Após uma sequência de seis
domingos, a liturgia dá uma pausa no tempo comum e nos convida a vivenciar um
dos seus períodos mais fortes, o tempo da quaresma, iniciado na quarta-feira de
cinzas. Hoje, celebramos o primeiro domingo desse tempo especial de preparação
para a Páscoa do Senhor. O texto evangélico proposto, Marcos 1,12-15, embora
curto, é bastante rico e complexo, cujo conteúdo consiste na narrativa da ida
de Jesus ao deserto, onde foi tentado por satanás (vv. 12-13), e do início do
anúncio do Evangelho na Galileia (vv. 14-15).
Chega a ser surpreendente a
capacidade de síntese do evangelista Marcos: em apenas quatro versículos, ele
consegue transmitir muita coisa da vida de Jesus. Antes de nos determos
diretamente no texto, é necessário fazer algumas considerações a respeito do
contexto em que está inserido. O episódio que precede o nosso texto é o batismo
de Jesus por João no Jordão (v. 9-11). Enquanto realizava sua missão de
batizador, João havia anunciado que viria alguém “mais forte” do que ele, o
qual batizaria no Espírito Santo. De fato, veio esse alguém, foi batizado (v.
9), e nele o Espírito se manifestou em forma de pomba (v. 10), e ainda recebeu
o testemunho do Pai como o “Filho Amado” (v. 11).
O texto de hoje é a sequência
desta série de eventos e sinais introdutórios da missão de Jesus. Vejamos: “E
logo o Espírito levou Jesus para o deserto” (v. 12). De início, fazemos uma
pequena e importante observação: a versão litúrgica, infelizmente, omite a
primeira parte do versículo: “E logo” (em grego: Kai. euvqu.j – kaí euthis); a ausência desse advérbio
compromete o sentido do texto, porque omite o caráter de urgência e imediatez
da ação do Espírito em impelir Jesus para o deserto. O verbo empregado pelo
evangelista é muito mais intenso que “levar”, utilizado pela versão litúrgica;
o verbo grego empregado no texto original (evkba,llw – ekbalo)
significa empurrar, atirar, impelir, lançar fora com força.
Jesus não é proclamado “Filho Amado” pelo Pai para isolar-se
das provações e dificuldades, mas para experimentar a vida com suas
contradições e perigos. A referência ao deserto, obviamente, não é geográfica,
mas teológica. O deserto (em grego: e;rhmoj – eremos) é um elemento de rico significado para a tradição bíblica. Aqui indica,
antes de tudo, que Jesus está inserido na história do povo de Israel, fazendo
parte desse e, portanto, estará sujeito aos mesmos riscos e perigos pelos quais
esse povo passou, desde a saída do Egito à conquista da terra e, principalmente
aos tempos obscuros de dominação e exploração romana de seu próprio tempo.
Assim, também o caminho de Jesus até a cruz e ressurreição será marcado por
perigos e provas, uma vez que, embora seja verdadeiro Deus, ele é verdadeiro
homem.
Embora o deserto evoque provação, é também o lugar ideal para
o bom relacionamento com Deus; por isso, quando o povo demonstrava
infidelidade, os profetas apresentavam a necessidade de retornar ao deserto
para voltar a viver o ideal da aliança. A experiência do deserto na vida de
Jesus representa a confirmação da sua vocação de “Filho Amado” do Pai: “E ele
ficou no deserto durante quarenta dias, e aí foi tentado por Satanás” (v. 13a).
Associando deserto a provação, o evangelista chama a atenção da sua comunidade
para um aspecto muito importante da vida cristã: deixar-se conduzir pelo
Espírito não torna a pessoa imune às tentações e dificuldades que a vida
apresenta. O tempo de permanência no deserto, “quarenta dias” (em grego: tessera,konta h`me,raj – tesseráconta heméras), também possui um rico
simbolismo na Bíblia. É antes de tudo, uma alusão à experiência do êxodo,
marcada por quarenta anos de caminhada pelo deserto (cf. Nm 32,13; Dt 8,2), mas
também a outros acontecimentos importantes do Antigo Testamento: a duração do dilúvio de
quarenta dias e quarenta noites (cf. Gn 7,4.12.17); a caminhada de Elias rumo
ao monte Horeb (cf. 1 Rs 19,8).
Além de evocar acontecimentos e
personagens importantes da história de Israel, esse número quer dizer uma etapa
completa, ou seja, uma vida inteira, uma geração. Portanto, significa que toda
a vida de Jesus foi marcada pela prova e, assim é também a vida da comunidade
cristã. Isso deve levar os cristãos a uma vida vigilante sem jamais cair em
comodismos. Quer dizer que a Igreja não pode, em momento algum da história,
aceitar qualquer sinal de conforto, principalmente quando ofertado pelos
detentores de poder. O tentador, segundo Marcos, é Satanás (em grego: satanaj), e significa o adversário. Mais do que um ser específico, satanás é toda
e qualquer realidade adversa ao Reino de Deus. A vida cristã é um confronto
constante com essa realidade. No decorrer do Evangelho, o adversário de Jesus
assumirá diversos rostos: a hierarquia religiosa, o poder político romano e até
mesmo os seus discípulos (cf. 8,33), quando Pedro será explicitamente chamado
de satanás e pedra de tropeço por opor-se aos propósitos do Reino de Deus.
