Na Quinta-feira Santa, somos
convidados pela liturgia, a refletir, meditar e compreender o rico texto
joanino da cena do lava-pés: João 13,1-15. Não resta dúvidas de que essa é uma
das passagens mais significativas de todo o Quarto Evangelho e que, certamente,
tem marcado o cristianismo desde as suas origens. Por isso, é um texto
comprometedor: não dá pra fazer de conta que Jesus não considerou o serviço, motivado pelo amor, como o maior sinal distintivo de pertença a si.
Apresentamos uma pequena
contextualização para, em seguida, nos voltarmos diretamente para o texto. A
princípio, pode nos causar espanto a distância entre João e os demais
evangelhos quando se trata da última ceia de Jesus com seus discípulos. Ora, ao
contrário dos sinóticos (Mateus, Marcos e Lucas), que dedicam poucos versículos
à ceia, João dedica nada menos que cinco capítulos: 13, 14, 15, 16 e 17. Ao
longo desses capítulos, ele apresenta uma longa e profunda catequese de Jesus,
ministrada com gestos e palavras, numa espécie de testamento, cujo tema central
é amor e serviço, apresentados como únicos sinais distintivos da comunidade
cristã.
No Evangelho de João, não há
nenhum aceno à “consagração” do pão e do cálice, como nos demais; por sinal, o pão só é
mencionado na descrição da traição de Judas (cf. 13.17.26.27.30). Essa ausência
do tema do pão e sua “consagração” pode ser explicada pelo fato de que João já
havia apresentado em outra ocasião: após o sinal da “multiplicação dos pães”
(cf. 6,1-15), o evangelista apresentou um longo discurso de Jesus se auto
apresentando como o “pão da vida” (cf. 6,26-66). Por isso, já não havia mais
necessidade de fazer catequese sobre o pão, uma vez que essa já tinha sido
feita. O texto que a liturgia propõe é a primeira parte do longo relato da
ceia. Chama a atenção, logo de início, o fato de um momento tão marcante e
solene não começar com um discurso ou convite, mas com um gesto surpreendente: o
lava-pés.
O texto começa com um
indicativo teológico-temporal importante: “Antes da festa da páscoa” (v.
1a). O evangelista não pretende negar o contexto pascal no qual Jesus ceou com
seus discípulos, mas quer apenas diferenciar, ou seja, quer dizer que a páscoa
celebrada por Jesus não é mais a mesma do templo; a páscoa de Jesus não exige
ofertas e sacrifícios, não é instrumento de exploração como se praticava no
templo. Celebrando antes, Jesus substitui: aquela que será celebrada um ou dois
dias depois pelos praticantes da religião oficial já não vale mais nada, está
caduca e vencida. Na páscoa do templo, o centro das atenções é a morte, a
imolação dos cordeiros, enquanto a páscoa de Jesus com sua comunidade celebra o
triunfo da vida em forma de serviço, a mais eficaz manifestação visível do
amor.
Ao longo de todo o Evangelho,
João criou um clima de suspense em relação à “hora de Jesus” (cf. 2,4; 12,23).
Pois bem, essa hora chegou: “sabendo Jesus que tinha chegado a sua hora” (v.
1b). É a hora de glorificar ao Pai... o Pai que não se sentia glorificado pelo
falso culto praticado no templo de Jerusalém, uma vez que esse fora
transformado em casa de comércio (cf. 2,16ss), recebe de Jesus o verdadeiro
culto: “tendo amado os seus que estavam no mundo, amou-os até o fim” (v.
1c). O amor de Jesus é ilimitado e, por isso, é “até o fim” (em grego: eivj te,loj – eis télos); isso
significa a intensidade do amor, e não o seu término. Quer dizer que Jesus amou
de modo extremo, intenso, e continua amando, uma vez que, ressuscitado, vive
entre os seus na comunidade.
Continuando,
diz o evangelista: “Estavam tomando a ceia” (v. 2a), ou seja, no momento
primordial da vivência do amor-comunhão, uma ceia alternativa ao ritual
judaico. Nessa ceia de Jesus e da comunidade não há encenação, tudo é feito na
maior sinceridade e transparência; por isso, o evangelista menciona o episódio
lamentável da traição de Judas (v. 2b): nada é imposto. A comunidade é livre
para acolher ou não o amor incondicional e extremo de Jesus e, portanto, no
seio dessa comunidade é possível que alguns o rejeitem, como Judas e outrora, e
tantos nas gerações sucessivas. No entanto, a oferta de amor não diminui diante
do risco de rejeição. Mesmo traindo, Judas continuou entre os “amados até o
fim”.
A
oferta do amor gratuito e intenso de Jesus pelos seus começou a se materializar
quando ele “levantou-se da mesa, tirou o manto, pegou uma toalha e amarrou-a
na cintura” (v. 4). Certamente, foi grande o espanto e a curiosidade gerada
nos discípulos com essa iniciativa de Jesus. Tirar o próprio manto em público é
renunciar ao prestígio e à própria dignidade pessoal; amarrar uma toalha na
cintura significa improvisar um avental e colocar-se em atitude de serviço; é
assumir a condição de servo. Com isso, o evangelista deixa cada vez mais clara
a oposição de Jesus à liturgia oficial do templo: a indumentária dos sacerdotes
do templo é um impedimento ao serviço; na comunidade de Jesus não se usa
paramentos, mas avental, não se cumpre ritos, mas se serve aos irmãos.
