Neste vigésimo primeiro domingo
do tempo comum, a liturgia nos oferece Mateus 16,13-20 para o Evangelho, texto
que contém a famosa confissão de fé de Pedro na região de Cesaréia de Filipe. Esse
mesmo texto já fora usado há quase dois meses atrás, por ocasião da solenidade
dos apóstolos Pedro e Paulo. Se trata de um relato comum aos três Evangelhos
Sinóticos (cf. Mt 16,13-19; Mc 8,27-30; Lc 9,18-21), embora a versão mateana
apresente certos elementos próprios, o que lhe rendeu uma supervalorização na
reflexão teológica ao longo dos séculos, sobretudo, no cristianismo católico.
Antes de entrarmos na reflexão
do texto em si, é necessário fazer algumas considerações a respeito do contexto
do relato no conjunto do Evangelho. É importante que esse trecho abre uma série
de acontecimentos importantes da vida de Jesus e dos seus seguidores, como a
transfiguração (cf. 17,1-7) e os dois primeiros anúncios da paixão (cf.
16,21-23; 17,22). Na verdade, podemos dizer que tais acontecimentos são
consequência do episódio narrado no Evangelho de hoje, pois tanto a
transfiguração quanto os anúncios da paixão são tentativas de Jesus revelar a
sua verdadeira identidade, tendo em vista que os discípulos ainda não tinham
tanta clareza.
Recordamos o que sucede o nosso
texto no conjunto do Evangelho, mas também não podemos deixar de recordar o que
o antecede: uma controvérsia com os fariseus, os quais pediam sinais a Jesus
(cf. 16,1-4), e uma séria advertência aos discípulos para não se deixarem
contaminar pelo “fermento dos fariseus e saduceus” (cf. 16,5-12). Esse
fermento era a mentalidade equivocada sobre Deus e o futuro messias e, principalmente,
a hipocrisia em que viviam.
Mateus recorda tudo isso
porque, certamente, a sua comunidade passava por uma crise de identidade: por
falta de clareza da identidade de Jesus e falta de experiência autêntica com o
Crucificado-Ressuscitado, o “fermento dos fariseus”, quer dizer a
influência da sinagoga, estava atrapalhando a vivência das bem-aventuranças, e
impedindo a realização do Reino dos céus naquela comunidade. É claro que esse
cuidado continua válido ainda para os dias atuais, uma vez que são cada mais
perigosos os fermentos farisaicos de hoje: retorno ao ritualismo, indiferença
às necessidades do próximo, fundamentalismo, espiritualismos vazios e tantos
outros. Isso se dá por falta de clareza da identidade de Jesus e carência de
experiência verdadeira com Ele.
Agora podemos, portanto,
direcionar nosso olhar para o texto que liturgia nos oferece: “Jesus foi à
região de Cesaréia de Filipe e ali perguntou aos seus discípulos: ‘Quem dizem
os homens ser o Filho do homem?’” (v. 13). O texto começa com um indicativo
geográfico de grande importância: Cesaréia de Filipe, cidade que estava
localizada no extremo norte de Israel, portanto, muito longe de Jerusalém. Como
o próprio nome indica, era um centro do poder imperial e, portanto, lugar de
culto ao imperador romano. Certamente o evangelista e sua comunidade tinham um
propósito muito claro ao narrar esse episódio e recordar a sua localização.
Longe de Jerusalém, os
discípulos estariam isentos de qualquer influência da tradição religiosa
judaica, ou seja, livres do fermento dos fariseus e, portanto, aptos a
confessarem e professarem livremente a fé em Jesus, fora dos esquemas
tradicionais da religião. Ao mesmo tempo, estando em uma região de culto ao
imperador, a confissão da fé em Jesus seria um sinal de convicção e adesão ao
projeto do Reino dos céus e uma demonstração da coragem que deve marcar a vida
da comunidade cristã, chamada a testemunhar a Boa Nova e continuar a obra de
Jesus, mesmo em meio às hostilidades impostas pelo poder imperial.
Podemos dizer que professar a
fé em Jesus é distanciar-se dos esquemas religiosos do judaísmo e, ao mesmo
tempo, desafiar qualquer sistema que não coloque a vida e o bem do ser humano
em primeiro lugar, como o império romano. Em outras palavras, é optar por uma
sociedade alternativa, como é o Reino de Deus. E, para que a confissão de fé
seja autêntica é necessário ter clareza da identidade daquele em quem se crê,
Jesus. Ora, Jesus estava prestes a iniciar sua viagem definitiva para
Jerusalém, onde sofreria a paixão e morte, isso exigiria cada vez mais clareza
de si na mentalidade dos discípulos.
A pergunta de Jesus sobre o que
dizem a respeito de si, ou seja, do Filho do Homem, não é demonstração de
preocupação com sua imagem pessoal, mas com a eficácia do anúncio da
comunidade. Até então, Jesus já tinha realizado muitos sinais entre o povo e
ensinado bastante, mas pouca gente o conhecia verdadeiramente. Muitos o seguiam
pela novidade que Ele trazia, uns pelo seu jeito diferente de acolher os mais
necessitados e excluídos, outros para aproveitarem-se dos sinais que Ele
realizava. Ele percebia isso, por isso fez essa pergunta: “Que dizem os
homens ser o Filho do Homem?” (v. 13b).
