Todos os anos, a liturgia do
quarto domingo da páscoa se serve do capítulo décimo do Evangelho segundo João,
no qual Jesus se auto apresenta como único, verdadeiro e bom pastor. Por isso, esse
domingo foi batizado como o “domingo do bom pastor”. Nesse ano, o texto
específico é Jo 10,11-18, versículos que contém, de fato, a apresentação de
Jesus como pastor, uma vez que nos primeiros versículos ele tinha se
apresentado simplesmente como a “porta das ovelhas” (cf. Jo 10,1-9).
A imagem de Jesus como bom
pastor caiu na graça do cristianismo desde os seus primórdios. Tornou-se
clássico representá-lo como um pastor carregando uma ovelha nos ombros, imagem
bonita, mas que não corresponde exatamente ao que Jesus fala de si no Quarto
Evangelho. Ora, aquela bela imagem do pastor com a ovelha nos ombros corresponde
ao personagem de Lucas na chamada “parábola da ovelha perdida” (cf. Lc 15,1-7).
A imagem de pastor presente no Quarto Evangelho é bem diferente: ele não
carrega nem conduz ninguém nos ombros, pois isso é sinal de dependência e privação
da liberdade. O pastor verdadeiro é aquele que aponta caminhos, é seguido porque o conhece verdadeiramente e se deixa conhecer.
É importante recordar que a
figura do pastor sempre foi muito significativa para o povo de Israel. Desde o
Antigo Testamento, essa imagem foi associada a Deus e também aos líderes que
assumiram funções de guia e comando sobre o povo, como reis e sacerdotes, principalmente. Devido
às infidelidades e descaso desses líderes, essa imagem foi se
desgastando ao longo do tempo, sendo alvo de denúncias da parte dos profetas. Uma
das denúncias mais fortes foi aquela do profeta Ezequiel: lamentando-se dos
pastores de Israel que apascentavam a si mesmos, ao invés de apascentar o
(povo) rebanho (cf. Ez 34,1-2), Deus toma a iniciativa de destituí-los e cuidar
ele mesmo do rebanho (cf. Ez 34,11).
Jesus atualiza a perspectiva do
profeta: sendo ele o único e autêntico pastor, estão destituídos os sacerdotes
do templo e os mestres da lei. Suas palavras tiveram grande repercussão porque
mexiam com os privilégios da classe dirigente de Israel, composta por funcionários do sagrado, ao invés de pastores verdadeiros.
A prova do incômodo causado pelas palavras de Jesus está na reação dos líderes judeus após o seu discurso: uns diziam que ele estava endemoniado (cf. Jo 10,20), outros
queriam prendê-lo (cf. Jo 10,39). A mensagem de Jesus foi uma ameaça aos
dirigentes que apascentavam apenas a si e às suas economias, explorando o povo
ao invés de protege-lo.
Ainda a nível de contexto, é oportuno
recordar que esse décimo capítulo do Quarto Evangelho é precedido pelo
episódio, também polêmico, da cura do cego de nascença (cf. Jo 9,1-41). É clara
a relação entre os dois textos: Jesus abre os olhos para que as pessoas não se
deixem enganar pelos falsos pastores, e adquiram lucidez e conhecimento para
seguirem ao único e verdadeiro pastor. Isso era inadmissível para um sistema
religioso que dominava a partir do medo.
Após apresentar-se como porta das
ovelhas, eis que ele se apresenta como pastor: “Eu sou o bom pastor. O bom
pastor dá a vida por suas ovelhas” (v. 11). Jesus fala de modo claro,
associando o discurso à práxis; diz que é o pastor bom e porque o é: porque dá
a vida por suas ovelhas. A tradução mais justa é “Eu sou o pastor belo”; o
evangelista emprega aqui um adjetivo que corresponde mais a belo do que a bom;
o belo (em grego: o` kalo,j – hó kalós) tem um sentido mais profundo:
não se trata de uma qualidade, mas da sua própria essência. Significa que Jesus
é o modelo único de pastor. Só há um critério para verificar a bondade-beleza
do pastor: a capacidade de dar a vida por suas ovelhas. A vida, nos escritos
joaninos, está intrinsecamente relacionada ao ato de amar. Portanto, dar a vida
significa amar sem limites. Essa é a essência do pastor belo.
Após apresentar-se como pastor,
Jesus apresenta a sua antítese: “O mercenário, que não é pastor e não é dono
das ovelhas, vê o lobo chegar, abandona as ovelhas e foge, e o lobo as ataca e
dispersa” (v. 12). O termo mercenário (em grego: misqwto.j – mistotós), que se tornou tão pejorativo,
equivale simplesmente a empregado, assalariado. Enquanto o pastor cuida das ovelhas por
amor, a ponto de dar a vida por elas, o mercenário cumpre suas funções por
pagamento e não chega a arriscar a vida por elas. Em situação de perigo, ele deixa o
rebanho a mercê, “pois ele é apenas um mercenário que não se importa com as
ovelhas” (v. 13). Aqui, Jesus chega ao ponto alto de sua crítica à
hierarquia religiosa de Jerusalém. Aos sacerdotes do templo, não importava a
situação do povo, eles pensavam apenas nas ofertas que recebiam.
