Neste décimo oitavo domingo do tempo comum, continuamos a
leitura do capítulo sexto do Evangelho segundo João. Embora a liturgia salte
alguns versículos (cf. Jo 6,16-23), o texto proposto para hoje – João 6,24-35 –
está em perfeita continuidade com aquele do domingo passado (cf. Jo 6,1-15).
Após o sinal da partilha ou multiplicação dos pães, a multidão, saciada e
impressionada com o sinal cumprido por Jesus, teve a tentação de querer
proclamá-lo rei, o que fez com que Jesus se afastasse, pois aquela ideia era
uma distorção do sinal cumprido e da sua própria missão de enviado de Deus. Uma
interpretação equivocada dos sinais cumpridos por Jesus e da sua identidade de
messias servidor colocava em risco a eficácia do seu projeto de redenção e vida
plena para a humanidade inteira.
Enquanto Jesus se refugiou para não alimentar os anseios
triunfalistas e interesseiros da multidão, essa o procurou até encontra-lo, já
na outra margem do mar ou lago, na cidade de Cafarnaum, como mostra o texto: “Quando
a multidão viu que Jesus não estava ali, nem os seus discípulos, subiram ás
barcas e foram à procura de Jesus, em Cafarnaum” (v. 24). Embora Jesus
mesmo tenha se afastado, era compreensível a ânsia da multidão querendo estar
ao seu redor, uma vez que essa é a mesma multidão que padecia, abandonada como
ovelha sem pastor, de quem Jesus sentiu compaixão (cf. Mc 6,34). Diante da
multidão abandonada, Jesus agiu como pastor e guia, ensinando o dom da partilha
como primeiro meio de superação da crise material pela qual passava. Porém,
Jesus se preocupava com as reais intenções da multidão à sua procura e não queria
alimentar falsas e ilusórias expectativas.
Ao encontrar Jesus, a multidão interage com ele, pela
primeira vez: “Quando o encontraram no outro lado do mar, perguntaram-lhe:
“Rabi, quando chegaste aqui?” (v. 25). A pergunta em si é pouco
significativa e carente de profundidade, mas muito importante porque abre
caminho para uma interação cada vez maior entre o Mestre – Rabi, em hebraico –
e o povo. Ao dirigir essa pergunta, a multidão consegue ver Jesus como alguém
acessível, o que poderia ser o início de uma nova compreensão a seu respeito.
De fato, essa é a primeira vez que a multidão fala direta e abertamente com
Jesus. Ao considera-lo mestre, abre-se a possibilidade para o nascimento de um
novo discipulado. De fato, fazia parte da pedagogia de Jesus gerar discípulos e
discípulas a partir das multidões anônimas.
À pergunta da multidão, “Jesus respondeu: ‘Em verdade, em
verdade, eu vos digo: estais me procurando não porque vistes os sinais, mas
porque comestes pão e ficastes satisfeitos” (v. 26). Com bastante clareza e
objetividade, Jesus expõe as intenções da multidão lhe procurar. Não se tratava
de reconhece-lo e aceita-lo como aquele que Deus enviou ao mundo para salvar e
dar vida em abundância (cf. Jo 3,16; 10,10), mas de querer perto de si alguém
que fornece pão gratuitamente. Jesus sabia que estava sendo procurado pelo que tinha
feito, e não pelo que realmente era. Porém, não desperdiçou a ocasião, mas
aproveitou para iniciar uma ampla e profunda catequese, recordada pelo
evangelista João como essencial para a sua comunidade e para a comunidade cristã
de todos os tempos.
Cercado por uma multidão saciada recentemente por poucos
pães e peixes, mas já faminta de novo, Jesus a convida a buscar algo muito
maior e mais eficaz: “Esforçai-vos não pelo alimento que se perde, mas pelo
alimento que permanece até a vida eterna, e que o Filho do Homem vos dará. Pois
este é que o Pai marcou com seu selo” (v. 27). Esse convite-imperativo se
assemelha muito ao que Jesus já tinha feito à mulher samaritana que buscava
água no poço de Jacó; ali, Jesus falara que a água daquele poço saciava por
alguns momentos e, embora necessária, beber dela não era suficiente para o ser
humano viver saciado. Por isso, ele falou de uma água que saciava para sempre
(cf. Jo 4,1-42). Aqui, com a multidão, ele faz praticamente o mesmo: convida a
alimentar-se com um alimento que não se perde, mas que permanece até a vida
eterna. Esse alimento só pode ser dado por ele mesmo, pois é ele o Filho do
Homem, marcado pelo Pai com o seu selo, o Espírito Santo e o amor que os une.
Com o sinal da partilha dos pães, Jesus tinha ensinado a
multidão a superar, por si mesma, as suas dificuldades, principalmente o
problema da fome. Com os pães e peixes apresentados pelo menininho, ficou a
lição da partilha e solidariedade que brota dos pequenos. Aquele gesto poderia
ser feito sem a presença física de Jesus, por isso, ele via como desnecessária
a busca da multidão por algo que ela mesma era capaz de fazer. Daí, o convite
para buscar algo mais profundo e não menos necessário: o alimento para uma vida
plena, com sentido e dignidade plenos, a vida eterna, imune até mesmo à morte.
O pão que nutre para a vida eterna, de fato, só pode ser dado por Jesus, porque
é ele mesmo na inteireza do seu ser. Alimentar-se desse pão é assumir na
concretude da vida o estilo de Jesus, fazendo escolhas semelhantes às suas,
amando com um amor à sua maneira. É isso que gera eternidade de vida, pois, uma
vida autêntica assim não pode ser destruída nem mesmo pela morte.
As palavras de Jesus geraram reflexão na multidão, e um
desejo de aprofundamento, embora essa ainda estivesse presa à teologia
retributiva da lei: “Então perguntaram: “Que devemos fazer para realizar as
obras de Deus?” (v. 28). A pergunta sobre “o que fazer” é típica da
mentalidade judaica, de quem foi educado para fazer e não para ser. Fazer obras
para merecer algo é negar a salvação como dom de Deus. Por isso, a resposta de
Jesus é categórica: “A obra de Deus é que acrediteis naquele que ele enviou”
(v. 29). Embora fosse uma característica das comunidades paulinas, parece que a
dicotomia entre fé e obras estava presente também na comunidade joanina. Pelo
menos é isso que esse trecho revela. A resposta Jesus esclarece que não se
trata de um fazer, mas de acreditar nele. É claro que aquilo que se deve fazer
é importante, mas isso deve partir de uma adesão livre e consciente, e não de
uma mera imposição legal. A vida cristã é marcada pelo agir, mas não porque há
uma regra que determine, mas sim porque quem dá adesão a Jesus, pela fé, é
motivado a agir como ele, servindo, sanando dores e feridas, sobretudo, dos
mais necessitados.
Na continuidade da interação entre Jesus e a multidão, da
qual surgirá a grande catequese eucarística, a qual será continuada nos
próximos domingos, percebemos a curiosidade e o desejo da multidão em aderir à
proposta de Jesus, e ao mesmo tempo os entraves ideológicos de uma religião
conservadora, ritualista e legalista, como era o judaísmo da época. Por isso, a
exigência de sinais e prodígios, e a comparação com o passado: “Eles
perguntaram: “Que sinal realizas, para que possamos ver e crer em ti? Que obra
fazes? Nossos pais comeram o maná
no deserto, como está na Escritura: ‘Pão do céu deu-lhes a comer” (vv.
