Neste domingo dedicado à
Santíssima Trindade, a liturgia nos oferece Jo 3,16-18 como texto evangélico.
Como sempre, a nossa reflexão será pautada pelo Evangelho, e não por afirmações
dogmáticas a respeito da Trindade. Como bem sabemos, os Evangelhos não
apresentam nenhuma definição de Trindade, embora possamos, a partir deles,
encontrar referências e fundamentos que sustentem uma teologia trinitária. Ao
invés de conceituar a Trindade, o Evangelho de hoje nos convida mesmo é a
confrontar a ideia que fazemos de Deus com o Deus que Jesus apresenta.
O texto oferecido é composto de
apenas três versículos, muito profundos por sinal, os quais não podem ser bem
compreendidos fora do contexto em que estão inseridos dentro do Quarto
Evangelho. Faz parte do edificante diálogo entre Jesus e Nicodemos em
Jerusalém. Jesus se encontrava em Jerusalém por ocasião da festa da páscoa (cf.
2,13; 3,1-2). Nesse diálogo, Jesus prolongou-se em uma das respostas, e é dessa
resposta prolongada que o nosso texto foi extraído.
Nicodemos era um homem notável
entre os judeus, um fariseu (cf. 3,1), estudioso e bom conhecedor da doutrina
judaica, sobretudo da lei. Procurou Jesus na “calada da noite” (cf. 3,2). Sua
curiosidade ao falar com Jesus revela sinceridade, respeito e desejo de conhecê-lo
melhor. Era alguém que desejava uma boa reforma naquela estéril religião. Mesmo
assim não estava pronto para aderir ao projeto de Jesus. Mas se distinguia dos
demais fariseus com quem Jesus se confrontou.
Por precaução e medo de ser
repreendido pelos seus colegas de doutrina, Nicodemos não quis ser visto com
Jesus, por isso o procurou à noite. Afinal, Jesus tinha, há pouco tempo,
desmascarado a religião judaica, ao denunciar o comércio e a hipocrisia
praticados na casa que deveria ser do seu Pai, Deus, no episódio que chamamos
equivocadamente de “purificação do templo” (cf. 2,13-22). Ora, qual a
necessidade de purificar um edifício/instituição prestes a ser demolido?
Portanto, Jesus não purificou o templo. Pelo contrário, decretou a sua falência
e calamidade, defendendo a sua destruição.
Entremos, pois, no texto proposto
com o primeiro versículo: “Deus amou tanto o mundo, que deu o seu Filho
unigênito, para que não morra todo o que nele crer, mas tenha a vida eterna”
(v. 16). Jesus apresenta Deus como aquele que ama incondicionalmente e, ao
mesmo tempo, se auto apresenta como a prova desse amor incondicional de Deus,
já que é, Ele mesmo, o Filho doado. O mundo é o destinatário do amor de Deus.
Esse mundo é a humanidade inteira. Ao apresentar essa novidade, Jesus estava
destruindo um dos principais pilares de sustentação da ortodoxa religião judaica:
o privilégio da eleição exclusiva de Israel como povo de Deus e destinatário
único de suas promessas.
Com Jesus, a pertença a Deus
deixa de ser privilégio de um povo e passa a ser um direito da humanidade.
Jesus praticamente inverte o primeiro mandamento: foi Deus quem amou a
humanidade sobre todas as coisas! A afirmação “Deus amou o mundo” (em grego hvga,phsen o` qeo.j to.n ko,smon –
egapessen hó theós ton kósmon) é única em toda a Bíblia. É uma exclusividade do
Quarto Evangelho. A prova maior desse amor da parte de Deus é o seu dom: o
Filho unigênito doado ao mundo para que, ao ser acolhido, se estabeleça na
humanidade a vida eterna.
É importante recordar e jamais
esquecer que “Deus deu o seu Filho” para a humanidade. O mundo inteiro é
convidado a receber esse dom do Pai. Quem o acolhe, recebe a vida eterna. Essa,
a vida eterna (em grego zwh. aivw,nioj
– zoé aiônios), não significa uma vida no
além. “Eterna” aqui não é a duração, mas é a qualidade da vida de quem acolhe
Jesus e seu evangelho. A “vida eterna” não é um prêmio que os bons receberão no
futuro, como pensavam os fariseus e ainda pensam muitos cristãos. A vida se
torna eterna quando se faz opção por Jesus e seu projeto. Essa vida é eterna
porque é tão plena, a ponto de nem a morte poder destruí-la. À medida que o ser
humano encontra sentido para a sua existência, ele eterniza a sua vida. E o
sentido pleno da vida só pode ser encontrado quando se consegue viver bem como
imagem e semelhança do Criador.
O segundo versículo reforça o que
diz o primeiro: “De fato, Deus não enviou o seu Filho para condenar o mundo,
mas para que o mundo seja salvo por ele” (v. 17). Se o primeiro declarava o que
o Filho de Deus veio fazer entre nós, esse segundo diz o que não veio fazer:
julgar! Aqui é necessário fazer uma pequena observação a respeito da tradução
do texto litúrgico: ao invés do verbo “condenar”, é mais apropriado usar a
expressão “dar sentença” ou o verbo “julgar” (verbo
grego kri,nhw -
krinô), uma vez que a condenação seria o efeito do julgamento. Portanto, Deus
não enviou seu Filho nem mesmo para julgar. Só condena quem antes julga. Como
Deus só sabe amar, não julga e, portanto, não condena ninguém.
Mais
uma vez Jesus contradiz a ortodoxia judaica, ao excluir a ideia de Deus como um
juiz. Obviamente, quem esperava um messias juiz que viesse ao mundo para
separar os bons dos maus, os puros dos impuros e, assim, salvar os primeiros e
condenar os segundos, não poderia acreditar no Deus que Jesus veio revelar: um
Pai louco de amor, apaixonado pela humanidade, a ponto de dar o próprio Filho.
Quem julga e condena são os próprios seres humanos com suas religiões
falsamente fundadas em nome de Deus. O Deus de Jesus nem a juízo leva. Enquanto
os homens julgam, Deus apenas justifica, ou seja, apenas salva, porque de quem
é amor só pode sair amor.
O mesmo Deus que doou livremente
o seu Filho, deu também liberdade à humanidade, de modo que essa pode acolher
ou não o seu Filho, Jesus. A acolhida se dá pela fé, uma adesão profunda capaz
de deixar-se conduzir pelo seu amor. Por
isso, Jesus disse: “Quem nele crê não é condenado, mas quem não crê já está
condenado, porque não acreditou no nome do Filho unigênito” (v. 18). O ser
humano que rejeita a oferta de vida em plenitude que é Jesus, fica privado da
qualidade de eternidade em sua vida e, portanto, estará condenado. Isso não
depende de um juízo divino, é escolha do ser humano. Deixar de acreditar no
nome do Filho unigênito é se recusar a fazer comunhão com ele.
Aceitar o dom do Pai, Jesus, não
significa abraçar uma doutrina, repeti-la e até impô-la, como muito se fez ao
longo da história, e ainda se faz até hoje. A oferta que Deus fez e faz é
livre, como livre deve ser a resposta. A imposição é falta de segurança e de
consistência no anúncio. O Pai simplesmente enviou, doou.... Sua proposta é
sempre positiva. Ele não julga, nem condena.
O Evangelho não diz se Jesus
conseguiu convencer Nicodemos. Provavelmente sim, pois ele aparecerá em mais
dois episódios, sempre tomando partido por Jesus: defendendo-o da ira dos
fariseus quando tinha se apresentado como fonte de água viva (cf. 7,50) e ajudando
no seu sepultamento (cf. 19,39). Certamente, o diálogo com Jesus lhe comoveu.
Mesmo que não tenda aderido completamente a Jesus, passou a ver com outros
olhos aquela rígida doutrina judaica.
Assim como serviu para Nicodemos,
que a face do Pai louco de amor que Jesus apresenta hoje sirva para, pelo
menos, compararmos se o Deus em quem acreditamos parece com o Deus de Jesus ou
se é apenas aquele das religiões: juiz e soberano, aplicador de castigos ou
prêmios.
Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues
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