Neste décimo nono domingo do
tempo comum, a liturgia nos propõe o texto evangélico de Mateus 14,22-33. É um
texto bastante conhecido e importante para a vida da comunidade cristã em todos
os tempos. Esse texto relata Jesus andando sobre as águas em direção aos discípulos
em perigo no alto mar. De modo antecipado, já podemos concluir que, mais que o
relato de um fato, esse texto pretende ser uma imagem da comunidade cristã, a
qual deve colocar-se sempre em situações arriscadas para que o Evangelho seja
anunciado e, assim, o Reino dos céus seja edificado ainda aqui na terra.
O contexto do nosso texto é de
crise na comunidade dos discípulos e no próprio Jesus. O capítulo quatorze de
Mateus começa relatando a morte de João, o Batista, decapitado a mando do rei
Herodes (cf. Mt 14,1-12). Embora fossem muito diferentes em mentalidade, sobretudo
a respeito do Reino e seus sinais, Jesus e João eram muito próximos
afetivamente. Certamente, a morte trágica do Batista abalou profundamente a
Jesus e seus seguidores, tanto pelo afeto que os unia, quanto pela certeza de
que Ele tinha tudo para ser a próxima vítima da fúria imperial.
Diante disso, Jesus sentiu a
necessidade de um momento sozinho para rezar, meditar e, talvez, até chorar;
por isso, “foi a um lugar deserto para estar a sós” (cf. Mt 14,13). Porém,
não conseguiu logo esse desejado momento de solidão porque as multidões o
seguiam e até chegavam antes dele ao destino, pela ânsia que tinham de
libertação e já tinham percebido que Jesus, de fato, era sinal de libertação e
esperança. O drama é total: comovido pela morte do seu mentor, o Batista,
sabendo que em breve também Ele seria condenado e morto, encontra-se no deserto
diante de uma grande multidão faminta que foi ali somente para vê-lo e ouvi-lo.
Seu sentimento não poderia ser outro: “teve compaixão” (cf. Mt 14,13). A compaixão
em Jesus não era um mero sentimento, era motivação para uma ação concreta que
restabelecesse a dignidade e a vida em plenitude; essa vida em plenitude
pressupõe a saúde do corpo e da alma.
Disso, surgiu um pequeno
desentendimento entre Jesus e os discípulos: as multidões sentiram fome, os
discípulos, por comodismo, sugeriram que Jesus as despedissem; Jesus, pelo
contrário, diz que são os discípulos que devem providenciar o alimento: “Dai-lhes
vós mesmos de comer” (cf. Mt 14,16); os discípulos reclamam que o que eles têm
é muito pouco, apenas cinco pães e dois peixes; Jesus mostra que é exatamente
daquilo que é pouco e pequeno que a mudança pode acontecer (cf. Mt 14,21). Quando
o pouco é colocado em comum, surge a abundância. Por isso, o milagre aconteceu.
Certamente, o clima entre Ele e os discípulos ficou pesado e o momento de
solidão se tornou cada vez mais necessário. É esse o contexto do Evangelho de
hoje: crise pessoal em Jesus, crise na sua relação com os discípulos e,
sobretudo, crise nos discípulos.
Terminada a contextualização,
olhamos para o nosso texto: “Jesus mandou que os discípulos entrassem na
barca e seguissem à sua frente, para o outro lado do mar, enquanto ele despedia
as multidões” (v. 22). Nossa primeira observação é a respeito da tradução
do texto litúrgico: ao invés de “Jesus mandou”, é mais correto e mais fiel ao
texto original “Jesus obrigou” (verbo grego avnagkazw – anankazô). Jesus não está dando uma sugestão, mas impondo uma
condição para a comunidade: ir “para o outro lado do mar”, ou seja, para
a outra margem (em grego: pe,ran –
péran = outra margem). Ora, ir para a outra
margem significa abandonar o comodismo e expor-se ao perigo, aos riscos. A outra
margem do mar da Galileia era o território dos pagãos, e essa ordem de Jesus
significa a universalidade do seu Evangelho. A barca é a imagem da comunidade
cristã, ou seja, da Igreja, a qual só tem razão de existir se estiver em estado
de travessia, enfrentando perigos, mas levando a mensagem de Jesus a todos os
lugares, sem distinção. A uma situação de crise na comunidade, Jesus responde
com novos desafios, não suavizando nem enganando. Ser Igreja é estar sempre em
saída!
