Neste Quinto Domingo da Páscoa, a liturgia nos oferece João 14,1-12
como texto do evangelho. Trata-se de um trecho do amplo discurso-testamento de
Jesus na última ceia com seus discípulos, apresentado nos capítulos 13–17 do
Quarto Evangelho. É importante recordar o que antecede o nosso texto para o
compreendermos melhor. Em primeiro lugar, insistimos que, mais que uma simples
degustação de comidas, a ceia é um momento de catequese, diálogo transparente,
sincero e amável entre os participantes, no caso, Jesus e seus amigos.
Há quatro momentos importantes acontecidos na ceia que antecede o texto
da liturgia de hoje: o lava pés ou o mandamento do serviço (cf. 13,1-15), o
anúncio da traição de Judas (cf. 13,21-30), a entrega do mandamento do amor
(cf. 13,31-35), e o anúncio da negação de Pedro (cf. 13,36-38). A isso, soma-se
o fato de Jesus ter declarado que tinha chegado a sua hora de partir para o Pai
(cf. 13,31-33), e os discípulos, lamentavelmente, compreendiam a sua partida
como perda definitiva, como fim. Portanto, aquela ceia tinha perdido o seu
clima festivo. Jesus tenta recuperá-lo com a continuidade do seu discurso, tenta
tornar suportável para seus discípulos a realidade de sua despedida, de seu adeus.
Podemos compreender a inquietação e
a incompreensão dos seguidores de Jesus narrada por João. Por acusa desse
mal-estar, Jesus pede: “Não se perturbe o vosso coração” (v. 1a). A palavra
coração, no grego (h` kardi,a – hé kardia), encontra-se no singular. Com
isso, o evangelista evidencia a importância da unidade da fé; é o coração da
comunidade que crê que deve estar tranquilo e não cada coração individualmente.
Apesar dos conflitos internos, a comunidade não pode abrir mão de ter um só
coração, ou seja, um mesmo amor e mandamento. Mais que um conforto intimista e
individual, Jesus quer assegurar a unidade. Que esta estava abalada e
suscetível de rivalidades e exclusões, já era sabido. Ele já havia
confidenciado que havia entre eles um traidor, Judas, e um covarde, Pedro (cf.
13,21-30; 36-38), embora Judas já tivesse saído do ambiente da ceia, conforme
relatado em 13,30.
O princípio da unidade na comunidade é a fé em Deus e no próprio
Jesus; por isso, ele pede que os discípulos renovem a adesão naquele que acompanharam
até o momento derradeiro: “Tende fé em Deus, tende fé em mim também” (v. 1b). O
tema da fé é muito caro ao evangelho de João e aparece em todo o texto: o
evangelista usa cinco vezes o verbo grego pisteu,w – pistêuô, que significa confiar,
acreditar ou ter fé (cf. vv. 1.11.12). O número cinco não é à toa; é o número
da Torah. Não estaria João dizendo aos seus seguidores que a confiança deles deveria
mudar de foco, que ele próprio é a Torah e que eles não precisavam mais das
tábuas da Lei mas da Nova Lei (seu evangelho), inscrita em seus corações pelo
Espírito? A fé da comunidade estava abalada: como confiar em um mestre que se
fez escravo e lavou os pés de todos? (cf. 13,1-15). Para quem alimentava as
esperanças messiânicas tradicionais, como Pedro, o gesto do lava-pés era
inconcebível (cf. 13,6-9). Portanto, o que Jesus pede a eles é uma fé renovada
e ressignificada, o que também é exigido de nós, discípulos de hoje.
Na continuação, Jesus reforça cada vez mais a importância da
comunidade cristã, apresentando-a como a nova casa do Pai, uma vez que a antiga,
o templo, fora transformada em casa de negócio (cf. Jo 2,16). Por isso, a
afirmação categórica e firme: “Na casa do meu Pai há muitas moradas. Se assim
não fosse, eu vos teria dito. Vou preparar um lugar para vós” (v. 2); essa é,
sem dúvidas, uma das afirmações mais revolucionárias de todo o Quarto
Evangelho, embora tenha sido muito mal compreendida ao longo dos séculos pela
tradição cristã católica, principalmente. Ao contrário do que parece, Jesus não
está se referindo ao céu enquanto morada eterna, nem o prometendo aos seus discípulos.
Ele está, na verdade, fazendo uma mudança radical de paradigma: a nova casa do
Pai é a comunidade cristã, na qual há espaço para todos e todas, compreendendo
a diversidade de dons e carismas.
No templo de pedras, a antiga casa do Pai, havia uma única morada;
as pessoas iam até lá para encontrar-se com Deus, mas somente Ele habitava lá. No
diálogo com a Samaritana, Jesus já tinha antecipado que aquele modelo de religião
estava com os dias contados, uma vez que chegaria o tempo de adorar em espírito
e em verdade (cf. Jo 4,21-24); esse tempo novo instaura-se com a ressurreição,
compreendida como a construção definitiva da morada de Deus na humanidade (cf.
Jo 2,19-22), através da extensão do corpo do Ressuscitado que é a comunidade
cristã. Ao invés de ir ao templo para encontrar-se com Deus, devemos acolhê-lo
em nossa vida, uma vez que é Ele que vem ao nosso encontro, numa relação oposta
ao que ensinava a antiga religião.