A resposta dos discípulos à
pergunta de Jesus revela a falta de clareza que se tinha a respeito da sua
identidade e, ao mesmo tempo, a boa reputação da qual Jesus já gozava entre o
povo, certamente o povo simples, com quem Ele interagia e por quem mais lutava.
Eis a resposta: “alguns dizem que é João Batista; outros, que é Elias,
outros, ainda, que é Jeremias ou algum dos profetas” (v. 14). Sem dúvidas,
Jesus estava bem-conceituado pelo povo, pois era reconhecido como um grande
profeta. De fato, os personagens citados foram grandes profetas, homens que
acenderam a esperança de libertação, anunciando, denunciando e testemunhando.
Mas Jesus é muito mais. Embora continuem sempre atuais, os profetas de Israel
são personagens do passado. A comunidade cristã não pode ver Jesus como um
personagem do passado que deixou um grande legado a ser lembrado. Isso impede a
comunidade de fazer sua experiência com o Ressuscitado, presente e atuante na
história. Foi esse risco que Mateus quis combater ao recordar esse episódio da
vida de Jesus.
A pergunta sobre o que as
outras pessoas diziam a seu respeito foi apenas um pretexto. Na verdade, Jesus
queria saber mesmo era o que seus discípulos pensavam de si. Por isso, lhes
perguntou: “E vós, quem dizeis que eu sou?” (v. 15), uma vez que longe
do “fermento dos fariseus”, os discípulos poderiam dar uma resposta sincera,
isenta e livre. O texto afirma que “Simão Pedro respondeu: “Tu és o Messias,
o Filho do Deus vivo” (v. 16). Não resta dúvida que também os demais
discípulos, componentes do grupo dos doze, também responderam. O evangelista
enfatiza a resposta de Pedro por ser uma síntese do pensamento dos doze. Essa é
a resposta do grupo e, portanto, da comunidade.
A resposta é complexa e profunda:
Jesus é Messias e Filho do Deus vivo. É muito significativo que Ele seja
reconhecido e acolhido como o Messias esperado, ou seja, o Cristo, o enviado de
Deus para libertar o seu povo e a humanidade inteira. Como circulavam muitas
imagens de messias entre o povo, principalmente a de um messias guerreiro e
glorioso, o segundo elemento da resposta de Pedro é de extrema profundidade e
importância: o Filho do Deus vivo (em grego o` ui`o.j tou/
qeou/ tou/ zw/ntoj – hó hiós tú Theú tú
zontos). Além de definir a qualidade e especificidade do messianismo de Jesus,
essa expressão serve também para denunciar a falsidade do culto ao imperador
romano, o qual exigia ser reverenciado como filho de uma divindade.
Com
a resposta de Pedro, a comunidade cristã é chamada a proclamar que Jesus é, de
fato, o Cristo (termo mais fiel ao texto grego que Messias), é o Filho do Deus
vivo, ou seja, seu Deus é o Deus da vida, enquanto os deuses pagãos cultuados
no império romano e até mesmo o Deus oferecido pelo templo de Jerusalém eram
privados de vida e agentes de morte, sobretudo para o povo simples e excluído.
A convicção de que Jesus é o Filho do Deus vivo compromete a comunidade a
denunciar e desafiar todos os sistemas, religiosos e políticos, que não
favoreçam a promoção da liberdade e da vida plena e abundante para todos.
Jesus
se alegra com a resposta de Pedro e o proclama bem-aventurado: “Feliz és tu,
Simão, filho de Jonas, porque não foi um ser humano que te revelou isso, mas o
meu Pai que está no céu” (v. 17).
Não se trata de um elogio por um mérito particular de Pedro, até porque
o conhecimento não é dele, mas do Pai que lhe revelou. O que Jesus faz é uma
constatação: as coisas parecem começar a funcionar na comunidade, pois a voz do
Pai está sendo ouvida; como o Pai só revela seus desígnios aos pequeninos (cf.
10,21), e Pedro está falando a partir do que o Pai lhe sugere, ele está
demonstrando adesão plena ao projeto do Reino! O Reino de Deus ou dos céus,
como Mateus prefere, é um projeto alternativo de mundo que só tem espaço para
quem aceita a condição de pertencer ao mundo dos pequeninos. Parece que os
discípulos começam, realmente, a pôr os pés no chão!
Na
continuidade, Jesus declara: “Por isso eu te digo que tu és Pedro e sobre
esta pedra edificarei a minha Igreja” (v. 18a). com essa afirmação, Jesus
está declarando que Pedro está apto a participar da construção da sua
comunidade, por estar aberto às intuições do Pai. Ao contrário da antiga
religião judaica que precisava de um templo de pedras, a comunidade cristã é
uma construção sim, mas pela sua coesão e unidade, por isso, na sua construção
são necessárias pedras vivas. Pedro é uma destas pedras escolhidas por Jesus. A
pedra fundamental da construção é a fé da comunidade. A força, o equilíbrio e a
perseverança da comunidade dependem da solidez da sua fé. Por isso, é
necessário que essa fé seja forte como uma rocha, comparável a fé que Pedro
tinha acabado de professar.