Jesus
não renunciou ao seu momento de oração pessoal, por isso, tendo despedido as
multidões e os discípulos, “subiu ao monte para orar a sós” (v. 23). A oração
é um tema bem menos frequente em Mateus, comparando-o a Lucas, mas
indispensável. O monte é, na tradição bíblica, o lugar do encontro com Deus, da
intimidade com o Criador. Nesses dois primeiros versículos do Evangelho de
hoje, Jesus apresenta duas posturas indispensáveis para a comunidade cristã: o
cultivo da vida de oração e o colocar-se em estado de saída. Subir ao monte sem
descer depois para enfrentar os mares da vida é inútil, bem como é inevitável o
naufrágio quando se arrisca no mar sem ter feito antes a experiência do monte.
Quando
a barca já estava longe da terra, ou seja, em alto mar, ela “era agitada
pelas ondas, pois o vento era contrário” (v. 24). É essa a situação da
Igreja em saída em todos os momentos da história. O termo vento (em grego: a;nemoj – ánemos), merece uma consideração especial: ele aparece três
vezes no texto de hoje (vv. 24. 30. 32), e representa os três principais obstáculos
que atrapalhavam a comunidade cristã no anúncio do Reino: 1) a oposição da
sinagoga (judaísmo oficial), 2) as forças do império romano, 3) o medo dos
discípulos. Três obstáculos a serem enfrentados para o Evangelho alcançar a
outra margem, ou seja, chegar no mundo inteiro. Desses, o principal era o medo
dos discípulos, ou seja, a resistência e a tentação do comodismo ou mesmo da
desistência. Isso quer dizer que a comunidade é desafiada constantemente por
forças externas e internas, sendo as internas as mais perigosas.
Quando
a comunidade está prestes a sucumbir, eis que Jesus se manifesta e vai ao seu
encontro “andando sobre o mar” (v. 25). O mar, na mentalidade bíblica,
evoca perigo, morte, domínio do mal, é sinônimo de caótico, algo que o ser
humano não tem força para controlar. Porém, conforme essa mesma mentalidade, Deus
tem o controle de tudo e pode, de fato, controlar até o mar, como fizera
outrora, ao libertar o seu povo da escravidão do Egito (cf. Ex 14,24ss; Sl
77,16-20). Essa cena é um recado para a comunidade de Mateus, sufocada pelos
três ventos mencionados anteriormente, e para a Igreja em todos os tempos: em
Jesus, o Reino dos céus em pessoa, é possível superar o mal e todas as forças
contrárias. Porém, só é possível vencer as hostilidades do mundo se enfrentá-las.
Só vence o mar quem se arrisca nele.
Com a
falta de confiança e convicção, a hostilidade só faz crescer na comunidade,
como aconteceu com os discípulos: “Quando avistaram Jesus andando sobre o
mar, ficaram apavorados e disseram: ‘É um fantasma!’. E gritaram de medo” (v.
27). O medo (em grego: fo,boj –
fóbos) tem sido o maior obstáculo da Igreja em
todos os tempos. O medo constrói fantasmas e gera terror. Foi esse medo que fez
a Igreja criar ‘inimigos’ para si ao longo da história. É o vento que mais
impede a Igreja de alcançar a outra margem, ou seja, de chegar onde ninguém
chega, onde estão os excluídos e marginalizados. Por isso, ao medo dos
discípulos, Jesus responde com uma declaração e um imperativo: “Coragem! Sou
eu. Não tenhais medo!” (v. 27). É preciso coragem e confiança no Deus que, simplesmente,
é! De fato, com a afirmação “Sou eu” (em grego evgw, eivmi – egô eimí), Jesus recorda
e atualiza ação do Deus libertador do Êxodo (cf.
Ex 3,14), o qual também fez o seu povo passar para a outra margem do mar,
conquistando a libertação da escravidão. A libertação só pode ser alcançada
quando o medo for superado.
Pedro
assume o papel de porta-voz do grupo e se manifesta: “Senhor, se és tu,
manda-me ir ao teu encontro, caminhando sobre a água” (v. 28). O protagonismo
de Pedro aqui é completamente negativo. Sua proposta é a mesma do diabo no
episódio das tentações (cf. Mt 4,1-11), e dos zombadores no calvário (cf. Mt 27,40).
Assim, como o demônio e os zombadores, Pedro quer pôr Jesus à prova com a
expressão típica das tentações: “se tu és...” (em grego: eiv su. ei= – ei si ei); ao pedir um sinal, “manda-me ir ao teu
encontro, caminhando sobre a água”, ele se comporta como os escribas e
fariseus, classificados por Jesus como geração perversa e malvada (cf. Mt
12,38ss). Mais tarde, no episódio de Cesaréia de Filipe, Jesus irá desmascarar
Pedro chamando-o diretamente de satanás (cf. 16,23). Essa atitude de Pedro é
mais um alerta de Mateus à sua comunidade: o medo por um lado, e o desejo de
poder e triunfalismo do outro, são os maiores perigos que a Igreja enfrenta.