30-31). O evangelista mostra, com isso, a sua preocupação com a comunidade que
necessita ver a realização de sinais para crer. Isso é impor condições, o que
faz tornar secundário aquilo que é essencial: o amor gratuito e incondicional
de Deus, ou seja, a graça. Catequizados pelas narrativas portentosas do
Pentateuco – a Lei/Torah – as quais exaltam exageradamente os atos de Moisés,
as pessoas tinham dificuldades de assimilar e aceitar que Deus pudesse se
revelar na simplicidade de Jesus. A menção à experiência do deserto e aos pais
que lá comeram o pão, o maná, evidencia a denúncia que o evangelista mostra de
como o apega às tradições podem bloquear a comunidade de sentir a graça e o
amor vivificante e gratuito de Deus revelado em Jesus.
Jesus responde de modo categórico: “Em verdade, em
verdade vos digo, não foi Moisés quem vos deu o pão que veio do céu. É meu Pai
que vos dará o verdadeiro pão do céu, pois o pão de Deus é aquele que desce do
céu e dá vida ao mundo” (v. 32-33). A fórmula “em verdade, em verdade” (em
grego: avmh.n avmh.n – amén, amén) sempre introduz um
ensinamento de fundamental importância. E a distinção entre Jesus e todos os
personagens do Antigo Testamento é muito importante e indispensável para a
sobrevivência da comunidade cristã. Jesus esclarece que, na verdade, até mesmo
aquele pão comido no deserto pelos antepassados já era dom de Deus, e não obra
de Moisés; e aproveita para apresentar a sua novidade, como o verdadeiro “pão
de Deus”, o que continua despertando curiosidade e interesse na multidão
que pediu: “Senhor, dá-nos sempre desse pão” (v. 34), assim como a
samaritana tinha pedido a água eterna.
Jesus percebe que o caminho estava preparado para iniciar a
sua grande catequese eucarística: “Eu sou o pão da vida. Quem vem a mim não
terá mais fome e quem crê em mim nunca mais terá sede” (v. 35). De
doador de pão que alimenta por poucas horas, Jesus se apresenta como o próprio
pão que alimenta para a vida toda. Aceitar essa revelação implica criar
intimidade com ele, deixar-se alimentar pela sua vontade e, consequentemente,
ter toda a vida conduzida conforme o seu modo de viver. Aqui está o início do
grande discurso eucarístico de Jesus no Quarto Evangelho, o qual será
continuado na liturgia dos próximos domingos.
Impressiona a pedagogia de Jesus: de uma realidade material
e efêmera, o pão partilhado que alimentou a multidão, ele eleva o seu auditório
ao conhecimento de algo muito mais profundo, que é o dom da sua pessoa como
enviado do Pai para, nele, o mundo todo ter vida em abundância. Para isso, a
comunidade deve tê-lo como único centro e referência a ser seguida. Se a
eucaristia dominical, e até diária, não leva a essa centralidade, não passa de
uma versão nova do maná comido pelos antigos israelitas no deserto. A
eucaristia alimenta para a vida eterna quando seus partícipes aderem à maneira
de viver de Jesus.
Pe. Francisco Cornelio Freire Rodrigues – Diocese de
Mossoró-RN
Pe. Francisco, há vários domingos descobri seus comentários e muito tenho me beneficiado com eles. Fazem com que a participação no domingo que se segue fique bem mais frutuosa. Logo na segunda ou terça feira, lá estou eu acessando o Google. Pelo modo de viver sua vocação e por sua dedicação, muito lhe agradeço.
ResponderExcluirBoa tarde, Maria Apparecida. Leio teu comentário com muita alegria, por estar contribuindo no aprofundamento da Palavra. A cada sábado eu renovo o reflexão, acrescento algo ao comentário de três anos atrás, com base em novas leituras que faço, mas a mantenho a base. Seja muito bem-vinda a este humilde espaço.
ExcluirDeus te abençoe.
Obrigado padre Francisco.Suas reflexões e comentários à Palavra de Deus são muito substanciosas e servem para que eu agregue mais conteúdo nas preparações de minhas homilias dominicais.
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