a certeza de que, acolhendo o ressuscitado com fé, a comunidade estará em relação contínua com o Pai. Mais que levar a comunidade para Deus, na verdade Jesus traz Deus para a comunidade; essa será casa do Pai quando nela vigora a lei do amor e sua aplicação prática, o serviço.

Considerando tudo o que já havia ensinado, imaginava Jesus que os discípulos já conhecessem o caminho (v. 4) ou método para todo esse processo de ida-retorno-presença, ou seja, morte-ressurreição, melhor traduzido por amor-doação. No entanto, a incompreensão persiste neles, embora somente Tomé seja sincero o suficiente para confessar a ignorância: “Tomé disse a Jesus: Senhor, nós não sabemos para onde vais. Como podemos conhecer o caminho?” (v. 5). Como sempre, a sinceridade de Tomé se torna notável, apesar do equívoco. De fato, ele não compreendia a morte de Jesus como passagem para uma presença permanente no meio da comunidade; ele vê a morte como fim, embora seja louvável a sua coragem para enfrentá-la, como havia demonstrado no episódio da reanimação de Lázaro: “Nós iremos para morrer com ele” (Jo 11,16).

À pergunta de Tomé, Jesus responde reivindicando a condição divina para si, acompanhada de três predicados e reforçando a certeza de que Ele é o único mediador entre Deus e a humanidade: “Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida. Ninguém vai ao Pai senão por mim” (v. 6). “Eu sou”, em grego evgw, eivmi – egô eimí, é a fórmula típica da auto revelação de Deus ao longo da história (cf. Ex 13-15) e aplicada a Jesus no Quarto Evangelho. A tríplice predicação parece enigmática, mas na verdade é simples. Ora, Jesus está propondo um modelo de vida para uma comunidade, o que pode levantar muitas dúvidas e questões, uma vez que Ele não escreve uma regra, não estabelece uma lei nem deixa uma doutrina; as dúvidas nos discípulos surgem daí. Para simplificar, Jesus diz que é tudo o que a comunidade necessita, é Ele o parâmetro, a sua pessoa.

Ao apresentar-se como Caminho, Verdade e Vida, Jesus apenas diz que é tudo para a comunidade e essa não pode buscar nem viver algo que não esteja em consonância com a sua pessoa; o itinerário a ser percorrido é a sua trajetória de vida, a verdade a ser transmitida é o seu ensinamento e a vida a ser vivida é aquela que Ele deu em abundância, marcada pela liberdade, dignidade e amor. É claro que na tradição bíblica encontramos significados aprofundados para cada um destes termos: caminho, verdade e vida, em grego o`do.j – hodós, avlh,qeia – aletéia, e zwh, – zoé, respectivamente. Certamente, Jesus pensou no sentido prático dos termos: sem Ele a comunidade não tem rumo, não tem o que anunciar e, consequentemente, não tem também razão para viver e existir, uma vez que sem Ele não há relação nem conhecimento de Deus, o Pai.

Como a unidade entre Jesus e o Pai já foi ressaltada na certeza das moradas em sua casa (vv. 2-3), e na sua resposta a Tomé, não nos prenderemos tanto à pergunta de Filipe: “Senhor, mostra-nos o Pai e isso nos basta!” (v. 8). A resposta de Jesus mostra uma espécie de lamentação pela falta de conhecimento do Pai nos discípulos, considerando que tudo o que fizera até então fora mostrar o rosto do Pai através dos sinais realizados e, sobretudo, do amor transmitido. Por isso, a repreensão: “Há muito tempo estou convosco e tu não me conheces, Filipe? Quem me vê, vê o Pai.” (v. 9). É claro que as vozes de Filipe e Tomé representam a voz da comunidade toda.

A propósito das intervenções de Tomé e Filipe, vale a pena ressaltar a importância que isso significa para a comunidade joanina e, obviamente, para as comunidades de hoje também. É perceptível que o Quarto Evangelho concede a palavra a discípulos que não fazem parte do trio predominante na tradição sinótica: Pedro, Tiago e João. Em João, discípulos secundários para os sinóticos, como André, Filipe e Tomé, tem um certo protagonismo (cf. 2,35-51; 11,26; 20,19-27), sendo que o principal de todos os discípulos é um anônimo, o discípulo amado. Essa observação nos leva a concluir que, para a tradição joanina, o modelo de organização não está baseado em uma relação hierárquica, mas fraterna, tendo como base única o amor.

Certamente, é vivenciando o mandamento do amor, estabelecendo relações fraternas e sinceras, cultivando a igualdade e a fraternidade que a comunidade poderá, não apenas repetir, mas realizar obras maiores que aquelas que o próprio Jesus fez; é Ele mesmo quem dá essa garantia (v. 11). A confiança e fé em suas palavras credencia a comunidade a manifestar a sua presença e, consequentemente, a presença do Pai, tornando sua obra ilimitada temporal e espacialmente; isso implica em compromisso para nós, cristãos de hoje: não devemos apresentar o Evangelho como uma história a ser contada, mas como um caminho a ser percorrido, uma verdade a ser anunciada e, principalmente, uma vida a ser vivida, marcada pelo amor, acolhimento e perdão para, de fato, ser uma vida em abundância (cf. Jo 10,10).


Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues

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