Neste quinto domingo da páscoa,
iniciamos a leitura do capítulo 15 do Quarto Evangelho, a qual será continuada no
próximo domingo, o sexto do tempo pascal. O trecho proposto para hoje,
especificamente, é Jo 15,1-8. Se trata de um texto rico e profundo, de alto
valor para a vida das comunidades cristãs, principalmente quando passam por
momentos de crise, com tendências ao desânimo na vivência da fé e dos valores
do Evangelho, sobretudo do amor.
Embora esteja inserido no longo
discurso de despedida de Jesus na última ceia, é muito provável que esse
capítulo, juntamente com o seguinte (c. 16), não tivesse a atual localização na
primeira redação do Evangelho, mas estivesse inserido em outra seção, uma vez
que o capítulo anterior terminou com a seguinte ordem de Jesus: “Levanta-vos,
saiamos daqui” (Jo 14,31b). É improvável que, após esse comando, Jesus
tenha continuado o discurso.
Considerando a preciosidade do
ensinamento, a comunidade julgou que esse deveria fazer parte do “Testamento
de Jesus” (Jo 13 – 17) e, por isso o transportou para o contexto da última
ceia. Ora, o que chamamos de “Testamento de Jesus”, iniciado com o gesto
inconfundível do lava-pés, é o coração do Quarto Evangelho, a sua parte mais
preciosa e essencial para a comunidade manter-se fiel no discipulado ao longo
da história. É, portanto, nessa perspectiva que devemos ler o Evangelho de hoje:
como um ensinamento imprescindível, constituinte do próprio ser da comunidade
cristã e, por conseguinte, da sua identidade. Como estar unido a alguém que não
se pode ver, como o Ressuscitado? Esse era um questionamento constante nas
comunidades cristãs das origens, principalmente nos momentos de perseguição. O
evangelista ensina que se permanece unidos produzindo frutos, ou seja, vivendo
o amor em plenitude.
O texto de hoje é marcado pela auto
apresentação de Jesus a partir da imagem da videira: “Eu sou a videira
verdadeira e meu Pai é o agricultor” (v. 1). Com a afirmação “Eu sou” (em
grego:
VEgw, eivmi – egô eimi), Jesus confirma sua
identidade divina; no Quarto Evangelho essa afirmação é repetida diversas
vezes, o que se explica pelas seguintes razões: dos quatro, é o Evangelho
segundo João o que apresenta mais rupturas de Jesus com o judaísmo e suas
tradições; a repetição constante da afirmação “Eu sou” funciona como garantia e
confirmação de que, não obstante as rupturas, a divindade de Jesus é a do mesmo
Deus que outrora se revelou a Moisés como “Eu sou” (cf. Ex 3,1-15). Portanto, a
ação libertadora e salvífica de Jesus é a mesma do único Deus que liberta
sempre, Iahweh.
A videira, juntamente com a
oliveira e a figueira, está entre as plantas clássicas da tradição bíblica para
representar a relação de Deus com seu povo, embora leve vantagem em relação às
demais, por gerar a matéria prima do vinho, símbolo da alegria, da felicidade e
do amor. Tanto os profetas quanto a tradição sapiencial fizeram uso dessa
imagem, referindo-se a Israel como destinatário do amor de Deus (cf. Is 5,1-7;
Jer 2,21; Ez 15,1-6; 17; 19,10-14; Sl 80), embora no Antigo Testamento
prevalecesse mais a figura coletiva da vinha, a plantação de videiras, do que a
figura individual da videira, como Jesus aplica a si.
É importante observar que Jesus
não se apresenta simplesmente como videira, mas como “a videira verdadeira”
(em grego: h` a;mpeloj h` avlhqinh. – hé ampelos
hé aletinê); com isso ele afirma que existem outras videiras não verdadeiras e,
por isso, a comunidade pode se enganar. É necessário, portanto, que a
comunidade de discípulos e discípulas esteja atenta. É importante também perceber
o papel do Pai: ele é o agricultor da videira verdadeira. Ora, esse Pai que
assume a função de agricultor, é o mesmo que assumiu a de Pastor, como
refletimos no domingo passado. Decepcionado porque os pastores tinham
apascentado a si mesmos, deixando perecer o rebanho (Ez 34), o Pai enviou Jesus
como pastor bom e belo, ao contrário dos mercenários; assim também os
agricultores não cuidaram da vinha como deveriam, e o resultado foi “uvas
azedas” (cf. Is 5,1-7). Por isso, o Pai assume pessoalmente a função de cuidar
da videira verdadeira, o seu Filho Jesus e, nele, fazer frutificar um novo
povo. A imagem da videira era usada também para representar a Lei, o que ajuda
também a compreender a ênfase do adjetivo “verdadeira”, ou seja, Jesus
contrapõe suas palavras e gestos às prescrições da Lei de Moisés.
O Pai, como agricultor, tem um
papel inconfundível: “Todo ramo que em mim não dá fruto, ele o corta, e todo
ramo que dá fruto, ele o limpa, para que dê mais fruto ainda” (v. 2). A
última palavra é sempre do Pai. A comunidade joanina passava por diversas
crises, e uma dessas era a tendência ao puritanismo e à hierarquização. Essas palavras
de Jesus são colocadas como respostas a essas tendências: ninguém pode ocupar o
lugar do Pai. A comunidade não é lugar de julgamentos e acusações. É o Pai que,
como agricultor único, a seu tempo, corta e poda os ramos conforme a capacidade
e disponibilidade de produzir frutos em cada um. E todos, frutíferos ou não, necessitam
da ação do Pai.