É importante também perceber que, ao contrário de Mateus e
Lucas, Marcos não faz a mínima referência ao conteúdo das tentações, nem ao
jejum praticado por Jesus. Ao invés de empobrecer, esse dado só enriquece o
evangelho marcano. Ora, ao não descrever em pormenores essa realidade
simbólica, o evangelista ajuda sua comunidade a não idealizar nem fantasiar uma
cena, mas enfatiza que as tentações são imprevisíveis e indescritíveis porque
são muitas e, portanto, não podem ser catalogadas ou delimitadas; a qualquer
momento podem surgir, e isso durante toda a vida.
A segunda parte do versículo evoca a conquista da paz
messiânica: “Vivia entre os animais selvagens, e os anjos o
serviam” (v. 13b). O antigo sonho profético de harmonia entre todos
os elementos da criação é recuperado por Jesus, o profeta do Reino por
excelência. Aquilo que fora sonhado durante muitos séculos por tantas gerações,
tem em Jesus a oportunidade de ser realizado. É claro que é uma imagem
simbólica. Significa a missão de Jesus de reconciliar o mundo consigo mesmo e
com Deus. Jesus é habilitado pelo Pai, como “Filho Amado”, para combater as
forças do mal e vencê-las pelo amor, fazendo acontecer a nova humanidade,
instaurando, de fato, os “novos céus e nova terra” (cf. Is 11,1-9). O serviço
dos anjos quer dizer a adesão ao Reino da parte daqueles que compreendem a
centralidade do evangelho: servir por amor, o triunfo do bem. Animais selvagens
e anjos juntos, tendo Jesus ao centro, significa a convivência pacífica entre
todos os seres, não obstante as características de cada um. As forças do mal já
não tem o que fazer, se tornam impotentes, quando o bem é abraçado e se faz
serviço.
A passagem de Jesus pelo
deserto é uma antecipação e síntese de toda a sua vida. Quer dizer que o seu
programa consiste no combate ao mal e instauração definitiva do bem. Como tudo
isso será realizado? Com o anúncio do Evangelho e a construção do Reino de
Deus. Esse anúncio é urgente: “Depois que João Batista foi
preso, Jesus foi para a Galiléia, pregando o Evangelho de Deus” (v. 14). Temos aqui um divisor de águas na vida
de Jesus: sendo comandada por Herodes (cf. Mc 6,17), a prisão de João se torna
um apelo urgente para a instauração do Reino de Deus; é um triunfo de satanás,
o adversário, personificado no algoz do Batista, que precisa urgentemente ser
combatido. A ação de satanás se torna evidente quando o sistema dominante
oprime e mata. Quem se deixa conduzir pelo Espírito, não pode assistir
passivamente a essa realidade. Por isso, Jesus entra em cena com seu anúncio do
Evangelho de Deus. A
luta contra o mal empreendida por Jesus não se dará pela força nem pelo poder,
mas pelo anúncio do “Evangelho de Deus”, cujo núcleo central é o amor.
A pregação de Jesus consistia no anúncio do Reino de Deus como
algo urgente: “o tempo já se completou e o Reino de Deus está próximo.
Convertei-vos e crede no Evangelho” (v. 15). A compreensão do
cumprimento do tempo é essencial na pregação de Jesus. O evangelista se refere
ao tempo com o termo grego “kairo.j = kairós”, que não significa o
tempo cronológico, mas o tempo oportuno e favorável, uma oportunidade única que
não pode ser desperdiçada. De fato, em um mundo insuportável, marcado pelas
injustiças e opressão, com lideranças religiosas e políticas totalmente
corrompidas, a oportunidade de criação de um mundo novo não poderia passar desperdiçada.
A condenação injusta do Batista é uma prova disso.
O Reino de Deus (em grego: h` basilei,a tou/ qeou/ - hé basileia tú Theú), conteúdo da pregação de Jesus, consiste exatamente
na alternativa de mundo e sociedade ao sistema vigente na época; é claro que
essa proposta continua válida ainda hoje, e até com mais urgência.
O Reino de Deus não é uma resposta de esperança em um
bem-estar futuro, mas a proposta de Deus para o hoje da história. Essa proposta
consiste em uma sociedade com novas relações, baseadas na justiça, no amor, no
perdão e no serviço; um mundo marcada pela igualdade e fraternidade. Podemos
resumir o Reino de Deus como a realização plena da sua vontade neste mundo.
Esse Reino “está próximo”, diz Jesus, porque é Ele o Reino em pessoa.
Mais que a temporalidade do Reino, a forma verbal “está próximo” exprime
a sua materialidade. Essa proximidade do Reino será evidenciada pelo modelo de
vida de Jesus e pelos sinais realizados por Ele, os quais dirão que o Reino, de
fato, chegou.
Para participar do Reino não são necessários
rituais de purificação, mas apenas conversão e adesão ao Evangelho: “Convertei-vos
e crede no Evangelho” (v. ). A necessidade de conversão é uma constante na
vida do seguidor de Jesus. O convite à conversão, expresso pela forma verbal
grega “metanoei/te – metanoeite”, não significa intensificar as práticas penitenciais e
devocionais, nem melhorar um pouco, nem rezar mais... significa mudar
radicalmente o jeito de ser, de pensar e de agir. Essa mudança de mentalidade
se torna verificável na vida da pessoa pela adesão ao Evangelho.
Crer no Evangelho significa aceitar o anúncio de Deus por meio de Jesus
Cristo, tomando suas palavras como verdadeiras e portadoras de libertação. É
acreditar que um anúncio só pode ser bom e edificante se tiver como base a
mensagem libertadora de Jesus de Nazaré.
Mossoró-RN, 18/02/2017, Pe. Francisco Cornelio F.
Rodrigues
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