A
resposta de Jesus ao pedido absurdo e tentador de Pedro é muito clara: “Vem!”
(v. 29). É uma resposta-convite para o próprio Pedro perceber a sua falta
de fé e convicção. Jesus não chamou Pedro para dar uma prova do seu poder, mas
para mostrar o quanto aquele discípulo estava equivocado. Caminhar sobre as
águas era, para Pedro, prova de poder sobre o mal e vitória sobre os obstáculos,
uma ideia de triunfalismo, pois ele queria vencer sem lutar, como se a palavra
de Jesus fosse mágica. Ao convidar Pedro a andar sobre a água, Jesus queria que
ele se conscientizasse de sua vulnerabilidade, como, de fato, aconteceu: “Quando
sentiu o vento, ficou com medo e, começando a afundar, gritou: ‘Senhor,
salva-me’!” (v. 30). Pedro ainda estava incapacitado para enfrentar os
ventos contrários. Eis o paradoxo no qual ele se encontra: de chamado a ser
pescador de homens (cf. Mt 4,18-19), a homem pescado por Jesus!
Os momentos
de Jesus a sós com os discípulos são sempre ocasião para catequese e
aprofundamento. E essa oportunidade não poderia passar desperdiçada. Por isso, ao
ver Pedro afundar em sua falta de fé, “Jesus logo estendeu a mão, segurou
Pedro e lhe disse: ‘Homem fraco na fé, porque duvidaste?” (v. 31). A
repreensão de Jesus a Pedro, como homem de “pouca fé” ou “fraco na fé” (em
grego: ovligo,pistoj
–
oligopistos), não foi porque ele começou a afundar enquanto caminhava, pois era
impossível não afundar, mas pela mesquinhez de necessitar de um sinal para crer.
A dúvida de
Pedro não o fez afundar, o fez tentar Jesus como satanás. Jesus repreende a
Igreja e seus membros quando não se esforçam para contornar situações adversas,
ou seja, quando se recusam a ir em direção à outra margem por medo e comodismo.
Quando a comunidade valoriza mais os sinais extraordinários e milagres do que a
luta pela justiça, a inclusão, e a superação das desigualdades, ela está, como
Pedro, revelando seu lado satânico.
Ao subirem
no barco, Jesus e Pedro, diz o texto que “O vento se acalmou” (v. 32). É
a confiança que foi recuperada, a certeza de que, com Jesus, seguindo a sua
palavra, a comunidade pode superar os obstáculos, vencer as barreiras e
conseguir chegar à outra margem. “Os que estavam no barco prostraram-se
diante dele, dizendo: “Verdadeiramente, tu és o Filho de Deus!” (v. 33). É uma atitude importante que mostra
a necessidade de uma conversão contínua na vida da comunidade cristã, marcada
pela renovação das convicções.
As situações
de perigo e provação devem levar à Igreja à autocrítica e, assim, perceber qual
é o seu verdadeiro papel no mundo e qual o rumo que Jesus quer que ela tome. Com
essa confissão comunitária, a qual será retomada por Pedro no episódio de
Cesaréia de Filipe (cf. 16,16), Mateus está mostrando um progresso na fé da sua
comunidade: em um episódio anterior, quando também Jesus e os discípulos
estavam num barco e foram ameaçados pela tempestade, Jesus agiu, salvou-os do
perigo, e os discípulos, admirados, perguntaram: “Quem é este a quem até os
ventos e o mar obedecem? (cf. 8,27). A resposta foi dada seis
capítulos depois: é o Filho de Deus!
O Evangelho interpela a Igreja a tomar
atitudes que podem colocá-la em perigo, mas essa é a razão da sua existência. É
preciso alcançar outras margens, as periferias existenciais, os lugares onde só
é possível chegar se perder o medo. Para isso, é necessário ter muita convicção
da presença de Jesus em seu meio, mesmo que seja difícil reconhece-lo, muitas
vezes; e, na certeza dessa presença, enfrentar os mares com seus ventos,
buscando uma fé madura para não se contentar com sinais ou espetáculos, mas
buscar sempre a construção do Reino de Deus, que também é nosso!
Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues - Diocese de Mossoró-RN