O lobo representa todas as
forças de morte, exploração e injustiça que ameaçam a comunidade e a humanidade de um modo geral. Ao
invés de combate-lo, a religião comandada por mercenários prefere aliar-se ou
fugir dele. No caso da religião praticada no tempo de Jesus na Palestina, havia
conivência e conveniência entre as autoridades religiosas e o império romano,
de modo que mercenário e lobo conviviam muito bem, espoliando as pobres ovelhas
de Israel. É importante lembrar que todas as denúncias feitas por Jesus às
estruturas do seu tempo foram, ao mesmo tempo, alerta para que os seus
seguidores não repetissem tais erros.
Na sequência, Jesus explicita
como se dá sua relação de pastor com as ovelhas: “Eu sou o bom pastor.
Conheço as minhas ovelhas, e elas me conhecem” (v. 14). Esse conhecimento
recíproco sempre foi desejado por Deus ao longo da história: conheceu a Israel e
deixou-se conhecer por ele, mas Israel rejeitou o conhecimento (cf. Os 4,6),
por isso perdeu o seu rumo. Conhecer, na linguagem bíblica, não se trata de um ato cognitivo, mas de uma relação
íntima e recíproca, motivada pelo amor, semelhante à relação de Jesus com o
próprio Pai: “Eu sou o bom pastor. Conheço as minhas ovelhas, e elas me
conhecem, assim como o Pai me conhece e eu conheço o Pai. Eu dou minha vida
pelas ovelhas” (vv. 14-15). A intimidade de Jesus com os seus é atestada
pela sua capacidade de amar até dar a vida.
Enquanto os sacerdotes do
templo pensavam relacionar-se com Deus através do sangue de animais derramado
em sacrifício, Jesus se relaciona através do conhecimento recíproco, ou seja, através do amor. E esse modelo de relação, ele quer universalizar: “Tenho ainda
outras ovelhas que não são deste redil: também a elas devo conduzir” (v. 16a).
Aqui está a abertura de horizonte. Por necessidade, o seu pastoreio começa por
Israel, libertando o povo dos mercenários (dirigentes religiosos) e enfrentando o lobo
(império romano). Mas é necessário, através da comunidade cristã, estender essa
missão a todo o universo.
Nenhuma religião pode delimitar
o alcance do amor de Deus: também aqueles que não estão no redil pertence a Deus e são amados por ele. Como
diz Jesus, também “elas escutarão a minha voz, e haverá um só rebanho e um
só pastor” (v. 16b). A voz inconfundível de Jesus deve ressoar em todo o
universo, expressa na linguagem do amor, jamais através de proselitismos ou ritos. Sobre
o “sonho da unidade”, fazemos a seguinte observação: ao invés de um “só
rebanho e um só pastor”, a tradução correta seria “um só rebanho, um só pastor”,
sem a conjunção aditiva, como no texto grego (mi,a
poi,mnh( ei-j poimh,n – mía poímne, eis poimén), ressaltando a
unidade entre o pastor e o rebanho, a ponto de serem uma coisa só; o pastor é
rebanho, o rebanho é pastor, é essa a relação ideal na comunidade cristã, cujo
pastor único é Cristo, mas está tão unido aos seus como a videira aos ramos
(cf. Jo 15,1-5). A tradução “um só rebanho e um só pastor” foi
usada pela primeira vez por São Jerônimo, na Vulgata, e adotada pela Igreja
para ajudar a fundamentar a autoridade papal.
Jesus volta a ressaltar sua
unidade com o Pai: “É por isso que o Pai me ama, porque dou a minha vida,
para depois recebê-la novamente” (v. 17). Ora, é esse amor recíproco e
incondicional que fundamenta e sustenta a relação entre Jesus e o Pai, e que é
oferecido a toda a humanidade. Ao Pai, agrada a generosidade de Jesus: ele dá a sua vida livremente; a recebe novamente porque sabe que dar a vida por amor é,
na verdade, estendê-la, torná-la eterna. A vida eternizada pelo amor se torna
indestrutível, resiste até mesmo à morte. Por isso, de modo bastante
categórico, Jesus declara: “Ninguém tira a minha vida, eu a dou por mim
mesmo” (v. 18a). Não se trata de um mero entreguismo, nem de destino, nem
de acidente; é consequência de suas escolhas, e sua grande escolha foi viver ilimitadamente
o amor, e o amor incondicional não mede consequências.
A expressão “tenho o poder
de entregá-la e de recebê-la novamente” (v. 18b) significa a plena
consciência de estar amando com um amor igual ao do Pai. Inclusive, foi isso
que o próprio Pai lhe pediu: “essa é a ordem que recebi do meu Pai” (v.
18c). Jesus recebeu do Pai a ordem de amar até dar a vida, obedeceu porque
viviam uma relação de amor recíproco, a ponto de serem um só, como ele mesmo
diz na continuação desse discurso: “Eu e o Pai somos um” (v. 30). É isso
que ele pede aos seus seguidores de todos os tempos: viver em profundo amor entre
si e com ele, de modo que a comunidade cristã seja “um só rebanho, um só
pastor”, ou seja, uma comunidade de amor.
Pe. Francisco Cornelio Freire
Rodrigues – Diocese de Mossoró- RN
Nenhum comentário:
Postar um comentário