Na
sequência, o texto diz o que Jesus fez após deixar de lado o manto e pôr-se em
atitude de serviço: “Derramou água numa bacia e começou a lavar os pés dos
discípulos, enxugando-os com a toalha com que estava cingido” (v. 5). Assim
como os leitores ainda hoje ficam perplexos com essa cena, muito mais ficaram
os discípulos que estavam com Jesus. Aqui devemos considerar o ambiente e a
situação histórica na época: lavar os pés antes das refeições era uma regra
básica de higiene, sobretudo, porque as estradas eram bastante precárias, as
sandálias muito simples, o que deixava os pés sempre sujos, empoeirados.
Além
do estado permanente de sujeira dos pés, devido à simplicidade das sandálias e
condições das estradas, as refeições não eram feitas em mesas altas como as de
hoje, nem os comensais se sentavam em cadeiras, principalmente nos ambientes mais
simples. A mesa, geralmente, era apenas um tapete estendido no chão e, ao seu
redor, sentava-se em almofadas ou diretamente no chão. Por isso, lavar os pés
antes das refeições era uma exigência básica. Portanto, com essa atitude Jesus
não instituiu nenhum rito, mas ensinou aos discípulos de outrora e de sempre
que eles devem estar dispostos a servir ao próximo em suas necessidades mais
simples e básicas.
O
lava-pés era também um gesto de hospitalidade e acolhida: ao receber uma
visita, o dono da casa oferecia, imediatamente, a água para lavar os pés. A
grande novidade do gesto de Jesus está na sua autoria: esse papel era próprio
do escravo; às vezes, a mulher lavava os pés do marido. O homem livre fazia
isso apenas se recebesse em sua casa a visita de alguém muito ilustre, em
atitude de respeito e reverência. Ao fazer voluntariamente, Jesus inverte
completamente os valores: sendo ele Mestre e Senhor (vv. 13-14), fez o que era
típico do escravo. Com esse gesto, Jesus diz que fica abolida a hierarquia na
comunidade cristã, e a liturgia, enquanto rito, é substituída pelo serviço.
É
claro que houve reação dos discípulos à atitude de Jesus. O primeiro a
protestar foi Simão Pedro: “Tu nunca me lavarás os pés” (v. 8). Ora,
para quem tinha deixado tudo, imaginando seguir um “Rei de Israel”, deve mesmo
ser chocante deparar-se com um “servo”. Por isso, o espanto e a negação; o que
Jesus estava fazendo era inaceitável para quem tinha ambiciosas pretensões de
poder. A reação de Pedro revela também a resistência dos oprimidos nos
processos de libertação: as relações de igualdade parecem algo impossível para
quem conheceu apenas um mundo dividido entre grandes e pequenos, súditos e
chefes, e acabou naturalizando essas condições; Jesus com suas palavras e
gestos quis exatamente mudar essa realidade e visão de mundo.
O outro
motivo para a resistência de Pedro foi o medo das consequências do gesto de
Jesus: se o mestre lava os pés dos outros, os seus discípulos deverão fazer o
mesmo. Por isso, Pedro só aceitou a atitude de Jesus em última instância: se
não aceitasse não poderia mais fazer parte da comunidade: “Jesus respondeu:
Se eu não te lavar não terás parte comigo” (v. 8b). Aceitar um mestre servo
e se fazer servo com ele e como ele é condição para fazer parte da comunidade
cristã.
Após
a insistência de Jesus, Pedro aceitou, mas não compreendeu: “Senhor, então
lava não somente os meus pés, mas também as mãos e a cabeça” (v. 9). Com
essa resposta, Pedro quis desviar o foco da proposta: quis transformar
a atitude serviçal de Jesus em um novo rito de purificação, um a mais entre os
muitos que os judeus já praticavam e que Jesus tanto combatia. Pedro não aceita a
igualdade e não admite ter que servir ao próximo com a mesma intensidade com
que Jesus servia. Ora, transformando a atitude do lava-pés em um novo rito de
purificação, ele estaria se isentando do compromisso com o próximo e ganhando
mais um mecanismo de dominação ideológica, contrariando o ensinamento de Jesus.
No final,
certamente depois de muita insistência e resistência, o gesto de Jesus conclui
por si mesmo a catequese do amor-serviço: “Depois de ter lavado os pés dos
discípulos, Jesus sentou-se de novo” (v. 12). Sentar-se à mesa era um direito exclusivo da
pessoa livre; sentar-se de novo após o serviço é a consolidação da revolução de
valores instaurada: no banquete da vida, vivido e celebrado pela comunidade cristã, há
espaço para todos, principalmente para o que serve. Não pode haver divisão de
classes na comunidade, porque todos são iguais: o que senta à mesa, serve, e o
que serve, senta à mesa. O que era papel do escravo, lavar os pés, é agora
papel do homem livre que pode levantar-se e sentar-se conforme a necessidade.
As divisões hierárquicas não tem espaço na comunidade cristã, porque nessa
prevalece o movimento de sentar-levantar-sentar para que as necessidades do ser
humano sejam atendidas, desde as mais simples, como tirar a poeira dos pés, até
as mais complexas, como dar a própria vida por amor.
Jesus
em sua liberdade fez o papel do escravo para mostrar que na sua comunidade não
pode haver distinção de classe: não há mais espaço para a escravidão, todos e
todas são livres. O medo de Pedro consistia em não aceitar essa mudança de
paradigma, como hoje muitos ainda resistem, preferindo fechar-se a uma
mentalidade mais alinhada à religião do templo, duramente combatido por Jesus, do
que aos valores do Evangelho. Jesus celebrou a páscoa da subversão: substituiu
o rito pelo serviço, criou uma comunidade alternativa igualitária, na qual tudo
deve ser orientado a partir do amor-serviço.
Pe. Francisco Cornelio Freire Rodrigues, Diocese de Mossoró-RN
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