sábado, junho 17, 2017

REFLEXÃO PARA O XI DOMINGO DO TEMPO COMUM – MATEUS 9,36 – 10,8 (ANO A)


Com a retomada do tempo comum, retomamos também à leitura, quase contínua, do Evangelho segundo Mateus na liturgia dominical. Neste décimo primeiro domingo, o texto evangélico que a liturgia oferece é Mt 9,36 – 10,8. Se trata de um texto de transição entre uma seção narrativa e um discurso de Jesus. Por sinal, a alternância entre narrativa e discurso é uma característica da obra mateana.

O texto compreende, portanto, a conclusão da seção narrativa que seguiu-se ao discurso da montanha (9,36-38), e a introdução de um novo discurso (10,1-8), o chamado discurso missionário ou apostólico. Em seu conjunto, o texto mostra Jesus constatando uma situação e tomando iniciativa para transformá-la. Essa postura de Jesus deve ser a mesma da comunidade cristã em todos os tempos.

Consideramos importante recordar o versículo que antecede o nosso texto, para o compreendermos melhor: “Jesus percorria todas as cidades e povoados ensinando em suas sinagogas e pregando o Evangelho do Reino, enquanto curava toda sorte de doenças e enfermidades” (9,35). Esse versículo sintetiza a missão de Jesus até então e, ao mesmo tempo, prepara o leitor para o que o texto de hoje irá apresentar: a continuidade e a extensão da missão de Jesus pela comunidade cristã.

Por se tratar de um texto relativamente longo, não nos deteremos na análise de cada versículo, mas procuraremos colher a mensagem global, embora seja imprescindível enfatizar alguns versículos específicos, como por exemplo, o de abertura do texto: “Vendo Jesus as multidões, compadeceu-se delas porque estavam cansadas e abatidas, como ovelhas que não têm pastor” (9,36). É a partir dessa constatação que Jesus vai tomar iniciativa para transformar a realidade.

A itinerância da atividade de Jesus (cf. 9,35) lhe dava propriedade para ver em profundidade a situação de miséria das multidões. Sua visão das realidades não era superficial, mas muito real e profunda. Como a miséria é a privação da vida, Ele sabia que aquela situação era o maior entrave para a implantação do Reino. Portanto, era necessário transformá-la para o Reino ser implantado. Daí nascia o sentimento de Jesus diante do que contemplou nas multidões: “compadeceu-se delas porque estavam cansadas e abatidas”.

Compadecer-se é o mesmo que sentir compaixão. Não se trata de um mero sentimento, mas é algo muito mais profundo, é um “mexer-se por dentro”. O verbo grego usado pelo evangelista (σπλαγχνίζομαι splanknizomai) deriva de um substantivo que significa vísceras (σπλαγχνoν splanknon). Sentir compaixão é, portanto, contorcer-se nas entranhas, o núcleo mais profundo e íntimo do ser humano, conforma a mentalidade hebraica. Mais profundo até que o coração. É a expressão máxima da misericórdia do Pai.

O que fazia Jesus contorcer-se até as entranhas era a situação das multidões: “estavam cansadas e abatidas como ovelhas que não tem pastor”. Não se trata de um simples cansaço físico, o qual poderia ser sanado com algumas horas de repouso. O evangelista usa uma palavra grega que se traduz melhor por molestadas ou violentadas (εσκυλμενοι eskilmemoi). E ao invés de abatidas, a melhor tradução seria dispersas ou abandonadas. Portanto, Jesus constata que o povo foi violentando e abandonado pelo poder dominante, religioso e político.

A comparação com “ovelhas que não tem pastor” reflete o grau máximo de abandono e de degradação do qual as multidões eram vítimas. E revela, ao mesmo tempo, a corrupção e hipocrisia dos dirigentes, causa principal da situação de miséria do povo. A imagem da ovelha é sinônimo de mansidão e vulnerabilidade; a ausência de um pastor que a conduza e proteja significa exposição aos perigos. Assim era a situação das multidões. É claro que a falta de pastores que cuidem das multidões é uma nítida crítica aos dirigentes religiosos, principalmente. Poderíamos recorrer a muitas passagens do Antigo Testamento e a outras do Novo para melhor fundamentar essa imagem. Preferimos não fazer isso para evitar um maior prolongamento.

Diante de uma situação de calamidade, vendo o povo ser violentado e completamente abandonado, Jesus não se conforma nem se desespera. Reforça sua confiança no Pai e pede a colaboração aos seres humanos: “A messe é grande, mas os trabalhadores são poucos. Pedi, pois, ao dono da messe que envie trabalhadores para a colheita” (9,37-38). No discurso da montanha, Ele já tinha recomendado aos discípulos que confiassem no Pai através da oração (cf. Mt 6,4.9-15.26). Aqui novamente Ele recomenda.

Consciente de que a missão será árdua, a imagem da “messe grande” significa isso, Ele sabe que a confiança no Pai e o trabalho humano são indispensáveis e inseparáveis para que a vida violentada pelo sistema dominante seja restaurada. A comunidade cristã não pode se acomodar e esperar apenas pelo Pai, muito menos confiar somente em suas próprias forças. Jesus pede que essas duas dimensões se unam para o resgate da vida violentada.

Se algo tem que ser feito, deve começar pelos mais próximos. Por isso, “Jesus chamou os doze discípulos e deu-lhes poder para expulsarem os espíritos maus e para curarem todo tipo de doença e enfermidade” (10,1). Diante da situação deplorável em que se encontrava o povo, Jesus toma uma atitude libertadora, estendendo aos discípulos as mesmas prerrogativas que recebeu do Pai. Não se trata de poderes extraordinários para operar milagres. Dar poder ou autoridade aos discípulos significa autorizá-los a fazer o mesmo que Jesus fazia (cf. 9,35). “Expulsar os espíritos maus, curar doença e enfermidade” é apenas uma figura de linguagem que evoca a responsabilidade da comunidade cristã: restituir a vida e a dignidade às pessoas que tinham sido espoliadas pelo sistema dominante político e religioso, principalmente.

De discípulos, os doze passam a ser apóstolos, conforme o evangelista menciona todos os nomes, de Simão, chamado Pedro a Judas Iscariotes (10,2). Não é uma lista hierárquica, bem como a introdução da designação de apóstolos não corresponde a uma “mudança de patente”. É apenas uma mudança de estado: de meros seguidores de Jesus a enviados. Até então, no discipulado, eles apenas assistiam ao que Jesus fazia. De agora em diante, Jesus os envia para que façam o mesmo. A designação de apóstolos (em grego αποστολοι apóstolos) não significa um título de honra, mas um estado: enviado, um estado de missão.

Quando o evangelista diz que “Jesus enviou esses doze com as seguintes recomendações: ‘Não deveis ir aonde moram os pagãos nem entrar nas cidades dos samaritanos! Ide, antes, às ovelhas perdidas da casa de Israel!”, ele não está demonstrando nenhuma condição privilegiada de Israel, nem reforçando a exclusão dos samaritanos e pagãos. Israel não recebe o anúncio do Reino por ter sido o primeiro destinatário das promessas de Deus. É um grande equívoco imaginar que o Evangelho segundo Mateus visa a restauração do antigo Israel. Pelo, contrário, é o Evangelho que mais evidencia a ruptura da comunidade cristã com a religião judaica.

Quando ele apresenta “as ovelhas perdidas da casa de Israel” como destino primeiro da missão da comunidade cristã, ele está dizendo que, ao invés de privilegiado, Israel é o mais necessitado da Boa Nova e, portanto, da libertação. De todas dominações, a pior é a religiosa. Os samaritanos e os pagãos estavam, assim como os judeus, sob o domínio político do império romano, mas não submetidos ao templo de Jerusalém. O império romano será contestado também, obviamente. Porém, é mais urgente libertar o povo da dominação e alienação religiosa. Além do domínio político de Roma, os judeus sofriam também com a dominação religiosa, muito mais danosa que o império romano. Se o povo estava violentado e abandonado, a culpa principal era da religião, graças aos abusos e omissões daqueles que deveriam agir como pastores.

O conteúdo do anúncio não deve ser outro: é apenas o advento do “Reino dos céus” (em grego βασιλεια των ουρανων basileia ton uranon). De fato, o Reino dos céus, o qual se manifesta como vida em plenitude, justiça, solidariedade, amor e inclusão é o único antídoto e resposta aos reinos deste mundo. Esse Reino não pode ser imaginado como um evento futuro, porque é no presente que as multidões são mutiladas e maltratadas, exploradas e privadas de vida e dignidade.

Os discípulos, convertidos em apóstolos, são enviados na gratuidade e no amor, para recuperarem a vida ameaçada e explorada. Por isso, devem ser promotores da libertação, como pede Jesus. Não cumprindo gestos mágicos ou fantasiosos, mas sendo sinais de vida, com atuação profética e cristã.

Ainda h0je, são muitos os males que impedem a realização plena do Reino dos céus já aqui. A comunidade cristã é chamada, assim como fez Jesus, a olhar para as multidões, perceber suas necessidades e intervir para transformar. Isso só será possível se a Igreja se colocar cada vez mais em estado de saída, pois somente saindo de si é possível ver a necessidade do outro!


Mossoró-RN, 17 de junho de 2017, Pe. Francisco Cornelio Freire Rodrigues 

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