Jesus diz que “vai preparar” porque é a sua ressurreição que
inaugura essa nova relação; por isso, garante: “voltarei e vos levarei comigo,
afim de que onde eu estiver, estejais também vós” (v. 3). Mais uma vez,
recordamos que Ele não está prometendo levá-los para o céu, mas dando a certeza
de que, acolhendo o ressuscitado com fé, a comunidade estará em relação
contínua com o Pai. Mais que levar a comunidade para Deus, na verdade Jesus
traz Deus para a comunidade; essa será casa do Pai quando nela vigora a lei do
amor e sua aplicação prática, o serviço.
Considerando tudo o que já havia ensinado, imaginava Jesus que os
discípulos já conhecessem o caminho (v. 4) ou método para todo esse processo de
ida-retorno-presença, ou seja, morte-ressurreição, melhor traduzido por
amor-doação. No entanto, a incompreensão persiste neles, embora somente Tomé
seja sincero o suficiente para confessar a ignorância: “Tomé disse a Jesus:
Senhor, nós não sabemos para onde vais. Como podemos conhecer o caminho?” (v.
5). Como sempre, a sinceridade de Tomé se torna notável, apesar do equívoco. De
fato, ele não compreendia a morte de Jesus como passagem para uma presença permanente
no meio da comunidade; ele vê a morte como fim, embora seja louvável a sua
coragem para enfrentá-la, como havia demonstrado no episódio da reanimação de
Lázaro: “Nós iremos para morrer com ele” (Jo 11,16).
À pergunta de Tomé, Jesus responde reivindicando a condição divina
para si, acompanhada de três predicados e reforçando a certeza de que Ele é o
único mediador entre Deus e a humanidade: “Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida.
Ninguém vai ao Pai senão por mim” (v. 6). “Eu sou”, em grego evgw, eivmi – egô eimí,
é a fórmula típica da auto revelação de Deus ao longo da história (cf. Ex
13-15) e aplicada a Jesus no Quarto Evangelho. A tríplice predicação parece
enigmática, mas na verdade é simples. Ora, Jesus está propondo um modelo de
vida para uma comunidade, o que pode levantar muitas dúvidas e questões, uma
vez que Ele não escreve uma regra, não estabelece uma lei nem deixa uma
doutrina; as dúvidas nos discípulos surgem daí. Para simplificar, Jesus diz que
é tudo o que a comunidade necessita, é Ele o parâmetro, a sua pessoa.
Ao apresentar-se como Caminho, Verdade e Vida, Jesus apenas diz que
é tudo para a comunidade e essa não pode buscar nem viver algo que não esteja
em consonância com a sua pessoa; o itinerário a ser percorrido é a sua
trajetória de vida, a verdade a ser transmitida é o seu ensinamento e a vida a
ser vivida é aquela que Ele deu em abundância, marcada pela liberdade, dignidade
e amor. É claro que na tradição bíblica encontramos significados aprofundados
para cada um destes termos: caminho, verdade e vida, em grego o`do.j – hodós, avlh,qeia – aletéia,
e zwh, – zoé, respectivamente. Certamente, Jesus pensou no sentido
prático dos termos: sem Ele a comunidade não tem rumo, não tem o que anunciar
e, consequentemente, não tem também razão para viver e existir, uma vez que sem
Ele não há relação nem conhecimento de Deus, o Pai.
Como a unidade entre Jesus e o Pai já foi ressaltada na certeza das
moradas em sua casa (vv. 2-3), e na sua resposta a Tomé, não nos prenderemos
tanto à pergunta de Filipe: “Senhor, mostra-nos o Pai e isso nos basta!” (v. 8).
A resposta de Jesus mostra uma espécie de lamentação pela falta de conhecimento
do Pai nos discípulos, considerando que tudo o que fizera até então fora
mostrar o rosto do Pai através dos sinais realizados e, sobretudo, do amor
transmitido. Por isso, a repreensão: “Há muito tempo estou convosco e tu não me
conheces, Filipe? Quem me vê, vê o Pai.” (v. 9). É claro que as vozes de Filipe
e Tomé representam a voz da comunidade toda.
A propósito das intervenções de Tomé e Filipe, vale a pena
ressaltar a importância que isso significa para a comunidade joanina e,
obviamente, para as comunidades de hoje também. É perceptível que o Quarto
Evangelho concede a palavra a discípulos que não fazem parte do trio predominante
na tradição sinótica: Pedro, Tiago e João. Em João, discípulos secundários para
os sinóticos, como André, Filipe e Tomé, tem um certo protagonismo (cf.
2,35-51; 11,26; 20,19-27), sendo que o principal de todos os discípulos é um
anônimo, o discípulo amado. Essa observação nos leva a concluir que, para a
tradição joanina, o modelo de organização não está baseado em uma relação
hierárquica, mas fraterna, tendo como base única o amor.
Certamente, é vivenciando o mandamento do amor, estabelecendo
relações fraternas e sinceras, cultivando a igualdade e a fraternidade que a
comunidade poderá, não apenas repetir, mas realizar obras maiores que aquelas
que o próprio Jesus fez; é Ele mesmo quem dá essa garantia (v. 11). A confiança
e fé em suas palavras credencia a comunidade a manifestar a sua presença e,
consequentemente, a presença do Pai, tornando sua obra ilimitada temporal e
espacialmente; isso implica em compromisso para nós, cristãos de hoje: não
devemos apresentar o Evangelho como uma história a ser contada, mas como um
caminho a ser percorrido, uma verdade a ser anunciada e, principalmente, uma
vida a ser vivida, marcada pelo amor, acolhimento e perdão para, de fato, ser
uma vida em abundância (cf. Jo 10,10).
Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues
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