Se a comunidade está atenta às
palavras de Jesus, ela está limpa e, portanto, não necessita de nenhum rito de
purificação: “Vós estais limpos por causa da palavra que eu vos falei”
(v. 3). Muitos na comunidade joanina insistiam em querer conciliar o
ensinamento de Jesus com o conjunto de ritos judaicos, principalmente os de
purificação. Isso não é mais necessário. O que purifica é a adesão à Palavra, e
isso é atestado pelos frutos produzidos, ou seja, a prática do amor.
A necessidade da permanência em
Jesus é vital para a os discípulos e a comunidade: “Permanecei em mim e eu
permanecerei em vós. Como o ramo não pode dar fruto por si mesmo, se não
permanecer na videira, assim também vós não podereis dar fruto, se não
permanecerdes em mim” (v. 4). Ora, se durante a experiência terrena de
convivência com Jesus, vendo seus sinais e ouvindo suas palavras, os discípulos
ainda se “separaram” (traição de Judas e negação de Pedro), após a ressurreição
essa permanência se tornava ainda mais difícil, por isso o evangelista recorda
essas palavras e ressalta sua importância para a comunidade.
A alegoria atinge seu ápice
aqui: “Eu sou a videira e vós os ramos. Aquele que permanece em mim, e eu
nele, esse produz muito fruto; porque sem mim nada podeis fazer” (v. 5). Destacado
da planta, nenhum ramo pode frutificar. Se a característica dos discípulos e
discípulas é produzir frutos, isso só se faz estando unidos à planta. E para
que os frutos sejam bons é necessário que a planta à qual devem estar unidos
seja verdadeira. É por isso que, sem ele, a comunidade nada pode. São os frutos
que atestam se uma comunidade está unida ou não a Jesus. Esses frutos, por
sinal, são o cumprimento do mandamento do amor: “Nisto reconhecerão todos
que sois meus discípulos: se tiverdes amor uns pelos outros” (Jo 13,35).
Não há outro critério que ateste a união a Jesus que não seja o amor.
É claro que terá consequências
para quem não permanecer com ele, ou seja, para quem não produzir frutos ou, em
outras palavras, para quem não viver o seu amor: “Quem não permanecer em
mim, será lançado fora como um ramo e secará. Tais ramos são recolhidos,
lançados no fogo e queimados” (v. 6). Aqui não está a descrição de um
castigo, mas o retrato de uma vida sem sentido; de fato, não tem sentido a vida
de quem não ama. A falta de amor faz perecer a existência de qualquer pessoa.
Quem ama, consciente ou não, está unido a Cristo; da mesma forma, quem não ama
está separado, mesmo que tenha vínculos religiosos e participe de ritos e sacramentos.
A permanência do discípulo em
Jesus, semelhante à do ramo à videira, garante a sintonia entre ambos, a ponto
de a vontade de um ser confirmada pelo outro: “Se permanecerdes em mim e
minhas palavras permanecerem em vós, pedi o que quiserdes e vos será dado”
(v. 7). Não se trata de uma confiança mágica, mas de uma afinidade de
sentimentos. O discípulo e discípula que ama, vive com Jesus uma relação de
tamanha transparência, semelhante àquela entre Jesus e o Pai: “Eu e o Pai
somos um” (Jo 10,30).
A verdadeira glória a Deus não
se dá por meio de ritos ou hinos, mas simplesmente pelos frutos de amor: “Nisto
meu Pai é glorificado: que deis fruto e vos tornais meus discípulos” (v. 8).
Não se torna discípulo para dar frutos, mas é dando frutos que se torna
discípulo. Aqui o evangelista recorda à sua comunidade e às nossas, que o discipulado
é algo dinâmico, não é um status; ninguém nasce discípulo, mas se torna
discípulo à medida em que vai conduzindo a sua existência pelo amor, ou seja,
produzindo frutos. Quanto mais pessoas se tornam discípulos ou discípulas, o
amor de Jesus se espalha pelo mundo e, nisso, o Pai é glorificado.
Que possamos unirmo-nos cada
vez mais a Jesus, videira verdadeira, deixando-nos podar pelo Pai, para que,
produzindo frutos de amor, cheguemos realmente à condição de discípulos e
discípulas de Jesus Cristo.
Pe. Francisco Cornelio Freire
Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN
Padre Francisco simplesmente você é fantástico. Sou padre e moro na Itália e toda semana leio a sua rica reflexão. Quero ter a oportunidade de um desses momentos te telefonar para poder falar contigo. Obrigado por você existir e muito obrigado pelas suas belas e profundas reflexões exegéticas e teológicas.
ResponderExcluirPadre Nicivaldo de Oliveira Evangelista (Parrocchia San Benedetto Abate, Piavon di Oderzo. Diocesi di Vittorio Veneto.
Olá, caríssimo, que alegria ler o teu comentário. Gostaria de conversar contigo, também. Deus continue nos abençoando e nos fortalecendo, por meio da sua Palavra. Aqui está o meu e-mail: francornelio@gmail.com
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