sábado, abril 21, 2018

REFLEXÃO PARA O IV DOMINGO DA PÁSCOA – JOÃO 10,11-18




Todos os anos, a liturgia do quarto domingo da páscoa se serve do capítulo décimo do Evangelho segundo João, no qual Jesus se auto apresenta como único, verdadeiro e bom pastor. Por isso, esse domingo foi batizado como o “domingo do bom pastor”. Nesse ano, o texto específico é Jo 10,11-18, versículos que contém, de fato, a apresentação de Jesus como pastor, uma vez que nos primeiros versículos ele tinha se apresentado simplesmente como a “porta das ovelhas” (cf. Jo 10,1-9).

A imagem de Jesus como bom pastor caiu na graça do cristianismo desde os seus primórdios. Tornou-se clássico representá-lo como um pastor carregando uma ovelha nos ombros, imagem bonita, mas que não corresponde exatamente ao que Jesus fala de si no Quarto Evangelho. Ora, aquela bela imagem do pastor com a ovelha nos ombros corresponde ao personagem de Lucas na chamada “parábola da ovelha perdida” (cf. Lc 15,1-7). A imagem de pastor presente no Quarto Evangelho é bem diferente: ele não carrega nem conduz ninguém nos ombros, pois isso é sinal de dependência e privação da liberdade. O pastor verdadeiro é aquele que aponta caminhos, é seguido porque o conhece verdadeiramente e se deixa conhecer.

É importante recordar que a figura do pastor sempre foi muito significativa para o povo de Israel. Desde o Antigo Testamento, essa imagem foi associada a Deus e também aos líderes que assumiram funções de guia e comando sobre o povo, como reis e sacerdotes, principalmente. Devido às infidelidades e descaso desses líderes, essa imagem foi se desgastando ao longo do tempo, sendo alvo de denúncias da parte dos profetas. Uma das denúncias mais fortes foi aquela do profeta Ezequiel: lamentando-se dos pastores de Israel que apascentavam a si mesmos, ao invés de apascentar o (povo) rebanho (cf. Ez 34,1-2), Deus toma a iniciativa de destituí-los e cuidar ele mesmo do rebanho (cf. Ez 34,11).

Jesus atualiza a perspectiva do profeta: sendo ele o único e autêntico pastor, estão destituídos os sacerdotes do templo e os mestres da lei. Suas palavras tiveram grande repercussão porque mexiam com os privilégios da classe dirigente de Israel, composta por funcionários do sagrado, ao invés de pastores verdadeiros. A prova do incômodo causado pelas palavras de Jesus está na reação dos líderes judeus após o seu discurso: uns diziam que ele estava endemoniado (cf. Jo 10,20), outros queriam prendê-lo (cf. Jo 10,39). A mensagem de Jesus foi uma ameaça aos dirigentes que apascentavam apenas a si e às suas economias, explorando o povo ao invés de protege-lo.

Ainda a nível de contexto, é oportuno recordar que esse décimo capítulo do Quarto Evangelho é precedido pelo episódio, também polêmico, da cura do cego de nascença (cf. Jo 9,1-41). É clara a relação entre os dois textos: Jesus abre os olhos para que as pessoas não se deixem enganar pelos falsos pastores, e adquiram lucidez e conhecimento para seguirem ao único e verdadeiro pastor. Isso era inadmissível para um sistema religioso que dominava a partir do medo.

Após apresentar-se como porta das ovelhas, eis que ele se apresenta como pastor: “Eu sou o bom pastor. O bom pastor dá a vida por suas ovelhas” (v. 11). Jesus fala de modo claro, associando o discurso à práxis; diz que é o pastor bom e porque o é: porque dá a vida por suas ovelhas. A tradução mais justa é “Eu sou o pastor belo”; o evangelista emprega aqui um adjetivo que corresponde mais a belo do que a bom; o belo (em grego: o` kalo,j – hó kalós) tem um sentido mais profundo: não se trata de uma qualidade, mas da sua própria essência. Significa que Jesus é o modelo único de pastor. Só há um critério para verificar a bondade-beleza do pastor: a capacidade de dar a vida por suas ovelhas. A vida, nos escritos joaninos, está intrinsecamente relacionada ao ato de amar. Portanto, dar a vida significa amar sem limites. Essa é a essência do pastor belo.

Após apresentar-se como pastor, Jesus apresenta a sua antítese: “O mercenário, que não é pastor e não é dono das ovelhas, vê o lobo chegar, abandona as ovelhas e foge, e o lobo as ataca e dispersa” (v. 12). O termo mercenário (em grego: misqwto.j – mistotós), que se tornou tão pejorativo, equivale simplesmente a empregado, assalariado. Enquanto o pastor cuida das ovelhas por amor, a ponto de dar a vida por elas, o mercenário cumpre suas funções por pagamento e não chega a arriscar a vida por elas. Em situação de perigo, ele deixa o rebanho a mercê, “pois ele é apenas um mercenário que não se importa com as ovelhas” (v. 13). Aqui, Jesus chega ao ponto alto de sua crítica à hierarquia religiosa de Jerusalém. Aos sacerdotes do templo, não importava a situação do povo, eles pensavam apenas nas ofertas que recebiam.

O lobo representa todas as forças de morte, exploração e injustiça que ameaçam a comunidade e a humanidade de um modo geral. Ao invés de combate-lo, a religião comandada por mercenários prefere aliar-se ou fugir dele. No caso da religião praticada no tempo de Jesus na Palestina, havia conivência e conveniência entre as autoridades religiosas e o império romano, de modo que mercenário e lobo conviviam muito bem, espoliando as pobres ovelhas de Israel. É importante lembrar que todas as denúncias feitas por Jesus às estruturas do seu tempo foram, ao mesmo tempo, alerta para que os seus seguidores não repetissem tais erros.

Na sequência, Jesus explicita como se dá sua relação de pastor com as ovelhas: “Eu sou o bom pastor. Conheço as minhas ovelhas, e elas me conhecem” (v. 14). Esse conhecimento recíproco sempre foi desejado por Deus ao longo da história: conheceu a Israel e deixou-se conhecer por ele, mas Israel rejeitou o conhecimento (cf. Os 4,6), por isso perdeu o seu rumo. Conhecer, na linguagem bíblica, não se trata de um ato cognitivo, mas de uma relação íntima e recíproca, motivada pelo amor, semelhante à relação de Jesus com o próprio Pai: “Eu sou o bom pastor. Conheço as minhas ovelhas, e elas me conhecem, assim como o Pai me conhece e eu conheço o Pai. Eu dou minha vida pelas ovelhas” (vv. 14-15). A intimidade de Jesus com os seus é atestada pela sua capacidade de amar até dar a vida.

Enquanto os sacerdotes do templo pensavam relacionar-se com Deus através do sangue de animais derramado em sacrifício, Jesus se relaciona através do conhecimento recíproco, ou seja, através do amor. E esse modelo de relação, ele quer universalizar: “Tenho ainda outras ovelhas que não são deste redil: também a elas devo conduzir” (v. 16a). Aqui está a abertura de horizonte. Por necessidade, o seu pastoreio começa por Israel, libertando o povo dos mercenários (dirigentes religiosos) e enfrentando o lobo (império romano). Mas é necessário, através da comunidade cristã, estender essa missão a todo o universo.

Nenhuma religião pode delimitar o alcance do amor de Deus: também aqueles que não estão no redil pertence a Deus e são amados por ele. Como diz Jesus, também “elas escutarão a minha voz, e haverá um só rebanho e um só pastor” (v. 16b). A voz inconfundível de Jesus deve ressoar em todo o universo, expressa na linguagem do amor, jamais através de proselitismos ou ritos. Sobre o “sonho da unidade”, fazemos a seguinte observação: ao invés de um “só rebanho e um só pastor”, a tradução correta seria “um só rebanho, um só pastor”, sem a conjunção aditiva, como no texto grego (mi,a poi,mnh( ei-j poimh,n – mía poímne, eis poimén), ressaltando a unidade entre o pastor e o rebanho, a ponto de serem uma coisa só; o pastor é rebanho, o rebanho é pastor, é essa a relação ideal na comunidade cristã, cujo pastor único é Cristo, mas está tão unido aos seus como a videira aos ramos (cf. Jo 15,1-5). A tradução “um só rebanho e um só pastor” foi usada pela primeira vez por São Jerônimo, na Vulgata, e adotada pela Igreja para ajudar a fundamentar a autoridade papal.

Jesus volta a ressaltar sua unidade com o Pai: “É por isso que o Pai me ama, porque dou a minha vida, para depois recebê-la novamente” (v. 17). Ora, é esse amor recíproco e incondicional que fundamenta e sustenta a relação entre Jesus e o Pai, e que é oferecido a toda a humanidade. Ao Pai, agrada a generosidade de Jesus: ele dá a sua vida livremente; a recebe novamente porque sabe que dar a vida por amor é, na verdade, estendê-la, torná-la eterna. A vida eternizada pelo amor se torna indestrutível, resiste até mesmo à morte. Por isso, de modo bastante categórico, Jesus declara: “Ninguém tira a minha vida, eu a dou por mim mesmo” (v. 18a). Não se trata de um mero entreguismo, nem de destino, nem de acidente; é consequência de suas escolhas, e sua grande escolha foi viver ilimitadamente o amor, e o amor incondicional não mede consequências.

A expressão “tenho o poder de entregá-la e de recebê-la novamente” (v. 18b) significa a plena consciência de estar amando com um amor igual ao do Pai. Inclusive, foi isso que o próprio Pai lhe pediu: “essa é a ordem que recebi do meu Pai” (v. 18c). Jesus recebeu do Pai a ordem de amar até dar a vida, obedeceu porque viviam uma relação de amor recíproco, a ponto de serem um só, como ele mesmo diz na continuação desse discurso: “Eu e o Pai somos um” (v. 30). É isso que ele pede aos seus seguidores de todos os tempos: viver em profundo amor entre si e com ele, de modo que a comunidade cristã seja “um só rebanho, um só pastor”, ou seja, uma comunidade de amor.


Pe. Francisco Cornelio Freire Rodrigues – Diocese de Mossoró- RN

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