O Evangelho deste décimo quinto
domingo do tempo comum é Mc 6,7-13, texto que apresenta o envio missionário dos
Doze por Jesus. Esse texto é apresentado pelo evangelista como a resposta de
Jesus à rejeição sofrida em sua terra natal, Nazaré (cf. Mc 6,1-6), como
refletimos no domingo passado. Ao sentir-se rejeitado enquanto portador da Boa
Nova de Deus, e até ridicularizado, como foi, a reação de Jesus não foi de
desespero, nem de condenação, mas uma tomada de consciência de que havia muito
mais a ser feito, os esforços deveriam ser dobrados daquele momento em diante. Era
necessário que a missão fosse ampliada com urgência. Jesus tinha consciência de
que aquela lamentável rejeição em Nazaré, marcada pela incredulidade dos seus
habitantes na sinagoga, não era um caso isolado, mas um retrato de todo o
Israel. Por isso, enviou os Doze para que sua missão se expandisse e os sinais
do Reino de Deus frutificassem mais rápido, tendo em vista a necessidade
urgente: Israel padecia e não havia mais razão para retardar o advento do
Reino.
Ainda a nível de contexto, é
importante recordar que Jesus constituiu os Doze com duas finalidades: “E
constituiu Doze, para que ficassem com ele, e para enviá-los a pregar, com autoridade
para expulsar os demônios” (Mc 3,14). Ora até aqui, no capítulo sexto, os
Doze tinham apenas estado com Jesus, acompanhando-o na sua itinerância,
escutando sua pregação e observando os sinais operados. O episódio de Nazaré
faz Jesus perceber que era chegado o momento de enviá-los, pois a necessidade
era grande. Jesus sabia que eles ainda não estavam totalmente prontos, pois no
prosseguimento do Evangelho lhes fará diversas correções e advertências pelas
incoerências percebidas (cf. Mc 8,33; 10,35). No entanto, era necessário fazer
um primeiro teste, tendo em vista as exigências das circunstâncias.
Ao invés de fechar-se diante da
rejeição sofrida, Jesus toma consciência da necessidade de ampliar a sua
missão, por isso, “chamou os Doze, e começou a enviá-los dois a dois”
(v. 7a). Certamente, na Galileia havia muitos outros povoados com gente fechada
e incrédula como em Nazaré. O envio dos discípulos visa fazer a Boa Nova do
Reino chegar a mais lugares simultaneamente. Jesus os envia dois a dois para
enfatizar a dimensão comunitária da fé. Conforme a mentalidade judaica, para um
acontecimento importante ser confirmado, era necessário o testemunho de pelo
menos duas pessoas. Porém, para Jesus e sua comunidade, o mais importante aqui
era a dimensão comunitária da vivência da fé. Não há razão alguma para individualismos
na comunidade cristã; a fé deve ser vivida e testemunhada em espírito de
partilha, ou seja, comunitariamente. Andando dois a dois, os discípulos tem
mais possibilidades de recordarem que os dons do Reino não são propriedade
deles, mas pertencem a Deus.
Jesus confere aos discípulos os
mesmos dons que recebeu do Pai, e os capacita a tornarem real a sua própria
presença durante a missão: “dando-lhes poder sobre os espíritos impuros” (v.
7b). Esses espíritos impuros são todas as forças do mal presentes no mundo que
geram violência, injustiça, exclusão, morte e preconceito; é tudo o que impede
o ser humano de uma relação saudável com o Deus da vida e com o próximo e
consigo mesmo; por isso, se constituem como obstáculos à realização do Reino de
Deus. Muitas vezes, esses elementos eram criados pela própria religião, como a
segregação e condenação por doenças físicas e psíquicas. O poder (em grego:
evxousi,a – ekzussia) conferido sobre
tudo isso é o mesmo que o próprio Jesus já exercia. Não é um poder de domínio
sobre as pessoas, mas o contrário: é o poder de combater tudo o que escraviza e
priva o ser humano de sua liberdade e dignidade plenas.
O envio compreende algumas
recomendações, das quais depende o êxito da missão: “Recomendou-lhes que não
levassem nada para o caminho, a não ser um cajado; nem pão, nem sacola, nem
dinheiro na cintura. Mandou que andassem de sandálias e que não levassem duas
túnicas” (vv. 8-9). A austeridade e simplicidade de vida é exigência
indispensável para o cumprimento da missão conferida por Jesus. O discípulo não
deve ter outra preocupação além da anúncio da Boa Nova, por isso deve deixar de
lado tudo o que possa distraí-lo e torna-lo sobrecarregado. A sobriedade ajuda
a manter o foco naquilo que é essencial, além de revelar total confiança na
providência de Deus. Desprovidos de qualquer segurança e conforto, os
discípulos missionários sentem a necessidade de adaptação ao que lhes for
oferecido. Ao mandar que os discípulos andassem de sandálias, Jesus reforça o
caráter itinerante da sua missão, apresentando-a como um constante caminhar. O lugar
do discípulo não é o lar com seu conforto, mas a estrada com seus perigos e
adversidades.
Escrito há cerca de três
décadas após a morte e ressurreição de Jesus, o Evangelho segundo Marcos já
reflete uma tendência preocupante para a comunidade cristã: o distanciamento do
estilo de vida de Jesus em seus seguidores. Ao recordar essas recomendações de
Jesus aos discípulos, o evangelista quis reforçar o que é essencial e chamar a
atenção da comunidade para não se distanciar do modelo de vida que Jesus propôs. Além
do estilo de vida, o evangelista também se preocupava com outros elementos
importantes que corriam o risco de desaparecer da comunidade, como a
hospitalidade, por exemplo. Por isso, recordou também as palavras de Jesus
sobre esse aspecto: “E Jesus disse ainda: “Quando entrardes numa casa, ficai
ali até vossa partida” (v. 10). Aqui, além de chamar a atenção dos
missionários para aceitarem o que lhes for oferecido como hospedagem, também se
chama a atenção da comunidade para acolher os peregrinos e missionários em casa.
Se estabelece, assim, uma reciprocidade na missão e na edificação do Reino. É
necessária uma real inserção nas diversas realidades pelos discípulos, de modo
que se sintam família na casa em que forem acolhidos, permanecendo nela
enquanto estiverem no mesmo povoado. Permanecer quer dizer criar relações e
laços duradouros. Da mesma forma, é necessário que as casas dos membros da
comunidade estejam sempre disponíveis para a acolhida dos peregrinos e
necessitados.
Tendo sido rejeitado em seu
próprio povoado, Jesus via a rejeição como uma possibilidade bem concreta e
possível, por isso, preveniu também os seus discípulos: “Se em alguma lugar
não vos receberem, nem quiserem vos escutar, quando sairdes, sacudi a poeira
dos pés, como testemunho contra eles” (v. 11). Essa recomendação reflete
bem o momento vivido por Jesus em Nazaré. Ainda chocado (cf. Mt 6,6) com a
rejeição ali recebida, Jesus alerta os discípulos a não insistirem, pois devem
respeitar a liberdade das pessoas; o Reino é anunciado e oferecido, mas não
pode ser imposto. Mais uma vez, o evangelista aproveita também essas mesmas
palavras para combater a tendência na comunidade de afastar-se do princípio da
hospitalidade. Todos devem estar disponíveis a acolher o peregrino, sobretudo,
quando esse é portador da Boa Nova. O “testemunho contra” não é uma
forma de condenação, mas a confirmação de que o Evangelho foi proposto, porém
foi rejeitado. As consequências para quem rejeita o Evangelho é viver privado
do amor e da bondade de Deus, tão essenciais para o sentido da vida.
Dadas as instruções de envio, “Então
os doze partiram e pregaram que todos se convertessem” (v. 12). Quanto ao
conteúdo específico da pregação, o evangelista não entra em detalhes. Apenas diz
que consistia num anúncio de conversão. Ora, conversão (em grego: metanoia – metanoia)
significa mudança de mentalidade e pensamento. A adesão aos valores do
Evangelho exige rupturas com a maneira tradicional de pensar e compreender as
coisas, inclusive a relação com Deus. Jesus percebeu em Nazaré que era urgente
que aquele povo passasse por um processo de conversão, passando a uma jeito novo de conceber o mundo, a vida e Deus. Por isso, enviando seus discípulos a
outros povoados, propõe que todas as pessoas passem por esse processo. Com a
mentalidade antiga conservadora, apegada à lei, era impossível acolher a
novidade do Reino de Deus.
Imediatamente, o evangelista já
antecipa o resultado da missão, por sinal, bastante positivo: “Expulsavam
muitos demônios e curavam numerosos doentes, ungindo-os com óleo” (v. 13). A
principal razão para chegar a tais resultados é a fidelidade ao que foi
recomendado. Quando a proposta de conversão proposta pelo Evangelho é aceita,
os sinais do Reino de Deus se evidenciam. O evangelista pensa na sua
comunidade, sobretudo: perseguições do império e hostilidade dos judeus. Com
muita probabilidade, esse Evangelho segundo Marcos foi escrito em Roma, durante
a perseguição de Nero. Era uma época em que o mal prevalecia explicitamente, e
a ação dos cristãos parecia ter pouco efeito no combate. No entanto, se as
palavras de Jesus forem realmente vividas, muitos resultados serão alcançados. O
uso do óleo como um elemento medicinal e terapêutico era muito comum na
antiguidade, e o cristianismo conservou essa tradição, adotando-o como elemento
sacramental. Os doentes são, em Marcos, a síntese do necessitado e, por isso,
destinatários privilegiados dos anunciadores da Boa Nova.
Ao ler e meditar hoje esse
trecho do Evangelho segundo Marcos, a comunidade cristã é convidada a refletir
sobre a sua fidelidade aos ensinamentos de Jesus e ao seu envio, para
recuperar aquilo que é realmente essencial à vida cristã. No mundo de hoje, marcado
pelo individualismo e pela competitividade, não faltam questionamentos sobre a
eficácia do anúncio cristão. A única resposta adequada a esses questionamentos
é a coragem dos cristãos e cristãs para voltarem a viver à maneira de Jesus,
como ele mesmo recomendou aos primeiros discípulos enviados.
Se em apenas três décadas após
a morte de Jesus, Marcos percebeu que sua comunidade já dava sinais de
distanciamento da sua proposta de vida, muito mais pode ser percebido depois de
dois mil anos. Por isso, a necessidade de conversão é cada mais urgente. Que
possamos, enquanto cristãos e cristãs, identificar os males que nos impedem de
viver radicalmente o que Jesus propõe, para o Reino de Deus ser de novo
experimento e vivido.
Pe. Francisco Cornelio
Freire Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN
Que bonito! Obrigada!
ResponderExcluirObrigado pela leitura, interação e atenção!
ExcluirAbraços,
Pe. Francisco Cornelio.
É a segunda vez que leio suas reflexões e foi de grande auxílio. Obrigado por compartilhar conosco seus textos.
ResponderExcluirOlá, Carlos, seja bem vindo! É uma alegria contar com a tua interação. Que a Palavra ressoe em nossos corações e em nossas vidas! Um forte abraço,
ExcluirPe. Francisco Cornelio.
Obrigada por compartilhar seus estudos e reflexões com a comunidade... é sempre um aprendizado ter contato com seus textos!
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