Não
podemos esquecer que muitas controvérsias já foram geradas a partir desse
versículo. Por isso, é importante perceber e esclarecer que Mateus usa duas
palavras gregas muito parecidas, mas diferentes, para designar Pedro e pedra: Pe,troj – Petros e pe,tra| - petra.
Embora muito próximas, é possível distingui-las: Petros, transformado no
nome próprio Pedro, designa pedra, pedregulho ou tijolo, uma pedra pequena e
removível usada em construções; petra designa a superfície rochosa, base
ideal para os fundamentos de uma construção sólida. Enquanto apóstolo e membro
da comunidade, Pedro, juntamente com os demais, é apenas um elemento da ampla
edificação proposta por Jesus, e não o fundamento dessa. A rocha ou superfície
rochosa é a fé sólida e convicta em Jesus, professada por Pedro em nome de todo
o grupo. São estas as bases necessárias para a edificação da Igreja enquanto
comunidade do Reino. Vale lembrar que essa é a primeira ocorrência da palavra
Igreja no Evangelho (em grego evkklhsi,a – eclesía), cujo significado é assembleia
convocada.
Ao
contrário do templo de Jerusalém e dos templos pagãos que haviam na região de
Cesaréia de Filipe, construídos com pedras concretas e visíveis e, portanto,
passíveis de destruição, a comunidade cristã não correrá esse risco se for
edificada conforme Jesus pensou, ou seja, tendo a fé por fundamento. Por isso,
Ele declara: “e o poder do inferno nunca poderá vencê-la” (v. 18b). Aqui
Ele se refere às hostilidades que a comunidade irá enfrentar em seu longo
percurso até a realização plena do Reino aqui na terra. São as forças de morte
manifestadas nos diversos sistemas de dominação, tanto políticos quanto
religiosos. A comunidade precisa de uma fé muito consistente para resistir a
tudo isso.
No
penúltimo versículo temos mais uma declaração significativa de Jesus a Pedro e
à comunidade dos discípulos: “Eu te darei as chaves do Reino dos céus: tudo
o que ligares na terra será desligado nos céus; tudo o que desligares na terra
será desligado nos céus” (v. 19). Não se trata de uma delegação de
superpoderes à Igreja como muitos propagam. Mais que conferindo poderes, Jesus
está responsabilizando a comunidade para fazer o Reino dos céus acontecer já
aqui na terra. A comunidade recebe “as chaves do Reino dos céus” porque
é nela que se faz a experiência da fé e da comunhão profunda com Deus através
da prática das bem-aventuranças (cf. 5,1-12), e é isso que torna alguém apto
para entrar Reino dos céus. Qualquer um que professa convictamente a fé em
Jesus e vive seu programa de vida expresso nas bem-aventuranças tem a chave de
acesso ao Reino. “Ligar e desligar” é, portanto, responsabilidade e não
poder: se a comunidade cristã viver profundamente o que Jesus ensinou, não
haverá diferença entre o céu e a terra!
Infelizmente,
ao longo história, muitos abusos já foram praticados devido as más
interpretações aplicadas a esse texto. Jesus não instituiu nenhum poder
monárquico. Com essas imagens tão fortes (chaves – ligar – desligar) Jesus
convida a sua Igreja, comunidade do Reino, a viver sempre em perfeita sintonia
com Ele mesmo e com o Pai, de modo que, aquilo que a comunidade experimentar
será referendado pelos céus! Ele dá as chaves para a sua comunidade abrir para
todos o Reino que os escribas e fariseus tinham trancado (cf. 23,13), devido a hipocrisia
em que viviam.
O último
versículo apresenta uma proibição de Jesus aos discípulos: “Jesus, então,
ordenou aos discípulos que eles não dissessem a ninguém que Ele era o Messias”
(v. 20). A princípio, parece uma contradição, uma vez que a comunidade tem
a missão de anunciar Jesus e sua boa nova. Ora, Jesus conhecia muito bem os
seus discípulos e suas fragilidades. Essa confissão de Pedro já foi um grande
passo, mas sabia ainda continuavam vulneráveis e aquela fé não se manteria tão
sólida com o passar do tempo, como o próprio Evangelho vai mostrar na sua
sequência. Espalhar que Jesus era o Messias seria muito arriscado para a
continuidade do seu projeto, pois a ideia de Messias que circulava na época era
completamente diferente do tipo de messianismo que estava revelando.
Certamente, muitos mal entendidos surgiriam.
Essa
ordem para que os discípulos não contassem a ninguém que Ele era o Messias
reforça na comunidade a necessidade que cada um tem de fazer uma experiência
autêntica com Ele, seguindo cada passo da sua vida para, de fato, perceber a
especificidade do seu messianismo e da sua vida: servir e amar, até dar a
própria vida.
Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues