Neste domingo, seis de agosto, celebramos
a Festa da Transfiguração do Senhor. O texto oferecido pela liturgia para essa
festa, nesse ano, é Mateus 17,1-9, o relato da transfiguração propriamente
dita, em sua versão mateana. A transfiguração é um episódio narrado pelos três
evangelhos sinóticos (cf. Mt 17,1-9; Mc 9,2-13; Lc 9,28-36) e, portanto, de
grande relevância para a vida das comunidades cristãs de todos os tempos.
Para uma boa compreensão do nosso
texto é indispensável contextualizarmos o mesmo, embora brevemente. Trata-se do
episódio que sucede imediatamente à profissão de fé de Pedro na região de Cesaréia
de Felipe (cf. Mt 16,13ss) e, consequentemente, ao primeiro anúncio da Paixão
(cf. Mt 16,21-28). Daí, podemos concluir que se trata de uma resposta de Jesus
à incompreensão dos discípulos em relação ao seu caminho de doação da vida por
fidelidade aos propósitos do Pai.
Mais uma vez, a versão litúrgica
do texto nos priva de uma expressão muito importante para uma compreensão mais
adequada: o indicativo cronológico “Seis dias depois” (em grego meqV h`me,raj e]x – meth heméra ex), presente
no texto original, substituído no texto litúrgico pela genérica e desnecessária
expressão “Naquele tempo”.
Diz o texto que “Seis dias
depois, Jesus tomou consigo Pedro, Tiago e João, seu irmão” (v. 1a).
Esse indicativo cronológico faz referência ao ocorrido em Cesaréia de Filipe,
quando Pedro professou sua fé em Jesus como Messias, mas ao mesmo tempo não
aceitou o caminho doloroso da cruz, levando Jesus a repreendê-lo duramente,
chamando-o de satanás, por tornar-se um empecilho à realização do projeto de
Deus. Portanto, “Seis dias depois” de ter anunciado a sua morte, Jesus mostra
aos discípulos a vida em plenitude. Assim como o homem e a mulher foram criados
no sexto dia (cf. Gn 1,26-31), na transfiguração Jesus manifesta Jesus o ser
humano recriado, ou seja, em sua máxima dignidade e realização.
Jesus tomou consigo três
discípulos: Pedro, Tiago e João. À primeira vista, parece tratar-se de um
privilégio: Jesus escolhe os mais próximos e íntimos, hierarquizando o grupo
dos Doze. Porém, se fizermos uma leitura mais atenta, concluímos exatamente o
contrário: esses três são os discípulos que mais tem dificuldade de assimilar
os ensinamentos de Jesus, são os mais trabalhosos e, portanto, os mais necessitados
de catequese. Pedro é sinônimo de dureza e fechamento, a ponto de ser o único
dos Doze a quem Jesus chamou diretamente de satanás, por colocar-se como pedra
de tropeço em seu caminho (cf. Mt 16,23); Tiago e João, além de ambiciosos (cf.
Mc 10,35-40), tinham temperamento bastante explosivo, a ponto de serem chamados
de “filhos do trovão” (cf. Mc 2,17). Portanto, são os discípulos que tinham
mais dificuldade em aceitar a mensagem libertadora e desafiadora de um messias
sofredor.
O indicativo espacial também é de
grande importância: uma alta montanha. Na tradição hebraica, a montanha é, por
excelência, o lugar do encontro com Deus. No alto da montanha, diz o texto que “Jesus
foi transfigurado diante dos discípulos” (v. 2a). O verbo grego usado aqui
é “metamorfo,omai – metamorfóomai”, cujo significado é ser transformado ou mudado.
Assim, o evangelista está dizendo que Jesus transformou-se, sua forma mudou
diante dos discípulos. Ora, diante da incredulidade e resistência em aceitar a
morte, Jesus antecipa para eles o resultado da paixão: a manifestação gloriosa
do Filho do Homem e, portanto, de Deus n’Ele. “Seu rosto brilhou como o sol
e suas roupas ficaram brancas como a luz” (v. 2b): as mesmas imagens da
glória de Deus ao longo da história são reveladas em Jesus; a luz é também
sinal do que é novo: à medida que o Reino de Deus vai sendo implantado, o
universo todo se renova.
Os personagens do Antigo
Testamento mais venerados na tradição judaica entram em cena: Moisés e Elias
(v. 3). Obviamente, estes personagens representam a Lei e os profetas,
respectivamente. É mais uma iniciativa divina para conscientizar os discípulos
de que o ensinamento de Jesus está em consonância com tudo o que a Lei e os
profetas tinham afirmado a respeito do Messias. Embora o programa de Jesus seja
repleto de novidades, não contradiz as Escrituras; é o seu pleno cumprimento.
Os discípulos contemplam, mas
somente Jesus conversa com Moisés e Elias. Esse é mais um dado de grande
importância revelado pelo texto. Ora, a comunidade cristã, representada no
episódio pelos três discípulos, não depende mais do Antigo Testamento. Em
Jesus, a Lei e os profetas encerram-se, chegam ao fim. Jesus é o critério de
interpretação da Escritura: o Antigo Testamento só tem sentido se passar por
Ele. Por isso, Moisés e Elias nada tem a dizer para a comunidade cristã; essa
deve escutar somente a Jesus (v. 5).
Pedro, teimoso como sempre, tomou
a palavra e, mais uma vez, disse coisas desprezíveis: “Senhor, é bom
ficarmos aqui. Se queres, vou fazer três tendas: uma para ti, uma para Moisés e
outra para Elias” (v. 4). Duas coisas são reprováveis na fala de Pedro: a
primeira, é a nova tentação sugerida a Jesus através do comodismo; permanecer
na montanha é ignorar o mundo real com seus problemas e contradições, é
mostrar-se indiferente às situações desafiadoras e fechar os olhos às
injustiças que assolam o mundo. Mais uma vez, Pedro procura uma maneira de
tirar a cruz do caminho de Jesus; na primeira vez, foi Jesus quem o repreendeu,
agora será o próprio Pai, interrompendo-lhe.
A segunda coisa a reprovável na
fala de Pedro é o seu apego à tradição: “uma para ti, uma para Moisés, e
outra para Elias” (v. 4b); infelizmente, Jesus ainda não ocupava o centro
na vida de Pedro, mas sim Moisés. Para a tradição hebraica, o personagem mais
importante é aquele que é citado em posição central; Pedro insiste com a antiga
tradição: está seguindo Jesus, mas ainda coloca Moisés e a Lei no centro da sua
vida; resiste em aceitar Jesus e o seu Evangelho como centro.
As palavras de Pedro são tão
absurdas que o próprio Deus, o Pai, lhe interrompe: “Pedro ainda estava
falando quando uma nuvem luminosa os cobriu com sua sombra. E da nuvem uma voz
dizia: ‘Este é o meu Filho amado, no qual eu pus todo o meu agrado. Escutai-o!”
(v. 5). O Pai não espera Pedro concluir seu equivocado discurso e o interrompe,
chamando a sua atenção. Mais uma vez a imagem da luz e da nuvem são
evidenciadas como sinais da presença e manifestação de Deus, sendo que o mais
importante aqui são as palavras que saem da nuvem: “Este é o meu Filho
amado, no qual eu pus o meu agrado. Escutai-o”; é praticamente a mesma
frase proferida por Deus no momento do Batismo (cf. Mt 3,17), sendo que ali
somente Jesus ouviu, enquanto aqui na transfiguração também os discípulos
ouviram e ainda foram exortados a escutá-lo. O imperativo “escutai-o” (em grego
avkou,ete auvtou/ - akúete
autú), é dirigido a toda a comunidade, mas principalmente a Pedro, ainda
propenso a escutar mais a Moisés que a Jesus.
Moisés e Elias, ou seja, a Lei e
os profetas já disseram o que tinham a dizer. De agora em diante, só o
Evangelho deve falar à comunidade cristã. Ouvir Jesus é compreender sua Palavra
e viver as consequências de uma adesão radical a ela, o que Pedro tentava
constantemente evitar, por medo da cruz. A situação tornou-se tão séria, a
ponto de ser necessário o Pai intervir: sem escutar Jesus, não é possível
prosseguir no seu seguimento.
Eis as consequências das palavras
de Deus: “Os discípulos, assustados, caíram com o rosto por terra” (v.
6). Essa cena apresenta um pequeno retrato da comunidade cristã no seu
dia-a-dia que, sentindo-se desafiada, cai constantemente. É um sinal de
falência e um reconhecimento de que falharam ao longo do seguimento. A
comunidade cai por terra quando não escuta seriamente o que Jesus diz. Porém,
mesmo caída, a comunidade jamais será abandonada, porque Jesus está sempre
próximo, tocando e estimulando: “Levantai-vos e não tenhais medo” (v. 7).
Apesar das infidelidades e fracassos dos discípulos, Jesus não desiste,
continua acreditando no ser humano e encorajando-o.
Após a belíssima experiência, a
vida volta à sua normalidade: “ergueram os olhos e não viram mais ninguém, a
não ser somente Jesus” (v. 8). Moisés e Elias foram embora, pois cumpriram
as suas respectivas missões; a comunidade cristã já não precisa mais deles, mas
somente de Jesus. Já não sai mais nenhuma voz de Deus da nuvem, porque quem vê
Jesus, vê o Pai (cf. Jo 14,9) e, portanto, quem o escuta, escuta também o Pai!
É o momento de descer da montanha
e novamente encarar a realidade, continuar o caminho com seus percalços e
desafios até enfrentar o maior deles: a cruz! A ideia do comodismo não combina
com a comunidade cristã, como soou absurda para Deus a sugestão das tendas por
Pedro.
Jesus pede que não contem nada a
ninguém daquilo que experimentaram (v. 9), por respeito aos propósitos do Pai,
pois deveriam esperar a Ressurreição, e também porque se a notícia daquela
experiência se espalhasse, novamente grandes multidões emotivas e curiosas se
aproximariam dele apenas em busca de sinais e milagres. Da comunidade cristã, o
que o Pai espera é que esteja atenta para ouvir somente o que Jesus diz é: “Nisto
reconhecerão todos que sois meus discípulos: se tiverdes amor uns pelos outros”
(cf. Jo 13,35).
Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues